Você está na página 1de 300

1

Padre Zeno, obedientíssimo rebelde

Eu, Padre Zeno Saltini,


caloteiro para o Minístro da Justiça,
herege para o Nuncio Apóstolico,
pai para 4.000 filhos,
conto a minha história
2

“Autobiografia” redigida pelo meu escrivão, Fausto Marinetti,


juntando trechos das minhas cartas, escritos, discursos,
testemunhos.

Síntese biográfica
Padre Zeno Saltini: Fossoli de Carpi (Modena) 30.8.1900,
Grosseto 15.1.1981. “Cresço numa família patriarcal da Emília
Romagna, um barril social em ebulição. Aos 14 anos de idade
rejeito a escola: “É aí que a sociedade nos divide”.
Em 1920 o contraditório: um colega anárquico me leva
para mudar de civilização: “Não mais patrão, não mais servo”.
Dos vinte aos trinta anos de idade me preparo para a minha
missão: “Não pondo esparadrapos com a assistência, mas
dedicando-me à reconstrução da vida social segundo a fé”.
Amigo de todos, também dos pequenos delinquentes, quanto
mais estudo advocacia, para defendê-los no tribunal, mais
percebo que precisam reencontrar uma família nova.
Aos 31 anos, sacerdote, assumo como filho Barile, recém-
saído do cárcere: o primeiro de quatro mil. A casa paroquial é
invadida pelos abandonados, que agrupo em pequenas famílias.
Em 1941 uma menina foge de casa para se tornar a mãe
deles. Prego, com a sanfona nas costas, nas praças e nas
3

tavernas. Proponho às famílias de fraternizar-se entre si para


dar mais segurança aos filhos. Indiciado, vou adiante e
proponho às autoridades civis e religiosas de dar uma família
aos órfãos.
Em 1945 lanço o movimento dos dois amontoados:
“Quem tem dinheiro por uma parte, quem não tem por outra e se
vai ao poder com a lei”. Em 1948, visto que o povo não quer
fraternizar-se, com os meus, ocupo o ex-campo de concentração
de Fossoli. Derrubam-se com as mãos as muralhas e os arames
farpados: a guerra dos anjos. Sobre os escombros do ódio
nasce Nomadélfia: onde a fraternidade é lei. Visitantes da
Itália toda acorrem para ver a Cidade de Deus, tão diferente ao
ponto que as madames se privam de suas joias, jovens casais
entram na comunidade, seis frades Servitas fogem do convento
para fazer experiência da heresia do amor. Pretendo esvaziar os
orfanatos, libertar os presos, fazer a política de Deus. Não mais
ricos e pobres, assistentes e assistidos, todos no mesmo nível ou
seja, em pé de igualdade.
Em 1950 proponho de novo ao povo de fraternizar-se. A
DC (Democracia Cristã, o partido da Igreja), temendo um padre
diferente e fora de controle, induz o Vaticano a retirar os
sacerdotes de Nomadélfia (1952). Obedeço com a morte no
coração. Afastado o comandante, a tripulação é debandada, a
comunidade reprimida, muitos filhos voltam para a vida
criminosa. A consciência está provada, em 1953, embora não
queira, peço para voltar ao estado laical “pro gratia”: “Se
não posso ser o pai deles como padre, deixem que o seja como
leigo”.
Em 1962 sou reintegrado como pároco da primeira
paróquia comunitária. Lanço várias iniciativas: noites dançantes
(para difundir a fraternidade social com a dança), escola viva,
universidade da Nova Civilização, jornalzinho, proposta da
democracia direta”.
4

Do berço ao quartel, do quartel ao seminário

1 - A família patriarcal

A primeira vez que vi a vida, estava na cama grande de meu


pai e de minha mãe, a qual abria a janela na luz vermelha do por
do sol. A sua figura no ato de abrir os braços, formava uma cruz
num mar de sangue. Um presságio?
Nasci em Fossoli de Carpi na tarde do dia 30 de agosto de
1900, enquanto no quintal se batia o trigo. Nono de 12 filhos,
cresço numa família patriarcal: os avós, quatro filhos casados,
noras, sobrinhos, 35 pessoas. Vivemos todos juntos, tutt un pan e
un vein (um só pão, um só vinho) tendo a economia em comum.
Sempre unidos: nos dias de festa e nos dias de luto, nas festas de
batizados e nas festas de casamento. Esta vida deixa em mim a
impressão de grande segurança afetiva e econômica. Não
somente os pais, mas, todos se interessam pela nossa educação.
Os avós não têm autoridade direta, mas nós jovens apelamos ao
avô, que resolve muitos problemas. Quando penso na minha
infância vejo logo esta figura influente, sábia, forte como um
carvalho. Quando vai almoçar com os netos, é posto na cabeceira
da mesa, fala e todos escutam: um respeito! Pergunta ao netinho:
5

“Te comportaste bem? Que disse a professora? E o padre?”.


Finge de não ouvir os pequenos que fazem barulho. As mulheres
se queixam, bisbilhotam. Inevitáveis contrastes, brigas, ciúmes,
que se resolvem por causa da nossa união.
Vida marcada pelas estações, pelas tradições, por uma
cultura sábia. Os animais devem arar, o cachorro caçar, as
criações nos alimentar. Sinto-me no centro do universo, eu,
menino, guiando os bois possantes no alto de uma carroça que
leva estrume. Estalo o chicote e me obedecem. Juventude viva:
conflitos sociais, procura da fé. O Senhor me joga no meio do
povo como quem é jogado na água para aprender a nadar. Ajudo
a mãe, que me conta algumas parábolas: “Havia um camarada
que não acreditava na providência. O senhor lhe diz: “Pega e
quebra aquela pedra.”. Dentro, um verme gordo. “Vê? Deus sabe
alimentar uma criatura também nas pedras”.
Na vila, muita miséria. Um povo de camponeses, cujas
famílias não são unidas como a nossa. Os filhos são motivos a
serem festejados no batizado com nhoques fritos, vinho branco
para as mulheres, vinho tinto para todos.

2 – O avô com sabedoria e autoridade

O avô José: 17 propriedades, terras alugadas, quase sessenta


trabalhadores. Nunca despediu ninguém. Logo que os socialistas
organizam uma greve, ele entra num acordo. Muitas vezes vou
para a escola com ele no charrete. Explica-me muitas coisas. Se
encontra um trabalhador de bicicleta, ele deixa-o passar para que
possa evitar os sulcos das carroças. “Lembra: é o trabalhador que
mantem o mundo”. Um dia de domingo nos surpreende em
recolher o feno enquanto o céu ameaça chuva. “A festa é o dia de
descanso. Os trabalhadores têm direito de frequentar as tabernas,
os bois de descansar. Arrumem-se e venham na igreja comigo”.
De alma nobre, no passeio para Assis, nos encontra sentados nos
degraus para almoçar: “Não sejam ciganos. Em casa se faz
regime, fora se vai ao restaurante”.
A uva, a caça, a pesca nos pantanais. Um teor de vida
modesto. Vou a Carpi com os sapatos nas costas e os calço
somente na cidade. As festas, um evento muito belo. A avó
6

prepara o doce na cozinha, enquanto na sala dançam, as mulheres


falam de namoro, as crianças brincam. Quando tudo está pronto,
veste uma bela roupa preta de seda, mete as pulseiras, desce toda
elegante e serve com muita delicadeza.
Frequenta-se o culto com simplicidade. Tudo se refere a um
princípio religioso. Não se diz: “Faz isso, porque eu mando”, mas
“Se faz assim, porque é Deus que o quer”. Minha mãe me ensina
orações tão simples, que me levam a sentir Deus e os santos
como se fossem parentes: “Na cama eu me deitei/, sete santos
encontrei/ sete aos pés/ sete no travesseiro/ todos os santos são
meus irmãos iguais”. Quando perde a paciência, pelo meu
espírito de contradição, se queixa: “Tu não estás de acordo com
ninguém, nem contigo mesmo”. Gosta de contar histórias como
aquela do inventor da cerâmica: “Uma vez a louça era de
terracota, sempre gordurosa. Um camarada compra lenha, faz
pratos de argila, pinta e põe no forno. Queima, queima, queima…
Nada. Corre para casa, quebra portas, janelas, móveis e joga tudo
no fogo. A mulher se desespera, ele derruba a madeira do telhado,
sacrifica tudo, até obter uma bela pátina de vidro. Quando se quer
obter um resultado, se faz de tudo para consegui-lo”.
No verão os camponeses trabalham como escravos 12 horas
de baixo do sol, um pedaço de polenta e água morna. Todas as
noites um coro: o sinal da volta dos campos, em procissão. Após
a janta, no verão, no quintal cantam com os grilos; no inverno,
nos estábulos, nós debulhando o milho, contando histórias e
fábulas.
Aos sete anos, aluno procurando protagonismo, como prova
de habilidade aos meus colegas. A professora está almoçando.
“Querem ver se acerto o alvo?”. Estico a funda, aponto para a
janela, é reduzida em pedaços, todos fogem. Uma repreensão,
mas eu exulto em meu coração: “Consegui!”. Uma sombra
atravessa a família: meu irmão Vicente vai para o seminário,
minha irmã Nina foge com o namorado e se casa.

3 – Fossoli

Mais crescido, olho ao meu redor. Vivo em Fossoli, vila de


Carpi, dois mil habitantes, na Emília vermelha (comunista):
7

“Terra esquisita, polêmica, profanadora. Gente preparada para


lutar por uma idéia, acostumada a sair de casa com a faca para dar
enfâse aos seus discursos com ela”. A vila é um aglomerado de
casebres, ninhos de pulgas e doenças. Um par de famílias possui
sete mil hectares. Alguns trabalhadores diretos, alguns parceiros,
muitos diaristas. No inverno, neve, desemprego, fome, chagas,
tuberculose, alcoolismo. Quem rouba a lenha, quem esvazia os
galinheiros, quem pede esmola. Todo domingo um comício.
Greves, brigas na praça. Vou à Igreja e não entendo nada; os
comunistas falam de pão e trabalho. Acompanho, curioso, suas
procissões atrás de uma bandeira vermelha. Uns vinte anos de
lutas que me obrigam a uma tomada de consciência: “As misérias
são demais e precisamente entre os cristãos que de Cristo só têm
o nome”. Nascem as ligas vermelhas e as ligas brancas, o
semanal socialista Luz e Operario Católico. Em Carpi, Alfredo
Bertesi, deputado socialista, organiza os trabalhadores. Para a
greve de 1907 chegam em Mirandola 500 soldados; em 1912 os
habitantes de Fossoli cruzam os braços por um mês. Muitos
procuram uma solução social. Na minha alma um paradoxo: por
que nascem ricos e pobres, afortunados e desventurados? Não é
verdade: nascemos todos nus. Os meus amigos, no inverno, com
os tamancos e crostas; para mim não falta nada. Trabalho com os
camponeses do avô e vejo a diferença: a cada ano ele compra um
pedaço de terra e eles sempre mais magros. É difícil entender a
miséria se não a se vive: Barriga cheia não entende a vazia! Nós
no charrete, os outros a pé. Somente os ricos possuem cavalos de
raça e, quando passam, todos ficam de boca aberta.
Diversos acontecimentos, como a morte do tio Humberto,
me ensinam para sempre. Casa com uma rica, vão morar por
conta própria. Os negócios não vão bem, se desespera, se mata
com um tiro. O avô: “Não falem mais dele”. Diz aos netos: “De
agora em diante o pai de vocês sou eu”. Respeitável em sentido
positivo, os tipos como ele são chamados de resdor, regentes, rei.
E eu aprendo a respeitar a autoridade pela sua função em cada
grupo social. Mas o vínculo do sangue é fraco. Depois da morte
dele, os filhos se dividem.

4 – Rejeito a escola (1914)


8

Frequento as escolas técnicas de Carpi. Falam sempre de


pessoas mortas: um cemitério. Um professor fala de mulheres,
um outro contra a Igreja. O que me interessa é viver com os
trabalhadores, escutar a cultura milenária dos idosos. Da janela
olho os pássaros e tenho inveja deles. Para os burros da turma, no
último banco, é uma alegria jogar bolinhas de pão na cabeça dos
outros. No segundo ano começo a faltar aula. O vigário me dá
apoio, meu pai não quer. A mãe vai falar com o diretor. Todo
desesperado, diz: “Vou aprová-lo, mas não venha mais em sala de
aula”.
Aos 14 anos saí da escola, como um passarinho foge da
gaiola. Vou para casa por uma estradinha entre os cantos dos
pássaros. Corro, descalço, sobre as flores e a grama, um tapete.
Pulos e piruetas! É o Senhor que me ensina a abrir o caminho
para a nova civilização, recusando a cultura tradicional que
tortura a minha mente e oprime o meu espirito. Por que se nasce
ricos e pobres? Uma fixação. Quando crianças nos habituam à
competição, quando adultos à violência. Não se pode fechar um
jovem num molde: fica calado, fica parado, desenha, escreve.
Nada de sala de aula! A sua vida é como aquela das lebres, dos
pássaros. O menino é apagado, morto pelo nocionismo.
Nomadélfia nasce em 1914, quando o Senhor me faz perceber o
horror pela cultura abstrata, agnóstica, seletiva.
A natureza é a minha professora. Cada dia levo para pastar
10, 15 porcos. Parecem todos iguais e não há um idêntico ao
outro. Os chamo pelo nome. Observo quando a porca cria, dá o
leite, tudo. Uma coisa bela! É pouca coisa fazer nascer um novo
ser?
O povo vive uma vida simples. Em janeiro, enquanto a terra
dorme, se apela a todos os santos, se fazem procissões de rito. Em
setembro se celebra a colheita da uva e as missões. O cristianismo
chegou a criar um costume, que influenciava o ambiente social.
Gosto de participar das festas populares ao culto dos mortos. Um
protestante comenta: “As almas do purgatório são a panela dos
padres”.
Em ’12, a Rovereto, seis meses de greve. O trigo apodrece,
os animais morrem. Passam fome, mas continuam, vencem.
9

Lendária a greve contra Roversi. Os demonstrantes apitam,


brigam. Voam pedras. Alguns tiros de revolver. Uma menina, não
sabendo de nada, vai para frente. As mulheres: “Parem! Será que
somos animais e não gente?”. Param de vez e vão para a casa do
povo, cantando seus hinos revolucionários (I due Regni, 121).
Os meus livros tornam-se camponeses, como Righin,
trabalhador do avô, socialista genuíno. Observo-o seco como
choupo enquanto plantamos as videiras. Fala da indignidade do
analfabeto, do suor explorado: “Nós seres humanos, vivemos
como escravos! Cristo está conosco, porque prega a igualdade e a
liberdade. Não aquela de morrer de fome”. Sinto para ele mais
compaixão que fraternidade. Quando se esquenta: “Poderia ser
teu pai, mas tu és o patrãozinho, que me considera um ser
inferior. Justiça eu quero, não compaixão”.

5 – Padre Sixto

Aos quatorze anos primeira paquera. Conheço a menina há


tempo, mas um dia parece que me olha com carinho. Um golpe
no coração. Penso nela, falo com os amigos, a imaginação a faz
mais bela. Falo com ela uma só vez, todo confundido. Tento uma
segunda vez, mas minha mãe se aproxima com um chicote e bate
nas minhas pernas.
Uma irmã atrapalha. Minha mãe corre atrás dela que se
esconde num caixote cheio de farinha. A filha, embranquecida
como um fantasma, grita na cara dela: “Foste tu que me fizeste
assim… Que queres de mim?”. Desde aquele dia, quando faço
algo de mal digo a Deus: “Tu me fizeste assim, fraco e teimoso”.
Sonho com a riqueza, admiro os abastados. Entre mim e
Cristo, um abismo. O povo me acha um bom rapaz. Em ’15,
padre Sixto chega em Fossoli. Vivaz, com muita vontade de
fazer. Os meus irmãos são entusiastas dele, eu duvidoso. Quando
nos encontramos, nos entendemos logo. Mora num quartinho e
entrega aos jovens a casa paroquial. Passamos as noites
discutindo dos problemas sociais: “Deus é um pai muito especial,
se é o pai de quem morre de fome e de quem nada na
abundância”. Ele defende a função social da propriedade e das
cooperativas: “Os socialistas querem a igualdade, mas o
10

cristianismo pretende a fraternidade”. Fundamos um pequeno


círculo e uma cooperativa, da qual sou o secretário. Pelas ruas se
canta: “Queremos as fábricas, queremos a terra, sem guerra”. Os
socialistas são mais aguerridos de que nós. Momentos de febre
política, mas sempre juntos. Para nós católicos as lutas sociais
deveriam ser para a procura de Deus e da sua justiça, mas, em seu
nome, somos burgueses como os outros. À meia-noite passamos
em frente da boate. As pernas se esquentam às notas da valsa,
entramos com grande descontentamento do padre. Enquanto ele
nos educa para a justiça, me acontece um fato estranho. Meu pai,
doente, me encarrega de vigiar os camponeses. Após a vindima
vou para casa, a bicicleta se quebra, volto atrás e vejo os
camponeses roubando o mosto. O feitor é desesperado e eu me
sinto o patrãozinho que tem o poder de destruir uma inteira
família. Tenho medo, juro de não dizer nada, mas a figura do
patrão começa a me perturbar.
Frequento a cooperativa dos socialistas, jogo baralho, toco
bandolim. Gosto de olhar o povo no bar, no mercado, na taberna;
sentir os discursos dos beberrões. Belas caras, uma mais viva do
que a outra: o Segnhor, um camarada de bigodes e chapéu de aba
grande; a macaca, uma senhora esquisita; o apito, um socialista
desdentado; o Cristo, o pobre Cristo; o Cacundo, o Meio Cego, o
Piolho.
Uma vez, no teatro, observo o povo. Um padre, sentado
perto de mim: “Por que olhas o público com aquele olhar?”. “Um
dia falarei àquela multidão...”.
Em ’14 a Semana vermelha queima a província de Modena:
greves, choques, lutas. Um barril social em ebulição. Quem com
os padres, quem contra. Nós católicos estamos na defesa. Os
socialistas cantam: “Iremos ao monte Calvário / onde nasceu
Jesus Cristo / era um verdadeiro socialista / pregava a liberdade; /
entraremos em Roma / com a faca ensanguentada de sangue /
cortaremos a cabeça de padres e frades / e a lei mudará. / E nós
nascemos socialistas / e nós queremos a liberdade”.
Mas em Roma entrarão os fascistas. E, antes ainda, chega a
guerra, que recruta todos nós. Na guerra de ’15-’18, bermudas, 17
anos e meio de idade, sou enviado em Mantova. Vida sem gosto,
marchar para frente e para trás, fazer uma linha telefónica para
11

quebrá-la! Em seis meses, 85 dias de entrega. A minha


companhia, aquela dos burros, é a última a partir para a linha de
frente.
De volta da guerra me ocupo dos problemas sociais. Três
partidos: socialista, liberal, popular. Assisto às manifestações,
mas não me inscrevo. Os liberais no governo ordenam de atirar
sobre os manifestantes: oito mortos em Bologna, quatro em
Modena (7.4.’20). Os trabalhadores estão com os socialistas e
vaiam os padres: “Vergonha! Por que vocês estão com os patrões
preguiçosos?”. Padre Maletti, vigário de Mirandola, seguidor de
Murri, organiza círculos, sociedade de mútuo socorro, caixas
rurais. Em Reggio Emília nasce o periódico católico La Plebe e o
movimento dos padres plebeus para interpretar o evangelho
socialmente, romper com os ricos e “não deixar roubar ao
cristianismo a bandeira da justiça”.
Em ’19 os socialistas obtêm 60% dos votos, os populares
18%. A religião é zombada, a política torna-se luta, a imprensa
um caos. Botam fogo nos depósitos de feno, cortam as videiras
dos católicos mais em vista. Durante a procissão em Quartirolo
quebram tudo. No congresso de Parma marcho com seis mil
jovens católicos (22.8.’20). Rixas, provocações: “Servos dos
ricos, bajuladores, inimigos da civilização!”. Na confusão um
padre quebra o guarda-chuva na cabeça de um adversário. Voa
uma bomba a mão. Os socialistas, mais anticlericais que
anticristãos, consideram Cristo um verdadeiro socialista, pois se
atirou contra os ricos: “Os ricos e a Igreja falam de mercado livre,
livre concorrência; os camponeses de liberdade de morrer de
fome”. No caminho para Carpi enfrento alguns jovens socialistas.
A defesa da minha fé me apaixona. Não vejo solução no ateísmo,
que arruína a consciência do povo. O extremismo vermelho irá
chegar a provocar uma reação tal, que degenerará na violência
fascista.

6 - Contraditório com o anárquico

Completo o serviço militar em Florença. Muitas vezes somos


entregues no quartel por tumultos na cidade. Mas também nos
quartos se discute de política. Durante um tumulto aparece uma
12

baioneta. Me jogo entre os dois. Me salvo, mas a minha camiseta


está toda rasgada. Na minha cama há um santinho: “Ai de quem
mexe em Santo Antonio!”. Livremente procuro evitar que os
colegas procurem prostitutas e os espero no bar. Ficam tristes por
causa das doenças: “Sou um bruto, um animal!”. “Não: os
animais não vão com putas…”. “Pareces mesmo um padre!”.
Depois da guerra o costume moral caiu. Cuido de um sifilítico
fugido por todos. Com violão e bandolim adquiro a simpatia de
todos. Mais palhaço que carola. A minha maca é o epicentro de
serenadas, baralhos, discussões. O meu amigo mais querido, um
anárquico, zomba de mim, mas estamos sempre juntos. Não
afinidade de ideias, mas de humanidade. Passa um padre? Fala
mal dele que só. Honesto, generoso. Um cara simpático. Após
algum tempo, cada um sabe como pensa o outro. O relógio marca
16 horas: quem lê, quem joga baralho, quem toca. O anárquico
quebra a calma com uma provocação: “Vocês dizem que são
irmãos e entre vocês cristãos há explorados e exploradores. Não
me interessam os santos, mas o fenômeno social. Cadê o povo de
Deus? O que vocês têm de Deus? Cruzadas, Inquisição,
Alexandre VI. Vocês socialmente são perigosos porque pregam a
resignação e impedem o progresso humano. Padres ricos, padres
pobres...”. Que briga! A minha alma chora. E ele continuando:
“Patifes! Por que não fazem o que Cristo disse? Vocês desculpam
os crimes da burguesia, são o chicote dos patrões. Socialmente
são piores do que os outros”.
Tem razão pelo 90%. Em quinze minutos derruba a minha
vida. Mas erra quando derruba sem construir, eu não tenho razão
por ser um católico burguês. A sineta chama todos para o
refeitório, eu vou para o quarto de um amigo. Perturbado, ando
para cima e para baixo, procurando uma solução. “Vou te
responder com a minha vida”, gritei contra ele. A direita,
liberdade sem justiça, à esquerda justiça sem liberdade. Jogo-me
na cama como um desesperado, peço a Deus para morrer. Estou
no chão perdido. E quem vem em meu socorro? Cristo, quem
mais? Respiro fundo na janela: Florença, aos meus pés, parece o
mundo inteiro. Fixo um ponto longe e digo: “Basta! Não mais
patrão nem servo. Mudo de civilização em mim mesmo”. O
amigo que fala mal do que mais gosto, conseguiu que eu me
13

percebesse cúmplice do crime social. Nomadélfia nasce por esta


negação: Nem patrão, nem servo.
Um amigo me apresenta para o irmão dele que é padre.
Conto-lhe o acontecido. Ele me aconselha de retomar os estudos
e os colegas, inclusive o anárquico, me dão aulas. Para mim, uma
única solução: recomeçar de novo como fez Cristo. Com a fé vejo
a possibilidade da reconstrução e sem a fé… melhor dar-se um
tiro! O que segue, depende tudo desse encontro.
Muitas vezes me lembro do serviço militar completado em
Empoli quando o rio Arno inundou o vale e 250 recrutas às
ordens de um engenheiro civil foram procurar a origem do
estrago. O povo sobre os telhados pede socorro, mas ele nos
manda sempre mais para cima do vale. Chegados em cima, ao
dique quebrado, tudo se torna mais claro: pode aparecer cruel não
cuidar das vitímas, mas a verdadeira sabedoria é ir à origem do
mal, eliminar a causa. Hoje há quem tem a vocação do bom
Samaritano de curar os frutos doentes da sociedade e quem
aquela de plantar a semente de uma nova sociedade, onde não
haja mais diferenças sociais. Se se elimina a raiz do mal, não
precisa mais curar as vítimas.
Meu pai veio me visitar e lhe conto tudo. “Precisam gerações
para mudar civilização. Alugo uma propriedade e você a
administra”. “Não! Decidi: não mais patrão, não mais servo”.
“Nem patrão, nem servo? Como você irá viver?”. “Melhor caçar
rãs! Tenho poucos dias para viver. E, se não posso mudar os
outros, mudo a mim mesmo. Estudo direito para entender como
fazem a subjugar os povos com o direito; teologia, para não ter
uma espiritualidade superficial”. “E para te sustentar?”. “Percebo
que há um plano de Deus para mim”. “Se è de Deus, diz fazendo
o sinal da cruz, faça o que quiser”.

7 – Retomo os estudos

Volto para casa em agosto de 1920. Na véspera do


casamento minha irmã Anita foge e vai para o monastério: “Para
sair do mundo e viver em união com Deus”. Nós familiares,
revoltados, reagimos: “Também teus irmãos são mundo a ser
fugido? Não somos cristãos praticantes?”.
14

Não quero perturbar a minha namorada. Eu era amigo do


irmão dela. Aos domingos tocávamos piano e dançávamos. “Mas
eu procuro uma outra estrada: me dedico aos jovens…”. Sou
hospede de padre Sixto, que me ajuda a estudar. Sou como uma
lebre amarrada. As provas do quinto ano do ginásio são um
desastre. Volto a estudar com a ajuda de dois professores do
seminário de Modena. Mons. Zacaria, um dia, enquanto comenta
certos fatos históricos, para de vez: “Alexandre Magno, Carlos
Magno! Magno aqui, Magno acolá, todos Magnos…”. Acende
um charuto, anda para cima e para baixo do quarto, soprando, e
de repente com um ímpeto de raiva: “Grandes o que? são todos
criminosos! Põe bem na tua cabeça: não são heróis... são todos
assassinos, todos!”.
Todas as noites, preparo uns dez charutos, prontos para o
uso. Estudo grego, latim, história. Em ’23, provas do liceu. Brigo
com o professor de filosofia, mas a minha prova escrita, A
mprensa, diametro de civilização, è a melhor. De 39 candidatos,
nove são admitidos, entre eles eu. Quase caio no chão desmaiado.
Matriculo-me na Universidade de Modena (’23). Uma noite, no
trem, alguns senhores falam palavras grosseiras a uma prostituta.
“Desculpem, e se fosse a filha de vocês?”. Baixam a cabeça e
quando chegam ao destino deles: “Obrigados, nos deu uma bela
lição”.
Passo a noite nos campos. Quando me apresento, padre Sixto
acha que seja uma das minhas crises e eu não falo, para não ouvir
o refrão: “Vê? Foste chamado para ser sacerdote. Um dia irá
puxar teus cabelos”. E eu já tinha cortado meus cabelos. Mas o
Senhor insiste e me reserva encontros especiais. No Bar Aurora
como uma suculenta macarronada. Percebo sobre de mim os
olhos de dois meninos, magros, maltrapilhos. “Escolhem a
macarronada que querem”. Baixam os olhos: “Queremos somente
pão, muito pão”.
Uma vocação muito bela, mas até os vinte anos,
desconhecida. Na Juventude Católica fico mais consciente e
percebo que a Igreja precisa de jovens como a natureza da
primavera. Mesmo colaborando com todos, não estou com
ninguém. Dentro de mim me perturba a promessa feita ao
15

anárquico. Momentos de escuridão. Quando não penso no pacto


de Florença, o vejo em sonho.
A minha crise deve ser emoldurada na sociedade do pós-
guerra. Nas trincheiras tinham prometido terra e soluções sociais.
Em ’22, desilusão e exasperação desembocam na mudança
autoritária do fascismo. Os excessos das ligas vermelhas
produzem a reação igual e contrária dos fascistas: injustiças,
cacetadas, saques, sangue. Em Bologna andam caras vestidos de
preto, como emblema uma caveira com a escrita: Me ne frego
(não me interessa). Tocam fogo nas nossas sedes, nos depósitos
de feno, nas cooperativas de Carpi e de Fossoli (gen. ‘21). Uma
noite um fascista vai à taberna e ordena: “Todos para a cama!”.
“Quem é você que nos manda?”. Um pega a faca e o fura. Foge
com as tripas de fora nas mãos. Alguém chama para eu ir
procurar a ambulância. “Não dirigia com o fanal aceso, atiram em
você”. Descuidando, passo no meio dos tiros com a minha moto.
Acontecimentos sempre mais graves. Em Parma, uma
verdadeira guerra com as barricadas (julho ’22). Cantam: “Óleo,
petróleo, gasolina mineral, para os socialistas e o Partido
Popular”. Colocam os opositores em frente a copos de óleo de
mamona: ou beber ou pauladas. Em Mortizzuolo matam um
jovem da Ação Católica (17.8.’21). No enterro, padre Maletti: “O
que fez de mal? Abrem aquele caixão. Diz: quem lhe matou? Não
uma, mas mil mãos armadas de ódio …”.
Uma discussão, palavras grossas, uma faca, alguns tiros: um
morto, Arbizzi Eneia, um ferido, Ugo Catellani (2.10.’21). Em
Quartirolo os fascistas matam o nosso Augustinho Zanfi, cinco
feridos (24.6). Em Migliarina é assassinado o fascista Eugênio
Paltrinieri (18.2.’22). Outro ódio, outro sangue fraterno também
em Carpi. Organizamos um congresso (15.8.’21) e, enquanto os
jovens turistas visitam a cidade, os fascistas batem neles. Contra
mim não fazem nada, porque sou o presidente diocesano, mas o
meu vice não foi poupado. Com enganos e pauladas chegam à
lista única, vencem em todos os municípios. A marcha sobre
Roma põe fim à democracia. Para mim é sempre mais claro: urge
uma mudança de direção no costume social e político.

8 – Não ponho esparadrapos


16

Dos vinte aos trinta anos de idade me preparo para minha


missão: não por esparadrapos, plantar algo de novo. Recordo a
lição do rio Arno: “Levar a solução na raiz do mal”. Interesso-
me de tudo, exceto das aulas de jurisprudência. Em três anos, três
provas. Para mim o programa da universidade tem uma crítica de
90%. Me fazem secretário do Motoclub e presidente do Pedal
Carpigiano. O escritório é o Bar do Piolho. O dono do bar:
“Quando chega Zeno não se ouve uma blasfêmia nem um
palavrão!”. Anos de grande intimidade com os caras mais
esquisitos. Nos une o esporte e a exigência de estar juntos.
Explico isso, celebrando a camisa italiana dos nossos melhores
ciclistas, Mainetti e Grandi. Em passeio a Trento os sócios do
Motoclub, me levam, sem eu saber, a uma boate. Fico tão
desgostoso que passo a noite fora. Eu, único solteiro, prometo de
não dizer nada. Voltando fazem questão de festejar a minha
honestidade e o arrependimento deles com um almoço. Presidente
da Ação Católica de ’24 a ’27, fundo o semanal O Aspirante e o
mensal Coração de Jovens. Com a bicicleta corro para as
paróquias. Falo aos jovens, reúno os inscritos, exorto para se
interessar da pobreza social. Reuniões, concursos, festas,
passeios, retiros para favorecer a elevação dos jovens. Durante o
Carnaval, todos mascarados.
Um dia, encontro um funeral civil. Um mar de bandeiras
vermelhas. Os adultos incitam os meninos contra mim. Que
impressão ser atingido pelas pedras de mãos inocentes! Mil olhos
de repreensão e de raiva, pobres trabalhadores sedentos de
justiça, cegados pelo ódio. Me retiro sobre o monte Cimone.
Lembro-me que quando era militar tinha visto uma águia voar
muito no alto. A tinha observado longamente: barrancos,
altitudes, não há obstáculo que impeça o vôo. Quero ser como
ela.
Em ‘25 chega mons. Pranzini. Visita a federação e eu conto:
“Tenho uma recordação da vida do interior. Está para chover
granizo. Meu pai corre para por sua manta sobre o canteiro. Nós
jovens somos as plantinhas de que a Igreja precisa e corremos o
perigo da chuva de granizo. O bispo nos cubra com sua manta”.
Gosta das minhas iniciativas, me abro com ele, e peço sua ajuda.
17

“Venha na minha casa das dez à onze da noite e falamos”. Os


argumentos, os do quartel. Mais me encontro com ele, mais me
ilumina. Uma noite me queixo dos padres: “Quase todo o clero
não entende a vida social em Cristo”. Abre a gaveta: “Eis a lista
dos meus padres. Não gosta deles? Se torne padre você também”.
“Repreende-os, pune-os”. “Uma coisa é criticar, uma outra é
fazer. Eu valorizo todos eles”. Um padre faz uma coisa feia. Ele
me diz: “Sabe o que é a dor?”. “Não”. “Eu morro de dor, mas
nunca irei punir alguém”. Queixo-me com o vigário, porque o
bispo está ausente e é urgente a sua presença. Quando volta briga
comigo, com a cara toda vermelha. Depois, de uma vez, se senta,
torna-se pálido: “Vê quanto pode ser ruim um homem, mesmo
que seja bispo? Certos instintos não se apagam nem debaixo da
batina do bispo nem do papa nem dos santos”. Ele insiste, eu
resisto: “Poderia me tornar sacerdote, mas nas fotografias de
grupo os padres são ríjos como bacalhau! E aquela batina com
mil botões? Algumas normas são conformistas demais”. “Se não
houvesse um pouco de disciplina, os fracos estragariam tudo. O
código é uma teia de aranha que pega os mosquitos barulhentos e
inconcludentes, e deixa passar os maiores. Seja um mosquito
maior e irá passar”. E eu: “Quer entender? Eu seria um padre
revolucionário”. “E’ desses de que a Igreja precisa”.

9 – A assistência para todos

Alguns rapazes se especializaram em roubar nos hotéis os


canos de chumbo. Um controla o dono do bar, os outros
executam a operação. São presos, câmara de segurança. Corro
para o bispo: “Alguns rapazes na prisão. Não são coisas civis”.
“A sua, querido Zeno, è também a minha dor. Que faria?”. “Vou
pegá-los e os abrigo nos quartos da Ação Católica”. “Tem a
coragem de enfrentar as consequências?”. “Posso dar também a
vida”. Do alto da escadaria abençoa a mim e às minhas intenções:
“Vá! O seu bispo está com você”. Mando retirar a acusação,
assino, pago, ordeno que sejam entregues a mim. Logo na cela:
“Fizeram o que, que estão fazendo aqui presos, moleques?”. “Não
fomos nós que viemos aqui, fomos trazidos pela polícia…”.
Compro cobertores, lençóis, todo o necessário. No dia seguinte,
fogem levando tudo e eu fico de cueca.
18

Um belo dia chegam suados: “Zeno, a polícia, nos


esconda!”. Os fecho na cozinha com um peru assado: “Comam,
mas fiquem calados”. A polícia: “Por que protege os
delinquentes? Viu que lhe roubaram até a roupa?”. “Sim, mas
precisa procurar as causas. Abandonados desde a infância… E se
fossem os filhos de vocês?”. Sabem que estão escondidos atrás da
porta, mas são pais de família e vão embora. Roubos para sentir-
se vivo, necessidade de protagonismo ou de sobrevivência?
Barile è um exemplo de roubos. Na feira finge de brigar com os
amigos, joga o chapéu sobre os melões e com o chapéu leva o
fruto. Pego em beber ovos, é fechado no galinheiro.
Lentamente nasce uma tácita convivência. Vou morar com
ele nos quartos da Opera Realina onde, em 1925, com padre
Armando Benatti, fundo um internato para seminaristas e
pequenos delinquentes. Não é verdade que a maçã podre faz
apodrecer a boa, são as boas que devem transformar as podres.
Os jovens católicos nos ajudam em organizar a escola de artes e
profissões. Uma comunidade aberta a todos, onde se aprende a
arte de estar juntos. Biblioteca, esporte, sala de música, teatro,
passeios. Acusam-nos de inexperiência e riscos financeiros. O
bispo me defende: “As dívidas de Zeno são atos de fé”.
Fornecemos aos alunos trabalho, comida, diversão, ma nós somos
pessoas diferentes para eles. A assistência me preocupa. O
benfeitor está sempre acima ou abaixo, nunca no mesmo nível.
Entre desiguais há ajuda, somente entre irmãos se partilha.
Quanto mais estudo como advogado para defendê-los no tribunal,
tanto mais percebo que necessitam de um ponto de referência
certo: a família. Tenho a intuição que o sacerdote vive uma
paternidade mais universal, mas não pretendo ser padre, pois
quero viver pelo o povo.
Sem subsídios, muitas dívidas, muitas fofocas, alguma
despesa excessiva (uma tipografia de 100 mil liras!), divergências
com padre Benatti: eu quero salvar os pequenos delinquentes, ele
formar os seminaristas. Três anos depois fechamos. Um abalo
que me golpeia a morte. O bispo me anima: “Não acuse, não se
abate, não faça projetos. O Senhor te levará e te apresentará que
deves fazer. Não deves ser bom, mas santo. Pagando, às tuas
19

custas, tocaste com mão os limites do teu caráter. Faça tesouro.


Seja prudentemente audacioso”.
Me retiro no convento de Fidenza. Padre Guido me dá um
livreto: Getsemani. Na dor de Cristo reencontro a minha e aquela
humanidade. Peço ao bom padre: “Me diga o que devo fazer”.
“Impossível, ninguém saberá te dizer”. E, indicando o sacrário:
“Vai falar com ele, vai”.
Perturbado, falido, me jogo nas mais indizíveis situações
sociais. Transcorro sete meses, desconhecido, entre ex-
presidiários da Obra card. Ferrari em Milão. Quem mais entendeu
por que esses caras caem tão baixo? Toco com mão a desolação
do homem rejeitado da sociedade. “Tu não tens a cara de um
criminal como nós”. “Se tu soubesses! Eu, sim, fiz coisas
erradas”. “O que fizeste?”. “Matei…”! Faço alusão a Cristo posto
na cruz pelos meus pecados. Alguém me ensina a rezar Nossa
Senhora de um santuário abandonado para obter a graça de fazer
um belo golpe: “Ninguém a reza, desempregada e esquecida
como nós, a escolhemos como nossa protetora”.
Inquieto, desordenado, desiludido. O que faço é bonito, mas
não satisfaz a minha aspiração para a reconstrução da vida social.
Na Juventude Católica não se enfrenta o problema de fundo: ser
irmãos, mais do que amigos, um do outro, um para o outro, não
como freis e freiras, mas como famílias, para criar um mundo
novo. Não fico satisfeito, vou além. Penso sempre no anárquico.

10 - Padre Calábria

Cansado de uma vida inconcludente, me retiro em Verona na


casa de padre Calábria para terminar os estudos. Ele me ensina a
fé na providência e o afeto para a humanidade. Nunca pediu nada
para ninguém: “Como? Deveria lembrar para Deus o que
necessito?”. Conta-me momentos da sua vida, fala dos problemas
sociais. Em frente às misérias humanas, declara: “Somos
homens!”. Dá esmola a um beberrão, que no final de sua vida o
manda chamar e morre como um santo. “Se faço as contas, essa
alma me custou tão pouco!”. Tinha tanta sabedoria que vinham
de todos os lugares para ter com ele. Ele costuma dizer: “O
20

homem é como o relógio, precisa dar corda. Precisa fazer como o


rio: reservatório e canal; correr e parar para refletir”.
Muito bonita a sua obra para os abandonados, mas eu não
estou de acordo com o sistema de colégio. Com dúvidas e
perplexidades, penso de ser advogado dos pequenos refratores.
Num ano, 16 provas. Processo penal é uma matéria tão hostil que
o professor me entende e me promove com uma estratégia: devo
consentir quando faz o sinal do sim, e discordar quando faz o
sinal de não com a cabeça. Sou jovem, amo a vida, a alegria, a
brincadeira, o gracejo. Um amigo de Bergamo insiste: “Tu és o
cara certo para casar com a filha do advogado. Tem as tuas
mesmas ideias”. “Não quero casar, porque encontrei muitas que
pensam somente em dois, três filhos que nascem. E os outros?”.
Todo domingo projetamos de ir falar com ela, mas algo acontece
contrário. No dia da formatura, grande festa no bar Biffi de Milão
(16.12.’29). Eu sempre no meio da brincadeira, estou triste,
vazio: “Não quero ser o advogado dos infratores. A que serve
defender alguém que é já perdido? Poderia mitigar a pena com as
atenuantes, mas eles são excluídos. Estou cansado de fazer o bem
em modo que tudo fique como antes”. Lembro o Arno: curar é
bem prevenir é melhor.
Padre Calábria lê para mim a carta do bispo: “Impossível que
Zeno não se torne sacerdote”. Acrescenta: “E eu sou do mesmo
parecer”. “Mas eu não! Não me vejo em um seminário com
aqueles benditos sinos, aquela regras excessivas que matam a
liberdade”. Um sonho vem em minha ajuda. Eu me vejo em uma
imensa planície, sozinho, triste. O passado passa em minha frente
como um filme, no qual eu naufraguei. Enganei pai e mãe, bispo
e amigos. É toda culpa minha ou é uma prova para começar de
novo? Uma família que vem do sangue ou uma família que vem
de Deus? Olho ao redor: o vale se enche de meninos, dezenas,
centenas. Tantos rostos, tantas fisionomias, como uma arena.
“Vieram me procurar também no vale da minha dor?”. Não sei o
que significasse. Mas na minha missão revi muitas vezes esse
sonho e disse: “Ah! Moleques, vocês também estavam naquele
vale, onde eu sofria e vocês choravam quando propunha para a
recusa do sacerdócio e ficavam alegres quando o aceitava” (I due
regni, 32s).
21

Padre Calábria me sugere: “Vai a Trento falar com pe.


D’Alfonso. Gosta de ti e irá te ajudar”. De fato: “Padre, me dê um
quarto perto do seu, ordens do alto, você está a minha disposição.
Devo decidir o que fazer”. Depois de oito dias: “O meu tormento
continua. Quer dizer que não sou apto para o sacerdócio. Vou
voltar outra vez”. “Não vieste com ordens do alto? A ordem é
esta: retira-te, reza, decida. Uma hora de tempo”. Volto para o
quarto e me ajoelho a um crucifixo, o olho e me jogo na cama.
Um cigarro. Pergunto: “Por que não falas? És somente um
pedaço de madeira”. Mais um cigarro, fumaça, briga! E continuo
sempre lutando com o meu adversário. Queria jogá-lo da janela.
Faltam cinco minutos. Brincando com o lápis escrevo: “Pode-se
seguir a Cristo seja como civis, que como padres. Sigo Cristo
sacerdote”. Corro para o padre: “Decidi: sacerdote!”. “Vai fazer a
hora de adoração”. “Vou festejar ao bar. Tenho a impressão de ter
decidido isso no útero de minha mãe”.
Encontro o pai. “Por que não veio para a festa da
formatura?”. “Dá-me dois mil liras para comprar a roupa de
sacerdote”. “Uma outra das tuas?”. No mesmo dia, numa loja de
Bologna, as visto, me olho no espelho e me da vontade de gritar:
“Palhaço!”. O alfaiate dá um pulo. Tinha-me trocado por um ator.
Padre Sixto, regozijando, faz a minha vestição no convento
de minha irmã. Não gosto muito da vida de seminário:
campainha, horário, práticas de piedade, dormir às nove horas da
noite. Me queixo com o reitor: “Um homem de trinta anos já tem
sua personalidade, seus hábitos”. “O bispo deu ordem de não te
obrigar. Quando queres dar uma prova reunimos a comissão e
depois fazes o que queres”. Então corro para comprar cigarros.
Durante a aula o professor de teologia defende algo que não
aceito. Reajo. “Não quererias salvar o mundo, tu!”. Dou um
murro na mesa: “Estou aqui para isso. E se o senhor não está aqui
para isso, desça da cátedra e não faça o sacerdote”. Ficou mal,
mas tão edificado, que no futuro me perguntará muitas coisas. O
sacerdócio, para mim, não é uma coisa nova, mas a continuação
do que sempre fiz.
22

II – “Caso com a Igreja, lhe dou um filho”

1 – A primeira missa

No dia da ordenação os amigos organizam a primeira missa


na catedral. “Com uma condição: quero na primeira fila, todo
elegante, entre as autoridades, aquele jovem recém-saído da
prisão”. Todos têm família, ele não! Se minha fé não sabe
resolver que fé é? A minha missa é aquela ai: caso com a Igreja,
lhe dou um filho, não um assistido. Odeio a assistência. Aos 6 de
janeiro de 1931 vou ao altar, olho e, entre as autoridades, está ele,
Barile, com aquela carona de polenta mal emborcada. Me vê,
sorri. Depois da cerimônia: “Gostou mesmo?”. “Até um certo
ponto. Me puseram perto do chefe da polícia. Me olhava e
piscava o olho. Ninguém sabe como pensam aqueles caras aí”.
No almoço oficial, entre prognósticos e parabéns, com Barile
debaixo do braço, declaro: “Vocês não precisam de mim. Ele sim.
Estou com ele”. E vou fazer festa no Bar do Piolho, onde se
encontram os piores a cidade. “Oh, padre Zeno, agora que tu és o
nosso padre, imagina o que vamos fazer contigo”. “Sim, sim,
vamos fazer logo as corridas de bicicletas ao redor da praça”. O
povo observa a cena, sacode a cabeça: “O louco de sempre, um
exaltado!”. E o peguei comigo. Nomadélfia nasce assim. À tarde,
durante a festa, o bispo diz: “Deus nos deu Zeno e eu farei dele o
galopim da diocese para acordar quem dorme”. Alguém grita:
“Eh, padre Zeno, quando vem me acordar?”.
Com o pretexto de descansar, monsenhor me manda em
seminário para fazer os exercícios espirituais por 15 dias. Não
durmo, vou à capela para fazer a Via Sacra. Paro em frente ao
quadro Verônica. Um clarão: “Esta é a minha missão!”. De
madrugada, corro para o bispo: “Achei o meu trabalho: imprimir
o rosto de Cristo nas crianças”. Começo logo as missões para as
23

crianças de Fossoli com os bonecos, carrosseis, bandolim. Uma


multidão de torcedores. Os meus colaboradores são caras
esquisitos. Enquanto representam, brigam entre sim, e eu tento
acalmá-los. Treino em fazer as vozes dos bonecos típicos da
região de Modena. Personagens envolvidos em brigas de
senhores, ladrãosinhos e sabidões, conforme as circunstâncias.
Quero impressionar as crianças com a vida e as obras de Cristo,
pois não gosto de abstrações.
Nos anos trinta fatos graves marcam a vida nacional:
campanha da África, voluntários na Espanha, leis raciais,
dissolução da Ação Católica. Quem sofre mais são os pobres e as
crianças. Na região de Modena as autoridades informam para
Mussolini o aumento de 130% de crianças desnutridas e de
camponeses sem trabalho. Passeando com a bicicleta descubro
muitas misérias: o pai beberrão, a viúva em dificuldade, o órfão
pedindo esmola. É bom tentar que sejam alegres, mas não vão à
Igreja porque se envergonham: descalços, descuidados,
maltrapilhos.
Em Rovereto as irmãs me entregam um abandonado.
Recomendo de vesti-lo bem e de levá-lo para a casa paroquial. O
vigário se cumprimenta: “Seu sobrinho veio visitá-lo”. Mas
quando o sacerdote descobre a verdade, se queixa: “E se fosse
filho do pecado?”. “Não foi o diabo que o gerou! Mais do que
sobrinho é filho, porque nós somos padres e se você não é pai,
errou profissão”.
As minhas missões terminam em festa popular com nhoques
fritos para todos. Um domingo um rapaz como demais, bebe
vinho, faz indigestão. Senta no carrossel, passa mal, abre a boca e
joga para fora um jato vermelho, que molha as meninas vestidas
de branco, que fogem na hilaridade geral.

2 - Padre do povo

Após insistências do velho padre, torno-me vice pároco em


San Giacomo Roncole, um centro agrícola de três mil almas, na
baixada de Modena.
No dia 22 de junho padre Gaddi me espera com um monte de
crianças. O motorista do ônibus me dá o saco dos bonecos: se
24

abre e se espalham todos no chão da praça da igreja. Os rapazes


os pegam logo e agitam como troféus. E’ a minha entrada oficial
com as crianças, os bonecos e o pároco que se queixa. A casa
paroquial se torna o reino dos meninos. No dia que se queixa pela
intromissão excessiva, pulo em pé, e no meio do almoço estou
pronto para ir embora. Me confia seu fracasso e me suplica de
ficar, para que eu faça o que ele não conseguiu fazer. “Faça o que
quiser aqui dentro”.
O povo de Mirandola é interessante. Se vê que foi à escola
dos mestres do socialismo: Prampolini, Dinale, Ferri, Agnini,
Bertesi. Nos comícios deles, a praça cheia. Prampolini, duas
vezes preso, espera o povo na praça da igreja e faz seu sermão:
“Cristo è o amigo dos pobres. E hoje, como ontem, entre eles não
há algum padre. Os padres odeiam o socialismo, porque eles são
ricos”. Agnini e Bertesi falaram bem em favor dos camponeses.
Entre os sacerdotes se distingue padre Maletti. Enfrenta os
adversários em contraditório, escreve nos jornais. Quando prega,
a catedral se enche e os socialistas esperam o momento do
sermão para entrar na igreja. Ele sustenta que Marx teria razão se
ao seu: “Proletários do mundo inteiro” teria acrescentado:
“Unem-se a Cristo”.
Um povo inteligente, interessado, simpático, um pouco
desconfiado. Metade deles são pequenos proprietários ou
parceiros e metade camponeses diaristas. Uma distinção vista na
cara e na roupa. Para o catecismo organizo pontos de encontro no
quintal dos camponeses. Aos domingos, os bonecos para 600
espectadores. Jovens e adultos, desconfiados, me ajudam de
longe. A minha idéia é de ser pai do povo, mais do que das
crianças, sem cuidar da etiqueta: cristão, não cristão. Mas aqui
também há o grupo da santa fofoca, que afasta muitos. Na meia-
noite de Natal, todos na igreja. Após a missa, um barulho. Na rua
reduzida a uma lâmina de gelo, os jovens se divertem andando de
trenó. Entro na brincadeira. Sou muito bom, pois desde criança se
brincava com trenó para esquentar os pés. Que acrobacias!
Sentado sobre uma perna, em dupla, em grupo. Cansados e sem
fôlego: “Vamos entrar para beber um copo de vinho”. Lambrusco
e cantos até o amanhecer. Lentamente a casa paroquial se torna
praça, a praça se torna casa paroquial. No momento certo declaro:
25

“Onde vocês estão, tenho o direito de estar eu também, pois


represento o pai de todos. E vocês, sendo filhos, têm o direito de
vir na casa paroquial quando quiserem”.

3 – A casa paroquial, casa de todos

Compro a Rádio Marelli e todos vêm na casa paroquial como


se fosse a casa deles. Um daqueles católicos que se acha algo
importante grita: “Há bagunça aqui dentro!”. “As figuras como
afastam o povo. Se há bagunças és tu”. Nunca me senti padre
somente para os que vem na igreja. Para mim a Ação Católica
não é um grupo de elite separado do povo. Eu a dissolvo, porque
se for ao deposito de trigo e vejo 10 mil toneladas de trigo e um
punhado de trigo em disparte, pergunto: “Esse é como o outro?”.
“Sim”. “Então o joguem no monte, pois deve estar todo junto”.
Justifico-me com o bispo: “ Se vem aqui só para organizar
reuniões para inventar Jesus Cristo, não quero saber deles”.
Todos são meus amigos: blasfemos, ateus, comunistas. Organizo
mutirões e juntos conseguimos fazer o campo de futebol numa
noite.
Não deveria ter parado ali, mas o pároco insiste com o bispo:
“Deixe-o comigo outro mês”. De mês em mês passaram os anos.
A paróquia se desenvolve, o povo participa. De noite deixo a
porta aberta e, quando a taberna fecha, os beberrões veem falar
comigo. Contam-me tantas daquelas coisas! Um deles, voltando
para casa, de noite, passando em frente da capela da Nossa
Senhora das Dores, aquela da sete espadas no coração, para,
cambaleia, e lhe fala: “Teu filho na cruz, o meu na prisão. Duas
famílias desgraçadas!”.
Na casa paroquial voam blasfêmias. Um padre, todo
escandalizado: “Não reages a tantas provocações?”. “Se for para
o hospital não ouço cantos, mas gritos e tosse. Esse é o hospital
de Deus, das suas criaturas. Se as curo não preciso mais dizer:
“Não blasfemem”. Não irão mais blasfemar quando não terão
mais a tosse”. “Em seminário não me ensinaram estas coisas”.
Convido o bispo para o dia 22 de janeiro de 1933. Depois da
missa lhe apresento as associações: “Eis a sociedade desportiva”.
“Gostam da paróquia?”. Não entram na igreja, mas: “E’ a nossa
26

casa, participamos todos”. De noite se inaugura a máquina do


filme sonoro. Observamos o povo que chega de todas as partes:
“Vê quanto admiradores? Precisa comprar aquele prédio em
frente à igreja, o casinone”. “O doidinho de sempre. Por favor,
não repita o erro da Opera Realina”. Vamos a teatro, todo cheio!
Todos em pé batendo palmas. “Notei que vocês cristãos e não
cristãos estão sempre juntos, ao redor do sacerdote que vos
representa aquele Deus que é pai de todos”. No final: “Quando
era pároco encontrei muitas dificuldades, mas aqui há todo o
povo e é livre, se sente respeitado”. Alguns dias depois recebo
uma carta: “Compra o casinone. Se non encontras o dinheiro,
vem falar comigo”. Ele mesmo exorta o proprietário: “Cavaleiro
Ascani, faça o favor: fale com padre Zeno”. Me encontra na
cama, enquanto os meninos, ao redor, brincam. Fica confundido.
“Quando ficar bom, vamos fazer o contrato”. “E o dinheiro?”.
“Se tivesse, já teria comprado. Agora tratamos”. “E o sinal?”.
“Eis-lo aqui: o crucifixo”. Homem inteligente, consciência
atormentada, quer 50 mil liras. Mas na minha casa não há nem o
cheiro do dinheiro. O bispo me empresta. Vamos falar com o
tabelião e lhe apresento os meus projetos. Assino e faço a
proposta. Enquanto conta, lhe pego dez mil liras: “Pela
corretagem”. “Em fim se trata de uma obra boa”. O tabelião
apresenta as despesas. “É a única vez que você faz um contrato
honesto, lhe deixo a honra de pagar”. No carro digo: “Preciso de
10 mil liras”. “Pôxa, volto para casa sem nada”. “Não, não vamos
fazer prestações. Se não posso, pague você, mas não em
protesto”. “Não, não”. Pagou tudo ele.
Padre Calábria me ensinou a fazer os negócios segundo o
coração de Deus. Precisa indenizar os inquilinos do casinone para
fazer as obras paroquiais. “Como vamos fazer?”, diz o contador:
“Para quem paga não há problema, verdade?”. “Não, não. Visto
que eu sou um ministro daquele que inverte as coisas, vamos
fazer o contrário: mandamos embora os pagantes e vamos ficar
com aqueles que não pagam, pois se mandarmos embora, vão
acabar na estrada”.

4 - Cinema com variedade


27

S. Giacomo se torna um centro de atração para os filmes de


primeira visão. Contrato dez e mando projetar somente os
decentes. O Povo vem de todos os lados, como se fosse um ponto
de encontro, de ônibus, carroças, carros, bicicletas. Na quarta-
feira para as mulheres e para elas pagam os homens; na sexta para
os jovens, entrada reduzida; aos domingos à tarde grátis para as
crianças, que foram à missa e colocamos um carimbo no braço;
domingo à noite, para todos. Sempre com o discurso, no meio da
projeção, onde falo de problemas de atualidade.
No dia dos jovens aparece o bairrismo. Os mirandoleses se
acham cidadãos e chamam de vilãos os de S. Giacomo. Eu, muito
íntimo de todos, estimado e respeitado. Uma noite voam palavras
grossas. Os de Mirandola se jogam contra os de Cavezzo. Com o
tricórnio e com o cigarro na boca, assisto, impotente, ao desastre.
Uma inspiração: subo no palco e lentamente arregaço as mangas.
Param logo. Quando vejo os olhos de todos em cima de mim digo
em dialeto: “Onde começo a bater? Sabem que gosto de todos
vocês, por isso não saberia onde começaria, porque são todos
iguais”. Uma salva de palma e recomeça o filme! Foi a última
explosão de bairrismo.
Na quaresma vem uma comissão: “O bispo manda perguntar
por que passa o filme em tempo de penitência”. “Vocês leem um
livro na quaresma?”. “Certamente”. “O filme é um romance
projetado na tela e os entendem também os analfabetos. Não é
uma diversão, mas um fato de cultura”.
O cinema ao ar livre é frequentado por dois, três mil
espetadores. Basta que vejam mexer o meu tricórnio, tudo vai
direitinho. O povo, antes de tratar comigo, observa o meu
chapéu: se está torto, melhor ficar longe de mim! Uma noite me
advertem: “Alguns rapazes beliscam o bumbum das meninas”.
“Manda parar, se não…”. Insistem. Paro o filme, subo sobre um
assento: “Onde estão?”. Pulo em cima de quatro molecotes e, um
chute aqui, um bofetão acolá, os jogos para fora. O filme continua
e eles: “Padre Zeno, que vergonha! Nos devolva a honra em
frente das meninas”. São tão envergonhados que, no intervalo,
entro de braços dados com eles, fumando e os acompanho a seus
lugares. As meninas os olham com admiração, porque aceitaram
bem a lição. Somente o pároco é preocupado: “Mas se
28

revoltam?”. “Estou decidido. O povo entende a linguagem de


quem o ama”. Sinto de ter aquela autoridade paterna, que vi no
avô. Quando repreendo alguém, depois somos mais amigos do
que antes.
Na reunião do clero os padres se queixam: “Padre Zeno faz
coisas que não condizem a um padre: cinema, discursos fortes,
iniciativas perigosas. Não sabe o que é o concordado?”. O bispo:
“Quando o ordenei, prometi de não entrar na lista dos que
impedem as obras de Deus”. Para a crisma organizo os jogos,
trenó também. Quando está para ser usado, não funciona.
Avisam-me enquanto saio com a procissão. Corro para consertá-
lo. Naquele momento chega o bispo e me dá conselhos. E eu,
vestido de sobrepeliz e estola, consigo consertar, e parto
rapidamente, deixando todos espantados.
Quando é necessário dou lições de vida prática. Uma manhã
passo com a bicicleta no meio dos campos. Os camponeses
cortam a grama. Um deles grita contra mim: “Padres preguiçosos,
hábeis só para comer capões”. Tomo a foice deles e começo a
cortar a grama. “O que faz ainda aqui? Pega a bicicleta e vai no
meu lugar confessar aquele moribundo”.

5 – Assumo os meninos como filhos

Depois de dois anos, o povo começa a me acompanhar no


caminho da solidariedade. Muitos rapazes vivem na miséria. Na
homilia: “Desafio vocês! Assumo os rapazes como filhos; mostro
como é ser pai e vocês me ajudam. Dar a eles uma família, é um
dever social, senão vão para a prisão. Roubam as suas galinhas?
Convidem para o almoço e depois expliquem para eles que assim
não se deve fazer. Se eles encontrarem um povo que lhes quer
bem, crescem felizes”. Escancaro coração e casa paroquial.
Quando chegam a 12: “Eu sou um Apóstolo do povo, vocês, meus
filhos, são Pequenos Apóstolos [Pic. Ap.] e me ajudam a fazer o
que eu faço: amar o povo”. A voz se espalha e de todos os
lugares chegam casos tristes. Mesmo me esforçando, não consigo
afastá-los. A casa paroquial é como uma sanfona. Trazem
também os demitidos de um instituto religioso, pois ninguém
pagava a mensalidade. Para mim não são nem beneficiados, nem
29

assistidos: os filhos são filhos e basta. Chegam aqueles cristãos


que gostam de mandar os outros fazer o bem: “Pegue esse, pegue
aquele, um a mais ou um a menos?”. “Por que não os pegas tu?”.
“Tu tens a providência do teu lado!”. Sobre a providência nada a
dizer, mas não é mais um a menos, é sempre um a mais.
Em 1933, com a bênção do bispo, nasce a Obra Pequenos
Apóstolos [OPA], a minha família, na qual cancelo o vocabulário
assistencial: órfão, superior, mensalidade, regulamento, castigo.
Para fazer crescer os filhos, Deus não encontrou nada melhor que
a família. Vi rapazes jogar pedras nas assistentes, as quais,
terminado o turno de trabalho, voltavam para casa. Por que
trancá-los em colégios e amá-los somente oito horas e com o
salário? Os paroquianos me mandam sorrisos de compaixão: “Crê
de nos pegar pelo coração com as crianças? Nós somos
comunistas duros, não nos engana!”. Lentamente percebem que o
sacerdote é um padre de verdade.
Um pai não consegue dar comida aos filhos. A mulher briga
com ele, ele perde a cabeça, e bate neles. Vem falar comigo,
todos cheios de sangue. “Cuidadinho, não o denunciem. Irá
entender”. No dia seguinte chega ele: “Foi um momento de
raiva”. “Como te entendo!”.
Nem sempre o amor é gratificante. Muitas vezes, enquanto
vou pagar uma conta, um pobre cristo me corta o caminho: “Sou
acabado! Dez filhos, expulso de casa, a mulher desesperada…”.
Me queixo com Deus: “Mas por que próprio agora me apresentas
esse importuno?”. “Dão e vos será dado”! Eh! ao amor não se
resiste: é como uma meretriz que se dá a todos.
De ’32 a ’35, miséria profunda. A fome, uma barbaridade.
Todos magros. Os meus amigos: “Vem almoçar conosco?”. “Sim,
sim, mas com os filhos”. “Quantos?”. “25”. “Pelo amor de
Deus!”. Alguém ousa nos convidar e comemos tanto! Para tirá-
los da fome sou obrigado a vender os paramentos. Ponho Deus à
prova: “Quero ver como te viras!”. E aos rapazes: “Não tem
comida, vão embora”. Parto na esperança de que vão embora.
Mas: “Enquanto tu não estavas aqui veio um cara e trouxe isso e
aquilo”. Nunca experimentaram a fome? Não é o apetite! A fome
é aquela que precede a fome. Dar de comer é um ato de
civilização. Falo disso na igreja: “Não deixem as crianças dormir
30

sem jantar. Melhor trazê-los aqui, algo iremos providenciar”.


Todas as manhãs Barile parte com a bicicleta e um carrinho, às
vezes vou eu também e pegamos algumas coisas. Quando a
prefeitura distribui a farinha aos necessitados, trazem também
para nós e nós fazemos do mesmo modo conforme a lei dos vasos
comunicantes. Uma vez recebo algum dinheiro, que transformo
em pão, muito pão. Quando veem o cesto, um grito: “O pão, o
pão!”. A festa do pão. Pulam, cantam, até acabar todo o pão.
São moleques, mas não consigo mandá-los embora. Apesar
dos meu convites, as mulheres não veem para fazer a vez da mãe
deles. Em setembro de ’33, chegam a 38, que divido em pequenas
famílias tendo como chefe o maiorzinho, que faz a vez da mãe.
Nós o chamamos de mamo. Os coloco no sótão, dois quartos para
cada, um para dormir e um para comer. Aos domingos
almoçamos todos juntos. Os menores na escola, os do meio
estudam comigo, os maiores nos laboratórios. César conta:
“Desde menino peço esmola. Tenho vergonha, choro. Encontro
padre Zeno e estico a mão. Vou sempre lembrar aqueles olhos:
“Tu virás comigo”. Quando chego na OPA fico perturbado, ele
também pede esmola! Muitos meninos, uma confusão. Um dia
me diz: “Desde hoje tu serás o responsável. Presta atenção para
que façam seu dever”. Aceito, porque lhe quero bem.

6 – Fazem de tudo...

Os filhos fazem de tudo, mas não querem ser irmãos. Um


domingo nos dão de presente um bolo. Sou chamado para um
moribundo. Saio e fico espiando. Barile: “Vamos fazer as partes
como irmãos: eu sou o gordo, metade para mim, a outra metade
em partes iguais”. Volto correndo e ele: “O que eu disse? Somos
pobres: metade agora e metade esta noite”. Dou-lhe dois
bofetões. Costuma dizer: “Quando padre Zeno me dá um bofetão
é como se fechasse uma porta pelo vento”. Uma vez escuto fazer
propostas a uma menina. Logo percebe da minha presença:
“Rosinha, lembra que a pureza é a virtude mais bela de todas”. Se
me ausento, ninguém consegue acalmá-los. Eu lhe dou até
bofetadas fortes e o bispo irá dizer: “Tu és um educador, mas
também um domador”. Quando encontram uma árvore frutífera a
31

pelam e me chega em casa a conta a pagar. Um dia se escondem


no meu escritório. Entra um cara com o chicote. Para criar a
atmosfera certa os repreendo: “Moleques preguiçosos, o que
fizeram?”. “Padre Zeno, tenha paciência, no fundo são bons
meninos”. O povo me ajuda a educá-los e eles melhoram. Em
dezembro chegamos a 50. Alguns casos tristes: uma mãe chora
para me convencer a acolher o filho sem uma perna; um órfão me
implora para dar-lhe um pai. Proponho a padre Calábria de unir
as duas obras, mas somos diferentes demais. Aqui conosco se
vive como em família, com ele como no colégio. Eu vivo com
eles mais do que para eles. São a minha família. No dia em que
sequestram as camas dormimos na palha.
Ironizo: a nossa é a obra dos quatro efe: fome, frio, fumaça,
fastios. Na igreja grito: “É fácil dizer que os pobres devem fazer
seu dever. Se vocês ricos não fazem a mesma coisa, criam
situações de ódio, que terminam em revoluções. Suas terras não
são de vocês, vocês são somente administradores. Olhem bem,
Deus é um bom contador, sabe fazer as contas! O que tem a mais
não vos pertence. Precisa reviver a vida dos primeiros cristãos,
que se amavam como irmãos” (18.4.’37). Parece que meu pai me
dá razão: quando morre dispõe que os irmãos me deem logo a
minha parte. Vamos ao banco ao meio-dia e à noite já estou sem
dinheiro. Quero ir dormir sem remorsos. Meu pai custou muito
em amontoar dinheiro e eu em menos de 24 horas… Cada um
tem sua espiritualidade, eu não quero ser rico. Para a piedosa
benfeitora Carolina Tapparelli ouso escrever: “Você não é dona
de seus bens, pois me parece que seus bens são donos de você.
Deus não lhe impõe o que não impõe aos outros. Além dos
mandamentos há o heroísmo, agradar a Jesus, que nesse campo
não manda, mas pede com o coração na mão. Recusar não é nem
pecado venial, aceitar é algo de grande” (29.9.’37). E ainda:
“Com você posso falar também das necessidades da Obra. E se
não falo disso com você, que a vejo tão íntima, com quem devo
falar? E se peço de dar a Jesus também todo seu patrimônio, lhe
proponho talvez um grande mal? Cristo è o subversivo dos termos
mundanos”. Vou tentar convencê-la entrar na Obra, mas são
demais as divergências de caráter e de método educativo.
32

Na nossa mesa há uma cadeira reservada para os hóspedes.


Um dia para um viajante. De vez em quando para, com a colher
levantada, dá um murro na mesa sem dizer nada. Outro prato,
mesma cena. Quando vai embora para no limiar, se volta, levanta
o braço: “Se farão sempre assim, salvarão o mundo”. Os filhos
me olham maravilhados: “Que seja Jesus?”.

7 – Padres preocupados

À morte de mons. Pranzini (’35) o pároco renuncia, a


paróquia está vacante, os padres são preocupados com quem irá
querer ser vigário numa casa paroquial invadida por meninos de
rua. Quando se anuncia um concurso para uma paróquia, se
exaltam suas vantagens. Mas aqui o que há de desejoso? Querem
me tirar do clero secular pelo medo que o meu exemplo os levem
a abrir as suas casas aos abandonados? É melhor aceitar que eu
estou fazendo uma coisa especial, e isso é tarefa das
congregações religiosas. Entenderam meu jogo, que não é
intencional: quando eu morrer, como se pode mandar embora os
meninos? Não estão na casa deles? A coisa se complica, mas eu
resisto ao novo bispo: “Antes de abandonar o apostolado
paroquial renuncio à Obra. Há institutos demais, é tempo de
cuidar dos povos abandonados a si mesmos” (3.5.’36). Para mim
não é facultativo acolher os meninos, mas é ínscrito na alma
sacerdotal. É nomeado vigário meu irmão Vicente.
Mariano, um jovem tipógrafo de Mirandola, ensina a sua arte
aos meninos. Não entende por que pulamos as refeições, mas
compramos o papel para o jornalzinho paroquial. Eu afirmo que
com isso se nutre a alma do povo. O convido para jantar. “Não
sou louco de comer aquela porcaria!”. Gasta no bar e no jogo.
Um dia pago com esforço a minha dívida. Ele percebe: nós na
cama sem janta e ele no bar. Não se dá paz: “E se o meu
pagamento fosse o pão dos meninos?”. Entra em crise e começa a
frequentar minhas brincadeiras, vai a missa, janta conosco.
Torna-se um dos nossos.
A Natal estamos almoçando juntos ao redor dos ‘cappelletti’
fumegantes. Um pensamento: “Como estão os Frapét?”. Vou
visitar os dois velhinhos em condições desesperadas. Volto atrás,
33

mando os filhos levar a panela para eles e almoçamos todos


juntos. “A minha estrada é esta: não o almoço dos pobres, mas se
tornar pobres com os pobres”.
Procuro amadurecer nos meninos o sentido da dignidade,
algo além da barriga. Um dia mando cinco deles à arena de
Verona para ver o Otello. Pago o mestre Bellei, que ensina
acrobacias, para fazer espetáculos na praça. Quando Errante se
comporta mal, uma pancada no traseiro e, como castigo, passeio
comigo ao lago de Garda. Adormece. Quando acorda, vendo o
panorama maravilhoso: “Que bonito!”. E eu: “Vê o que faz Deus
para ti, moleque? E tu, que fazes para Ele?”.
Parte do clero, bispo também, não vê bem minha
administração. A Tapparelli quer nos dar uma mão e pede
conselho. O vigário geral: “O bispo acredita que seja dinheiro
jogado fora e não deve ser dado. Um parecer, não uma proibição.
Para ele a posição não se resolve e pedir dinheiro equivale a
roubá-lo. Dando dinheiro a juro se perderia tudo, juro e capital, e
dando em oferta se concorre em alongar uma agonia, dando
oxigênio a um moribundo” (7.8.’38). Mas Mons. Ferrari, mesmo
não compartilhando “certos sistemas que hipotecam a
providência”, quer que eu faça algo para os meninos de Carpi. No
primeiro encontro, 1500! Aparecem grandes dificuldades. O
bispo gostaria, mas não ajuda economicamente. São convidados
os salesianos que pedem 200 mil liras! Eu pedia a metade. “Para
mim a organização da paróquia é uma coisa ridícula. A
reconstrução não é possível se não santificando a vida do povo,
do sofrimento à recreação. Para que volte a Deus, serão
necessárias gerações. O mal está tão enraizado que não seria um
apóstolo sábio quem pretendesse rever as massas no templo.
Precisaria amá-las e tratá-las como catecúmenos. Se deve saber
fazer o diagnóstico do doente, coisa que infelizmente não se faz”
(3.2.’40).
No inverno o povo da paróquia passa fome: 1200 famílias
mantidas pela assistência pública. No sermão ponho as cartas na
mesa: “Vamos acabar com esse cristianismo que é paganismo! Eu
sou pároco de quem? Esta é uma missão entre pagãos, porque não
conheço cristãos. Mais de 200 rapazes têm vergonha de ir à
missa. Para o festejo enfeitam até os muros da igreja. Uma
34

proposta: comprem o tecido; antes decoram a igreja depois, com


os mesmos tecidos, vestimos as crianças, templos vivos. Assim
vos absolvo, senão jogo no chão a cruz da torre”. Os alfaiates
fornecem mão de obra gratuita. Na procissão todos elegantes! Os
filhos dos ricos batem os pés, querem a roupa dos pobres.
Em 1936 o jornalzinho sai em edição cotidiana. Mariano
cuida da rubrica O mundo em poucas linhas e publica o famoso
discurso de Mussolini de 9 de maio. A Escola da Milícia vai ao
cinema com passo de marcha, precedida pela banda. Os meninos
fazem festa, porque nos trazem comida nunca vista em tal
abundância. Mas quando os fascistas organizam a dança nua, os
repreendo: “Fizeram a guerra e têm medo de quatro grilos
vestidos de preto?”. Vou ser chamado. Padre Vincenzo treme.
Pergunto: “Chegou ele?”. “Ele quem?” “O Espírito Santo, o
conselhero! Jesus disse: Não preocupem-se com que irão dizer?”.
O chefe se desculpa: “Um ignorante teve a coragem de denunciar
padre Zeno. Onde você está, há ordem. Precisaria um padre Zeno
em cada província”. O chefe da polícia dirá: “Um sim, dois não!”.
Os credores apertam. Roma intervem. A administração é
entregue a padre Tosatti. As coisas melhoram um pouco. Pagadas
as dívidas, resgatado o casinone, o bispo aprova a Obra
solenemente na presença do cardeal de Bologna: “Aprovamos a
Obra nos seus nobres ideais e nas suas iniciativas de profunda
melhoria cristã e social” (1.8.’37).

8 – As irmãs

Na adoração noturna, abro meu coração a Cristo: “Deus me


dará razão e cedo veremos uma reviravolta no apostolado, uma
verdadeira revolução dos espíritos”. “Eu ando como um acrobata
sobre um fio, um equilíbrio espiritual que o Senhor me concede
para o bem de uma grande Obra sua” (16.1.’37). Mas quem vai
cuidar dos rapazes? Vem algumas mulheres para algumas horas:
“Se vê que precisam da mãe”, dizem. E vão embora. Não
conseguem sentí-los como filhos. Humilhados, traumatizados.
Como um violino: pode ser um Stradivari, mas se ninguém o
afinou, porque ninguém os amou?
Em ‘37 as irmãs Missionárias Franciscanas vem morar
conosco. Um amigo me dá de presente uma galinha. Na janta
35

encontro os rapazes comendo pé e asas. Na cozinha surpreendo as


religiosas em ação sobre as coxas e o peito. Qual mãe não dá o
melhor para os filhos? Ligadas à congregação, por regra, devem
viver separadas dos homens embora crianças. De noite se retiram
e eles ficam sozinhos próprio quando necessitam da ternura
materna. Mesa separada, sujeitas à superiora, vinculadas às
práticas de piedade. Um teor de vida monástico, que não tem
nada a ver com o calor familiar. Desabafo: “O clero não intende a
hora e a índole dos tempos. Porque não o ama e não quer descer
ao povo; porque, de espírito, é um grande senhor, è um jerarca ,
não um pai. Também as freiras têm esta mentalidade, porque
mais se aproximam de mim, mais se sentem longe. E’ a oração
demais que estragou a sua mentalidade. Repetir atos de amor
espiritual, não realizados, portanto abstratos, desdobrou a alma
delas. Que paradoxo se achar algo mais do que os últimos!
Queremos curar as almas divididas do corpo. Somos mestres,
portanto passa um sacerdote e vai embora, passa um levita e faz
o mesmo, passa Jesus e vai na cruz... Desse ponto de vista os
crucificadores de Jesus no povo são seus ministros e as irmãs. Em
grande parte é uma espiritualidade evanescente, visto que logo
aparece algum samaritano, o deixam fazer até quando não o
repreendem. Quando não vai bem, os primeiros a sentir os
efeitos, também no físico, devemos ser nós, não as crianças, nem
o povo” (7.2.’38).

9 – Os cinemas

Administramos os cinemas de S. Giacomo, Medolla, Melara,


Mortizzuolo, S. Próspero. Entre o primeiro e o último, 45 km.
Organizo-me e com a moto consigo passar o filme em todas as
salas. Os rapazes distribuem o jornalzinho, trazem os filmes e
fazem a projeção. O povo aprende a respeitá-los, mas uma noite o
filme gira ao contrário. Vaias! Alguém diz: “Basta com esses
meninos!”. Chego eu: “Fazem o que podem para se sentir como
vocês. Por que mortificá-los?”. Intervem um certo Benea, alto,
forte: “Quem fez a confusão?”. Um desgraçado diz: “Aquele là”.
O pega pela camisa, o levanta como um sapo, o joga contra o
muro e aquele cuspe dois dentes.
36

Nunca vi tantas pessoas que rezem por mim como em S.


Giacomo. Quando aparece um bom dinheiro os credores rezam
para que não chova. Os meninos levam para casa o dinheiro em
saquinhos. Vou dormir tarde e os ponho debaixo do travesseiro.
De manhã cedo chega a procissão dos credores. Entre uma soneca
e outra: “Quanto te devo? Bastam dez liras? Venha o outro…”.
Os filhos, pagadas as contas, correm na quitanda e fazem outras
dividas. Entre os nossos defensores há comunistas, anticlericais,
prostitutas. Simuèl, o blasfemo, è um fornecedor e um fã especial.
Não poupa conselhos: “Padre Zeno a sua é uma Obra de muito
barulho e pouca música! Mais música, por favor!”. Uma manhã:
“Não vou embora até quando não me dão as minhas 250 liras.
Vence uma conta”. “E eu, amanhã de manhã, como faço?”. “Por
que, o que há?”. “Estou precisando de 500 liras”. E ele,
blasfemando. Enquanto blasfema, com a mão faço o gesto de
jogar por terra as blasfêmias e de pisá-las com os pés. “O que
faz?”. “Piso as suas blasfêmias, para que não corram para o alto
atingindo o céu”. “Crê que blasfemo o Deus desses rapazes? É o
Deus dos ricos, pois merece!”. E outras blasfêmias. Depois, com
voz baixa: “O que lhe serve?”. “500 liras”. Tira do bolso e vai na
taberna festejar com os amigos, contando o fato.
Para os que falam mal de mim, quando me veem com certas
pessoas, respondo: “O padre deve ser sempre disponível para
todos como as prostitutas, dia e noite… E não devemos prestar
contas das fofocas, pois se Cristo tivesse prestado nunca teria ido
à cruz”. A dona Inês administra uma boate e tem sempre alguma
cópia do jornalzinho na sala de espera. Um dia vem com as
meninas trazer uma oferta. Mais em frente organizo os exercícios
espirituais para as suas filhas e, quando me veem com elas os
clientes gritam: “Padre Zeno, pelo amor de Deus, não as converte
todas!”.

10 – A mãe não chega

Quando os acolhi, tinha prometido: “Virão algumas


mulheres para ser suas mães. Na praça, na taberna, nas boates
exorto as mulheres: “A mulher nasce para ser mãe. Somente ela
tem o poder de fazer nascer e renascer um homem. Venha ser a
37

mãe deles. Para ti, tão forte, seis, oito filhos; para ti cinco; para ti
dez”. No fim distribui 300. O povo se comove, as mulheres vem
vê-los, dão uma mão, choram: “Pobrezinhos, como fazem sem a
mãe?”. Alguém tenta, mas “eu procuro uma substituição
incondicionada das mães mortas” (25.2.’47). “Quem não
experimentou nunca poderá saber qual mortificação seja não ter o
pai e a mãe. Quantas vezes disse na praça: “Você não têm a
coragem de pegar um abandonado e jogá-lo desta sacada. Mas
tem a coragem de matá-lo com a omissão”. Os meninos se
convencem que “as mulheres não têm coração”. Morando na casa
paroquial, veem passar as senhoras com os filhos bem vestidos,
perfumados. E ficam mais tristes. Não é possível educá-los sem
as famílias. Brigas, pancadas, grandes problemas. Uma vez chego
a tempo enquanto um está enfiando a faca na barriga de outro.
Não aguento mais. Chamo uns táxi, mando embora todos. De
noite fecho a porta e vejo uns vinte supérstites, que dormem ao
redor da igreja. “Nós não sabemos aonde ir”. “Então fiquem
comigo”. Outra vez me enlouquecem. Eu os reúno: “Tu vás aqui,
tu acolá, todos à sua casa”. Um grita: “Eu já cheguei, esta é a
minha casa”. Todos juntos: “Eu também, eu também…”.
Quando nos sequestram tudo vou pedir conselho a padre
Calábria: “Você tem a providência, eu não”. “Sim, certamente,
tem razão”. Em fim puxa uma moeda de vinte liras: “Dizem que
tenho o monopólio da providência. No cofre só tenho isso. Toma
e vai para casa e continua, porque a pobreza é o sinal que é uma
obra de Deus, não sua”. Faço como diz, mas a fome não nos
deixa. Vamos em frente comendo polenta. Barile brinca: “De
manhã quente, a meio-dia frita, de noite torrada”. “Muitas vezes
volto para casa de noite, cansado de procurar o pão, com o
coração quebrado. Os filhos dormem. Os observo entre as
lágrimas. O mundo passa na minha frente como em um filme.
Inevitável a comparação com os filhos dos ricos. Improvisamente
parece que as camas se transformam em covas e eles dormem
abraçados à suas mães mortas”.
38

III – Padre diferente

1 – Sem a pretensão de converter

O povo me considera um padre esquisito. Durante a missão


em Moglia também os homens, que nunca pisaram na igreja,
querem confessar-se comigo. Um vem com a garrafa e dois
copos: “Padre Zeno, enquanto me confessa vamos beber”.
“Epa!”. Começamos a beber um vinho espumante e os pecados
saem melhor. O padre encarregado de me controlar, vai referir.
Na diocese de Mantova não me chamarão mais.
Uma vez o bispo Pranzini me perguntou: “De qual coisa
você gosta menos, como sacerdote?”. “Dar a comunhão na
igreja”. “O que dizes?”. “Excelência, conheço o meu povo. Vem
ao altar uma moça com a mãe coberta com a peliça. Li perto, a
viúva que treme pelo frio e a criança cheia de crostas, desnutrida.
Depois chega o rico, que exibe a corrente de ouro sobre a
barriga”. “O que você faria?”. “Dou a comunhão para todos,
como a igreja o impõe, mas eu colocaria no meio das hóstias
verdadeiras, outras de couro, brancas, em decoradas. Á senhora, à
menina, ao rico daria a hóstia de couro e aos outros o Cristo de
verdade” (DZR, 123s).
Uma recomendação para quem faz apostolado: “Não
pretendamos assumir a tarefa de salvar o mundo sozinhos, seja
mesmo em Cristo. Esta é tarefa da Igreja. Portanto será fora do
nosso espírito quem pretende impor aos outros o nosso exemplo”
(‘38). “O amor respeita a liberdade do amado, não põe armadilha
para levar as almas a Deus. A conversão de uma alma não é
negócio nosso, mas somente de Deus. Nós devemos nos por em
contato, ao mesmo modo, com respeito e estima, porque todos
são obra dele. Como expliquem que todos nos querem bem?
39

Porque amamos e nunca pretendemos converter ninguém” (’44,


DZR, 159).

2 – Bairros romanos e Magliano Sabina

Em Roma por motivos práticos, encontro um padre de padre


Calabria, pároco de Tormarancia, um dos bairros mais pobres, à
sombra de São Pedro. Comovido, me ofereço para pregar as
missões ao povo. A voz anda, nascem contatos com as
autoridades religiosas. Há tempo quero sair de Carpi. “Se
queremos vir em Roma teremos todos os favores do Vaticano.
Em Carpi muitos obstáculos, aqui um mar de necessidades com o
caminho livre para mil iniciativas” (14.4.’38). Escrevo à
Tapparelli: “Procurava em você a companheira da Obra para a
parte organizativa; madre Giovanna pela parte religiosa; em
Carpi a ressurreição do centro de uma diocese. Para tentar isso
não estou sem dinheiro, mas na miséria. As irmãs não
entenderam, nem ela, nem o clero. Vivam mesmo nas fofocas de
sacristia, enquanto a massa dos batizados se paganiza. Chorarão
por não ter aproveitado. Eu estúpido e eles sábios; eu exagerado e
eles equilibrados; eu gastador e eles prudentes; eu sonhador e eles
objetivos” (2.10.’38).
Rezo sobre o túmulo de Pio X. Preciso sentir-me sob o
manto do Branco Padre, porque vejo na minha frente a
perspectiva de uma grande missão. No Vaticano encontro mons.
Ettorre, um amigo desde a Juventude Católica. Me recebe de
braços abertos. Escreve à Tapparelli, para me convencer a “tentar
uma experiençia em Magliano Sabina, debaixo do olhar do papa.
Padre Zeno, mais prudente do que se pense, não quer arriscar um
transplante antes de ter ajeitado as obras em Carpi. A Obra, posta
no coração da cristandade, quem sabe não possa dar uma
consolidação definitiva com a aprovação do santo Padre e a
inserção na vida da Igreja?” (6.10.’38). Roma, temente, pede
informações ao meu bispo. “Até agora muito bem, a não ser as
dívidas das quais padre Zeno não se preocupa, confiado na
providência, depois de ter feito toda a sua parte; este é seu lado
fraco, ao menos se deve andar pelos caminhos ordinários. Sobre
esse ponto, humanamente falando, não estou tranquilo. Pelas
40

outras coisas não tem que admirar o espírito de sacrifício, de zelo


e de verdadeira caridade cristã” (5.5.’38). Quando Roma impõe
de por perto de mim um administrador ele disse: “Fui tentado,
pelos contínuos pedidos dos credores, de fazer-lhe deixar a Obra,
mas fez notar que isso criaria uma ruina com consequências
penais. A situação não parece remediável se não trocando a
cabeça do sujeito, por outro lado irrepreensível”. A minha versão:
“A fazenda tem suas leis, a providência os seus caminhos”.
Depois de algum tempo alguns administradores renunciam:
“Vocês sabem se virar melhor do que nós, porque nos registros
contábeis tem uma voz desconhecida por nós: providência”.
Concluo: “Sempre acreditei na providência. E existe também
quando não intervém. Participa quando quer e me oferece metros
de 80 centímetros. Que mérito haveria acreditar se chega quando
queres com metros de 100 centímetros?”. Chego a dizer: “Nunca
mais rezarei ou irei fazer rezar para obter meios materiais.
Quando um filho trabalha pela casa paterna, um bom pai
intervém toda vez que o filho erra, pagando do seu bolso. Deus
sabe que eu administro a sua casa, portanto lá aonde erro ou não
chego, ele irá fazer com a providência” (‘38). Não sento, faço
todo o possível e, muitas vezes, o impossível. Em Roma, sob
vigilância controlada, recomendo: “Basta com as cartas ofensivas
dos credores. Para quem se promete, devemos de hoje em adiante
ser muito pontuais” (16.12.’38). Em Magliano abro uma
tipografia, ensino física e química em seminário, prego uma
missão às crianças. Também aqui a Obra se torna um centro de
atividade e de atração.

3 - “Venderia o Vaticano…”

Desde jovem afirmo que não há imprensa nem rádio mais


eficaz do cinema. A 23 anos participei, no Vaticano, a um
congresso: “Eu venderia o Vaticano e todas as catedrais para
fazer uma grande Hollywood e produzir filmes sadios. As
prostitutas sabem fazer a parte de uma santa capaz de comover o
mundo. Os beneditinos agarraram a imprensa e nós deixamos
fugir o cinema”. Um santo diz que “Os sinais dos tempos são a
vontade de Deus”. “Se dança? Se cristianize a dança. Se
41

produzem filmes? Se cristianizem as películas. Se difundem


besteiras e erros com rádio e televisão? Se cristianize a fonte”. Da
intuição à ação: a firma Colombo de Roma vende a baixo preço
350 projetores a passo reduzido e 600 películas por 600.000 liras.
Não encontro quem financie. Gostaria de falar com o papa do
meu projeto: criar um circuito de salas paroquiais, alugando os
projetores por 2.000 liras ao ano. Os Pequenos Apóstolos
providenciariam a manutenção, treinamento e distribuição.
Escrevo a padre Calábria: “A providência nesses dias me deu 200
mil liras. Mesmo assim estamos passando fome, pois são para a
cinematografia. O meu mais aguerrido inimigo é o mundo, aquela
parte venenosa que se aninhou entre os eclesiásticos. As pinturas
do Vaticano têm todo o aspecto de estar esperando um
bombardeio. A caça aos cargos é sintoma de pólvora. Se visse
como vivem bem aqueles monsenhores! Sobre os longos carro há
uma silha SCV [Estado Cidade Vaticano]. O povinho traduz: Se
Cristo Visse! Isso é cheiro de pólvora” (30.7.’39). A guerra irá
fracassar o projeto e os projetores a passo reduzido não sairão
para o mercado.
Três sequestros, estou sozinho, peço conselho à Tapparelli, a
qual responde: “Se se continua assim S. Giacomo morre. Os
rapazes preguiçosos e desordenados. O senhor, oito ano atrás,
dava começo na inexperiência, hoje é culpa continuar com a
cegueira de antes. O cinematógrafo não satisfaz, em casa 500
quilos de trigo. Em vez de diminuir o senhor quer se expandir.
Acorde a consciência e o sentido do dever, os prepare para um
trabalho regular e não gaste os dons especiais dados por Deus”
(16.9.’39). Eu acrescento: “Acredita que não veja com desgosto
certas desordens? A alma dos jovens é misteriosa e não todas as
horas são propícias para a correção. Dois anos atrás queria jogar
ao mar a Obra. Padre Vicente e você me dissuadiram.
Pressuposto da retomada era uma minha intervenção econômica.
Sozinho, tive que enfrentar acrobacias e humilhações. Dois anos
de lágrimas. Corri para Roma para evitar a ruina. Às vezes teria
preferido não tê-la conhecido. Se o Senhor lhe deu o sistema de
enxugar muitas lgrimas, por que não o fez? “Seria como jogar
dinheiro da janela”. Meu Deus, não é verdade. Eu saberei ceder
mais do quanto ela pensa; mas ela deve sentir que tem um
42

coração capaz de fazer muito mais” (25.10.’39). O ano depois,


voltamos todos para S. Giacomo.
Não saberia viver sem certas intervenções inesperadas.
Como no último ano de 1939. Muita neve, muita fome. Sem
polenta, sem lenha, sem luz. “Sentem, aqui ao meu redor. Tem a
mesa, mas é inútil prepará-la”. Da taberna chega um cheirinho!
“Quanto devemos à loja?”. “5 mil liras”. “Vão pedir esmola, vão
roubar!”. Uma hora desta luta. Um silêncio oprimente.
Improvisamente os reflexos de um carro. “Padre Zeno está?”. E’
o professor, meu conselheiro na Juventude Católica. “Como vai?
E os meninos? Venci um prêmio e há dias penso de vir aqui, mas
há neve demais. Toda vez que sento à mesa, uma voz: “E se
precisassem logo?”. Hoje encontrei um táxi, fizemos acrobacias,
mas estamos aqui. Eis aqui 5 mil liras”. Os rapazes pulam de
alegria: “Viva as linguiças, os salames, a macarronada!”.
Assino as prestações de olhos fechados. Vão em protesto e
respiro por alguns dias. Muitas vezes os fornecedores veem,
avaliam e pagamos em natura. O oficial judiciário me encontra na
cama: “O que ficou para sequestrar?”. “Leve a cama e a mim
também”. Naquele momento chega o encarregado do almoço:
“Padre Zeno, não tem comida”. “O que falta?” “Tudo”. O
funcionário: “Quanto precisa?”. “Dez liras”. Tira o dinheiro do
bolso e sacode a cabeça: “Vindo aqui com você não se fazem
grandes negócios!”.

4 – Ventos de guerra

As coisas da política se complicam. Tenho alguns


pressentimentos: “Tudo será reduzido em cinzas” (26.9.’39). “O
grito dos povos é devido a falta de justiça. Uma paz imposta é
uma forma de guerra” (19.5.’40). “Salvem-se enquanto é dia.
Mas é um por do sol assustador. Falo de civilização” (21.7.’40).
Invasões e anexações me levam a sonhar em uma grande ordem
internacional: “As nações caminham para um ente soberano e
deverão se submeter a um ente internacional como as famílias ao
Estado” (14.3.’40). Tempos de ditatura, não é admitida alguma
forma de protesto. No verão de ’39 o prefeito de Mirandola
escrevia ao governador: “A maneira de falar de padre Zeno
43

suscita críticas no ambiente fascista, surpresa na população,


mesmo que alguns políticos aprovam sua atividade. Domingo não
teve respeito algum pelo Governo, dizendo que a paz armada é e
será uma responsabilidade a cargo dos que professam tal
princípio”. Proibido de falar em teatro, me transfiro na igreja. A
polícia me controla, sequestra o jornalzinho cheio de citações
evangélicas: A árvore cai da parte que pende; Raça de víboras;
Pelos frutos se conhece a árvore. Me chamam na delegacia: “Isso
é contra o Estado e o partido fascista. Um crime”. “Não fui eu
que escrevi”. “E quem, então?”. “Jesus Cristo! Isso é de Mateus,
de Lucas. Querem sequestrar o evangelho?”. “Mas isso é contra o
fascismo”. “Significa que também Cristo era contra o fascismo”.
“Volta para casa, volta…”.
O coração da minha pregação: “Precisa reviver a vida dos
primeiros cristãos, que se amavam como irmãos também como
famílias”. Mas como pode o povo mudar se não tem a idéia que,
às vezes, é mais importante do que o pão? Com isto se pode
refazer uma civilização, portanto precisa levar a idéia e o
exemplo juntos. Sofro de insônia, começo a escrever e me parece
de comunicar ao coração do povo também de noite. Um dia chega
uma carta: “Escreveu-me Jesus Cristo!”. “Suplico-vos de
continuar a escrever. Entendi o ideal de vocês: servir Cristo nos
irmãos. Eu também sou partícipe do bem por vocês derramado.
Posso me despir da minha individualidade, porque eu também
para vocês sou: Jesus” (3.5.’38).
Publico Tra le zolle (’40) e I due regni (’41). Em pleno
regime fascista não tenho medo de tratar temas proibidos: “Se o
Estado protege a propriedade e não controla seu uso, se torna
cúmplice de todos os abusos e protege também os ladrões.
Entregar a vida econômica à livre consciência dos cidadãos é
loucura. Se cortem as unhas aos gatões. Que a riqueza produz
riqueza é verdade, mas sem o trabalho não se produz nada.
Venham para frente vocês que amam a justiça e criem um
movimento de santidade para fazer renascer no mundo uma
corrente viva de justiça” (I due regni, 70).

5 – Servos do sistema
44

“A civilização é como Atila que passa sobre os inocentes e


depois chegam as ambulâncias para recolher os pedaços humanos
e jogá-los nos orfanatos, prisões, correcionais. Insensato povo
moderno: se não prevê, a que serve a filantropia?” (Tra le zolle,
37). “É bom acolher as crianças, fazer obras de caridade, mas
assim somos servos do sistema, consertamos os erros sociais”. É
melhor lutar em política, porque esses meninos são fruto de uma
política errada. “A política é sagrada, não é lícito transcurá-la.
Quem dará a vida por ela, a dará pela fé. Aí de quem a separou da
religião: uma armadilha satânica. Está em mãos equivocadas e o
mundo católico não pode evitar as lutas. Jesus quer ficar na
direção dos povos. A terra será toda um incêndio. O homem,
abatido, se perguntará são esses os frutos das nossas doutrinas
políticas? Mas lutará até quando não se aceite a doutrina do
Salvador. Sempre inspirei o meu apostolado a esta visão da vida
pública” (a padre Calábria, 7.11.’39). As palavras de um
socialista me perturbam: “Estamos cansados de ser oprimidos.
Vocês padres não dizem que somos filhos do mesmo Deus?
Porque permitem que alguns mantenham os filhos na abundância
e os nossos vivam em pobreza? Como podem ganhar tanto e nós
não conseguimos procurar o necessário para nós? Com todas as
suas belas palavras eles continuam a sugar o sangue. Ocorre uma
revolução! Quem acredita em Deus não sabe fazer as revoluções
contra os inimigos dos pobres. Você pregam a paciência e assim
alimentam os bobos!”. Vou fazer de tudo para desmentí-lo.
Na delegacia: “Você tem vontade de ser preso. Honra demais
para você, impopular demais para nós”. O bispo me exorta à
prudência. “Aceito suas imposições, mas não aceito as razões”
(5.12.’40). Corro a Roma para tirar da prisão alguns
mirandoleses, que beberam demais e falaram contra o fascismo.
Enquanto eu luto com a pobreza, Mussolini move guerra à
França e à Inglaterra (10.6.’40). Quando vem em visita a Carpi
(julho de ‘41), todos na rua: palmas, delírio, arrogância e
eficiência. Distribui 100 mil liras aqui e acolá. Somente eu
esquecido. Lhe escrevo: não seria melhor fazer uma guerra
diferente para salvar os filhos abandonados? “O sem família é um
estragado. No correcional terá um superior, um benfeitor, um
carcereiro, mas não a mãe, a casa onde pede o pão sem esticar a
45

mão, onde tanto nas boas ações que nas más sabe que é amado.
Os acolhi em minha casa. Muitos deles estariam na prisão, mas
agora estão no meu coração” (’41). Em vão peço um colóquio.
No outono de ’43 irei pedir 500 cobertores. Me responderá no
maio sucessivo com 2.000 liras suficientes para comprar alguns
lenços!
Dedico-me à formação dos filhos. Até agora propôs a
perfeição individual. Por que não podem realizá-la também as
famílias, dando um cunho cristão ao trabalho, à economia, à vida
pública? Precisa uma sanidade social para transformar relações e
estruturas. Ando com um caminhãozinho catando comida, falo
nas igrejas, nos teatros. Fecho com uma frase: “Não se paga no
ingresso, mas na saída”. Me coloco à porta e estico o chapéu. No
Natal de ’40 vem na nossa casa um russo, Sementovski Kurilo.
Adorna a árvore com doces e presentes. Uma maravilha! Uma
condição só: os rapazes podem comer o que querem por meia
hora, mas não podem por nada no bolso.
No decênio da Obra tiro as conclusões: “A poesia do
sacerdócio é uma só: cruz e Calvário. Nestes anos de martírio
provei quanto seja árduo amar o povo. Se morre de desgosto”
(11.1.’41).

6 – Não posso fazer a parte da mãe

Uns quinze mamos são chamados para guerra. O povo me


ajuda a dar de comer aos filhos, mas como saciar suas
necessidades de ternura? Eu não posso fazer a parte da mãe
deles. Quando pego no colo o menor e o aperto ao peito o
machuco, porque sou duro como um choupo. Não se pode negar
o calor materno, um delito social que provoca a ira de Deus. Se a
sociedade tivesse o coração, estas coisas não aconteceriam.
Certas senhoras vem a com a menina enfeitada, que declama a
poesia: “Oh, menino Jesus! Nina nana aqui, nina nana acolá…”.
Aí não tem Jesus, é ai que ele esta mal. Natal, para nós, é um dia
feio. Uma família mutilada não é um Natal aleijado? Mais
adiante, na volta do bairro de Tormarancia, escreverei: “Os
homens não tinham uma casa digna dele para nascer. Escolheu
um estábulo, porque os animais obedecem à lei do Criador e a
46

casa deles é uma casa de inocência. O Natal é uma tremenda


condenação da leviandade de uma civilização cristã que massacra
tudo. Cristãos, de que querem culpar os ateus quando temos nós a
culpa de não saber ou querer mostrar a eles o Cristo nas obras? O
Natal se repete lá onde nascem na miséria os nossos irmãos, nos
quais é humilhado ainda mais que no estábulo de Belém” (Il
Quotidiano, 25.12.’44).
A Igreja foi lançada por Cristo no meio do mundo e foi
submergida. Vinte séculos debaixo da água. Quando virá à luz?
Quando o mundo saberá amar, porque até quando não haverá
amor a Igreja estará sepultada. As belas palavras, os esparadrapos
sociais, as greves não resolvem. Protestam os que trabalham, mas
os que não comem nem podem fazer greve, não têm sindicato,
não interessam a nenhum partido. Sofri o insofrível. Uma dura
realidade provocada não pela falta de um bem material, mas pela
mortificação inumana que atinge no íntimo muitas criaturas.
Perguntam-me: “Por que tu estás sempre alegre?”.
“Certamente, falo ao povo, não ouso chorar. Quando batem
palmas, digo a mim mesmo: “Ri palhaço!”, porque atrás das
minhas palavras há muito sofrimento. Se explicasse isso, se
esvasiariam muitos teatros e praças. O povo não quer ouvir certas
coisas. Todos os traumas sucessivos foram graves. Mataram
alguns filhos meus, mas afinal eram adultos e podiam se
defender. Quando o inocente que sofre, é inumano, inaceitável”.
Duas irmãs da mãe Nina vêm nos ajudar. Muitas vezes me
toca lavar a roupa, limpar a casa, acalmar os fornecedores, ir atrás
da providência.

IV - A primeira mãe (1941)

1 – O ultimato
47

Um dia, enquanto celebro a missa, os meninos na praça,


brigam entre si. Sofro muito durante este sacrifício da alma, que
grito: “Senhor, decide-te! Ou fazes o milagre ou eu largo o
campo. Não vês estes pobres filhos, vítimas da falta de afeto?
Sem a mãe não há ternura, se tornam violentos. Se antes da
oração do Angelus não mandas aquela moça que prometeu de vir,
não falo mais contigo”. A maternidade nova nasce no cálice com
esse ultimato. Enquanto toca o Angelus, se apresenta Irene, com
os seus 18 anos. Ajoelha-se. Pergunto três vezes: “Amas o
povo?”. “Sim, sim, sim…”. Há ai um menino, o menor. “Então
pega, se chama Mírio”. Acontece quanto tinha escrito: “Precisa
uma mulher que saiba entender-me. Por que próprio uma mulher?
Talvez seja uma coisa nova, mas eu sou uma alma selvagem e
sacerdotal, que, pulando uma série de tradições, não viverá se não
dará à história uma paternidade e uma maternidade que nunca o
mundo cristão viu” (7.3.’38).
Sua mãe, na cama, não fala mais. Os parentes vêm buscá-la e
ela foge de novo. Diz ao pai: “Vamos ao cemitério a pedir às
mães dos órfãos se faço bem ou mal. Os meninos precisam da
mãe, é Deus que quer”. “Tua mãe morre. Com vinte anos irás
decidir”. “Esperei quatro anos. Não é melhor que eu faça a
vontade de Deus mais do que a tua?”. Vem a irmã: “São filhos de
ninguém, nem sabe de quem.. uma loucura!”. E vão porradas.
“Eu te matarias até o ponto de ir para o inferno…”. E foge como
uma louca, espantada pela frase que escapou da boca dela. Chega
o tio para convencê-la. Ela explica o acontecido. E ele: “Tu fazes
uma obra santa, não vai atrás de ninguém”. A polícia a encontra
na cama. “Verbal: não se pode levar, doente”. O delegado manda
chamar a mim e ao pai dela. “Esta noite encontramos uma menor
numa casa de prostituição. Mas sua… Mas você sabe o que é uma
vocação? Como pode um pai não ser feliz de ter uma filha como
a sua?”. “Minha esposa morre de desgosto!”. “Eu conheço as
mulheres, não morre”. Depois, dirigindo-se a mim, sério: “E para
você, que escondeu uma menor, 5 anos de prisão”. “10, 20 anos
não me interessa nada, a menina vai ficar lá!”. Quando o pai me
vê assim decidido: “Não quero saber mais nada, vou dormir num
outro quarto”. Chegados perto de sua casa: “Eu tenho 35 filhos,
48

você 7 e fomos acabar perante o delegado. Desse passo, vamos


presos todos dois: você porque bateu nela, eu porque a hospedei.
Quanto nos custam os filhos!”.
Na taberna, na família, no trabalho, cada um diz a sua. E eu,
dentro de mim: “Que a paróquia se arrebente, a Irene terá os
filhos do abandono”. Alguns dias depois se festeja o padroeiro.
Na procissão muitas pessoas, muitos padres, a banda. Quando
estou para dar a bênção, digo: “A Irene fugiu de casa para
assumir os meninos como filhos. São 10 anos que explico isso e
vocês ainda não fizeram nada. Que cristianismo é o de vocês?
Falo a vocês perante a Eucaristia. Vocês mulheres fofoqueiras
venham comigo sobre os túmulos das mães para perguntar o que
pensam disso. Os filhos delas reduzidos a farrapos! Aparece uma
moça e resolve o problema. Chorem, mas vocês são culpadas.
Digo isso porque muitas de vocês poderiam ter feito algo”.
Depois para os homens: “Devo fazer os nomes dos que
murmuraram? E’ um mundo novo que nasce e começa com um
amor mais amplo para os filhos, que precisam da mãe”. A liturgia
é uma cerimônia certa, mas eu não consigo me conter: “Depois da
bênção a banda toque a música de Beniamino Gigli”. O povo
começa cantar: Mamma son tanto felice…. [Mãe estou muito
feliz...] E o Santíssimo, ele também a ouvir o hino à Mãe, os
soluços das mulheres e do velho pároco. Dirá: “Nunca foi feita
uma função tão bela”. Uma grande festa, a celebração da mãe
com a banda, o vinho, os fogos de artifício.

2 - Irene vai falar com o bispo

No domingo seguinte, a mãe de Irene vem se confessar. Faz


a comunhão e diz: “Agora posso ir falar com minha filha”. Sem
querer, está sendo a sua fã. Leva-a ao hospital e de volta: “Vem
para sua casa para a convalescência ”. “Não, a minha casa é onde
estão os meus filhos”. Os meninos obtiveram do Céu a mãe.
Porém, para conquistá-los irá sofrer muito. A desilusão era tal
que chegaram a dizer: “Não é possível que nos ame. Nenhuma
mulher nos amou”. Tentam-na. Ela se aproxima deles, os veste,
os trata bem. O menor se afeiçoa, a chama de mamãe. E,
lentamente, os conquista.
49

Na festa de Nossa Senhora da Conceição a mando falar com


o bispo. Duvidoso, levanta problemas, faz perguntas: “Pensou nas
dificuldades? A idade, as fofocas, na casa paroquial. E de quem
serão filhos esses meninos?”. Mirio no colo, Romano atrás, Irene
encurta a conversa: “Excelência: é evidente que são filhos de
Deus. Eu os amo como se tivessem nascido de mim”. Diz isso,
batendo no ventre. Monsenhor Dalla Zuanna, um frade
capuchinho da barba longa, hierático se levanta: “Eis a sua mãe.
Nunca ficarão sem um sorriso. Abençoo a te e aquelas que te
seguirão”. Quando um padre lhe confirma de ter aprovado uma
nova vocação na Igreja, diz: “Nunca o bispo irá fechar os lábios
que pronunciam de novo a palavra mamãe!”. Ficou perturbado
porque Mirio chamava Irene de mãe.
Quantas vezes no cemitério ouço dizer: “Quando morre a
mãe é uma tragédia tão grande, que seria melhor por os filhos no
caixão com ela”. Que diferença há entre o filho da empregada e o
da dona, da prostituta ou da santa? O vínculo do sangue é
limitado, vai e vem como o sentimento. Se se ama com o amor de
Cristo nasce uma maternidade nova, que não se regula mais com
o afeto instintivo, mas com o amor universal. Quando chega um
abandonado fazemos o que fez Jesus, entregando João a Maria:
“Mulher, eis teu filho; filho eis tua mãe”. A mãe, para nós, nasce
debaixo da cruz. “Agora, não mais pobrezinhos, não mais órfãos.
Tu sabes, Senhor, que para mim órfão è uma palavra infernal”
(20.9.’44). Um dia encontra escrito no vidro embaçado: órfão!
Põe em cima uma grande X, nunca mais! Seja esquecida para
sempre esta ignomínia. Três meses depois Teresa, uma moça
elegante, deixa a família e o namorado e foge ela também. Vêm
outras moças e a cada uma entrego um monte de filhos. Sentir-se
chamar de mãe por Jesus, que se identificou com os abandonados
[“Eu estava neles”] não é algo de grande? Com a chegada das
mulheres recomendo: “Queridos filhos, não existe apostolado
sem perigo. Ai de vocês se amam o perigo, ai de vocês se temem
o perigo”.
Continuo minha caminhada com o vai e vem da providência.
Uma só certeza: Jesus segura a minha mão. “Uma experiência
mística: o Senhor não mostra o caminho a ser percorrido e nem os
pormenores. Não pensava de propor a nova civilização aos
50

outros, mas de ser útil ao povo com iniciativas de fraternidade


social”. Depois percebo que “quando se faz uma obra
extraordinária, precisa exigir do Senhor sinais extraordinários. Eu
sempre trabalhei na base de sonhos e sinais”. Os do Vaticano não
acreditam na providência, mas no banco deles. E eu quantos
pulos mortais, quantas brigas com os metros de 40 centímetros da
providência! Em ’42, em três meses, outras 40 bocas para
alimentar. Lanço um SOS através do jornalzinho: “Digo-vos em
nome do Senhor: nos ajudem. Virei com a banda, farei um
discurso e vocês irão preencher os sacos de trigo”. Todo sábado
na feira de Mirandola toco sanfona e passo com o chapéu. Para a
esmola do pobre um som forte, para aquela do rico, um som
estridente. Um dia encontro no meu lugar outro cliente da
providência, mas faz pouco sucesso. Dou uma volta com o
chapéu e dividimos ao meio.

3 - A ruína se aproxima

Com a guerra a miséria se aproxima, o desgosto aumenta.


Comida racionada, íncubo dos bombardeios, derrota em todas as
frentes. Nas minhas voltas repito: “Apliquem a fé integralmente,
criando uma forma nova de sociedade, senão o mundo vai acabar
mal”. “Na imensa calamidade muitos se desorientam. Não, a vida
continua. Também a guerra tem seu fundo religioso, porque
achará sua solução se os homens saberão retomar a volta da
justiça de Deus” (4.1.’42). “Os eventos mundiais me agridem,
estão fixados na alma a fim de que eu faça algo. Não posso estar
ausente à vida do mundo” (nov. ’42).
No dia primeiro e seis de janeiro de ‘43, dois discursos
quentes: um contra a burguesia, o outro sobre a fraternidade
universal. Repreendo o regime pela tragédia nacional: campanha
colonial, aliança com o nazismo, leis raciais, exaltação da guerra.
Preconizo uma nova época fundada na solidariedade. Também na
oração falo com os trabalhadores que, aqui, são todos cristãos:
“Deus está para dar a vocês um grande dom: quer dar uma ajuda
na administração do fruto de suas fadigas: o capital. Mas,
acreditem, nada podem fazer sem Cristo. Se querem trabalhar
sem planejar tudo segundo o evangelho, irão fazer um buraco na
51

água e os filhos irão amaldiçoar vocês novamente” (8.9.’43).


Multiplico os discursos na praça, a única maneira para dar de
comer aos filhos. Enquanto cortam o trigo, alguns camponeses
querem encher o saco dos Pequenos Apóstolos. O funcionário se
opõe. Mostram-lhe o jornalzinho: “Deem o trigo aos filhos de
padre Zeno: todos devem comer”. Dizem: “Se você se opõe, não
vamos mais trabalhar”.
O maestro Cimini dirige a banda musical dos meninos e o
povo os chama de bandidos. Um amigo nos paga as bicicletas.
Vamos pelas vilas tocando, levamos a nossa proposta,
recolhemos trigo. Eu toco a sanfona, um menino canta. Quando
toco errado batem palmas e retomo novamente. O maestro:
“Nunca tive um aluno, que faça tanto sucesso como você”.
Depois explico a necessidade de fraternizar as famílias. Valsa e
mazurca fazem o restante. No fim passo com o chapéu. Em S.
Martino começa a chover. “Entrem, toquem, bebam”. Na taberna
me põem sobre uma mesa e: “Discurso, discurso!”. O maestro há
tempo deve fazer xixi, mas um cara meio bêbado está para lhe dar
um murro debaixo do queixo: “Alto lá! Quando fala padre Zeno
param também as moscas”. Nos é servido bom vinho com
bolachas. Os meninos enchem a barriga. Na volta, a estrada è
toda deles. Na ponte, dois acabam na água, as trompas
machucadas, um desastre. Ordeno à coluna de continuar a pé.
Em ’43 vem fazer uma inspeção o coordenador dos estudos
de Modena, prof. Roberto Mazzetti. Nota que não há o retrato de
Mussolini. “Aqui não entra, pois estes meninos são res nullius,
coisas de ninguém. Estou com eles, tenho o direito do primeiro
ocupante, portanto são Pequenos Apóstolos, não Balilas”. “O que
pensa do fascismo?”. “Um anacronismo. Por que ressuscitar
Roma? Andamos vinte séculos por nada?”. “Me dê a mão, penso
como você”. Foi despedido.

4 – A União Sacerdotes Pequenos Apóstolos (1943)

Em 22 de janeiro o bispo celebra o décimo aniversário da


Obra. Participa do almoço e durante a bênção tem um momento
de perturbação: “Mas eu digo a vocês que esta Obra nasceu no
coração de Cristo”. Irá se justificar: “Experimentei uma força tal
52

que não consegui me deter”. Para mim, um sinal do Céu. Passo a


noite, interrogando-me com uns quarentas padres simpatizantes
da Obra: “Pode-se pretender que o povo se una como irmãos se
nós pastores não damos o exemplo? Por que não criar uma união
entre nós e as nossas paróquias?”. Dez dias de tempo para
decidir. Depois de uma reunião bem comprida, nasce A União
sacerdotes Pequenos Apóstolos (2-3.2). Empenhamo-nos em nos
ajudar como irmãos; a não acumular; a por ao serviço do
apostolado todo o salário; a santificar todas as formas de vida do
povo, preconizando os sinais e a exigência dos tempos. Quem
entra no conselho de direção assume a plena responsabilidade
sobre os filhos. A Obra se expande nas paroquias de Rubiara,
Ciano, Samo, Gainazzo. Três famílias vão morar na casa
paroquial de Gargallo, Panzano e Rovereto. Os rapazes se tornam
a família do pároco, o ajudam e o povo colabora, porque vê onde
vai o que oferece. A casa paroquial se abre à intimidade com o
povo.
Obtemos dos bispos uma tácita aprovação. Mas, aumentando
o número, serpeiam vozes hostis: “Uma coisa nunca vista: os
filhos das prostitutas, do pecado admitidos na casa paroquial.
Mas são mães de verdades as mulheres solteiras?”. Fico
enfurecido: digo eu o que é uma casa paroquial. “Na quase
totalidade dos casos um aborto. Para se locomover precisa passar
debaixo do controle da Perpétua (empregada do padre); para
pedir esmola, almoçar com o pároco precisa prestar conta com a
empregada; para fazer uma reunião há alguém que se queixa e
fofoca. Se o pároco sonhasse em doar um colchão a uma viúva
com filhos misturados numa cama só, deve prestar conta com os
parentes. E que brigas! Os netos são quase sempre os vampiros
que sugam o que poderia consolar muitas criaturas sobre as quais
o pároco aceitou uma paternidade divina. As nossas casas
paroquiais? Deus me livre! Servir a Deus e ao povo naquela
forma? Teria preferido a vida de leigo. O pároco na OPA vive
também na sua vida privada entre os mais abandonados, dando de
novo a eles uma família, um pão, uma paternidade. Salva-os
dando de novo o que o mundo não soube dar: a alegria, a vida
privada, não o triste orfanato do qual os rapazes desejam sair
procurando a liberdade e a família; não a prisão do instituto, cujo
53

oficial na mesa separada manda e prega uma paternidade irreal;


não um superior, mas um pai. Pobres crianças... Todavia quem se
torna pai para eles, se torna pai de Cristo. Permita-me ser sincero:
odeio uma dignidade sacerdotal, que não sabe descer até se
elevar sobre a cruz com os crucifixos da humanidade. A política
não nos escuta e nos eliminou; a moda chegou aonde quis; um
fracasso! E tudo isso porque não sabemos amar o povo até estar
entre os seus sofrimentos, as suas lutas. E’ paradoxal dar a vida a
Deus e depois se tornar ricos patrões. Pregamos com as palavras,
mas gostamos demais da nossa pele. Ou padres seculares ou nada.
Não aceitaria qualquer outra forma sugerida por algum coirmão,
mesmo proposta pela Vossa Exa. Estas obras têm uma
linguagem, que também o povo dos separados de Deus entende,
admira e segue. Para mim sempre apareceu claro que Deus quer
esta Obra. Sacerdotes com família adotiva e pais de família
partirão assim numa maravilhosa união a base somente de amor
cristão, decididos a tudo para dar de novo ao mundo um exemplo
de civilização cristã. Deus preme, quer que o clero e o povo
fundem-se na fraternidade dos primeiros tempos da Igreja”
(20.5). Se queremos voltar para o povo, a vida do clero deve ser
reformada, porque “entre nós e o povo há um abismo: não
entendem mais os padres e os padres não entendem mais o povo”
(6.2).
“O bispo de Carpi mais do que compreender-me, me
respeita”. O arcebispo de Modena, tendo medo de mim, confia:
“O que fazer, quando se trata de padre Zeno não sou contra”
(16.3). Mas, ao mesmo tempo, exorta para entregar os
abandonados aos institutos religiosos, “para reservar a casa
paroquial para as exigências paroquiais e para a dignidade do
clero”. Entre um espeito e uma não-oposição continuo para
frente, mas o meu problema de fundo fica. Que sinal profético, se
os padres abrissem as casas paroquiais aos filhos rejeitados pelo
pai terreno! Para nós é o primeiro passo de uma conquista
gradual: primeiro as mães de vocação, depois a união entre os
sacerdotes, em fim os pais de família. Três forças a serem
colocadas no povo para fazer coisas novas. Anuncio a um amigo:
“E’ brotada na Igreja a união dos sacerdotes Pequenos Apóstolos.
Somos 11 com seis paróquias irmãs e os povos serão educados a
54

esta fraternidade. O famoso milhão que está para chegar, fará


decolar a Casa cinematográfica. O prof. Volta, o operador
D’Urso e os técnicos de Roma se transferem para perto de nós.
Adquirimos o teatro e os maquinários por 1.558.700 liras. A
respeito dos meios, não temos dúvidas, a providência não nos
faltará” (19.2). Entre os benfeitores, José Vismara, admirado pela
minha pregação aos trabalhadores de sua fábrica de papel.

5 – A união dos pais de família

“Não se sabe a quais excessos a guerra chegará. O pós-


guerra será um caos. Precisa criar aqui e acolá uns exemplos de
vida fraterna socialmente eloquente. A entrada de sacerdotes na
Obra poderia ser um sinal: o Senhor quer que nós ajamos com
decisão” (9.3.’43). O entusiasmo me leva a entrever os frutos da
semeadura do evangelho. Exponho o meu programa à Tapparelli
e ouso propor a sua mansão como sede da Obra: padre Michelini
organizaria a marcenaria; padre Tosatti a imprensa; padre Beccari
a edilícia; padre Marchetto a oficina; padre Diaco a universidade
popular; padre Monari os jovens; padre Tardini as escolas e as
vocações; padre Magnoni as férias; Beatriz, Cesar, o prof. Volta
me ajudarão na produção de películas. Estou certo de que boa
parte do clero colaborará (9.3). A ótima senhora pensa que sejam
projetos irrealizáveis.
Para mim chegou o momento de envolver as famílias. Na
primeira reunião presidida pelo bispo, mais de 200 homens
(26.10.’42). “Devemos nos unir e começar uma fraternidade entre
as famílias; uma forma social, que nunca houve. Os filhos
deveriam ser assumidos por todos, não somente por quem os
gerou. O evangelho é preciso: Nasceu um homem ao mundo, não
aos pais. Se nasceram para a responsabilidade de todos, todos
somos obrigados a mantê-los”. Um pai diz: “Eu deveria ter sete
porque os outros morreram, portanto me empenho por sete”. Com
85 membros nasce A União dos pais de família. Bonini, o mais
velho conselheiro socialista, conclui comovido: “Superamos até a
Rússia!” (17.5). O estatuto ordena a defesa da família, a formação
cristã dos filhos, a sã recreação e as colônias estivas, a certeza
55

que os filhos nunca serão abandonados. Os eventos bélicos


precipitam, a iniciativa é adiada.

6 – O meu j’accuse ao fascismo

As minhas denúncias se tornam sempre mais duras, sempre


mais explícitas. Faço uma comparação entre Herodes e os
governantes: “Quantos chefes imitaram Herodes? Alguns
políticos fazem leis para que a religião dependa de suas besteiras.
Um Estado-Satanás que permita a eles todas as aberrações, que
nascem das ambições, orgulho, exagerações, criminalidade” (I
due Regni, 96). Para quem quer entender, poucas palavras.
A nação dispersa. Na manhã de 25 de julho, domingo, na
missa pronuncio palavras proféticas: “Este sistema não pode
durar. Os homens das grandes responsabilidades são falidos. Sem
Cristo não é possível nenhuma ordem pública, nenhuma paz. O
evangelho de hoje explica isso: “Cuidado com os falsos profetas
que veem vestidos de ovelhas, mas dentro são lobos rapazes.
Pelos frutos vos conhecerão”. De noite Radio Londres difunde a
notícia que o Grande Conselho tirou a confiança em Mussolini.
Badoglio restitui as liberdades políticas, impõe o toque de
recolher, proíbe, sob pena de morte, toda manifestação pública.
Sem medo, convoco o povo, lançando o meu j’accuse no
jornalzinho: “Finalmente a tirania antihistórica e antilógica caiu
para sempre. Desabou um regime que arruinou a Itália e deixou a
juventude imbecil. Ai dos que acreditam que ser cristãos
signifique ser coelhos. Cristo soube se impor ao sinédrio e a
César a custa da sua vida. Esta noite terei o discurso de sempre.
E’ agora que começam os problemas… Esse pessoal não cai com
os revólveres carregados. O povo deve participar da vida política,
não seja covarde” (28.7). Pela ocasião, 20 mil cópias. Uns
quarenta jovens em bicicleta se espalham para difundí-lo nas
vilas vizinhas. A polícia vai atrás deles, sequestram aquelas
poucas cópias que restaram.
Pelas 15.30 alguns gritos: “Fascistas, fascistas!”. Os
militares circundam nossa casa. “Poderia dizer com Jesus:
venham me prender como um malfeitor. Avisaram o bispo?”. O
delegado me pega por um braço: “Conhecemos o Concordado.
56

Você toma algumas liberdades que não tem”. Desço as escadas,


as armas apontadas nas costas. Os filhos pedem a bênção. Na
praça da igreja muitos choram. Na delegacia, antes na cela de
segurança, depois o interrogatório. “Eu sempre fui o mesmo, são
vocês que mudam (esconderam o retrato de Mussolini). Sou
sacerdote, não tenho o direito de ficar com o povo, de falar na
Igreja?”. “Arrisca a lei marcial por aglomeração de pessoas
sediciosas, incitação contra a guerra”. “Para quem dá a vida pelo
povo é uma honra ser fuzilado. Brindamos à saúde da minha
morte!”. Enquanto bebem aparece uma criança na janela: “Padre
Zeno, o povo quer saber se tem que vir agora te apanhar ou mais
tarde”. “Diz que esperem um pouco’”. Os indagadores, olham
pela janela e veem uma multidão. Acalmados, dizem: “O
interrogamos somente por uma formalidade”. Volto para casa em
bicicleta, acompanhado por cortejo de fãs. Durante o discurso a
igreja estava lotada. O chefe, que em vão tinha tentado de
impedir a multidão do povo, admite: “Você é uma potência que
não se pode prender”.
Governo em fuga, exército debandado, guerra civil, anarquia,
vingança. Em Carpi os fascistas ainda dão porradas. O povo está
confuso. A alegria para o armistício é ofuscada pela iminente
ocupação alemã. Reúno paroquianos e filhos: “Salvei vocês do
abandono e agora tento salvar-vos outra vez. Nós idosos somos
culpados: não reagimos e agora os filhos sofrem as consequências
da nossa ignávia. Não podemos mandá-los à matança, devemos
salvá-los. Para mim é melhor refutar esta civilização até o ponto
de serem mortos. Cada um vende a pele ao preço que quer,
decidindo para que parte estar: o nazismo ou a liberdade. Eu
escolho a liberdade além da fronteira. Amanhã de manhã depois
da missa coloco o caminhão em frente ao casinone. Não olho na
cara de ninguém, quem entra parte comigo”. 25 jovens me
apoiam. Outros entram nas formações antifascistas, os padres na
resistência, ajudando hebreus e perseguidos. Três sacerdotes são
presos, padre Elio Monari fuzilado, alguns Pequenos Apóstolos
deportados, seis enforcados. Perquisições noturnas, intimidações,
tipografia selada. Dá tempo somente para organizar o sequestro e
a distribuição dos cinco toneladas de trigo. As autoridades
nazifascistas declaram a Obra um covil de rebeldes e é dissolvida.
57

O autor do jornalzinho de 28 de julho é procurado. Na Gazzetta


dell’Emília se convida o bispo para me internar: “Padres loucos
para o manicômio” (25.10). Sobre a minha cabeça uma
recompensa de 500 mil liras.

V- No inferno da guerra (1943-1944)

1-Peripécias, fome, piolhos, bombas

Chegandos à estatua do Cristo de Bomporto, mando sepultar


as armas. Padre Luiz consegue para mim a permissão de
circulação (24.10.’43). Eu e dois meninos no caminhão com a
comida, os outros a pé. “Não uma viagem, mas uma prova: o
amor da Obra continua em nós, dispostos a dar a vida um para o
58

outro”. Juntam-se dois oficiais ingleses, um vestido de mulher.


Todas as noites nos encontramos em um ponto estabelecido.
Verificamos se foi distribuído o trigo, se não providenciamos.
Perto da vila de S. Marino, a uma curva, uma coluna de alemães.
O sangue ferve; um sidecar bate contra o caminhão. Pulam e eu,
idéia divina, corro a dar a benção. “Padre católico, raus, raus,
embora, embora!”. E eu correndo como um doido para Civitella
di Romagna na casa do padre. Os jovens, encontrada uma
sanfona, eufóricos dançam livre do perigo. D’Urso, de cuecas, se
exibe à mesa. Aos 4 de outubro, em Assis, celebramos a festa de
São Francisco. Em Collevecchio padre Troscia nos recebe com
braços abertos. Um amigo, ex-tenente da polícia, nos prepara para
um possível interrogatório: ele faz a parte do soldado alemão, nós
aquela dos interrogados, que devem demonstrar sangue frio. Eu
prefiro ser morto que matar, mas eles têm direito à legitima
defesa. Entrego o comando militar a Angelo Pitoni. Durante uma
ação de perturbação chega uma coluna de alemães. De repente
improviso uma procissão, que ocupa toda a estrada, atrapalha a
marcha deles e dá tempo aos meus de fugir. Em Magliano
acordam o prefeito, o qual, assustado por muitos gritos, manda
entregar as armas.
Indiciados, continuamos a pé, dois a dois, caminhando para
S. Giovanni Rotondo, no convento de padre Pio. Uns trinta
quilômetros por dia, eu, com D’Urso, um carcunda. Uma bela
vida, afinal, igual àquela dos pássaros nas mãos da providência.
Sempre se encontra alguma coisa. E, quando há abundância,
abastecemos como os camelos. Dormimos onde encontramos. Os
piolhos gostam tanto de nós que não nos deixam nunca. Em
Sabina uma mulher com três crianças seminuas me oferece pão e
figos e eu lhe deixo a batina para fazer roupa. De padre ficou
somente o tricórnio e o coração. Dois velhinhos nos cedem a
cama e eles dormem sobre as cadeiras.
Os aliados sobem a península, nós descemos: Vicovaro,
Pescara (por 15 dias substituo o bispo, que me dá uma batina),
Fossacesia, o Sangro, onde os alemães estão trincheirados na
linha Gustav. Durante os bombardeios nos refugiamos nas
cavernas como os ratos. A terra treme. Uma mulher dá à luz, as
outras berram: “O que faz Deus?”. Falam para mim, vestido de
59

padre. “Olhem para fora: continua fazendo seu trabalho. Faz as


flores, as árvores, mas nós fizemos as bombas para destruir tudo.
Onde estavam quando os homens preparavam as condições da
guerra? Vocês dizem: “Não nos metemos em política!” e assim
chegam as guerras. A culpa é nossa, não de Deus!”.
Depois da guerra explicarei isso nas praças: “Há razões para
uma guerra? Deus não nos pode dar a paz, porque não é um
desequilibrado, faz as coisas lógicas. A paz, hoje, não é lógica.
As peras não nascem das raízes. A árvore se faz, se cuida dela e
eis os frutos. A árvore da paz é a justiça: se vocês fazem a justiça,
teremos a paz; se plantam essa raiz, nascerá aquele fruto”.
Entre 19 de novembro e 23 de dezembro assisto a uma
guerra campal: bombas na velocidade de uma metralhadora
varrem o cemitério, casas, árvores, tudo. Os alemães na fuga
deixam não vigiada uma mansão e eu com alguns corajosos vou
saqueá-la. O mais corajoso esvazia os bolsos das fardas e nos traz
uma sacola de dinheiro. Um camponês nos ensina como evitar as
minas: “Andem sempre no fosso, com a água até o cinto”.
D’Urso quer estar na frente: “Se for atingido pelas minas, não
deixo órfãos”.
No meio da ponte flutuante sobre o rio Sangro observo as
duas frentes. Tenho a impressão que Deus me conduza por mão:
“Aonde me levas agora?”. Nunca vi tantos canhões, carros,
soldados que carregam obuses, fumam, telefonam, escutam o
rádio.
Em S. Giovanni Rotondo o abraço de padre Pio e de dois
Pequenos Apóstolos. Me conhece porque mandando-nos alguns
rapazes, tinha-me perguntado: “O que fazes para dizer qua a tua
Obra vem de Deus?”. “Os aleijados continuam aleijados, os
cegos, cegos… mas aos órfãos damos a mãe”.
Continuo para Bari. A aviação alemã afunda 17 navios
cheios de munições e gazes asfixiantes, o mais grave episódio da
guerra química (2.12). O fim do mundo, mais de mil mortos.
Ouço alguns gemidos, tiro dos escombros uma criança ainda
quente e corro na catedral. O povo grita: “Bravo sacerdote!”.
Bate palmas e eu fico confundido. O ponho sobre a mesa do
bispo, mas morre sufocado. Dou-lhe um beijo e rezo para que
Deus me dê uma mão para livrar o povo desta barbárie. Volto
60

para os escombros, perguntando a mim mesmo: “Qual filho bate


palmas ao pai, se o salva do perigo? Teriam aplaudido o pai
natural do menino?”. O povo não sabe mais reconhecer no
sacerdote as prerrogativas de um pai. O povo aprecia como coisa
extraordinária o que deveria ser regra: ser um para o outro”.
Em Brindisi, fome negra. O povo ainda não aprendeu roubar
aos americanos. No restaurante alguns rapazes catam no lixo e
comem pele de batatas. Estouro em lágrimas. Três americanos me
convidam para comer com as crianças e pagam por todos. Os
horrores da guerra me obrigam a cavar nos escombros da
humanidade: “Por que reduzir o Cristo a ser um socorredor e não
a prevenir as guerras? Não damos a nossa contribuição à vida
social e nos queixamos com Deus como se fosse Ele a causa dos
nossos problemas”. O que é mais inteligente: produzir vítimas
para curá-las ou lutar para que não haja? Falo com o bispo de
Taranto. E ele: “Faça, faça, nesse momento todo homem deve
jogar fora a sua vida”. “Quando volto para a Itália do Norte, se
puder, faço um movimento político”. Um juramento sobre os
mortos.
Vivo a guerra como indizível mal, inútil matança, mistério
de iniquidade. Experiência de Deus negado, pisado, cancelado no
homem. Não raptus, mas espírito objetivo a serviço do povo guia:
über alles! Os ideólogos nazistas apostam no super-homem, na
raça ariana; eu aposto nos abandonados e nos pequenos
delinquentes: o material rejeitado pelos homens, mas preferido
por Deus para fazer as suas obras. Em quantro Hitler hipnotiza as
massas com a ilusão da raça superior, eu, padre camponês,
proponho a superação dos vínculos do sangue: “Por que tantos
órfão e viúvas, se somos irmãos? O evangelho diz: Não da carne,
não do sangue, mas de Deus nascemos. A raça, o sangue, as
pátrias, produzem guerras, bloqueiam os vasos comunicantes da
fraternidade; o sangue de Cristo nos faz universais”.

2 – Em Nápoles

Todos vão para Nápoles. No trem do carvão, após uma


galeria, nos olhamos na cara: todos sujos de preto! Um tal vende
o pão a dez liras, o preço real dele era uma lira. Que vontade de
61

dar-lhe um pontapé e jogá-lo no chão! Peço uma fruta a um


vendedor e ele me afasta com o chicote. Descemos perto de
Salerno em companhia da fome. Paro em Pompeia e me
apresento à Nossa Senhora todo rasgado. Ver uma mulher no
altar, entre incenso, me lembra, como numa visão, as mães dos
meus filhos. Escondo a cara entre as mãos e a alma reza com as
lágrimas.
Passo dezembro de ‘43 em Nápoles. Apresento as minhas
iniciativas de reforma social ao cardeal, aos sacerdotes, ao
comando aliado (jan. ’44), ao rei (4.2.’44). Escrevo, solicito, me
coloco à disposição para acolher todos os abandonados.
“Eminência; há algo mais urgente que salvar os inocentes? Que
escândalo sentir-se abandonados pelos adultos, pelo clero, pela
autoridade! Matar com uma arma e matar com a omissão não é a
mesma coisa? Peço-lhe uma apresentação para o comando aliado.
Prometeram mares e montes, então corrompem as mulheres, nos
deixam na fome e fazem os senhores” (21.12.’43).
O cardeal delega dois monsenhores, os quais tomam tempo.
As dificuldades da reconstituição são enormes, e eu, aqui, sou um
desconhecido. Mesmo com as insistências, os monsenhores
tentam fugir, o cardeal é evasivo. Tinha antes suspendido um
padre, padre Angelo D’Alessio, o qual se pôs a chefe de um
partido: Comunismo Cristão. Que tente me confundir com as suas
ideias, pois proponho unir os trabalhadores, excluindo burgueses
e exploradores? Ou está preocupado com a ira do santo [o sangue
de São Gennaro custa a se dissolver], que atribui às blasfêmias e
à imoralidade? Será o jornal Bandiera Rossa a lhe lembrar de
onde chegam os castigos de Deus.: “O palácio do arcebispo é um
palácio de bolso” (8.‘44).
Escrevo aos padres: “Por que o povo não nos escuta mais?
Somos sal sem gosto? Há algo em nós que deve ser corrigido.
Vim com propostas concretas para ser seu amigo e colaborador”.
Resistências e incompreensões me fazem sentir no exílio.
Consideram-me um intruso? “Não sei entender como essa terra
seja a minha terra. Quanta diversidade de índole e de
mentalidade! Fraternizar os povos é cristão, fundí-los parece
loucura. Mas a Itália toda é abalada na fé prática” (25.1.’44).
Parto debaixo da chuva para Aversa. Um amigo me apresenta a
62

padre Salvatore Vitale, que hospeda militares debandados.


Acolhe-me, dessaranjado, batina em farrapos, sapatos
arrombados. Ele me abre coração e casa, eu a minha Obra.
Construirá A pequena Casinha de Nazaré para órfãos e duas
congregações religiosas. Acompanha-me para falar com o bispo,
ao qual exponho os meus programas (6.1). Com as suas
credenciais falo com o coronel W. H. Crichton do comando
aliado de Nápoles: “Posso fundar casas da Obra para hospedar
300 meninos com padre Pio; 200 em Aversa; em Casapesenna
temos alguns locais; em Messina uma mansão; em Nápoles duas
casas. 10 sacerdotes, 15 senhoritas de vocação e outros amigos
estão à disposição. Poderíamos começar, acolhendo 500 órfãos”
(18.1.’44). E para Badoglio: “Quero falar com o Senhor, a Itália
está em perigo” (24.1.’44). Os militares têm algo diferente em
que pensar. “Ainda uma vez o grande mundo me afasta como um
sonhador e um homem perigoso. Mas é o amor que me empurra,
um amor tão alto, tão divino que me torna um gigante em um
mundo que me trata como um pigmeu” (3.2.’44). A minha fé será
uma utopia? Os cristãos não podem não se confrontar com os 400
mil mortos nos campos de guerra. O peso deles me lacera a alma
e me leva a dizer coisas, das quais eu mesmo fico maravilhado,
como se outros falassem por mim: “Por que não atacamos,
Senhor? Não vês quantas vítimas? A Itália toda chora e é perdida.
E eu, contigo, devo olhar, esperar. O que? Quem? Por que?
Parece-me, aliás estou muito persuadido, de estar sozinho no
mundo tendo em mãos a verdadeira solução dos tempos”
(4.2.’44). “Escrevo e penso como um maníaco, mesmo que saiba
de não ser. A Obra è uma revolução, que talvez não possa ainda
ser entendida” (6.2.’44). “Pensava que os políticos, após tanto
óleo de mamona, fossem purificados e tivessem meditado sobre
seus graves erros. No entanto a fome favorece criminalidade e
exasperação” (5.2.’44). Lanço uma subscrição para implantar a
Obra (6.2.’44). Penso em ir a Brindisi falar com o rei para propor
um plano de reconstrução, mas os sinais me levam para outro
lugar.
A imersão nas tragédias me obriga a remontar às causas. A
guerra se torna, para mim, a grande caserna, onde o anárquico
me joga na cara o desafio: uma civilização cristã, que arma o
63

mundo, inventa guerras mundiais, cria máquinas de solução final,


fornos que queimam homens, mulheres, crianças; isso poderia ser
feito pelos sem Deus, não pelos cristaníssimos povos europeus.
“Católicos, por que dão a culpa aos incrédulos, quando nós temos
a culpa de não mostrar a eles o Cristo tal e qual é em suas
obras?”. O rio Arno me ensinou a ver a solução na origem. Mas
se toda a margem foi levada, onde por remédio? Na inatividade
medito e elaboro um estatuto para um movimento político
baseado somente na justiça social.

3 – Os pobres não estão mais em nosso coração

Volto a Pompeia. Reduzido como um mendigo, apresento-


me de novo à Nossa Senhora (2.2). Tenho somente a alma
crucificada para lhe oferecer. Faminto, peço ajuda ao
administrador do santuário. Refocilado, retomo o caminho. Ele,
perturbado, me manda chamar pelo porteiro. Hospeda-me e me
dá roupa nova. Teresa Izzo, uma vidente, lhe revela: “Enquanto
vocês falavam, vi o Senhor no meio de vocês, que aprovava a sua
fala. Ele è um verdadeiro meu seguidor, deve entrar na obra da
reparação mundial que vos pedi”. Mons. Crovella encontrou
muitos bons sacerdotes, mas ninguém lhe confiou quanto eu goste
da aplicação da fé no social; da invocação de Jesus, para que
sejam unum entre eles; da vocação dos cristãos para a
comunidade. Ele tem como objetivo as atividades do santuário,
eu o resgate dos órfãos, santuários vivos, recolhidos na Casa dos
filhos dos presos à sombra do templo. “Estes meninos não são os
filhos dos presos, mas as joias, os filhos de Deus Pai. E’ carne
batizada, sem mancha original” (27.2). Em 1952 quando os meus
filhos serão deportados nos institutos irei dizer: “Devemos nos
maravilhar que o clero tenha aceito colégios e orfanatos? Uma
calamidade! Em Pompéia fizeram até a Casa dos filhos dos
presos. Uma frase escrita com carácteres enormes. Mas como?
Tu, padre, tens a coragem de chamar filhos dos presos os que
Deus escolheu como filhos prediletos, porque rejeitados pelos
homens? Desprezados pelo mundo é uma coisa, mas também pela
64

Igreja não è demais? É lícito falar destas desgraças? Somos como


o sacerdote e o levita da parábola do bom Samaritano. O Calvário
è a história de Deus na humanidade, onde Cristo continua a dizer
à Igreja: Mulher, eis teu filho”.
Comprometo monsenhor no meu caminho interior: “Jesus
está conosco para abrir aos séculos uma nova forma de
civilização. Não mais o Deus dos tronos, mas o companheiro das
ansiedades, o amigo no mesmo nível. Não visão, mas simples
conversação. Deve se convencer que lhe queremos bem e deve
descer conosco em contato dos irmãos. Tornou-se um comunista
ateu, enquanto trabalha mal retribuído como se fosse de uma raça
inferior. Uma situação que, se não se acha uma reparação, me
leva a morrer de coração” (5.3).
Em Salerno procuro quem me dê uma mão para o meu
projeto. Sem apoios, sem dinheiro, volto falar com Crovella: “O
Governo demora e eu sofro, sabendo que o Senhor está sofrendo
naqueles meninos. Meus pequenos tesouros, por que não consigo
que me compreendam para salvar-vos? Ajude-me, morro de dor
se os deixarei abandonados e numa pagã solidão. Tenha
paciência, tenha compaixão de mim, entenda. Quero voltar a
Salerno para vencer toda resistência. Se puder, me empreste
dinheiro. Falei com o bispo; mandou dizer que lhe é proibido.
“Queridas crianças, cedo irei vos pegar e vos darei de novo a
mãe!”, penso sempre. Mas algumas coisas mesquinhas me param.
Parece-me ser Jesus entre os soldados. Quero aliviá-lo nos
inocentes. Pobres crianças! Mas pode um coração resistir
longamente a tanto sofrimento?” (21.2).
A guerra me convence sempre mais, que para salvar os
meninos precisa salvar a política. Falo disso com Cristo: “Se
queres que eu me dedique à política estou pronto também hoje.
Ali há o maior campo de ação, ali satanás está tentando tudo por
tudo. Agora sou um exilado, nem mais nem menos. Não sei como
tu me salvaste a poucos metros dos bombardeios e procurado
pelos alemães” (11.3). A política é um campo minado para os
sacerdotes? Tranquilizo Crovella: “Não daremos um passo sem a
permissão do papa. Somente comunismo e socialismo são os que
se apresentam com um programa para a solução do problema
econômico. Os comunistas italianos odeiam a morte o clero,
65

porque foram aqueles que mais sentiram seu modo burguês de


tratar as finanças. Bispos e padres benzeram galhardetes sujos do
sangue dos trabalhadores. O desperdíçio de bilhões de Pio XI foi
uma demonstração que os pobres não estão mais em nosso
coração. A guerra está punindo aquele mundo que se insinuou na
Igreja. Os favores do concordado são outra demonstração que
salvos nós, salvos todos. Dizia aos coirmãos: por que vocês ficam
satisfeitos por não serem incomodados nas finanças, enquanto o
povo é tratado como escravo? Se Deus dá o purgatório por um
pecado venial, por que não entender que pode massacrar um povo
inteiro e seu clero por uma tão mesquinha distribuição de seus
bens? Deveríamos sempre ter conosco os pobres, como missão
clara do evangelho. Ao contrário, estão contra nós. Eu não quero
morrer entre os ricos, mil vezes amaldiçoados por Deus, mas
entre os pobres, ao menos como amigo. Para salvar o povo
precisa antes salvar todos os abandonados. Se nós temos razão,
vai ver que seremos reformadores. Podem pregar a caridade, mas
os filhos andam perdidos procurando a justiça. O que você teria
respondido ao coronel Crichton: “Por que a Igreja esquece que
estamos em guerra e não sacrifica seus enormes capitais e
tesouros para ajudar tantas misérias” (12.3).

4 - Megalomania?

“Estamos em frente a coisas de histórica decisão. Se nós não


fizermos, outros irão fazer. Mas a Igreja deve renovar as penas,
diz padre Calábria. A Itália poderia fazer esse milagre e talvez o
movimento dos Pequenos Apóstolos seja chamado a fazer isso. E’
a única obra, que desceu nas massas e as mais afastadas já se
juntaram a nós. As almas mais eleitas estão conosco. O plano de
guerra do Céu é este: acolhamos todos os meninos, viúvas, velhos
e o resto poderia ser um jogo de meninos. Um jornal, uma rádio
poderiam levar as massas às urnas e criar uma nova lei. Talvez
quando Mussolini lançou seu Venceremos, sentia qua na Itália
havia algo de misterioso, que acabaria num triunfo. As crianças
irão fazer o milagre, inermes e todo-poderosos” (12.3).
Crovella me exorta para escrever a minha interpretação
social do evangelho. Tento, mas uma protesta íntima me diz:
66

“Todos sabem que o evangelho é bonito e seria lido se tivesse


obras decididas. Mas é tempo perdido, porque as obras o tornam
insuportável. Ou se usa para demonstrar que as massas têm razão
ou não se aceita, porque procuram justiça. Um obstáculo enorme
é a superação da mentalidade do clero. Todavia eu o amo muito e
mais ainda quando está em direta autoridade sobre de mim. Antes
que desobedecer, prefiro a morte. Aquele comunista dizia: “Os
alicerces de São Pedro têm sede de sangue para ficar ainda em
pé”. Acho que profetizara. Asseguro-te e irás ver: antes que
faltar de respeito ao clero, prefiro a imolação de toda a Obra,
disposto a ver tudo reduzido em escombros e num lago de
sangue, eu primeiro” (16.3).
A forçada inatividade me consome: “Por que o Senhor me
deixa desocupado? Esta espera me oprime, tanto que lançaria
socos no ar, mas o Seja feita não a minha, mas a tua vontade me
tranquiliza, porém como uma lebre presa” (16.3). “Revivo a
desolação de ’27: fome, frio. Encontro alguma Verônica, algum
Cirineu, algum grupo de piedosas mulheres, acaricio alguns
meninos com uma saudade fortíssima. Também a dor tem seu
fascínio misterioso” (15.3). Exorto Crovella ao heroísmo:
“Perdoe-me, devo ser para ti um martelo! Que fazes de teus bens
pessoais?” (26.3).
No meu íntimo o tempo de espera já venceu: “Se entre o dia
3 de abril terei os meios de transporte, farei o apostolado, se não
vou me retirar para escrever sobre os evangelhos” (21.3). Alguns
dias depois: “Zezinho me deu de presente um pequeno furgão
sem pneus. O sinal que eu queria existe e devo aceitá-lo” (27.3).
“Ontem, depois da missa, me joguei num Getsemane. A náusea
foi tanta que estava para vomitar, porque não estamos mais no
espírito dos apóstolos. Depois fui a um bar para passar uma hora
com o povo. Depois fui chamado para tocar sanfona; depois o
vice-diretor, que nunca tinha falado comigo, me pediu para
preparar os meninos para a Páscoa; depois horas e horas de
lágrimas; depois aquele sonho estranho…” (29.3). Estigmatizado
pela guerra, preso na minha impotência, em estado de exaltação
pela fé que urge dentro, faço planos sobre planos; acolher
abandonados; associar o clero; propor um programa de justiça
social. Projetos maiores do que eu. Megalomania ou megalômane
67

é a nossa missão? Crovella entrou em órbita, posso lhe dizer tudo:


“Hoje não sou mais o homem de ontem, sou uma flecha!
Garanto-te: aos 3 de agosto nas terras liberadas não haverá um
menino sem família” (29.3). “Queres uma exageração? Penso que
não seria uma surpresa se alguns bispos se tornassem Pequenos
Apóstolos” (30.4).
Os limites humanos me reportam à realidade. “Carmine me
disse que mais de uma vez quis fugir do orfanato para procurar
uma mãe. Nem comida, nem comodidade o fazem feliz, porque a
falta de liberdade é opressão. Depois deste encontro, o bispo
passa da desconfiança para a hostilidade: Devemos mandá-lo
embora… Parto para Salerno. No seminário não há vaga. No
restaurante a minha presença transforma uma cena suja numa
bela noite. Na saída, um comunista me apresenta o destino dos
povos: “Contra os tempos não se vai, portanto comunismo”. Se o
comunismo tem de Deus a missão de invadir o mundo, o
catolicismo se tornará cedo a índole dos tempos novos. O teu
bispo é uma folha do outono que cai; Carmine sentenciou os
direitos da família; aquele homem misterioso sentenciou o
sistema econômico de amanhã; o seminário se declarou em
queda; aquela brigada transformou-se em esquadrilha e em irmã e
Cristo sacerdote, em mim, sob o céu estrelado, exclamava: As
raposas têm suas tocas, eu não tenho onde por a cabeça. No mar,
pescadores e os reflexos. Tendo a bolsa como travesseiro, passo a
noite sob as estrelas. Acordo cumprimentado pelo sol. Quanto è
bonito morrer, quanto è bonito viver, enquanto é feio fazer
obrigações com o mundo” (15.4).
Não fico satisfeito até quando o bispo não me autoriza em
acolher abandonados. Peço ajudas do ministério: “Estou disposto
a qualquer luta antes que assistir a esse infame descuido da
inocência. Com os meios de transporte irei me jogar na salvação
da inocência. Podem chamá-la de Cruz Vermelha, ou o que vocês
querem, mas permitam-me que não amaldiçõe estas terras
liberadas” (24.4). “Decidi acolher todos os abandonados e, no
caso em que não pudesse surgir a Obra Pequenos Apóstolos
(OPA), logo que puder levarei todos, também dois ou três mil,
para a Itália do Norte, entregando-os às nossas paroquias. Quando
68

nos uniremos, para que esse fogo se transforme em um grande


incêndio?” (Lacrime, passim).
Atacado pela morte, dentro e fora, parece-me que chegou o
momento de fazer testamento: “Nada tenho de mim, tudo é da
Obra. Em caso de morte todos os meus bens são dos sacerdotes
Peq. Ap. Lembrem que para compreender a Obra precisa saber a
todo instante esquecer a si mesmos, tudo santificando. Não
queiram fazer o que eu fiz, nem me exaltem como um mito.
Façam o que devem fazer para santificar e para animar em Cristo
os tempos na universal fraternidade das criaturas. E sejam uma
coisa só”. A minha epígrafe: “Nessa terra torna de novo pó o
cadáver de um pobre sacerdote, que durante a vida fez muito
menos bem do que poderia fazer” (28.12).

5 – Amadureço a minha política (1944)

Nestes momentos amadureço a minha política. Se não se


muda alí, não se muda nada. Procuro confrontações e ideias.
Explico a um expoente da DC de Salerno: “Estou disposto a tudo:
a falar ao bispo e nas igrejas; a resolver o problema dos
abandonados; a criar a União dos pais de família, aberta também
aos comunistas, livres de votar para seu partido. Ao Norte já
temos e são os mais ardentes. Precisa dar palestras para explicar
que a política é de interesse vital. Por isso tenho pronto um livro,
Pátria em lágrimas, revolucionário ao cem por cento. Alguém irá
torcer o nariz, mas a autoridade eclesiástica não terá nada a dizer.
A substância da constituinte deve ser a luta contra duas classes
que não devem chegar ao poder: capitalismo e proletariado. Nós
propomos o cooperativismo e a propriedade privada somente para
os trabalhadores sob o controle do Estado com exclusão da
especulação. A respeito dos benefícios eclesiásticos irá pensar o
povo acabando com direitos discutíveis. Numa terceira ondada
iremos empurrar as massas dos trabalhadores para não pagar os
alugueis, deixando isso após a constituinte. Então explodirá a
bomba. As massas serão conosco e ninguém poderá nos
excomungar, porque é a atuação dos discursos do papa sobre a
distribuição da riqueza. Talvez sejam suficientes algumas
porradas nos grandes capitalistas e tudo irá ficar calmo. [Quem
69

não me conhece se escandaliza, mas “a violência não está em


mim, está no crime social”. Os pobres não têm direito à legitima
defesa?]. Eu e os outros sacerdotes nos lançaremos na luta e
saberemos evitar escorregões fora do barco, mas o encheremos
com ovelhas perdidas por causa dos nossos favorecimentos com a
burguesia. Será uma avalanche arrastadora. E’ a única maneira
para acabar com o comunismo e com a burguesia. O epicentro da
luta será: Quem não trabalha não como. O que há demais seja
restituído aos pobres em nome da contabilidade. Se os padres
querem comer devem fazer obras de caridade social, e acabar de
querer salvar as almas, deixando que os corpos passem fome.
Passem fome eles, se querem ser felizes como pregam e não
fazem. Devemos fazer o possível para que as massas vençam”
(11.5).
O bispo de Piedimonte D’Alife convida-me para a novena de
Nossa Senhora da Conceição. Duas condições: conheça as
minhas ideias e eu seja livre de manifestá-las. Os cristãos
precisam de um choque. A catedral cheia! Depois de oito noite os
barões da cidade vão falar com o bispo, todos escandalizados:
“Nunca fez o nome de Maria! Falou sempre e somente de
justiça”. Vem uma comissão: “Tenha a bondade de não falar mais
de justiça”. “De que então?”. “Do amor”. “Pôxa, com prazer”. Ao
término: “Não tive a coragem de falar de amor, porque é um
discurso duro. Por exemplo: tu tens dois pares de sapatos? Por
justiça um para ti, o outro para quem precisa. Tens duas roupas,
dois apartamentos? O mesmo. Parecia-me que a justiça fosse
mais viável para vocês. Seja o que for, passemos ao amor: tens
dois pares de sapatos e se apresentam dois que não tem? A amor
renuncia também ao que te pertence, dás para eles e tu ficas
descalço. Tens dois campos, duas casas? O mesmo. O homem
nasce para a justiça, o cristão para o amor”. Um discurso que
leva a odiar o amor de Cristo. Mas a semente lançada dará seu
fruto: o dr. Giovanni Caso instituirá uma obra para abandonados.
70

VI – Meu projeto político (1944)

1 – Prisioneiro da Cidade eterna

Que vida errante! Bari, Brindisi, Taranto, Pompeia, Nápoles,


Piedimonte, Lago Patria, Casapesenna, Salerno; de nuovo
Pompeia, Nápoles, Aversa, Roma. Em todo lugar procuro amigos
para com os quais compartilhar o exílio da alma e a paixão pela
justiça. O fronte está parado em Cassino. Quando consegue
passar, acompanho as tropas de pé, a cavalo, de caminhão. Chego
em Roma com os aliados aos 4 de junho de ‘44.
“Meus queridos filhos, que horas dilacerantes. No exílio,
errando entre mil misérias, há seis meses não encontro um de
vocês. Chorei o tempo todo. À notícia da liberação de Roma sinto
viva a esperança de vos abraçar. O Senhor não quis que morresse
enquanto perto de mim caiam as vítimas num inferno de bombas.
Tenho medo de morrer com desgosto. Supliquei autoridades e
ricos para salvar a inocência. Meu Deus! Mas por que não nos
amamos todos, todos! Encontrei almas, que irão fazer milagres
quando serão uma coisa só conosco. E por que não pensar de
fazer algo em Roma? Às vezes parece-me ser megalômane de tão
grande é a nossa missão... Mas é aquela” (Alle Radici, 5).
O povo é tão sofrido, que aceitaria qualquer que se apresente
com reformas. Falo com Crovella: “Tu estás em casa e conheces
a Obra, que poderia se tornar um movimento. Suponhamos que
71

depois da guerra consigamos organizar mil párocos: se cada um


fraternizasse cem famílias, teremos cem mil famílias unidas e
sólidas. Só então teremos grandes indústrias, imprensa em grande
porte, um cinema todo nosso, com relativos reflexos na política.
Podemos não informar o Santo Padre?” (25.6).
Mas hoje, o quadro italiano é em branco e preto. “A
italianidade sai da guerra arrasada. A cobiça da derrota, a
reprovada vontade de ver seu próprio país vencido e pisado. Um
milhão e 300 mil ex-presos, irritados, enganados, desiludidos.
Uma guerra que alterou a imagem do combatente, porque todos
foram constrangidos a se tornar combatentes”. Também eu
continuo a minha guerra, preso, por dez meses, da Cidade Eterna.
Reflito, escrevo, toco. Exorto as obras da Igreja a se fraternizar,
falo com o mundo da cúria. “Pobre cidade que se tornou quase
terra de missão [O livro França, país de missão, foi um
escândalo]. A mundanidade maltrata esse povo, a mediocridade
reina soberana. Eu não critico a diocese de Roma, fico com
vergonha e choro, nem fico escandalizado pela mundanidade que
envenena a Santa Sê, mas penso que é dever de toda a cristandade
amá-la. Todo o clero deve se empenhar, oferecendo homens
santos. A Santa Sê é a nossa casa paterna. Nós somos ela, ela é
nós. Nós, ministros da periferia, pretendemos daqueles do centro
o que eles pretendem de nós” (30.9).
Submeto ao pe. Arnou uma relação para o papa. O jesuíta
aconselha de fazer ressaltar o aspecto assistencial. Faço notar:
“Se apresentasse a Obra como refúgio para abandonados,
comprometeria o direito de intervir em política. Somente se
cuidarmos desta, salvaremos aqueles. Se o papa não concorda,
não é a hora de Deus. Eu vou insistir sobre a fraternidade dos
sacerdotes e dos pais de família, porque para mim é o único
caminho de salvação da civilização cristã. Fraternidade real: um
por mil, todos por um no campo econômico O povo está cansado
das pregações sobre o amor, que não desce para a distribuição da
riqueza. A nossa reforma irá criar na Igreja lutas sem fronteiras.
Como poderão os fariseus permitir que se realize esta
fraternidade sem reagir? As próprias obras se tornarão uma
ofensa, uma repreensão. Daqui a reação diabólica. O papa estará
conosco, esse é o sinal para saber com certeza o que Deus quer. E
72

quando os superiores não nos entenderão, esperaremos. Serão


suficientes mil párocos e 100 mil famílias fraternizadas, para que
a Itália se torne de novo cristã. O que iremos fazer em Roma? Se
o vicariato concederá a permissão, acolheremos todos os
abandonados, em caso contrário ninguém” (31.8).
Pe. Arnou me exorta a não pisar nos campos minados da
doutrina social: “A fraternidade cristã requer que também os
capitalistas sejam tratados como irmãos, mesmo pervertidos.
Devem perceber que queremos fazer a revolução social para o
verdadeiro bem deles. Certos termos deveriam ser analisados:
luta de classe. O que é? Os trabalhadores são uma classe? Quais?
Luta pela justiça universal? Sim. Para o bem comum? Sim. Mas
luta de classe? Não acha que há burgueses ótimos, honestos? Não
se deve dar a impressão que todos os burgueses, porque são
burgueses, sejam criminosos, nem que todos os trabalhadores,
porque são trabalhadores, sejam honestos, aliás, cristãos.
Devemos evitar a impressão de que o evangelho se reduza a uma
doutrina de justiça social de fraternidade. Quando você fala de
“absoluta emancipação do patrão, como finalidade principal da
revolução”; que “o trabalhador deve se negar sob patrão” (Riv.
Soc. di Gesù Cristo, 9, 35), o que entende por patrão?
Condenamos a exploração, mas conservamos a autoridade. A
organização do trabalho não é clara. Como evitar um novo
capitalismo? Com a política? Para dedicar-se a ela um sacerdote
deve ter os sinais evidentes da vontade de Deus. A sua vocação é
fazer obra de educação do povo e de seus colaboradores”.
Mais de que com o bom padre, justifico-me com Cristo:
“Quando me atiro em teu nome contra os ricos, um coro de
sacerdotes, de ótimos católicos se levanta para protestar,
acusando-me de pouca caridade e de ódio reprimido contra os
ricos. Tu sabes: não odeio ninguém. Quando tento desmascarar
satanás daquele ambiente, a reação é venenosa. Disse bem aquele
trabalhador que a sua classe é o prato dos outros. Os ricos não
veem os pobres como irmãos no mesmo nível, não te veem neles
apesar das tuas afirmações. Se tu os enfrentas com a caridade te
aplaudem e praticamente não se importam de nada; se os atacas
pela frente sabes como vai acabar. Eu sempre saí com a cabeça
quebrada. Se aperfeiçoaram justificando seus crimes. Se mexes
73

neles, invocam a caridade; se os acusas ficam insensíveis. Para


eles a religião é um mel que comem maravilhosamente. Tu sabes
quanto nos fizeram chorar, porque depois dos bons raciocínios e
mil gentilezas acabamos na rua, famintos. A realidade é a
punhalada de sempre: ausência de justiça” (21.9). Chego a dizer:
“Estou convencido que, como Santa Joana d´Arc salvou a França,
assim a OPA é chamada a salvar a Itália, desde que mergulhe na
luta, na certeza que o Santo Padre nos abençoa” (23.9).

2 - Efervescência política

Circulo de carro para recolher órfãos e ajudas. Nos primeiros


meses de ’45 em Roma se prepara a nova Itália. “Pergunta-se se
fazer a história dos heróis ou administrar o país”. Congressos,
discussões, polêmicas. Muita efervescência também nos
ambientes católicos. Encontro La Pira, Dossetti, Giordani,
expoentes do Partido Cristão social, do Partido dos católicos
comunistas, da Democracia do Trabalho. A DC [Democracia
Cristã] entra em campo com o interclassismo, que põe juntos
ricos e pobres. Como irão fazer para estar de acordo? Brigo,
defendo que precisamos de propostas concretas, que a política é
de todos, não cristã. “Pretender fazer uma política católica é um
fracasso. A lei é uma norma autônoma. As teocracias já estão
superadas. O catolicismo no poder seria uma teocracia, porque
tira sua concepção de estado da realeza de Cristo. Deus nos livre
da política dos padres católicos, protestantes, muçulmanos, etc. e
daquela dos mestres do materialismo. Acabam sempre no
fanatismo. Os povos procuram a paz, mas no totalitarismo nunca
haverá. Quer descristianizar a Itália? Insista no totalitarismo
católico” (a La Pira, 30.7).
Enfrento o partido de Ivanoe Bonomi, Democracia do
Trabalho, em cujo programa encontro afinidades sobre a função
social do trabalho: “O partido de vocês talvez seja chamado por
Deus para unir o país que, temendo a política clerical (tem razão)
aceita um partido decidido para resolver os problemas
econômicos e morais. Proponho um encontro com propostas
concretas” (11.8). Mesmo não compartilhando a doutrina,
intervenho no debate dos católicos comunistas: “O trabalho deve
74

ser emancipado de qualquer perigo jurídico de apropriação


indevida; a riqueza tem uma função individual e social. É o
pensamento da Igreja desde as origens, aliás deriva do conceito
de fraternidade, que sempre abençoou. No barco se podem fazer
acrobacias, mas fora do barco não há mais vida. Por que não
fazem um programa a ser avaliado pela autoridade eclesiástica?
Estou muito disponível para vos ajudar” (a F. Rodano).
Fracassados os contatos, elaboro um esboço de Carta
Constitucional, a minha proposta política. Pressuposto: o povo
italiano está embebido de princípios cristãos e até agnósticos e
comunistas julgam os fatos com a influência da moral católica. A
política se funda na lei natural que não tem nada com a religião.
Pão, trabalho, saúde, liberdade são de todos. Por que um grupo
quer dominá-los em nome da religião? Dividir-se em partidos não
é por uns contra os outros, anular as forças, por que um puxa de
uma parte, o outro da outra? O dinheiro nos divide? Que os
pobres se unam entre si e não façam o jogo do divide et impera.
Vamos além dos partidos, os quais são contra os trabalhadores,
porque, dividindo as suas forças, fazem o interesse da burguesia.
Falo de preferência às massas de camponeses e aos comunistas,
os quais são os mais predispostos, porque não são nem carolas
nem pagãos. Os meus comunistas são pais de família
paupérrimos, sedentos de justiça e de salário justo, não de
materialismos históricos e dialéticos. Não são contra os padres, os
facinorosos bolscevicos, que teme o Vaticano. Frequento as suas
casas, vivo em seus corações. Todavia, apesar das declarações
públicas, serei considerado um útil idiota. Os prelados têm uma
idéia dos vermelhos através de alarmismos, eu me preocupo do
comunista na taberna e do que vai chegar no final do mês. Nunca
li O capital, o suor humano sim. Uma civilização se julga por
como entende a relação de trabalho. Se sonhasse também por
poucos minutos de estar sob o patrão, morreria de desgosto.
Sonho numa sociedade baseada no sagrado valor do trabalho, que
nunca pode ser reduzido a mercadoria pela diferença substancial
que existe entre o suor de um jumento e o de uma pessoa.
Também o cachorro vigia por um pedaço de polenta, mas “o
homem se mexe por algo superior, seguindo sua natureza de
espírito encarnado. O trabalho humano não é objeto de compra e
75

venda, senão se reduz à mesma relação que há entre libertino e


prostituta: um comércio no qual não há paridade de matéria.
Ceder seu corpo à especulação não é prostituir-se para a libido
dos egoístas?” (Sete di giustizia, 64). “O que eram os escravos?
Patrimônio do patrão. O que são as massas trabalhadoras
modernas? Após séculos de cristianismo os patrões perceberam
que era inumana e aboliram a escravidão com o engano: “São
livres! Mas, se não nos servem, irão morrer de fome”. Passamos
da uma escravidão obrigada a uma escravidão voluntária. Um
paradoxo: melhor escravos de barriga cheia que livres de barriga
vazia. Antes de enfrentar as relações econômicas precisa fixar a
relação de dignidade humana. Somos ou não irmãos? Por que
nenhum povo conseguiu fixar um sistema jurídico, que acabe
com toda forma de servidão? Um homem ou uma classe que
dependam de outro homem ou classe são um resíduo de
escravidão. É natural que a propriedade privada represente a
garantia à liberdade do trabalhador. Mas que se torne um meio
para viver do trabalho alheio, é um obstáculo à emancipação do
homem” (16.12).
Entre maio e setembro três livrinhos: Lacrime, Alle radici, Ai
cari confratelli. O primeiro, enviado aos bispos, propõe uma
reforma nas obras. “Nós somos padres, sobreviver aos filhos é
uma covardia. Não é mais um povo de gentis que é contra nós,
mas os nossos filhos. Havia necessidade do comunismo para
afirmar a emancipação do trabalho? Os pobres sempre estarão
convosco: por que hoje são quase todos contra nós? Não nos
entendem mais. A omissão é a nossa condenação. Se tivéssemos a
coragem de escrever o que fazemos e o enviássemos a um
Concílio, seríamos condenados como hereges. As heresias não
estão mais na moda. Precisa reformar a Igreja para santificar, nas
obras, toda a vida. Não politiqueiros, mas santificadores da
política. O comunismo não pode aceitar de morrer. Prefere os
campos de concentração do que depor as armas. Deus, em modo
misterioso, mas decidido está também com eles. Há mais de um
século fazem vítimas num invejável heroísmo. A solução é o
comunismo mitigado ou o corporativismo, ou um ou outro em
alternância. A lei acabará para declarar crime toda especulação. É
a dignidade querida por Cristo, que nos leva a estas
76

consequências. Chegarão ao poder sozinhos, irritados e


sanguinários, ou com a nossa entrega. Eles, de fato, não amam o
erro, mas procuram, confundidos e no erro, a justiça. Acredito
que na Itália seja possível esse milagre, pois nela nunca a heresia
vingou, aliás podemos transformar os inimigos em defensores da
fé. Não há que uma saída: a reforma nas obras. Temos sacerdotes
dispostos a renunciar à família e à riqueza? Um primeiro núcleo
nasceu na Itália do Norte: somos 17 com a paternidade adotiva
sobre abandonados e com famílias de mães de vocação. Vista esta
união nasceu nas massas comunistas o desejo de entrar em
relação conosco e surgiu a União dos pais de famílias:
trabalhadores que aceitam a parentesco sobrenatural, sendo todos
emancipados através de cooperativas, do capitalismo privado e
estadual” (Lacrime, passim).

3 – Cristianismo pagão e fé paradoxal

Enquanto De Gasperi, Vaticano e EUA tecem as fileiras da


nova ordem política, eu luto com Cristo: “Odeio a diplomacia
vaticana quando pactua com o mundo até ser mestre de
diplomacia mundana. A tua Igreja, gravemente ferida, deve ser
curada desde os alicerces. Se eu ousasse insistir, muitos co-
irmãos me acusariam de presunção e de rebelião. Dizem que,
embora não aparece, triunfa ainda hoje. Não e verdade. Para
triunfar deve prover à saúde dos filhos. A tua Igreja militante te
humilha até a desonra. Olha que guerras! Olha esta tua cidade de
Roma! O que falta para que se possa chamar paganismo? Eu não
quero te mortificar ainda mais, mas acredita, precisa descer nas
praças, nos aviões, nos cinemas, na rádio, na televisão para
desmanchar aquele mundo que domina até nas sacristias, no
Vaticano. O que é a concepção burguesa da vida senão o oposto
da tua lei de amor fraterno? A tonalidade da vida na terra deve
ser, a todo custo, cristã. Se não queres chamar-me para esse
empreendimento, chama outros, estou pronto para segui-los”
(17.10). “Para muitos cristãos a religião é uma espécie de
aperitivo para gozar ainda mais a vida terrena Quanto são mais
sinceros os de longe! Se conhecessem a ti com a mesma
sinceridade, te seguiriam. Vamos procurá-los. Eu, sabes, deles
77

confio sem temor, para eles irei fazer ainda mais do que fiz até
agora. Queres? Pensa bem, mas verás que aquele é o único
caminho da retomada. Neles não há nada de negativo que deve
ser tirado, são praticamente meninos” (19.10).
Recuso ser reduzido a funcionário do culto. A minha piedade
não tem nada a ver com o carolice. “Nas igrejas se reza: “Nunca
se ouviu no mundo que alguém que te pediu algo não seja
concedido”. Desde menino dizia: “Como dizem estas coisas?”.
“Tudo que pedires em meu nome vos será concedido”. Pedi
muito e nunca me foram concedidas. E eu devo concluir: A minha
graça te baste” (20.10).
Vivo o desafio da fé “reconhecendo os pecados dos meus
irmãos como meus, compartilho as consequências sociais, como
as conquistas no bem” (22.10). É a fé que me leva além da minha
fraqueza e sacode os alicerces de São Pedro. Durante as noites
sem sono, escrevo muitas cartas ao papa, porque Cristo entregou
ao alto a missão de guiar o seu barco. Se a mudança não vem daí,
não muda nada. Exorto o Cristo: “Fala ao teu vigário, porque esse
assalto é de natureza universal, portanto somente ele tem a
palavra certa. Antes que nos mexer sem consentimento, também
no segredo, esperaremos”. A minha fé, parecerá paradoxal, me
leva a dizer: “Senhor, tu colocaste o papa para guiar a Igreja. Se
tu viesses pessoalmente falar comigo não obedeceria, irei te dizer:
estou pronto, mas seja o teu vigário a falar comigo” (17.11).
A minha obediência está de pé, nem submissa nem escrava.
“Beatíssimo Padre, caminhamos entre as ruínas de uma forma de
civilização cristã. O que faz o clero? Agita-se nas areias
movediças do nepotismo e da burguesia, desiludido da
onipotência de Deus. Um exército do Céu que não obedece mais
ao Céu para acreditar nas armas da terra, ostentando longas
orações, desiludido de estar de acordo com o Céu. Tudo diria que
hoje teria acabado sua missão, porque da revolução francesa à
russa è sempre a praça que jorra sangue contra o próprio clero
para mais justiça social. Mas a praça erra, porque sem nós não
podem fazer nada. Quero entregar os livros escritos além do
fronte e pedir audiência. Somos decididos a entrar na luta, falta
somente um sinal: a benção do doce Cristo na terra” (10.12).
78

4 – A espera, uma tortura

A espera, uma pena de Tântalo na alma: “Esperar até à


náusea, até morrer de dor. Esperar que Fulano seja persuadido,
que Sicrano supere uma crise espiritual…” (18.12). Eu insisto, o
Vaticano resiste. Peço razão ao Cristo: “Que dias misteriosos!
Navego num mar de interrogações. O Santo Padre possui os
quatro livros. Espero a audiência. E’ o teu vigário na terra,
portanto farei somente a tua vontade. Às vezes choca esse método
quando aqueles órgãos são lentos ou superficiais; mas tu estás
empenhado em vir entre nós somente através deles. Peço ao papa
uma coisa muito simples: que deixe correr a Obra para a salvação
da fracassada civilização cristã” (22.12). Eu estou certo de ter as
cartas em regra: estou com os últimos, não tenho nem capitais
nem poder. Deus não escolheu a lógica da cruz para fazer as suas
obras? Sei somente que “Amo a Igreja como o arado ama a terra,
revoltando-a para entregá-la ao homem mais fecunda” (23.9).
Impressionado por certas formas de autoritarismo, escrevo
aos filhos: “Tenho sede de simplicidade e de santa liberdade. Os
meus filos devem ver em mim um pai e não um homem
extraordinário ao qual oferecer cuidados fora de lugar. Eles
devem viver sua autonomia, não devem andar acompanhados
pela minha mão” (23.12).
Nos últimos meses de ‘44 acentuam-se os conflitos sociais.
Países de 30, 40 mil habitantes tomam o poder, dando vida a
repúblicas improvisadas. A ação do Governo é fraca e incerta.
Para mim a cristandade percebeu, mas nem chegou a aplicar a lei
natural: Não faça a outros o que não queres que outros façam a ti
etc. Continuo martelando: sem justiça não há cristianismo. É a
premissa do fenômeno humano. Faço meu orçamento com Cristo:
“Hoje termina um ano que para mim foi um trauma. Chorei, sofri,
senti pesada a vida. Aonde me levas? Quanto mistério envolve a
minha existência!” (31.12).

VII - Uma proposta (1945)


79

A Itália é um cúmulo de ruínas materiais e morais. Em


poucos meses três governos: Bonomi, Parri, De Gasperi (25.4-
23.11). Entre ‘38 e ‘45 o custo da vida aumenta 23 vezes, os
salários menos da metade. O Vaticano condena o Partido da
Esquerda Cristã (2.1). Na Calábria se negam os sacramentos aos
ativistas de esquerda. O PC tende a mão à DC (7.4) e entra no
Governo. Em 25 de abril celebra-se a liberação, manchada de
outro ódio, outro sangue de 20.000 fascistas. As tropas soviéticas
ocupam Varsóvia, Budapeste, Viena, Berlim. Truman, Stalin e
Churchill anunciam o fim da Guerra na Europa (8.5). Nasce a
ONU (26.6). Os EUA jogam duas bombas atômicas no Japão (6-
9.8).

1- Um contraste entre idéia e realidade

O estrago de uma guerra interminável consome também a


minha alma. “O Santo Padre é obscuro. Os partidos um caos.
Esquecemos, nos já deram o fascismo. Um novo movimento? O
papa fica calado. Trata com os americanos, mas não conosco.
Mistério! Mas quem salvou o mundo foram sempre os
movimentos vindos do baixo. Eu estou entre aquelas criaturas que
amam o que não consigo enfrentar, enquanto não aceitam o que
se faz, porque só vêm novas calamidades” (6.2). A catástrofe da
guerra nos obriga a rever toda a estrutura social. E eu “penso
muitas vezes se poderei ser útil para redimir o trabalho do polvo
capitalista. É uma operação cirúrgica que deve ser feita, dando os
capitais necessários. É uma traição esperar. Precisa dar o assalto,
aproveitando as consequências da guerra. Somente assim posso
dar-me à política, em caso contrário nem penso” (14.2), porque é
com ela que se mudam as regras do jogo. Cristo não redimiu o
homem todo? Como excluímos de seu reino o trabalho, o uso dos
bens, sua distribuição, a organização da sociedade? Não veio
propor um mundo a latere, entrou nele como fermento na farinha.
80

Por que reduzí-lo a curar as vítimas que ele mesmo ajuda


produzir, para depois dar a elas as migalhas do bom coração?
Próprio elas, as vítimas me venceram: “Hoje coloco-me a
completa disposição da política. A respeito da atitude da Santa
Sê, aceitarei as decisões da autoridade. Tu me carregarás no colo
da Igreja também nas horas dos contrastes com as hierarquias”
(7.3). “Sinto o coração apertado pelo mundo que me imerge na
dor. Qual? Talvez um forte contraste entre a idéia e a realidade.
Ou a ansiedade de realizar um sonho apostólico, que, enquanto
amadureceu na minha alma e de poucos íntimos, ainda é uma
semente microscópica. Talvez o contraste entre a missão que tu,
Senhor, me deste e a multidão das minhas misérias. Aqui se vive
a terra e não o céu. Se amo a perfeição devo viver a vida terrena
totalmente, sem saudades do céu” (12.3). “Falo muitas vezes de
dor, porque sofro um impulso para a imensidão, enquanto devo
viver com o tempo e com os homens, dos quais sou irmão. Quem
não se imerge na realidade foge a verdadeira vida, como fosse
diabólica. Enquanto tu és crucificado nas casas de prostituição,
nos frontes da guerra, nas praças revoltadas, no mundo dos
negócios, nos corações apaixonados, nos abraços fecundos dos
casais” (13.3).
No meio destes tormentos chega a notícia de seis filhos
enforcados com o arame farpado nos postes da luz em frente à
minha igreja. Escolheram o lugar para me desafiar, visto que não
conseguiram me capturar? Dor incontida, que compartilho com
Cristo: “Mataram, massacraram como cordeiros, alguns meus
filhos. A tal notícia o meu coração não estorou e a cabeça não
quebrou pela dor, porque somente tu me salvaste. Acolhei-os
desde pequenos, quando aquele mundo, que os matou, os deixava
no abandono, deturpados, humilhados” (16.3). Padre Ennio
estava com eles e assim conta: “O rosto jovem, limpo, o olhar
luminoso, forte. Eneias, Luciano, Adriano, Nives, Giuseppe,
Alfeo. Traídos (14.9), presos, entregues ao tribunal alemão, 15
dias de perguntas com nervos de boi. Amontoados num quarto,
sobre uma nua pedra, passamos juntos a última noite (29.9). De
manhã o oficial alemão: “Fora os condenados à morte”. E os
chama pelo nome. Para os nazifascistas uma vingança”. Norina
continua: “Aos 30 de setembro, um sábado pela manhã, pelas dez
81

chegam caminhões cheios de fascistas. Trancam as estradas de


entrada. Armas na mão, mandam fechar as cortinas das janelas.
Espiamos entre as fendas. Mitras apontados, movimento de
carros, alguns gritos, gemidos. Silêncio de morte. Escancaramos
as janelas. Um espetáculo terrificante: a cada poste da luz um
homem enforcado. Corro e ouço gritos dilacerantes: a mãe de
Adriano, voltando da feira, encontra o filho pendurado. Tenta
suspendê-lo pelas pernas, chorando, urrando. Um fascista a
ameaça, as mulheres a arrastam. Enlouquecida só repete: “Sonhei
contigo, desesperado, chamando-me. Sonhei contigo…”. Na noite
anterior, no cárcere, Adriano cantava “Mamma”, Mamãe.
Deixaram-nos pendurados dois dias e nós devíamos ir para frente
e atrás, sob seus olhares arregalados. Como os reduziram! E eram
somente rapazes”.
Não sou eu, mas a dor do pai que mataram em mim, que
berra: “Como teu ministro e como pai em ti destas joias,
amaldiçoou do mais profundo da alma sacerdotal aquele infame
modo de viver a mística, amaldiçoou a omissão da luta política
que não prevê estas crueldades. Maldição que levarei, com a tua
graça, às extremas consequências. Vingança de Céu contra toda
omissão à tua lei no mais amplo apostolado para a salvação das
vítimas, que se tornam crueis servidores de satanás. Arranco,
atingido com as tuas armas. Esta religiosidade que coça as
pequenas paixões do egoísmo é a mais infame bondade de almas
honradas, por nada boas, desonestas até no altar: é um crime.
Vingança, sim, vingança, sim, no sentido de justiça, justiça no
sentido de bondade; bondade no sentido de redenção que se lança
para fazer reinar somente a justiça isto é somente a tua vontade.
Mataram os meus filhos, os mato em suas paixões e redimo na
violência da verdadeira charitas, inimiga das fraldas quentes”
(16.3).
Em Cavezzo são enforcados mais três, dois dos nossos e um
comunista. Os dois Peq. Ap. suplicavam em vão o conforto do
pároco, que é imobilizado e os carrascos se divertem em baixar as
cordas e puxá-las de vez. Um jogo com a morte.
Em Roma o amigo musicista, Carlo Rustichelli, faz a
música do meu drama lírico: A Vítima. A palavra mais certa para
descrever seja a mim, que aos meus filhos e o povo, vítima de si
82

mesmo. As nossas omissões ensanguentam a minha alma: “É


horrível ver que nós sacerdotes trascuramos os direitos das
massas. Por que por causa daquele câncer maldito do dinheiro
dos ricos e dos padres traidores da fraternidade. Adoraram-te
como tubarões! E agora eis as consequências. Vive em nós o
espírito bélico de Gregório VII? Mas tu tens que dar, não
devemos permitir que as massas sejam traídas de novo por uma
mística infame, a qual, em nome de uma lei injusta, te fez
protetor da burguesia. Tu estás ofendido na raiz. Basta, basta…
Rios de sangue, mas tu deves retornar como Rei da lei e do
heroísmo pelo amor aos irmãos. Monte de delinquentes!
Semeadores de divisões e de besteiras, pregam de ti o que tu não
és. Conheço as tuas armas: cortam sem piedade num amor
infinito todo mortífero pietismo” (25.3). Exaltaram-se o
individualismo e o intimismo (“salva a tua alma”!) e não se
formaram as consciências para a corresponsabilidade. “O
exemplo de vida cristã de povo nunca existiu. Existiu a influência
da vida dos santos e das obras de caridade, mas nunca foi
realizada uma vida fraterna social. De fato sempre tivemos
patrões e servos entre os próprios cristãos e ao servo explorado
foi inculcado o terror do pecado se tivesse tirado do patrão algo
do seu supérfluo. Esta história de falta de justiça irá custar cara ao
clero, o qual viveu mais como patrão que como servo, nunca no
mesmo nível, senão em casos raríssimos. Sinto passar sobre mim
esta triste herança” (4.4).
“Talvez amanhã vou a Florença... Há nove meses vou
peregrinando nesse exílio. Em San Giacomo tinha a mesma
sensação de ser uma família de exilados e de incompreendidos”
(6.4). Subindo atrás das tropas para o norte “hospedo-me com
sacerdotes amigos. Falamos, discutimos: como será a Itália?
Chegamos à linha gótica. Ao longo do caminho, mortos
insepultos, vilas destruídas pelas represálias, estradas cheias de
soldados. Em Zocca, Gainazzo, Castellino e Montombraro
encontro os meus filhos. Uma emoção enorme, uma coisa bela,
viva, que comove” (DZR, 193).

2 - “Façam dois amontoados!


83

Aos 22 de abril sinos em festa por Carpi liberada. O


primeiro de maio, pelas 15, chego a San Giacomo com o
caminhão cheio de crianças, que cantam debaixo da chuva. Sinos
tocando. Respondem os de Medolla, Cavezzo, S. Possidonio,
Disvetro, Motta, Pioppa. “Da rua nacional ao casinone há cem
metros. Para chegar, mais de duas horas. O povo me abraça. Irene
passa mal, dom Berté boqueia. Todos querem me tocar, me
beijar. Um carinho enorme. Empurrado contra o muro: “Não
morri na guerra, mas agora parece-me sufocar”.
Depois desencadeia o pior do animal humano: vingança,
ódio, terror, impunidade. A polícia fechada na delegacia. Ex-
partigianos e criminosos comuns, com a pretensão de eliminar
espiões e traidores, se dedicam-se a execuções sumárias. Matam
como nada: 45 em Carpi, 42 em Mirandola, 13 em Concordia, 5
em Cavezzo. Modena, Mantova, Concordia, o mito do triângulo
da morte. No PC de Reggio Emília se cria um partido no partido:
grupos clandestinos especializados em crimes políticos com o
silêncio dos chefes. Seu objetivo é uma limpeza generalizada para
enfraquecer a classe burguesa e substituir com os novos membros
do PC. Todos beberam sangue fraterno. Uma matança.
“Acontecem fatos tão monstruosos e bárbaros que, infelizmente,
devemos constatar: não somente os nazifascistas eram animais
humanos” (CLN di Modena,12.7).
As prisões cheias de fascistas. Um grupo é transferido de
Mirandola a Modena e, com a pretensão de uma rebelião, sete são
mortos (9.5). Em Carpi alguns mascarados massacram 16 na
prisão (15.5). O ônibus fantasma direto a Concordia desaparece
no nada. Nós não somos poupados. A minha sinceridade
incomoda, alguém afixa manifestos caluniadores. Na noite de 18
de maio um incêndio devora garagem e vigia. Pulo um monte de
munições, jogo-me nas chamas, o puxo para fora, morre no
hospital. Tinha acolhido Fernando desde criança.
Chamam-me a Carpi para acalmar os espíritos. Aos 5 de
maio falo do balcão da prefeitura, a praça lotada: “Para vocês a
justiça é vingança. Ao invez de entrar em acordo, deixam-se
arrastar. Fazem muita festa, mas estamos num país ocupado. O
que decidirão por nós? A Roma vi nascer os partidos como
cogumelos. O meu conselho? Fé du mucc, façam dois
84

amontoados. Os pobres sem dinheiro de uma parte, quem tem


dinheiro de outra. A Itália é uma pereira que faz ameixas: somos
99% pobres e sempre temos um governo, que protege o
capitalismo. Nós somos a maioria: se não nos dividirmos iremos
ao poder sem derramar sangue. Quem nos pode impedir? O
programa é simples: façamos o interesse dos pobres e
esqueçamos os partidos, os mesmos que em ’19 nos deram o
fascismo Não há nenhum novo, sempre aqueles. Estou disposto
falar em todo lugar, sob qualquer bandeira, porque eu falo da
minha idéia não da sua”. Parece uma proposta de nada, mas o
povo repete como um refrão, agita como uma bandeira: Fé du
mucc, fé du mucc…
Celebra-se a liberdade com a ajuda de vinho, cantos, danças.
Aos 6 de maio, almoço em Magreta com 400 partigianos, à tarde
discurso em Soliera. Aos 7 em Cividale, aos 9 às 10.30 horas em
S. Possidonio, às 15.30 horas em Limidi; às 17.30 em S. Antonio;
aos 12 às 10 horas em Rovereto, às 15.30 horas em Gargallo, às
17.30 em Panzano. Aos 22 de junho no seminário com os padres.
O povo bate palmas, vê em mim seu sonho, o que consegue uni-
lo. Vem para me apanhar de todas as partes. Volto de noite, jogo-
me na maca, vestido. Bem cedo, de manhã, há pessoas esperando
por mim. Em 90 dias 130 discursos nas províncias de Reggio,
Modena, Mantova, Ferrara. Um amigo me propõe de fazer
discursos em todas as vilas ao redor de Gonzaga. Corremos de
um lugar para outro precedidos por um monte de pessoas de
bicicleta. A meio dia, em Gonzaga, a praça vazia: “Finalmente
posso repousar”. “Não, não, te esperam no teatro”. Lotado! É
domingo, começo brincando: “Tem a cara de quem não foi à
missa, verdade? Agora eu explico o evangelho”. De noite, janta
na cooperativa. Uma discussão, lá fora. Vieram me pegar de outra
vila. “Assim o matam!”. Descanso e às duas da madrugada se
parte de novo. Há muitas pessoas como se fosse dia.
“Desde que voltei nem um minuto de trégua, coisa que me
satisfaz muito. Quantas massas acorrem em todo lugar em que eu
for! Escutam e parece que dizem: “Nós também sempre
pensamos assim” (4.6). Meu momento mágico, um batismo de
povo. Os convites provem dos CLN locais, sindicatos, padres,
comissões de fábrica. Ora na onda do entusiasmo, ora na onda do
85

desânimo: “Não acredito que o povo possa ser tão simples para
unir-se em tão clara fraternidade, embora veja toda vantagem e
bem que derivam. É fraco demais e insidiado. Acredito na sua
ressurreição somente se tu, Senhor, ajudar” (4.6). “As massas não
conseguem ir ao poder conforme a sugestão que ofereço e elas
aceitam com entusiasmo. Todavia somente aquela, parece a
solução; todas as outras levam fracassos que poderiam ser
evitados” (6.7). “Depois dos discursos dos du mucc sou
convidado na sede dos comunistas de Concordia, toda enfeitada
com bandeiras vermelhas. “Nós estamos dispostos a nos unir se
os DC quiserem. Daqui a 5 minutos não haverá nenhuma
bandeira vermelha”. Os DC saíram e deixaram morrer a
iniciativa”.

3 - Vivo a minha vocação política

A situação é tal que aceito fazer o vice-prefeito e o


presidente da comissão alugueis de Mirandola. Os guardas da
prefeitura inspecionam, compilam listas de locais vazios e, apesar
de alguns protestos, sistemamos 170 famílias. Em frente ao meu
escritório a fila dos pobres é longa como a fome. E eu assino em
continuidade receitas e ajudas financeiras para os pobres com
grande contrariedade do prefeito.
A Igreja oficial está preocupada, porque o povo dança e vai
ao teatro para esquecer os horrores da guerra. O bispo escreve a
Roma: “Entregam-se a loucas diversões. O ódio e a vingança,
acontecimentos reprováveis. O ministério é mais difícil pela
atitude dos partidos extremos. Nós, bispos da região, vemos o
porvir muito obscuro. Dizem que l’80% da Emília é já comunista.
Trabalharemos com a instrução, obras de caridade, escolas
maternas, oratórios”. Eu acredito que os comunistas se vencem
não com as armas do assistencialismo, mas com obras de justiça.
E a primeira é acolher os abandonados, que em nossas casas
chegam a 250. Bato a todas as portas, porque os filhos têm o
vício de comer três vezes ao dia. Mas a sociedade nos mantem
com o contagotas.
Os meus discursos são indigestos para os abastados, algum
vigário me chama de exaltado. Os jornais de esquerda, sem
86

querer, fazem o jogo deles: é suficiente estar nas graças dos


comunistas (L’Unità, 4.8) para cair em desgraça. Alguma
discussão cria tensões com os padres. O bispo procura sanar as
divergências, eu não posso renunciar à minha missão:
“Entristece-me o contraste que existe entre nós sacerdotes no
campo político. Mas eu sinto-me da parte do trabalho, do suor
humano, pago tanto por hora. Sou contra todo partido que mistura
ideologia e política, porque esta nos divide até afastar da fé as
massas populares que ainda na maioria aceitam os sacramentos”
(27.6).
Os bispos da Emília se pronunciam com palavras alusivas:
“Precisa sair da igreja, mas sempre como sacerdotes, não como
tribunos” (5.7). No borrão mons. Boccoleri é mais explicito:
“Não como subversivos”. O meu bispo concorda com ele:
“Acredito que é meu dever suspender as conferências em
qualquer lugar onde se é convidado. Conheço seu espírito de
obediência e estou certo que atenderá a minha prece” (10.7).
Repassa para a Roma as informações pedidas: “Chegaram
observações de alguns padres; em algum lugar deixou pouca boa
impressão; foi convidado algumas vezes pelos comunistas.
Chamei a sua atenção. Respondeu que as acusações eram sem
fundamentos, as frases ditas não verdadeiras, a doutrina social do
papa ignorada. Continuando as queixas recomendei de não pregar
em público. Rogava-me de suspender a proibição, de vir a Roma
e expor tudo ao Santo Padre. Os sacerdotes me aconselham a
tomar uma decisão, tendo em conta que padre Zeno é muito
estimado. Porém eu tenho penas das circunstâncias excecionais
da diocese” (19.7). Solicita ordens, mas a Santa Sê parece não
tomar posição.
A minha versão: “Desde que voltei percebi que a Obra é
muito hostilizada. Querem que apoie a DC contra os outros
partidos, coisa que nunca faremos, porque a nossa atividade é
fraternizar o povo. Eu espero criar um movimento tal que jogue
no mar todos os partidos. Creio na onipotência do fermento de
Cristo nas massas, por isso mergulho nelas, empurrando para a
solução da luta secular entre capital e trabalho. É a única maneira
para evitar revoluções anticristãs e para esvaziar os partidos. Irei
conseguir? Acredito que sim, tudo me diz que é vontade de Deus.
87

O contraste com o clero é explicável, a reação do povo muito


natural, mas para males extremos, extremos remédios. É
suficiente para mim que o bispo não seja contra. Pense antes de
se opor ao caminho da Obra, sendo obra de Deus. Se o bispo não
fosse conosco mutilaríamos o apostolado nas massas e
voltaríamos à desorientação, enquanto de todas as partes acorrem
pedindo luz, entusiastas de caminhar rumo à fraternidade.
Ouvindo-me e amando-me se tornarão melhores correndo para a
justiça. Se não tem coragem de me abençoar, me retiro. A Obra
entrará em letargo, mas negar-lhe o caminho no campo social
significa pará-la e talvez, matá-la. Se tivesse dito, sem perceber,
alguma coisa errada estou pronto a defender a verdade
publicamente, mas se é questão de opiniões não me mexo. Veja,
me corrija, sempre pronto a fazer a vontade do Senhor quando é
expressa nas formas queridas por ele” (13.7).
Eu vejo as coisas do ponto de vista da fé, que torna possível
o impossível. Quem olha por outra perspectiva fala de
semplicismo qualunquistico, me acusa de arrogante, mas o
evangelho assegura ao lixo do mundo a sua força, que fiz minha,
acolhendo os filhos de ninguém. Há dificuldades internas e
externas, nada interrompe a minha maratona pela justiça. Alguns
vigários, como o de Gonzaga, solicita a intervenção do bispo
“Padre Zeno veio para aumentar a confusão, o qual, chamado
pelo partido comunista, dá palestras, excitando os espíritos para
resolver a questão social em dois ou quatro meios enérgicos. Não
ataca a hierarquia, mas põe os fieis contra seus sacerdotes os
quais, não podendo ter uma linguagem popular, nem lutar contra
qualquer partido pelas sábias normas da Santa Sê, parecem
contrários às justas aspirações do povo. “Aquele sim que é um
padre, dizem, não os nossos!” (20.8).
Quantos olhos arregalados, durante os meus discursos, para
invocar luz e esperança! Posso permitir que eu engane o povo?
Interpelo o bispo: “O meu apostolado no campo social chegou a
uma fase de grave momento. Voltei da guerra após vinte meses
de duras constatações. 120 cidades me ouviram, participando em
massa. Entendido e mal entendido, cheguei à conclusão: precisa
desmantelar os partidos, orientando as massas para uma fronte
única do trabalho; excluir toda luta religiosa; condenar toda
88

forma de exploração. É o epílogo da luta entre capital e trabalho,


a conquista jurídica da dignidade. Por isso decidi fazer um
congresso a S. Giacomo no primeiro domingo de setembro,
convidando todos para criar uma fronte única, para fixar uma
constituição e depois marchar sobre a Itália. Prevejo de 40 a 70
mil participantes. Uma decisão de tanta massa pode se tornar uma
avalanche que arrasta todo seitarismo e reconduz a Itália a Deus”
(14.8). Chamo em causa o Cristo: “Estou em pleno vigor de
coração e de mente, cansado de esperar. E estou vendo como tu
fazes para abrir o caminho para mim. Estou cansado de estar
cansado. Em 25 anos fiz pouco, todavia resisto, certo que tu estás
comigo” (6.9).
Enquanto semeio no povo de mãos cheias, faço projetos para
o desenvolvimento da Obra: liceu musical, universidade popular,
escola de cinema. Entristecem-me os filhos humilhados por uma
escola feita de propósito por uma sociedade seletiva. Obtenho a
colaboração de Beatrice Matano, que vem para organizar a
recuperação deles.

4 – Superar o comunismo

O pós-guerra vê os católicos mobilizados em favor da DC.


Eu não entro nesta. O povo é feito para pertencer a um inteiro
(povo), não a uma parte (partido). A excitação política é
contagiante. “Estou convencido que na Emília se procura uma
solução fora dos partidos. Se quer fazer um congresso.
Obstáculos enormes. A política se transforma em luta entre os
partidos, que se contendem o meu apoio. Os socialistas: “Nós
estamos com padre Zeno: o nosso amontoado e o dos outros”. Os
da DC: “Nós somos para os dois amontoados, o dos
trabalhadores e proprietários e o dos outros”. Os comunistas:
“Nós com certeza somos o amontoado de padre Zeno”. Todos de
acordo comigo!” (DZR, 200). Mas quais reações provoca meu
estilo tão sincero num Vaticano dedicado a canalizar os cristãos
no novo exército DC, armada com cruzes e escudos, para destruir
os inimigos de Deus? No L’Osservatore Romano não faltam
simpatias nem pelo partido do Uomo qualunque [Homem
qualquer] de Giannini, que convida o clero a dar uma olhada
89

benévola aos burgueses. Exatamente o oposto de quanto eu


afirmo.
Aos primeiros de agosto monsenhor tem vários encontros em
Roma: aos 6 com o papa, aos 7 com a Secretaria de Estado. Volta
e proíbe o congresso. Não pode estar de acordo, pois sua
intervenção sobre o social é de tipo corretivo, o meu
revolucionário. A sua eclesiologia concebe a Igreja como uma
fortaleza: “Quem entra na cidadela está seguro na civilização de
Cristo. Nós, os salvos, vamos no mundo e damos pão e
evangelho”. O papa é o modelo supremo da caridade: abrem-se
os refeitórios do papa; distribui-se roupa do papa; a assistência
do papa alcança desempregados, órfãos, mães solteiras, filhos
dos prisioneiros. Um monte de corretivos, mas não se deve
discutir o status quo. O mundo é concebido como o lugar onde se
usam os pobres para fazer as boas ações, se combatem os
inimigos de Cristo, se impõe a verdade para a maior glória de
Deus. Ainda não apareceu nem de leve a dúvida: fazer o que para
por o machado nas causas das dificuldades sociais e não
perpetuar o círculo vicioso que produz as vítimas e depois as
cura? Como não ser cúmplices de um sistema que com uma mão
te tira o devido e com a outra te acalma com a beneficiência? Não
percebemos que fazemos o jogo deles. O bispo admira, apoia com
ofertas, mas não consegue se colocar na mesma perspectiva. A
Concistorial completa a obra: “Os católicos podem dar seu voto
somente aqueles cidadãos do quais temos certeza que irão
defender a observância da lei divina, os direitos da religião e da
Igreja”.
A correspondência se torna cerrada: vai e volta, corpo a
corpo. Enquanto inicia o processo de demonização dos
vermelhos, insisto na minha estratégia: “Sofro sangue, mas a
realidade me estimula a salvar o salvável próprio através daquelas
massas que ameaçam a ruína do país. O lobo deve se tornar
cordeiro. Antes que ver as estradas vermelhas de sangue é melhor
previr. É um ato cirúrgico que a sociedade deve fazer, porque é
culpada. O comunismo ateu deve ser absorvido por um
movimento, que o supere e o disperse, levando os gregários andar
por estradas diferentes, para que as massas não pensem como os
chefes. Se consigo movimentá-las, elas mesmas jogariam fora os
90

partidos. A providência estabeleceu que eu as leve a uma


orientação, que chegará ao triunfo do amor. Qual motivo pode me
impedir? Uma pressão do clero? Há sempre a parte adversária
daquele sacerdote que vê e continua seu caminho e impede toda
audaciosa iniciativa do bispo. Uma opinião? Jesus não denunciou
nas praças as malvadezas dos ricos e dos fariseus? Não somos
obrigados a imitá-lo? Está com medo de uma minha degeneração
na doutrina e na fé? Onde errei tanto para induzí-la em tão grave
oposição? Aprendi todo esse meu zelo, imitando a vida de Jesus e
dos santos, certo que tudo é possível para quem crê. Se Marx
perturbou o espírito humano, eu, sacerdote, me sinto mais forte
do que ele e me jogo nas massas por ele hipnotizadas para
disperder o encantamento diabólico do materialismo. Por que
curar com água morna o que exige ácido sulforoso? Se quer
escolher o caminho odioso das condenações para filhos
abandonados a si mesmos [condenação do Partido da Esquerda
Cristã, 2.1.’45], enquanto precisa correr entre os rebeldes e
convidá-los para águas melhores. Escutei que algum sacerdote se
lançou contra mim, teimoso e endemoninhado, por coisas que não
eu disse. Esta desconfiança acompanha sempre o caminho de
quem quer curar as chagas do povo. O congresso foi impedido.
Por que? O meu bispo prefere ver-me tranquilo entre coisas que
não atrapalham ninguém, do que me encorajar à guerra. Mistério”
(16.8).
O povo me acompanha, porque entende melhor dos prelados
a linguagem de Deus. Vê que eu tenho os pobres em casa e no
coração; que não tem dinheiro como eu; que sou pai mais do que
eles. O bispo, coitado!, só faz respeitar a disciplina canônica:
“Você me pergunta uma coisa de gravíssima importância que
deve ser avaliada pela autoridade competente. Não posso dar a
permissão sem receber instruções. Conheço seu espírito de
disciplina e estou certo que irá obedecer” (17.8). Se ele apela à
disciplina canônica para proibir um congresso sem partido, a que
disciplina irão apelar os padres galopins dos Comitê Cívicos?
[organizações politicas a serviço da DC] E os padres envolvidos
diretamente na politica como padre Sturzo, mons. Ronca, p.
Lombardi, mons. Tiso, para acenar aos mais famosos padres
trapaceiros políticos, sem falar dos núncios e cardeais?
91

5 – Peço plena confiança, papel em branco

Para mim é contra a natureza pensar em termos de partido.


Nasci homem, irmão de todos, portanto devo estar com todos.
Temos as mesmas exigências, uma plataforma que nos une e que
nenhum partido pode negar. Apelo à minha prática pastoral: o
pároco não é o pastor de uma porção, mas de todo o rebanho; o
bispo não é chamado “O bispo dos cristãos de Milão ou de
Turim”, mas “O bispo de todos os que vivem em Milão, Turim,
etc”.
Tento tudo por tudo: a fé não nos garante que é possível
deslocar montanhas? “Obedecer para nós sacerdotes, é um ato de
ordinária administração. Obedeço, convicto porém que V. Exa. e
o clero que se opuseram, erram a se opor. O congresso não será
feito, porque não quero agir numa desconfiança tão evidente dos
superiores. Coirmãos demais me culpam de filocomunista!
Paradoxal e cruel. Por quanto me tinha esforçado esclarecer que o
meu apostolado social é direto para arrancar as massas do
encantamento marxista, se continuou a desconfiar. Inútil culpar-
me de semi-herege: é a única maneira para atirar no vazio, porque
odeio toda rebelião contra a Igreja. A DC, unilateral como é, não
salva a Itália, mas a levará à ruina excitando nas massas um ódio
infernal contra a Igreja, porque permite o que nunca poderá dar.
As eleições estão perto, eu estou amarrado mãos e pés. E seja!
Ferido a sangue pela insistência de Vossa Exa. de não falar de
sociologia, que posso fazer? Não precisa esquecer que a Igreja
antes de condenar os movimentos revolucionários, sempre
procurou transformá-los, convertendo os inimigos em defensores
da fé. Peço plena confiança, plena liberdade, papel em branco”
(18.8). Tudo em vão, não posso mais falar ao povo. Tapar-me a
boca é pior do que tirar a minha alma.
[Em 1950, nos exercícios espirituais aos servitas de Milão,
combatendo entre obediência à disciplina e fidelidade ao povo,
num clima de familiaridade, irei fazer uma autocrítica feroz,
sendo obrigado apagar aquele fogo que eu mesmo tinha aceso.
“Quando queria fazer um congresso, os que queriam dar-me a
permissão vacilaram e a iniciativa fracassou. Eu não quero dar a
92

culpa a mim mesmo, dei a culpa aquele la … (acenando para o


sacrário). Mas se tivesse sido santo, se tivesse feito algo para
abrir uma estrada... Podia obedecer do mesmo modo, indo
diretamente falar com o papa. Por exemplo, podia dar quatro
bofetadas a um guarda suíço para chamar a atenção: “Ouça,
Santidade, não se podem fazer estas coisas!”. Invés fui um
homem prudente. Poucos dias depois do desastre uns
trabalhadores me chamam de traidor: “Se você queria, nos unia,
organizava todos nós. Teríamos feito uma revolução boa, sem
brigas, algazarras. E nos livrava de Togliatti, de Stalin, de toda
aquela gente”. Disseram isso alguns chefes comunistas! E eu,
tolo, “Obedeço”. Podia obedecer, mas tinha o direito? Não!
Devia apelar a Roma. Se tivesse ido falar com o papa, puxando
pelas roupas, se tivesse feito algo de estranho lá dentro, como
pular em cima de um banco, quando passa carregado naquela
coisa (cadeira gestatorial), ele teria perguntado: “O que está
sucedendo?”. “Santidade, o povo vai à ruína, satanás leva todos.
Venha aqui, vamos falar”. Os santos fizeram estas coisas. Se vou
ao Vaticano precisa fazer a antecâmara. Mas eu começo correr
naqueles corredores! O que podem fazer a um padre? Fui um
burro, não fiz nada disso. O único pecado social que fiz, e
grande, foi aquele ali: obedecer sem ir até o fundo. E pensava em
ter obedecido, porque obedeci ao bispo. Mas obedecia mais se
tivesse corrido a Roma, porque lá existe a autoridade universal e
o problema se tornava universal. Fiquei em casa e não acreditei
em Jesus Cristo. “Mas ir para Roma... monsenhor aqui,
monsenhor acolá...”. E não corri e não escutei os meus filhos, o
povo que se arruinava. Muitas vezes é cômodo obedecer. Escutei
muitas vezes esta besteira: Quando se obedece nunca se erra!
Mas nós devemos revirar o mundo, com certeza! O mundo tem
em mãos a bomba atômica? E nós o universo, Aquele que, numa
só vez, pode revirar as estrelas. A competência da nossa missão
não se obtêm com o cérebro, mas com o abraço de Cristo”
(17.1.’50)].

Apelo ao Cristo: “Como vês é um trabalho titânico realizar


uma vida social segundo as exigências dos tempos. Quando se
quer passar das palavras aos fatos, se prefere cair em contradições
93

paradoxais. Por causa da resistência do clero, perdi uma guerra


que pode ser fatal para as massas. O essencial para a burguesia é
que os pobres continuem uma classe á qual uma outra classe, os
ricos, deva dar e não compartilhar vida, meios, trabalho. E têm
mil possibilidades para reprimir. Liberdade de comércios!
Significa especulação sobre o fruto das fadigas dos outros.
Entretanto eu ouço os pedidos de comida para as crianças, às
quais a infame organização social não reconhece que um direito:
estender a mão e agradecer. Ordem maldiçoada por Deus, inferno
terrestre feito pela covardia dos bons para nada” (24.8).

6 - Recorro a Roma

O bispo se congratula: “A sua obediência e submissão o


honra. Não podia duvidar. Você acredita que eu não tenha razão e
erre e eu invés tenho a consciência tranquila , porque estou às
disposições dos meus superiores e procuro fazer observar a
disciplina e por isso não posso dar plena liberdade e papel em
branco, sem ter instruções especiais” (20.8). Duas obediências em
conflito. Profecia e instituição, carisma e disciplina se
confrontam. Monsenhor me chama no seminário para tratar a
questão com os notáveis da diocese (29.8). Cada um fica na sua,
se remete tudo a Roma. “Senhor, amanhã irei a Roma ouvir a
sentença a respeito do movimento político. Somente sua
intervenção pode destruir aqueles sistemas econômicos, que
fizeram da terra uma floresta selvagem entre explorados e
exploradores. Satanás está bem firme no campo social.
Destronizá-lo é coisa mais do céu que da terra. Um menino com
uma obra menina tenta amanhã um assalto aquele mundo
diabólico. O papa é o teu vigário, a ele somente tu podes falar do
meu sonho” (25.9). A sensação de lutar contra colossos é uma
constante da minha vida. Eu e o representante do bispo tivemos
um colóquio no Vaticano com mons. Tardini, o qual aconselha de
fazer um movimento.
Mando-lhe as nossas propostas. “Os Peq. Ap. pensam em
neutralizar a tirania econômica comunista e burguesa através de
três maneiras: 1- o diretor da Obra, pela sua influências sobre as
massas, as induziria a aceitar a proposta do movimento dos
94

trabalhadores, arrancando do marxismo, orientando a uma


concepção de fraternidade natural. 2- Se não for concedido, os
leigos irão fazer do mesmo modo, mas com mais trabalho e
menos confiança por parte do povo. 3- Num primeiro momento
um movimento social segundo as propostas de mons. Tardini,
promovido pelo diretor da Obra; num segundo tempo os leigos
poderiam transformá-lo num movimento político. Os
trabalhadores inscritos no movimento e os Peq. Apost. são pela
primeirta solução. Se por parte da Santa Sê não haveria nada em
contrário a que o diretor da Obra mergulhasse nas massas,
abandonando toda concepção marxista, se pensa que a baixa
bassa Val Padana em menos de três meses poderia dar um
exemplo arrastador. O fato que um sacerdote continue a sua
atividade entre as massas não é uma infração ao Concordato e ao
Código de Direito Canônico, visto que ele não é militante de
nenhum partido. Os comunistas, feita excessão dos chefões, não
são marxistas, mas, se não forem esclarecidos e encaminhados
em tempo, votarão pelo comunismo. Se a Santa Sê achar bom, o
diretor explanaria em Roma um plano de ação e ouviria os
conselhos. Se em outros tempos o Senhor jogou bispos,
sacerdotes na luta como padres e árbitros de movimentos
políticos, os Peq. Apost. confiam que faça também hoje em favor
de seu sonho de santificação da vida política, concedendo que
padre Zeno comece. Ele acha que esta seja a vontade do Senhor”
(out.?).
95

VIII - 1946: pós-guerra de sangue

Cenário internacional
Depois de ’45 chegam anos de inquisição política, terror,
morte, barreiras entre Leste e Oeste. Churchill fala pela primeira
vez de cortina de ferro (5.3). O expansionismo soviético estimula
o clima de guerra fria. Em todo lugar o comunismo toma o
poder, a Igreja é perseguida: suprimidas escolas e imprensa, clero
vigiado ou confinado, pressões de Roma para um cisma. São
presos os bispos: Slipyi (Rutenia, ‘45), Stepinac (Zagabria, ‘46),
Mindszenty (Ungria, ‘48), Beran (Praga, ‘49), Wyszynski
(Polônia, ‘53).
Cenário italiano
Ventos de cruzadas: a DC defende a civilização da
barbaridade comunista. Pio XII sacode os universitários: É a a
hora da Igreja (7.1); na véspera das eleições, lança um apelo: A
escolha fica entre o materialismo ateu e cristianismo (1.6); no
final do ano o desafio aberto: Ou com Cristo ou contra Cristo
(22.12). O referendum institucional é a favor da república [54%]
(2.6). Togliatti assina a amnistia pelos crimes políticos (22.6). O
card. Ruffini pede medidas de polícia contra os comunistas. O
Osservatore Romano denuncia o assassinato dos padres (30.8).
Na Emília o clima de intolerância e ódio mata sete sacerdotes;
uma minoria de ex-partigiani acredita acelerar a tomada de poder,
eliminando os inimigos de classe: 893 burgueses, 103
proprietários de terras, muitos da DC. De Gasperi envia no
modenese 300 agentes para substituir a polícia partigiana (22.7).
96

Togliatti em Reggio Emília dá a ordem de virar página (23.9).


Agitações nas cidade do Norte pelo desemprego e inflação.
Saques e desordens no interior. Dois desempregados ocupam a
Presidência do Conselho: dois mortos, 150 feridos (19.10). Roma
e Milão invadidas por gangues. O quente pós-guerra: de uma
parte demonstrações e greves, e de outra Fora o comunista! Uma
espécie de terrorismo psicológico. É suficiente a suspeita para
receber recriminações e condenações. No Vaticano o medo vem
desde ‘43: “O comunismo é já bem organizado, é fornecido de
armas e meios econômicos. É fácil prever quanto difícil, para não
dizer impossível, seria para a Santa Sê o governo da Igreja
universal se a Itália caísse no domínio do comunismo”, que é tido
como a destruição da civilizaçao. No Vaticano há uma verdadeira
ignorância do fenômeno e de sua doutrina. Se passa do medo ao
terror, do terror à síndrome. Pio XII dirá a pe. Rotondi: “Entenda:
se chegam aqui com a cortina de ferro!” (4.2.’48). Se faz tudo o
possível, portanto, para prevenir que a cidade eterna caia sob
administração dos semdeus: da condenação do Partido da
Esquerda Crisã (2.1.’45), à exclusão das esquerdas do Governo
(31.5.’47), até à operação Sturzo (’52). De Gasperi marca uma
conversação com Montini: “Se a DC continuasse a colaboração
com as esquerdas, seria considerada um partido filo-inimigo e não
teria mais o nosso apoio”. Se é suficiente serem amigos de um
pastor protestante para ser inquisidos (Mazzolari), o que se
reserva para quem anda de mãos dadas com os semdeus?

1 - A política de Deus: “Somos irmãos”

A morte de padres assusta as autoridades religiosas. Parecem


dizer: “Os comunistas matam os padres [93 no pós-guerra] e
padre Zeno simpatiza pelos nossos inimigos”. O mal-estar é
alimentado pela imprensa de esquerda que torce por mim: “Todos
olham com simpatia o trabalho de padre Zeno. Durante a
campanha eleitoral alguns jovens comunistas escreveram no
muro: Morte aos padres. Um deles voltou e acrescentou: Exceto
padre Zeno” (Hoje, 14.12.’47). “Se todos os trabalhadores
acorreram para ouvir padre Zeno, não é por pura curiosidade, mas
porque acreditam ver nele um defensor de suas aspirações” (Luz,
97

6.1.’46). Já se fala de Nomadélfia como de “comunismo cristão”


(Corriere del popolo, 2.2.’47) e do “padre puro ao funeral dos
vermelhos” (Corriere d’informazione, 28.4.’49). Eu defendo a
política de Deus: somos irmãos, nem patrões nem servos.
“Alguns dizem que sou comunista. Não é verdade: eu sou um
comunista e meio, porque sou pela redenção do trabalho do
patrão. É sagrado como a vida. Quem vive do fruto das fadigas
dos outros não ama o próximo como a si mesmo. Estou da parte
dos explorados contra qualquer explorador. Não acredito nos
patrões, embora se declarem cristãos, porque se amassem os
trabalhadores, se tornariam irmãos” (maio).
Durante a campanha eleitoral os partidos citam os meus
escritos, cada um pretende ter-me a seu lado. Convidado pelo
semanal católico de Modena, esclareço bem: “Os três partidos de
massa parecem-me uma desgraça para os trabalhadores. Seria
melhor um movimento só para desmantelar o sistema burguês. O
pensamento social da Igreja é simples: Deus é Pai, nós filhos,
portanto irmãos. Se não aplicamos a solidariedade também em
campo econômico pecamos contra a fraternidade. Os discursos de
Santo Padre nos impulsionam a por os capitais nas mãos do
trabalho em forma prudente. O capitalismo é insensível ao
conceito cristão de fraternidade e se fechou na injustiça tutelada
pela lei. Se somos irmãos, compartilhamos tudo, também os bens
do corpo, sagrado como a alma” (La Lanterna, 5.5).

2 – O meu Manifesto político

Não se fala que de Constituinte. Proponho o meu esboço:


Para a Humana Solidariedade, assinado pelo pais de família
Peq. Ap. (22.1). Todos sabem, também as pedras, que é o meu
Manifesto político, que suscita opostas reações. Aquela popular:
“Somos um grupo de comunistas. A tua obra é compreensível e
comove a todos. Nós te consideramos como um verdadeiro
ministro de Deus e como tal tu tens a nossa admiração. Nós
seremos propagadores da tua Obra e da tua idéia. Desculpa o tom
confidencial mas, como tu nos ensinas, mais do que
companheiros somos irmãos” (3.2). Aquela clerical: “Parece-me
necessário que o bispo tome posição. Poderia-se repetir um apelo
98

a Roma e seria um prejuízo para todos. Os discursos sociais de


padre Zeno dividem e afastam os fieis de seu pastor” (vicario
foraneo, 4.3; 28.3).
A DC se protege atrás da religião e eu dos meus
colaboradores. Visto que o estado clerical me impede de fazer a
política de Deus, ponho na frente os leigos, os quais assinam um
apelo: “Trabalhadores: a Itália precisa de um bloco único pare
vencer a burguesia. Nós não somos um partido, mas podemos
fazer obra de persuasão para que os partidos se fundem sobre
estes princípios: somos irmãos; as firmas pertencem aos
trabalhadores como instrumentos de trabalho” (19.2). Vou ao
coração do problema: “É tempo de revolucionar o estímulo
egoístico do interesse pessoal no da dignidade humana. Somos
irmãos: a lei mande prevenindo todo abuso. A convivência
econômica prevê: 1- as empresas são de interesse público; 2- sua
propriedade é dos trabalhadores que ali trabalham; 3- os serviços
públicos são do Estado; 4- as aziendas dos entes morais são
igualadas àquelas estatais; 5- o Estado intervêm se a azienda não
é eficiente e sofre prejuízos de força maior; 6- os trabalhadores
não proprietários são retribuídos como os trabalhadores
proprietários; 7- os produtos não podem ser objeto de
especulação; 8- as aziendas são bens inalienáveis e se entra com
concursos públicos.
[Há quem afirma: “A originalidade de padre Zeno consiste
no fato que ele pensa de prevenir a afirmação do comunismo,
envolvendo os trabalhadores numa série de iniciativas de caráter
cristão ou na atuação de um projeto de sociedade civil inspirada
ao primado do amor cristão” (Rinaldi). Nada disso. A sociedade
não se governa com o amor [o qual implica uma opção: Se
queres], mas com a justiça, que se impõe com a lei coercitiva.
Uma sociedade fundada no amor se pode fazer com voluntários,
enquanto uma sociedade de coagidos se funda em princípios
naturais. Falando a um povo cristão é óbvio que me refiro a
valores cristãos, mas a política deve prescindir desses.]

O bispo se queixa: “um programa político proposto pelos


católicos deve ser conforme os ensinamentos da Igreja (cânon
1385); a Obra depende da autoridade eclesiástica, portanto
99

ordena-se que o opúsculo seja retirado”. Reclamo a autonomia


dos leigos: “Respeitei a sua liberdade enquanto, como cidadãos,
não são sujeitos nem a mim nem ao bispo. Tem a idade deles”
(10.3).
Somente aos íntimos revelo o meu pensamento, os outros o
alterariam: “Os comunistas são entusiastas do programa, muitos
dizem que pensam assim. Fico alegre, porque acredito que o
único ambiente onde se pode fazer aquele trabalho sejam os
comunistas” (a Beatrice, 28.3). “Acredito que sejam os
democratas que se opõem furiosamente. O opúsculo já foi
vendido na província de Modena. Os partidos fingem ignorá-lo.
Nós somos decididos a lançar o movimento” (14.3).
Muitos são os convites a pregar na praça. A base é comigo,
os vértices temem uma hemorragia de inscritos. “O povo me
escuta, fica abalado, discute, se entusiasma, adormece de novo.
Como falar a presos que se alegram e sonham. Depois eu vou
embora e eles continuam presos entre os muros das ideologias”
(8.1). Algum prelado me proíbe falar, porque “convidado pelo
Partido Comunista”. “Não é verdade. Eu queria fazer três
palestras em benefício de 500 órfãos, entre os quais muitos de sua
diocese” (20.3). E se o convite tivesse vindo da DC?
A diocese me aperta. Procuro um protetor em mons.
Ottaviani, assessor do Santo Ofício [apelidado policial da Igreja].
“Enquanto ferve a luta entre os partidos, queria orientar as massas
a uma solução apartídica. Os comunistas não são tais que em
raríssima parte. Parece-me fora de lugar pegá-los de frente, mas
rodeá-los com uma política que seja o cristianismo traduzido em
leis que tirem toda opressão. Por que aceitar o duelo em campo
político? Contra aquelas massas não podemos combater: precisa
conquistá-las como filhos e irmãos” (19.3).

3 – O Estado dos livres filhos de Deus

Trabalho em duas frentes: a do povo com o movimento, a da


Obra como exemplo concreto. “Nunca como agora a Obra está
nas mãos de Deus e eu me sinto uma palhinha no meio do mar. O
Céu me nega os meios que parecem-me urgentes, o bispo freia
meu passo, os filhos ficam desnorteados; o povo não entende
100

nada. Ottaviani não é contrário em conceder um experto.


Acredito somente numa solução: Deus proverá e somente Deus”
(a padre Vincenzo, 25.4). Meu irmão me refere: “Alguns bispos
começam a se cansar de ti” (23.6). Um co-irmão: “Padre Zeno
siga a sua estrada de homem de ação; mas quanto aos princípios
da doutrina fique de fora”.
Reprovado o movimento, insisto com os paroquianos: “Se
não nos amamos, a vida se torna uma ilusão e fracasso. Levar os
homens da idéia às obras de fraternidade é o empreendimento
mais difícil” (20.4). “Eu quereria que nos uníssimos como irmãos
em tudo. Estou convencido que é possível organizar uma
população de famílias unidas entre si como irmãos. Quando, onde
e se poderei fazê-lo, somente Deus sabe” (junho). Visto que é
quase impossível unir o povo, interpelo Cristo: “Ou espalhados
no mundo sem pátria, unidos pelo vínculo sobrenatural, ou
criamos para nós uma pátria numa terra nossa, com a nossa lei,
mandando pelo mundo missionários pregar a fraternidade
universal. O mundo nunca irá chegar a uma vida como nós
pensamos, mas nós podemos chegar rapidamente. Ele me repele
todas as vezes que tento levá-lo à lei da fraternidade. Até as
autoridades me temem como um perturbador. Uma terra, um
reino da fraternidade, uma liberdade que aqui ninguém nos
concede, uma rampa para levar ao mundo a doce novidade da tua
socialidade, da verdadeira civilização” (11.6.’45). O sonho é o
respiro da alma e me ajuda a não afundar. Jogando o olhar para
frente, entrevejo: “Uma cidade de Peq. Ap. seria um exemplo de
vida fraterna, uma tentativa dos primeiros cristãos. Pode-se
começar com umas trinta famílias, 400 habitantes. Uma cidade
apostólica, que acolhe abandonados e se associa a quem trabalha
para santificar a vida social. Se em cada região do mundo se
implantasse uma cidade assim, lentamente a Igreja teria uma
força para dar o exemplo vivo de uma civilização cristã” (12.6).
Um amigo faz a maquete do meu sonho, que fica exposta como
uma foto de recordação.
Estou ansioso para falar disso com o papa. Pe. Arnou
observa: “Viver como irmãos, nada de mais cristão. Mas quando
fala de formar um Estado independente, a coisa não parece-me
realizável nem desejável. O fermento deve ficar na farinha. Se se
101

deve fazer uma longa peregrinação para visitar a sua cidade, o


exemplo será pouco. Há religiosos que vivem um certo
comunismo; mas são tão separados do mundo que os ignora.
Querem fazer o mesmo?” (21.6). Nós não somos um convento,
mas uma população civil. Um pequeno Estado seja talvez fora do
mundo? Se não aceito as leis de um Estado, por que devo subí-las
e ser cúmplice? Se há um direito de fazer um estado ateu, liberal,
coletivista, agnóstico, pluralista, há de ter também o direito de
fazer um estado evangélico. Nós não propomos uma religião, mas
uma civilização. A fé nunca foi aplicada ao social. Por que
voluntários não poderiam aplicá-la às estruturas sociais, fundando
um Estado evangélico de livres filhos de Deus? Hoje somos
cidadãos por acaso, amanhã não poderemos ser cidadãos por
eleição? Se se nega o direito de assumir o evangelho como
código do viver, ele seria uma utopia.

4 – A União das famílias

Os frutos da União dos sacerdotes Peq. Ap. estão à vista de


todos: as nossas paróquias têm o cinema, a universidade popular,
ambientes de recreação, casas paroquiais abertas, entre nós não
há o padre rico e o padre pobre. Parece-me chegado o tempo de
envolver os leigos com as nossas famílias para criar um exemplo
forte. Faço a proposta em congresso a 700 pais de famílias, os
quais, divididos pelos partidos, preferem o assistencialismo:
“Alguns de vocês dão a casca das batatas a quem tem fome e
vocês comem a batata. Não aceito uma obra de mútuo socorro: se
alguém quebra a cabeça lhe pagam um esparadrapo. Também a
cooperativa é uma forma egoística: se está junto para melhorar as
condições dos sócios, não dos outros. Ou irmãos como famílias
ou nada. Não aceitamos um família que gasta e dá as migalhas do
supérfluo. Estabelecemos a medida do necessário e o resto é dos
irmãos necessitados. “Mas, dizem, é impossível!”. Posso entender
as grandes obras de assistência, mas o cristianismo é uma idéia,
socialmente nunca existiu, a lei dos vasos comunicantes nunca
foi vista. Todos gostam de encher a boca de fraternidade, mas
quando se chega ao ponto final se fecham as carteiras. Tentei
muitas vezes, não consegui. Desmancho a associação: “Realizarei
102

com os meus filhos aquele sonho que vocês têm no coração”. Não
foram capazes de comunicar o amor entre família e família. Não
se consegue, porque não se veem as vantagens de ser irmãos. O
outro mete medo, não se confia nele. Para mim ceder seria
renunciar ao sonho, admitir que é impossível. Um suicídio moral.
Dizem que há crise de cristianismo. Não é verdade, é crise de
humanidade, o cristianismo ainda não chegou.

IX - 1947: a guerra dos anjos

Cenário internacional - Para Truman a liberdade vem antes


da paz (6.3) e anuncia o Plano Marshall ou doutrina do socorro
econômico aos países ameaçados pelo comunismo (12.3). A Índia
declara a independência (15.7). Os EUA emanam a lei da
segurança nacional.
103

Cenário italiano – Inflação de 50%. De Gasperi nos EUA


para procurar dólares e apoio político (3.1). A Itália entra no
Banco Mundial e no FMI (15.3). Choques entre grevistas e
polícia (março-abril), agitações camponesas na Valpadana
(agosto), demissões, ocupação de terras, greves contra os
aumentos (outono). Nossa Senhora Peregrina parte de Milão
(12.3). Na Emília pedras e explosão durante uma procissão
(18.5). Exclusão das sinistras do Governo (31.5). Pe. Lombardi
lança a mobilização contra o comunismo (7.6). 50.000 inscritos à
Ação Católica vão visitar o papa (7.9), 100.000 em Bologna
(20.9). O PCI adere ao Cominform (5.10). As última tropas EUA
deixam a Itália (14.12).

1 – O comunismo tem uma missão?

Os acontecimentos confirmam: o meu projeto de


fraternidade social vai além dos confins diocesanos. Confio ao
papa: “O comunismo tem a missão de demonstrar que, quando os
chamados por Deus não amam os irmãos, estes não entendem
mais a voz do pastor e caem nos braços do inimigo. Somente uma
força viva pode nos levar ao porto: as massas, as mais rebeldes,
que não são nem comunistas nem democratas cristãos. Eu votei
na DC, mas experimentei uma nausea indefinível. Acredito em
duas forças de Deus: a generosidade das massas e a onipotência
do sacerdócio. Falta um sacerdote que, como Santa Joana D´Arc,
indique os caminhos da justiça. Ou viver como irmãos, ou nos
matar um com outro” (6.1).
Retomo os contatos com Crovella: “No campo político há a
ilusão de salvar o povo com uma política de direita. Nós somos a
esquerda muito mais do que os comunistas, portanto condenáveis
também por estes, que são doentes de política ideológica como os
DC. Se o cristianismo fosse aquele pregado pela DC, eu seria ou
hebreu ou ateu, porque altera a límpida figura do Rei dos Reis. Os
cristãos em política devem ser o fermento, não a farinha. Portanto
estes e aqueles para mim são iguais por iguais” (15.2). Por que
depois de dois milênios ainda não tem um costume econômico a
ser proposto aos povos, que se matam pela solução social? Como
obrigar Deus a ser Pai dos ricos e dos miseráveis? “Então, meu
104

Senhor, nasceu a reação comunista que é mais próxima da tua


mística no uso dos bens: todos iguais perante a vida material. O
Estado é a grande família dos cidadãos: todos pelo Estado, o
Estado por todos. Satanás não gosta destas coisas, por isso
colocou nelas o erro e o clero abocanhou a isca. Se lança contra
por causa dos erros e prefere ser burguês ao invés de se tornar
pobre e correr para curar o comunismo com uma revolução santa.
Nós nos mexemos com a pretensão de resolver o problema,
dando o exemplo de uma nova sociedade: a tua. Para salvar a
alma, hoje, basta amar-te com palavras, com virtudes privadas,
sem se preocupar com os irmãos; mas quando o nosso sistema se
tornará norma de vida, para salvar a alma precisará ser irmãos na
lei dos vasos comunicantes” (26.2).

2- Uma idéia brilhante: ocupar o campo!

Afastado da política, dedico-me à formação com palestras e


retiros aos filhos (7.1; 10.2), às mães (22.1), aos sacerdotes (8.1;
5,12,26.2). Fracassado o entendimento com os pais de família, o
povoado de San Giacomo não presta mais para nós. Como criar
um costume todo nosso com 28 famílias espalhadas entre os
povoados de Casinalbo, Rovereto, Gargallo, Panzano, Ciano,
Montecorone, Gainazzo, Montese, Rubiara, Nonantola? Padre
Morotti me avisa que o campo de concentração de Fossoli está
livre. Por que não nos reunirmos lá? Falo com o diretor. “Que
idéia bonita! Peça. Nós atenderemos”.
Comunico a Crovella o entusiasmo pela graça de
“transformar aquele campo de sangue fraterno numa obra de
amor social. Aquelas pessoas morreram para uma renovação
social, à qual somente com Cristo podemos chegar. Tu és entre os
poucos que sabem ver na Obra algo diferente das outras
instituições religiosas. Estou de acordo: lentamente pegará muitas
paróquias, depois algumas dioceses. O jogo de Deus parece-me
claro: a única maneira para cristianizar as massas será uma forma
simples como a palavra e a vida de Cristo. O Concílio de Trento
salvou o patrimônio das verdades e abriu o caminho a outro
Concílio humano: atuar aquelas verdades, isto é, o unum em
todos os aspectos. O mundo não entende que somos a sua
105

condenação, sua superação. Por isso sofre, nos mataria e termina


sempre por chamarmos para iluminá-lo” (27.3).
O bispo me pede ter um discurso no teatro de Carpi para
acalmar os espíritos excitados pelas desordens de praça.
Insisto com Scelba, ministro do Interior há poucos dias: “A
Obra hospeda 500 abandonados e está para aceitar 400.
Empenha-se em acolher 500 indicados por você, gratuitamente,
como todos os outros” (26.4). Giordani, mons. Baldelli, os on.
Caso e Corsanego apoiam a causa. As negociações demoram, os
ministérios trocam entre si as competências, mas sabemos que
não seriam contrários a um golpe de mão.
A véspera é uma noite de divina coragem: nos reunimos para
organizar as operações de guerra. A manhã do dia 19 de maio,
um dia de primavera, furgões, ônibus, caminhões partem com um
monte de mulheres e crianças: os nossos soldados! O caminhão
com os bandidos abre a coluna. No ingresso a banda toca o nosso
hino oficial. O portão se abre, os guardas pegam as crianças nos
ombros, as jogam nas caminhonetes. Os presos sobre os telhados
aplaudem. Uma festa! A ocupação é orquestrada magistralmente:
fazendo alavanca com os paus, muros e arame farpados são
jogado no chão com as mãos. As crianças pulam como pássaros
sobre os escombros para celebrar o nascimento da cidade de
Deus. Tudo é filmado para fixar a epopeia do homem novo, que
acredita na força do amor: onde reinava o ódio, floresce a nova
civilização. Roma baixa a cabeça em frente ao fato acabado.
Parece-me entrar em laboratório para fazer a experimentação do
homem velho para o homem irmão. O meu sonho pega forma:
tenho entre as mãos um pequeno povo novo também no nome:
Nomadélfia, onde a fraternidade é lei.
A imprensa nacional e extera fala de guerra dos anjos.
“Existe um padre nas redondezas de Carpi que pos na cebeça a
idéia de fundar novas cidades” (Tarde, 21.11). “Onde foi o
inferno de Fossoli nasce a Cidade do ouro: Nomadélfia é a
realização de um comunismo espiritualizado na fé cristã, que não
é o de Marx” (Giornale dell’Emília, 27.11). “Em Nomadélfia os
rapazes aumentam. Uma invasão... Toda família à noite toma a
benção. Padre Zeno levanta o menor e com ele traça um sinal da
106

cruz no ar. No fundo, as guaritas que viram excídios, torturas, o


túmulo dos vivos, a Dachau italiana” (L’Europeo, 6.7).
Os trinta alojamentos contam tragédias, com figuras, frases
obscenas, cheiro de morte. É urgente transformar tudo: “Mais do
que habitações, porcilgas. Passei um mês em Roma, de
departamento em departamento, para empurrar a máquina da
burocracia” (al prefetto, 30.5). Os guardas nos dão uma mão para
a desinfecção e o saneamento. Uma entidade americana de
assistência, a AUSA, pagará a mão-de-obra. Também os rapazes
ajudam: entram nas 4 guaritas nas esquinas do campo e, com
pequenos espelhos, brincam de avistar. Eu espasmo pela vontade
de avistar um povo de irmãos.
O campo de morte ressussita: um território livre fundado
sobre a responsabilidade e confiança recíproca. Tudo se torna
bonito com canteiros, flores, árvores, brinquedos. Toda família,
uma casa, uma regra de ouro para todos: tudo em comum. É
banido o conceito de propriedade, poupança, punição. Não
circula dinheiro: entre irmãos hão há nada para comprar ou para
vender. Nem no bar, no cabeleireiro, no alfaiate. Na escola se
aprende a viver sem notas e sem livros burgueses. Educamos à
compartilha, não à emulação. Os adultos trabalham nos campos,
nos laboratórios e nos transportes. Na tipografia comentam-se os
fatos do dia, preparando o giornal interno O Caminho Certo. As
noites de verão estão cheias de cantos. Pego a safona e toco.
Talvéz seja a primeira comunidade católica de homens e
mulheres. “Somos uma população, temos direito de ser paróquia.
Em poucos anos seremos a primeira diocese sem servos nem
patrões. Se Deus quiser, os sinais são fortes. Juristas e teólogos
terão materia para discutir, mas a realidade é esta: somos irmãos
em Cristo” (a Crovella, 9.7).

3 – Não sou um criador de meninos

Insisto para a audiência, pe. Arnou me dissuade. Pe. Marchi


me revela: “Em Roma temem que a Obra possa ser filantrópica e
consequentemente o sacerdote não seja um elemento essencial,
alíás quase como um sobra” (6.7). Os dignitários eclesiásticos
acusarão de filantropia também Cristo, que coloca no primeiro
107

lugar a fome e a sede? (Mt, 25). Os meninos atrapalham a


mensagem da fraternidade social? Povinho e prelados, atraídos
pelo sentimentalismo dos Pobres meninos!, acreditam que eu
tenha a vocação do criador de meninos. E, às vezes, devo aceitar
o jogo. Se nos conhecessem seriamente, atirariam em nós. Nós
somos como um navio de guerra: quando nos atacam pela nossas
propostas sociais, nos deixam envolver por uma cortina de
fumaça, a assistência às crianças e assim os confundimos. Para
mim se fazem “discussões demais. Precisa criar exemplos.
Peguemos nas mãos o evangelho, atuemos o Sejam perfeitos na
unidade, apliquemos em todos os campos e criamos um mundo
novo. Com violências e guerras não criamos nada de novo. Este é
o caminho mais rápido para chegar a uma civilização humana e
cristã. Por muitos sinais parece que Nomadélfia seja o rebento.
Para nós a fraternidade não é um conselho, mas lei”.
Mas agora devo lutar com a lei do mais forte. Soube que
“Scelba è impenetrável pelos próprios deputados” (14.7).
Mariano faz pulos mortais para renovar as prestações: “Estamos
sem dinheiro. As despesas procovam vertigens. Será a minha
pouca fé?". “Querido Mariano, não tenho um tostão para enviar-
te. Pedi 54 milhões a De Gasperi e parece favorável” (9.7).
Finalmente Scelba assina uma concessão de 10 milhões.
Andreotti faz a sua parte: “Nomadélfia não recebia em a Roma
um consentimento unânime. Chega padre Zeno com a água na
garganta. Não havia possibilidade prática e jurídica para
proveder. Chega um oficial do Governo americano pedir a
permissão para caçar. Uma troca: eu dou a permissão venatória e
o oficial estancia para o campo 80 milhões do fundo assistêncial”.
A DC domina a cena e dá uma nova forma à política
nacional. De Gasperi exclui as sinistras do governo (31.5) para
agradar o Vaticano e acalmar os EUA. Os meus filhos não lhe
dão o voto de confiança. A nossa presença no profundo vermelho
emiliano assume um caráter inquietante e provocatório: uma
comunidade católica se rege numa forma coletiva em nome do
evangelho! Tudo aquilo que cheira a justiça, simpatia para os
afastados, comunidades, é suspeito de comunismo. Todos na
mira do Santo Ofício: Mazzolari, Milani, padres trabalhadores,
teólogos franceses, Mario Rossi, até Chiara Lubich. Eu apresento
108

as coisas sob outra luz: Nomadélfia è um desafio ao comunismo:


“Ela surge como baluarte cristão em campo social, uma
superação da concepção individualista e coletivista. Examine esta
Obra de Deus, que, se entendida e aceita, pode operar nas massas
rebeliões e influenciá-las para a conquista da fraternidade cristã.
Surgia, portanto, Nomadélfia no epicentro do comunismo” (a
mons. Baldelli, 25.9).
No outono a afirmação da direita exacerba as tensões entre
DC e PC. A cruzada para a salvação da civilização cristã se torna
uma luta sem fronteiras para unir as forças anticomunistas. Na
outra parte os comunistas intensificam a sua campanha em todas
as maneiras. No teatro de Carpi se apresenta Titta Foti, um ex
religioso, que desafia os adversários em discurso publico.
Provocado pelo bispo, aceito o desafio. O orador, culto e sabido,
recorre a argumentos á portada de todos: os tesouros do Vaticano,
incoerência do clero, cruzadas. Um comício anticlerical bem
feito. Pe. Soncini me provoca: “Por que não intervem?”. “Vim
para ouvir o evangelho de domingo!”. Antes de esfriar, me
provoca: “Vocês estão vendo? Os padres nem têm a coragem de
reagir”. Dou um pulo.“Pára! Peço a palavra”. Um murmúrio corre
no teatro: “Está aqui Zeno, está aqui padre Zeno!”. “Para
aprofundar a sua tese precisaríamos de muitas daquelas aulas!
Quer esclarecer?”. Pergunto à multidão: “Agora vos ponho à
prova: quem sabe explicar por que quando se frita o ovo, o burro
derrete e o ovo endurece?”. Um silêncio! “Estão vendo como são
ignorantes? Depois da guerra caímos todos num braseiro ardente,
perdemos a cabeça. Ele largou a batina, eu a peguei. Ele se
derreteu, eu me consolidei. Suponhamos: tu és socialista e tens
uma menina doente. Não acreditas, mas tua esposa insiste tanto
que a levas para fazer os primeiros noves sábados do mês em
honra de Nossa Senhora. Preparas a bicicleta, a merenda e
embora com a menina. Assim por meses seguidos! No final:
“Ficou boa, é curada!”. Tu não acreditas nos milagres, mas dás
um presente à Nossa Senhora: “Um bonito coração de ouro puro.
Mereceu”. A mesma coisa aconteceu com os tesouros do
Vaticano: os povos que os doaram se revoltariam se o papa os
alienasse...”.
109

4 – O sonho

Os meus jovens crescem, querem casar, ficar conosco.


“Duvido, pois temo que não consigam amar ao mesmo modo
filhos seus e filhos acolhidos. Vou a Roma pedir conselho. No
bar da estação, morto de cansaço, adormeço e sonho. Eu me vejo
na sala de espera do hospital com um dos meus jovens. Sua
esposa está para dar à luz. Chega o professor: “Um belo menino”.
Digo ai pai: “Vai vê-lo”. O professor, diz para mim: “Vai você
também que é pai antes do que ele, pois aqui se trata de uma
paternidade espiritual”. Um senhora com o menino sorri. Acordo:
“O difícil era entender qual é o vínculo que nos une: se
superamos o do sangue é possível aceitar os cônjuges, porque o
amor de Cristo une todos nós na paternidade de Deus. Se somos
todos filhos, somos todos irmãos” (DZR, 209).
A decisão de Ana faz o resto. Um dia, toda decidida, me diz:
“O evangelho me levou ver que para Deus todos os filhos são
filhos: quando a mulher pare sofre, mas depois é feliz não porque
nasceu seu filho, mas porque nasce um homem no mundo. Que
diferença faz se um menino nasce do meu ventre e o outro tu
entregas no altar? Não são iguais, não são de Deus todos dois?
Quem lhes dá a alma? Eu estou disposta a amar desse amor e o
meu namorado está de acordo”. No final de ’47 aceito as famílias
dos cônjuges. Nelusco e Anna se apresentam ao altar com quatro
filhos (27.12). Nasce a família nova, nascida não da carne, do
sangue, da vontade de homem, mas de Deus.
110

X - 1948: A Constituinte de Nomadélfia

No quente clima político engrandece a propósito o medo que


os comunistas, perdendo as eleições, provoquem a guerra civil.
Scelba monstra os músculos com desfiles de polícia e carros
blindados. O Vaticano ameaça sanções religiosas e recomenda ser
preparados a defender a fé com a força material, se necessário
(10.3). Marshall põe as ajudas americanas sob condição (20.3) e
um milhão de cartas dos EUA exortam a não votar o Frente
Popular. O papa aprecia os 18.000 comitês cívicos [cabides
eleitorais da DC] (8.2); no discurso pascoal anuncia: A grande
hora da consciência cristã chegou (28.3). Dizem que “Stalin está
obtendo o que Hitler tentou em vão”. Depois da Polônia,
Iugoslávia, Albânia, Hungria, Bulgária, Romênia, Cecoslovaquia
se pensa numa imediata ameaça vermelha à Itália, Grécia,
Finlândia, Coreia, países escandinavos. Aconselha-se o EUA
“um verdadeiro e próprio alagamento da Itália, França e
Alemanha com cereais e gorduras”. A política dos sacos de
farinha. A guerra fria a um dos pontos mais críticos. A Igreja
entre dois modelos de civilização em conflito mundial. O choque
assume um sentido messiânico: a escolha entre duas religiões. A
teologia oficial vê a bandeira de Cristo disputada entre duas
fileiras em luta, com Cristo ou contra Cristo; uma guerra
apocalítica entre o bem e o mal. Pio XII convoca os católicos
unidos perto dos partidos que se contrapõem às esquerdas. As
eleições marcam o triunfo da DC e a vitória da Igreja: 48,5%, o
Frente 31% (18.4). Padre Milani dirá a Pipetta: “Tive a desgraça
de vencer”. Para o fiel pe. Lombardi: “A vitória das armadas
cristãs è como uma nova Lepanto”, o triunfo da fé sobre o
ateísmo. Se uma norma proíbe o casamento entre cristãos e
cismáticos, não terá maior razão entre católicos e comunistas
ateus? O card. Ruffini apressa Scelba para pô-los fora da lei
(30.4). O Estado deve defender a verdade representada pela
Igreja, tutelando a fé dos fracos. Pluralismo e tolerância não
111

seriam virtudes políticas, mas fraquezas. Na Holanda, França,


Brasil, Chile, etc. se tomam medidas contra os comunistas. A
Itália recebe ajudas do plano Marshall de 668 milhões de dólares
(28.6). Para Togliatti se o país fosse puxado numa guerra
imperialista, estouraria uma insurreição a defesa da
independência (10.7). Ocupações de fábrica, greves, agitações
(14/16.7). Grupos armados rodeiam Genova, Turim, Veneza.
Saldo: 16 mortos, 200 feridos. De Gasperi pergunta no
parlamento se o PC não tinha tentado a insurreição (16.7). Scelba
ordena aos prefeitos de prender sindicalistas, exponentes do PC e
ex-partigiani (18.7). Em Magenta, uma bomba sobre a procissão
(31.8). Aumento dos preços (agosto). Reunião oceânica de
200.000 bascos verdes pelo 80° aniversário da Ação Católica
(10.9). Dossetti critica a política liberal do Governo (20.12). A
ONU aprova a Declaração dos direitos do homem (10.12).

1 – Não um, mas muitos fundadores


112

O campo torna-se o primeiro povoado da Cidade de


Nomadélfia: uma paróquia, uma vila com 40 famílias, 600
habitantes. Queremos nos organizar, fazer uma lei interna, obter a
aprovação. De 3 a 14 de fevereiro a campainha chama para a
assembleia constituinte, que discute os 64 artigos da Constituição.
Nasce o Estado evangélico dos livres filhos de Deus: uma
população fundada não sobre a raça, sobre o instinto das pátrias,
sobre confins inaturais, mas sobre a fé. Temos três ninhos: a
família, onde somos amados e se aprende a amar; o povoado,
onde se vivem as sensações de uma pequena cidade, na qual
todos se conhecem; a cidade, que satisfaz a exigência de uma
organização mais complexa: indústrias, universidades, hospedais,
navios, aviões. Aplicamos a mesma vitalidade ao povoado e à
cidade.
113

Abro os trabalhos: “A nossa missão é a conquista de um


amor heróico. O mundo precisa de obras fortes e nós nos damos
uma lei, que nos une em consciência. Tenho feito um esboço e a
apresento de modo que, invés de um fundador, temos uma massa
de fundadores”. Nomadélfia vive para o triunfo da justiça sobre a
terra, santificando todas as formas da vida humana. Um povo
livre das coisas, usa o necessário e repõe a riqueza na sua união.
Todos os bens são em comum. O Senhor nos chama para viver
um costume sobrenatural, para plantar sobre a terra a Cidade de
Deus, uma utopia realizada. Ridamos a família aos abandonados,
que não podem ser demitidos por nenhum motivo. Para se fazer
cidadãos precisa ser de maior idade, voluntários, católicos
praticantes e ter a vocação para uma missão heróica. Podem fazer
parte famílias, solteiras, solteiros e sacerdotes. Também as
solteiras exercitam a maternidade, acolhendo abandonados:
“Como debaixo da cruz havia a mãe, assim as mães de vocação
oferecem a Deus suas carnes, para que possam vibrar como se os
filhos nascessem delas”. O sacerdócio será conferido a um
ancião, não terá lugar de comando e ensinará com o exemplo. É
um irmão e assim desaparecerá a divisão entre clero e povo. O
trabalho é um ato de colaboração a Deus criador. A cultura se
adquire com sobriedade através das experiências da vida:
conhecer as coias significa revivê-las. Apoiaremos toda iniciativa
de justiça pelo povo.
Do evangelho vivido emergem novas perspectivas:
1- ser cristãos quer dizer também ser heróis. Tornar-se
nomadelfos é uma vocação particular, porque nos empenha ao
heroísmo. O emigrante faz sacrifícios extraordinários pela família
e nós por um motivo superior. 2- A vocação comunitária é inata
no cristão. Os religiosos a vivem em grupo, nós como famílias. 3-
Somos um povo que vive a integralidade da proposta cristã,
aplicando o evangelho a todas as expressões da vida.
Uma onda de entusiasmo invade a cidade. Dopois de uma
noite de oração celebramos seu batismo, empenhando-nos em
viver o mesmo relacionamento da família de Deus: Tudo que é
meu é teu, tudo que é teu é meu. Somos chamados a ser unidos
não por um mandado, porque Jesus, conhecendo os nossos
egoísmos, não ousou impô-lo, mas o invocou do Pai como um
114

dom: Que todos sejam perfeitos na unidade. Também a família


renasce em Cristo segundo seu vínculo, que não é mais da carne,
do sangue, da vontade de homem, mas de Deus.
“Queridos filhos: depois de muitos sacrifícios assinamos a
lei da cidade com o sangue dos nossos irmãos mártires. Negamos
aos instintos o direito de recusar o amor aos irmãos, a
maternidade a quem a perdeu. Um menino disse: “A maternidade
é acima de tudo”. Quem nunca chamou Mamãe, venha aqui e a
chame. Daqui se corre a procurar quem é sem, gritando, porque
toda mulher que tem um útero, um seio, um espírito feminino
deve sentir a maternidade de modo que a nenhum menino seja
negado o direito de dizer Mamãe. Dando aos meninos
maternidade e paternidade, damos ao mundo a fraternidade.
Somos irmãos, vivemos a justiça, dando a cada um o seu: ao
irmão, os irmãos. Há uma única maneira de pregar esta lei: atuá-
la a todo custo. Desse momento não nos chamaremos mais OPA,
mas Cidade de Nomadélfia. Aqui o mundo é excluído, se vive a
lei do homem redimido, a sua verdade mais profunda: ser irmão”.
Os assinantes são 368.

2 – Sonhar com coisas grandes

Uma cidade tão pequena me faz sonhar com coisas grandes!


Como o camponês, que joga minúsculas sementes e faz uma
grande colheita. Gostaria de lançar esta semente no mundo, para
que nasçam mil Nomadélfias: “Se invés de 500 fôssemos 5, 6
milhões poderíamos ser úteis à paz no mundo com grandes obras
de justiça. Muitos se interessam por nós e ficam admirados,
porque acolhemos abandonados. Talvez, sem saber, muitos
procurem esse caminho” (3.3).
A quem me chama de sonhador respondo com uma
antecipação do que poderá fazer uma cidade do amor: numa só
vez acolhemos 100 refugos do orfanato, aos quais uma cidade
sagrada como Roma não sabe devolver a família. Chamam de
refugos, porque as famílias adotivas os recusaram, restituindo-os
ao instituto. “Esse fato suscitou emoção seja no Vaticano seja em
outros ambientes” (8.3). A lei não concede, mas 7.000 pedidos de
admissão premem. E assim decidimos entregá-los também para
115

as solteiras entre 16 e 20 anos de idade. A constituição reza:


“Podem ser dados filhos adotivos às moças, que deem a certeza
moral de não casar senão com quem seja disposto em
compartilhar sua missão”. A versão de Norina: “Nós mães nos
rebelamos. As moças têm o direito de viver sua idade. Padre
Zeno não gosta de jeito nenhum. Infelizmente duram pouco, os
sacrifícios são superiores às suas forças”. Algumas delas, como
Ana Maria, superam a prova. Um dia briga com sua mãe. “Eu
vou dar um jeito”, digo. Ela chora. Vejo os nove filhos que eu lhe
tinha entregue: bem colocados, lençois brancos, lindos. Observo.
Digo a sua mãe: “Esquece, aqui há Jesus Cristo!”. Ao invés de
puní-la teria agradecido. É verdade, se rebelou, mas estas coisas
passam; se ama os filhos, quer dizer que Jesus vive nela. Vocês
mulheres fizeram um paraíso na terra, portanto Jesus se revelou a
vocês e faz estas coisas de Céu. Eu não sei como agradecer,
porém ele, quando vocês irão lá, sorrindo, te dirá: “Ana Maria:
foste uma teimosa, mas eu era sem mãe e tu te tornaste minha
mãe”. Pedimos perdão e ficamos alegres, porque o Céu venceu
em nós. E eu experimentei uma alegria imensa” (9.12.’49). O mal
é proporcionado, o amor desproporcionado. O primeiro
mensurável, o outro incomensurável. Fascinado pela capacidade
de amar de uma moça de dezesseis anos, quero dizer: “Daqui a 20
anos no máximo os casos mais desesperados serão todos
resolvidos. Fecharemos para sempre os orfanatos, que desonram a
civilização cristã. Gastam-se bilhões para criar assistidos; será
melhor gastá-los para criar um povo de benfeitores da
humanidade” (a mons. Carrol, 28.9).
Na nossa casa, com as bocas aumentam as despesas. Ponho o
problema ao papa, pai de todos: “Somos 800 com 40 milhões de
dívidas. As almas prontas a serem mães são tantas que permitem
dobrar os filhos, se dobrarem também as ajudas” (24.5).
No campo da Cidade de Deus não se fica longe do povo,
pois está no coração. Para mim é como o filho de uma mãe
solteira: lhe falta o pai. Qual atitude temos com ela? Coitadinha,
está assustada! Mas se vejo nela a mãe, com certeza a acolho
como uma Nossa Senhora! Não é um hostensório a mulher que
leva no ventre um filho? Veio uma moça com dois filhos tidos
com seu pai. Humilhada, acabada. Quem pode dizer-lhe que Deus
116

a ama como um pai? Jesus chora nela. Abrimos coração e casa.


Lentamente entenderá que os homens são pecadores e Jesus dá a
vida de novo.
Reuno os jovens: “A vida é uma luta entre o bem e o mal.
Quem sabe vencer é um santo, quem perde fica escravo. Eu não
quero ser o patrão de vocês, mas pai”( 24.9). Um deles me
atenta. Foge com a bicicleta nova, a vende, gasta tudo, volta.
Uma repreensão, uma outtra bicicleta, usada. Antes de fugir pede
emprestados alguns relógios. A polícia o traz de volta sem
bicicleta e sem relógios. Uma outa bicicleta. Não foge mais, se
torna exemplar.
Na véspera de grandes decisões volto à luta: “Falo
demoradamente com Jesus, não entendo porque não possa fazê-lo
com seu vigário. Sou um megalômane que quer se satisfazer com
tanta honra? Quando Vs. Santidade fala de justiça, que coisa
entende? Os fatos desmentem o que diz. Os nossos pais erraram e
Vs. Santidade teme reconhecer os erros. Exemplo feio para os
filhos. Se as guerras nascem das injustiças se pode atirar sobre
estas? Está certo afirmar que não é tarefa da Igreja a organização
social. Mas não se pode dizer que os leigos católicos possam
aceitar, aliás defender com força sistemas injustos e que o papa e
o clero abençoam quem explora o sangue dos irmãos. É caridade
isto?”.
Em maio pe. Turoldo prega em Carpi. Vem me conhecer,
porque lhe referem que sou “um homem perigoso, ou de qualquer
maneira, exagerado: um louco utopista, um perturbador com o
qual é bom ter cuidado”. Percebe sobre os muros de Carpi uma
escrita estranha: “Abaixo os padres, exceto padre Zeno”.
Perceberá a sua custa que comigo se viaja na borda dos
precipícios e que repreendo logo na primeira ocasião: “Lembra,
que quando se compartilha uma obra, se compartilha até o final e
não se pode ficar olhando. Devem-se aceitar todos os riscos,
senão se prega e não se pratica, como fazem vocês religiosos”.
Assim dizendo, me olhava como fosse de uma Igreja diferente da
sua”.

3 – A audiência
117

Imaginam um padre camponês nos corredores do Vaticano?


Forros pintados, tapetes vermelhos, passos felpudos, guardas
suíças como estátuas, monsenhores sérios que falam de carreiras.
Não me sinto a vontade num mundo sem choro de crianças, sem
meninos correndo. Mas esta é uma habitação ou um cárcere?
[Mais adiante direi ao papa que nós o liberaremos]. “Na espera,
estou em companhia da estatua de São João Batista, que me
sussurra: O Machado já está na raiz. Direi isso ao papa? Fazer o
que? Tu sabes , Senhor, eu sou pequeno demais para entender o
teu voo. Por que o papa me recebe? Não consegui me aproximar
dele por caminhos mais importantes e, graças a refugos [filhos
abandonados] foi um jogo. Quem irá brotar a fonte da justiça? Eis
a razão desta audiência” (15.3). Chega o papa. “Santidade, me
deixa usar o telefone? Se eu fosse papa chamarei os politicos, De
Gasperi, Scelba: “Ou fazem isso e aquilo ou censuro vocês”. A
revolução começa pelo alto”. “O papa não pode fazer estas
coisas. Se fizesse, não seria obedecido. Você sim, pode fazer.
Faça você a revolução, é somente pelo baixo que se pode fazer. O
papa está com você. Faça, faça…”. Sobre esta ordem fundarei o
restante da minha vida. [Como conciliar isso com as conhecidas
simpatias do papa para pe. Lombardi? Eu prego a cruzada da
justiça, ele a cruzada da bondade. Eu falo de revolução, ele de
reforma. Cf G. Zizola, Il Microfono di Dio, Milano, 1990,
161ss, 164ss].
Forneço ao papa as minhas referências: os refugos podem
revirar tudo. “O inimigo quer a destruição da civilização cristã.
Somente as forças do Céu, que se manifestam através de
inocentes, podem mudar as cartas na mesa. E aquelas massas de
instrumento do ódio, podem, ao sopro da inocência, transformar-
se numa cruzada da justiça ao grito: Somos irmãos. As hordas
pagãs estão às portas. Que coisa se pode esperar? Talvez uma
chuva de bombas atômicas. Da mensagem de Carlos Marx até
hoje o socialismo nunca recuou. Se tivese nascido um santo agora
seu grito de justiça teria cristianizado o mundo. O que esperar da
Itália? Uma contra-revolução na fraternidade universal. Estas
coisas somente podem ser feitas pelos mais próximos de Jesus no
estado de não sabe onde reclinar a cabeça. Não é a primeira vez
que na história, filhos muito humildes, do estrume, foram
118

acolhidos pelo papa e com ele salvaram a Igreja. Nomadélfia


pode ser uma centelha, aliás a bomba atômica, da qual Jesus quer
se servir para dissipar aqueles sistemas, que o amor cristão no
unum superou. No colóquio irei expor os sinais de Deus” (15.3,
enviada?).
Os refugos me dão a coragem de fazer sonhar o papa
conosco: “As obras da Igreja recuam. Russia e América se
contendem o domínio do mundo. Por isso a necessidade de uma
revolução, que ponha a Igreja no seu lugar diretivo no coração
das massas, sedentas de justiça, dos pauperes. Não pode ser
considerada conservadora; é mestre de vida, portanto deve ser
amada por aqueles aos quais a vida foi negada. Levá-la de novo
no coração das massas revolucionárias é a vocação mais
prepotente dos nomadélfios. Eles se multiplicam em proporções
impressionantes. Eu estudei o voo de Deus: em 5 anos
deveriamos ser não menos de 10 mil e em dez não menos de 100
mil”. Que reação procovam mensagens tão audaciosas? Eu falo
em nome de 800 res nullius, ele tem a disposição estudiosos e
expertos, recursos financeiros e concordatas. Se um agisse com a
lógica do mundo não diria estas coisas por medo de ser
considerado um exaltado. Mas a minha fé não me permite
proceder com cálculos humanos. Eu sou de uma outra massa,
aquela dos refugos. O meu sonho abate os confins do tempo e do
espaço, parece-me realizável aqui e agora. Então vejo os
povoados de Nomadélfia que invadem o mundo, juntando outras
populações, as quais naõ irão resistir à sedução do bem e
quererão viver como nós embora não em forma comunitária. A
minha idéia fixa: devemos fazer coisas mais bonitas daquelas que
fazem os outros em modo que, vendo, fiquem atraídos. Eis o
poder da fé! Tinha oferecido meu sonho às massas, o refutaram.
Joguei-me totalmente na realização de um mini-sonho:
Nomadélfia. Agora ofereço ao papa, como um protótipo: se dá
certo em miniatura, se pode aplicar em grande escada, não é
verdade, Santidade? Nem todos devem viver como nós:
“Ninguém é obrigado viver em comunidade, mas todos devemos
ser justos e solidários nas obras, amando-nos como fez Cristo”
(2.9.’53).
119

Está à venda uma grande propriedade. Se o papa comprasse


para nós, não seria um sinal que está conosco? “Quais são as
acusações dos comunistas? O problema social não solucionado.
Tem razão? Não. Mas revelam uma intuição: somente a Igreja o
resolverá. Por isso a necessidade que o papa escute o grito
daquelas massas, vítimas da demagogia. O papa deve se jogar
nelas através de nós, oferecendo-nos a Fazenda Grupo para ai
fundar Nomadélfia. E assim poderemos acolher mais 6 mil
abandonados. Seria uma alegre notícia: “O papa entrou no
coração das massas comunistas para torná-las garantes da
civilização católica”. Com Nomadélfia deveria surgir um
movimento nas massas, fascinadas pelo mito vermelho, para tirá-
las do comunismo e conduzi-las para outras realizações sociais no
seio da Igreja. Se a religião católica fosse uma doutrina ou um
remendo a ninguém entraria na cabeça que deveria salvar o
mundo. O Senhor não pode aceitar que seja reduzida a um fato
privado, ou, como acontece na América, seja entre as religiões
que fazem bem ao povo; deve retornar a ser a alma da civilização,
tornando-se santa revolucionária entre aqueles revolucionários.
As obras católicas se resolvem ou com um esparadrapo para
males inevitáveis ou com zelo, que prega com palavras a doutrina
de Cristo, mas nenhuma obra da Igreja é a nova sociedade, a sua
verdadeira revolução. Surgiram em outros tempos anacoretas,
obras de caridade, mas não eram propostas de povo. Nomadélfia
è um povo por sua natureza apostólico, porque nasce do amor à
Igreja. Os comunistas analisam e exclamam: “Nós não podemos
fazer um comunismo como o de vocês, porque não sabemos
trabalhar um pelo outro”. “Venham conosco e aprenderão”. A
guerra e a revolução podem ser paradas somente por um milagre
e o único que pode comover o mundo é uma nova sociedade de
fraternidade cristã” (28.3).

4 – A invasão da prefeitura

Eu não analiso a injustiça social sentado, toco nela nas


estigmas dos filhos. Em um ano, 500 acolhidos. E em que
condições! Desnutridos, retardados, 15 tuberculosos, 130 a risco.
Na idade de 4, 5 anos nunca moveram um passo. Vem da Itália
120

toda e a administração sanitária local não consegue prover.


Recorro à POA, à Assistência pós-bélica, às ajudas
internacionais, à E.C.A., à Children World Community Chest de
Londres, à esposa de Franco, Senorita Carmen. Resultado?
Migalhas. O Vaticano manda uma ajuda: “O Santo Padre
expressou sua consternação vendo a necessidade em que vive a
Obra” (5.6). Magra consternação, dá cem mil liras! [A Santa Sê
não poupa ajudas financeiras à Giac pela propaganda
anticomunista: 30 milhões em ’47, 120 em ’49. F. Piva, La
gioventù cattolica in cammino, Milano, 2003, 164ss]. Que sabem
os clérigos do Calvário dos sequestros? Uma sequela de Cristo
desconhecida pelos místicos mais refinados. Com os vinte anos
de guerra fria, a AUSA duvida das iniciativas não abertamente
anticomunistas. Luto entre cheques sem fundo e 300 menores
para prepará-los ao trabalho, entre mil queixas dos fornecedores e
as penhoras. A minha exasperação escandaliza. Dizem que é
contraproducente pedir com arrogância, que me queimo com a
minha altivez, que os meus excessos incomodam, que quem fala
de justiça é um comunista, que a caridade se pede com as devidas
maneiras… É mesmo isso que rejeito. Não peço esmola, mas o
reconhecimento de um direito. Peço insistentemente às entidades
de assistência, peço audiência ao Presidente do Conselho e da
República. O choque com a inércia da máquina estatal me dá
raiva: “Ao menos que sejamos considerados iguais aos varredores
de rua, enquanto juntamos o lixo humano da sociedade! O Estado
nos dê a justa paga e nós a usaremos para salvar os filhos mais
estragados. Venham em nosso auxílio, o Governo não nos deixe
morrer de fome. A sociedade não quer considerar-nos irmãos?
Ela nos alimente como escravos, que a libertam dos sem famílias.
Em vez de construir novas prisões, favoreça novas famílias de
Peq. Ap.” (à DC, 29.5). Apelo ao on. Dossetti: “Estamos
passando fome” (2.6); “Procurei individuar as viúvas e os
pequenos em aflição. Jurei para Deus defendê-los,
compartilhando sua sorte, pedindo seus direitos” (5.6).
Tocado o fundo, não nos resta que recorrer às maneiras
fortes. Anuncio isso ao ministro do Interior: “A fome me obriga
levar os Peq. Ap. na prefeitura. Julgamo-nos credores do Estado
pelo mínimo de L. 48.227.500” (5.6). Benedetti conta isso no
121

Europeo: “De Gasperi tinha prometido 50 milhões. Nunca


chegaram. Um dia falta comida. Padre Zeno reúne os seus,
entram nos caminhões. Em Modena 700 nomadélfos se colocam
em frente da prefeitura. Quando lhe dizem que o prefeito está
muito ocupado, convida um funcionário aparecer na janela. “Vê
aquela multidão lá? Se eu fizer um sinal invade a prefeitura”. Dez
minutos depois o prefeito chama Roma e Scelba faz promessas.
Padre Zeno: “Não comemos promessas! Quero saber quanto
dinheiro posso ter logo” (13.11). “As mães trouxeram pinicos. Se
tivesse nascida uma confrontação com a polícia estavam
dispostas a se defender …”. Na volta, multa por excesso de
passageiros. “Telefonem ao prefeito”. Resposta: “Deixem ir
embora! Se voltarem devemos dar alojamento e comida”. Dizem
que Scelba ficou sentido. Como pode tolerar que um padre
subleve o povo contra um governo católico? Agora exige saber
com “quais meios financeiros proveremos no futuro”.

5 – No epicentro do comunismo

Escrivo ao primeiro Ministro, De Gasperi: “Por que as


massas correm para nós? Porque, mesmo inscritas no comunismo,
não são comunistas. Naquele dia, em que vendo o
desenvolvimento de Nomadélfia, entenderão que justiça e
fraternidade se alcançam somente realizando o amor, verão que o
comunismo é um engano. Por que não pensar que foi a
providência que suscitou Nomadélfia no epicentro do
comunismo?” (16.11). Proponho a Dossetti, meu conterrâneo:
“Você e eu não podemos fazer nada pela Emília? Terra árida de
Cristo ou terra de promessas? Estas massas comunistas amarradas
a seu mito, são ignorantes, ateus, ou nelas há um sonho de
reforma social? Oito milhões de votos de irreduzíveis
sabotadores, que a democracia teve que subir… E se procurem,
sem saber, o sejam perfeitos na unidade? Esteja tranquilo, o
encontrarão…” (7.5).
A cidade de Carpi, a vermelha, está em agitação: é em cartaz
pe. Lombardi (16.6). Os muros da cidade estão cheios de insultos
ao jesuíta que ofendeu os partigianos. “Muita polícia! O povo
observa os carros blindados: “Como se faz a dizer algo contra um
122

Cristo tão armado?”. Os ricos gostam: “Veio para dar cacetadas


aos comunistas!”. “Não, quer fazer a Cruzada da bondade”. Eu:
“Mas o que é esta bondade? Precisa fazer as contas! Uma religião
que, feitas as devidas exceções, faz nojo. Não se desce ao prático.
E seria isso um de ponta? Temos os de ponta e os de cauda, tem
para todos. Ele diz: “Os ricos devem dar”. Mas ouçam: “Se quem
deve dar é um e quem deve receber são mil, é fácil dizer: “Visto
que não estás disposto a dar, nós somos dispostos a receber …”
(gen. ‘51).
Em poucos meses, de 280 a 780 filhos. O entusiasmo me
leva desenhar no papel o crescimento da cidade em proporções
geométricas. O sonho se amplia, o campo, invadido de hóspedes
e curiosos, é pequeno. Como dar aos filhos um trabalho que não
seja comprado ou vendido como mercê? Pô-los debaixo de um
patrão seria um suicídio moral. “Estou tentando a aquisição de
uma fazenda. Se conseguir, iremos para novas conquistas. Os
homens lutam para procurar a justiça, porque se fizeram escravos
das injustiças. Mas em seu coração há uma semente de valor
infinito: a imagem de Deus os leva a desejar a justiça divina, que
ao mesmo tempo, é amor. Não existe justiça sem amor, quem não
ama está morto” (6.12).
“Meu Jesus, corro levado por um teu misterioso plano de
redenção. Sou pequeno, recalcitrante. Teu vigário pede uma
reforma social, prega isso aos católicos e estes não conseguem
nada” (4.10). “O deles é um paganismo clerical, que trai Cristo a
cada passo. Um mundo de confundidos e de desgraçados, dignos
de serem enforcados pelos seus iguais subversivos, os que
aprenderam a serem mundanos na incoerência entre a doutrina de
Cristo e a sua aplicação. Que o Céu amaldiçoe esta mentalidade”
(28.8).
“E eu o que faço? O papa não somente me animou, mas me
pediu para fazer uma santa revolução. Eu continuo justificando-
me com a incompreensão dos amigos” (4.10). Encontro
resistências também no alto, sobretudo no alto. Padre Marchi me
informa: “As nossas insistências no departamento do ministro se
tornaram tão inoportunas, que ameaçam ser contraproducentes.
Apesar das garantias do prefeito de Modena, persiste uma
atmosfera de desconfiança a respeito do uso do dinheiro obtido,
123

com consequente incerteza para novas concessões” (24.7). Entre


os meus opositores também a ANPI, que me acusa de ter
subtraído ao povo os 80 milhões dados pela AUSA (26.2). Na
outra margem há quem nos admira. O escritor inglês, Frank
Baker, escreve: “Sou orgulhoso de possuir os livros de padre
Zeno. Um dia serão de um valor excepcional. A minha admiração
é para ele. Digam-lhe que acendeu um fogo, que o mundo nunca
mais poderá apagar. É o homem da grande fé, o homem de que o
mundo precisava” (11.12).

XI – 1949: “quando o pai se atira contra os


filhos”

1949: ano do choque vermelho. As fotografias do primaz da


Hungria condenado e humilhado pelo regime comunista fazem a
volta do mundo. Nos países do Oeste vários eclesiásticos são
presos. Se tem a impressão de um plano sistemático para destruir
124

a Igreja católica, transformando-a em muitas igrejas nacionais.


Nesse clima amadurece a excomunhão dos comunistas (16.7),
aviso claro da incompatibilidade entre catolicismo e comunismo.
Uma espécie de ameaça para os movimentos europeus de
esquerda. Grande é o destaque mundial. A imprensa de esquerda
evidencia: por que perante o fascismo o papa respondeu com o
silêncio e reage ao comunismo com a condenação? Também
Mons. Tardini se maravilha pela pressa do Santo Ofício.
Na Valpadana a repressão mata seis grevistas, diversos
feridos (maio-junho). Primeiro teste atômico russo (14.7). A
Igreja responde com a Ação Católica na praça (20.2), Nossa
Senhora Peregrina, o microfone de Deus. Manifestações com
mortos e feridos pela assinatura do Pacto Atlântico (4.4). O PSI
junta seis milhões de assinaturas contra a NATO (12.7).
Agitações pela terra e a ocupação (verão). Scelba prega aos
trabalhadores católicos: devemo-nos armar contra os comunistas
“até os limites extremos das nossas possibilidades” (15.8). Emana
uma circular para o controle do costume de banho. A Fiat elimina
os conselhos de gestão (3.8). Ocupação de terras não cultivadas
no sul: em Melissa 3 mortos, 15 feridos (31.10). Mao proclama a
República popular chinesa (1.10). O Plano Marshall destina à
Itália 403 milhões de dólares e o Congresso americano destina
fundos para armar os países da NATO (outubro). As sinistras
organizam os partigianos da paz. Acaba a guerra civil grega com
a entrega dos partigianos comunistas (16.10). Il Popolo afirma
“que o sistema americano é o melhor do mundo, duvidar é uma
heresia” (14.11). Dois trabalhadores mortos em Torremaggiore
(29.11). O secretário de estado EUA é preocupado pela tensão
social no sul (5.12). No discurso natalino Pio XII abre o ano
santo.

1 - O Cefarello

O dia da Epifania nos traz duas fazendas como presentes:


Caprarecce e Rosellana, 27 km. quadrados, 1400 hectares entre os
Montes Leoni e a estrada para Siena, oito km. de Grosseto.
Bosque para 5.500 toneladas de lenha, 90 hectares cultiváveis,
125

300 bonificáveis, estábulo para 50 cabeças. Na Maremma


amarga, terra de varíola e malária, bosques com muitas árvores.
Terreno ingrato, pedregoso. Que importa? É a porção de terra
prometida , que Deus mediu para nós. Os que passam nos
consideram sonhadores. Nós não pretendemos nada dos outros:
“Somos chamados a fundar uma cidade de santos, não para
transformar o mundo numa cidade de santos” (27.8.’53).
O Cefarello (m. 172) é escolhido pela posição panorâmica,
tem muitas pedras e madeira. O projeto prevê 18 casas para 650
pessoas, agências, escolas, salão. Orçamento: 206 milhões. Por
exigência de espaço vital e de trabalho parte da comunidade se
transfere logo, porque “sobre Fossoli paira a ameaça do fantasma
da fome” (14.1). Muitos filhos, vindos de ambientes de
constrição, têm necessidade de espaço para recuperar o gosto da
liberdade. O trabalho da terra é o mais apto, porque a natureza
com seus limites os acalma e forja. Um deles conta: “Não
possuímos nada, somente tanta fé em padre Zeno. Para a casa as
curtinha, para a iluminação as caixas de graxa de sapatos com
pavio a óleo. Mesa pobre, louça de alumínio, mesas e cadeiras de
tábuas. E muito frio. A cozinha debaixo de um alpendre de
chapas, a escumadeira na mão de Franco, que cuida dos mais
moleques. Responsável, o famoso poeta-arquiteto Danilo Dolci:
dois metros, robusto, rápido. Numa noite de furação a tenda cai
em cima de nós. Todos gritam conselhos que o vento leva
ululando”.
O Cefarello se alegra com a chegada da primavera e de
outros grupos. O canteiro da cidade de Deus se anima. Três
tendas cheias de beliches, três grupos, três turnos para as
refeições. Queremos construir, custe o que custar, a casa para
quem nunca teve casa. Para fazer cal precisamos de duas turmas,
uma para detonar as rochas com as minas, a outra para pegar
lenha. Juntamos com arame e cada um joga para frente sua
meada. Um dia Mário lança em alto demais, pulando os fios de
alta tensão. Quando lhe cai em mãos, um clarão. A morte tinha
descido para pegá-lo (7.3.’53). Dizia de si mesmo: “Nasci mal e
morrerei pior”. Tinha 20 anos e não sabia quem fosse seu pai e
sua mãe. Somente a morte o conhecia bem. A noite é posto sobre
126

a mesa de pingue-pongue. Por vários dias o vale não ouvirá os


nossos cantos”.
Começam chegar avisos de insolvência (23.3). Estamos nos
tornando vítimas do amor que não consegue dizer “basta”? A
cidade dos meus sonhos é decepada ao nascer pela tempestade
das dívidas. Quando volto, sento sobre os alicerces inacabados.
Olho para longe, como o agricultor, que na glande vê o carvalho.
Não preciso vê-la realizada, sinto-a viva em mim. “Sou pequeno,
muito pequeno em frente a coisas maiores do que eu. O pequeno
navio tem sua rota e nada teme nem a fome, nem a miséria. Vai,
porque é levado por Deus” (1.2).

2- Jornalistas e visitadores

Vou na Inglaterra angariar fundos [5.3-5.4], a imprensa se


interessa por nós. O diretor do Times: “Se Nomadélfia consegue,
a Itália será de novo o centro da civilização” (The Observer,
24.3). Frank Baker parece falar de uma fábula: “Onde os homens
vivem felizes. É demais esperar que aqui, no centro da Europa
ferida, a vida à qual muito de nós almejam é uma realidade sobre
esta terra? Porque isso é o cristianismo na prática, a única válida
resposta que pode ser dada à Russia” (Everybody, 26.3). O
arcebispo de Londres: “Não é Nomadélfia que precisa da
Inglaterra, mas a Inglaterra de Nomadélfia”.
Nos dias de festa os ônibus chegam e partem de Fossoli
cheios de turistas da caridade e de curiosos. Quem duvidoso,
quem em crise, todos confusos. O escritor Dino Buzzati adverte:
“Pensem duas vezes antes de vir, pessoas que se sentem em
ordem com a consciência e creem de viver como bons cristãos:
uma vez aqui, muitas de suas persuasões poderiam sofrer um
golpe feio. Padre Zeno: casaco cinza, calças pretas, pequeno
boné. Fuma una macedônia. É muito simples. Basta que fale e se
sente a força que está por baixo, a potência quase física e brutal
da sua fé em Deus. Nós lhe falamos pessoalmente, como a um
padre qualquer, mas não pode ser que daqui a cem anos a sua
figura, engrandecida pela agiografia oficial, sem casaco nem
boné, suba os altares de São Pedro, ao som do órgão, numa
grande aureola de ouro? Diz: “Jogar tudo numa carta, que se
127

chama Jesus Cristo”. Não poderia, assim para dizer, ser um


santo?” (Corriere della Sera, 12.5). Pe. Mazzolari escreve:
“Talvez não haja nada de novo em Nomadélfia: há somente
alguém que pega o evangelho seriamente” (Adesso, 30.9).
Turoldo: “Nomadélfia é um exemplo de como se pode pegar o
evangelho ao pé da letra e uma desmentida contra os que pensam
que a palavra de Jesus seja uma utopia” (21.10). Santucci: “Padre
Zeno fala com a corda no pescoço: em vinte anos é o homem
mais endividado da Itália, porque ser pai dos filhos de ninguém
custa um número incrível de milhões. As prestações vencem, a
justiça humana está para engolir uma cidade extraordinária que
podia ser, quem sabe, o fim das guerras, do comunismo, do
capitalismo” (Corriere della sera, 7.11).
Em maio um grupo de milaneses, guiado por pe. Turoldo,
visita Fossoli: “Um grande impacto, violento. Havia a senhora
Pellizzi, a Cederna, a Valerio, a Castellini, ficaram tão abaladas,
que deixaram suas joias”. Em S. Carlo al Corso nasce o Comitê
em prol de Nomadélfia presidido pela condessa Nini Pirelli. Elas
me propõem uma loteria de beneficência, mas eu não aprovo que
um dê 100 por uma obra boa para vencer mil. Será a providência
dos burgueses, não a minha. Nomadélfia na boca de todos, recebo
muitos convites: na reunião dos Servos de Maria (8.10); na
reunião da UNESCO pela infância onde é dito: “Se Nomadélfia
se desenvolverá, a l’ONU fornecerá territórios” (Bruxelles,
12.10). No congresso de pedagogia na Universidade Católica de
Milão, falo depois de Gonella: “Senhor Ministro, você disse uma
besteira: a lei nasce do costume. Não, é o costume que nasce da
lei. E’ contra a fé. A religião não se ensina nas escolas, mas com
a vida. Suponhamos: vou em sala de aula em pleno inverno e
encontro os meninos descalços, malvestidos e outros cobertos
com peliça, bem alimentados. Um pede esmola, porque tem o pai
doente. O outro…” e enumero muitos problemas. “De qual Deus
Pai posso falar com todas estas diferenças, qual religião posso
ensinar?”. Um aplauso e o congresso fracassa (9.9).

3- Uns ricos entram em crise


128

Milão se interessa seja das nossas necessidades, que das


ideias. Falo no teatro Angelicum: “Não deem esmola, porque dar
esmola a Cristo significa receber surpresas não boas. Com a
caridade, se dá, com a justiça se è, se compartilha. A primeira faz
benfeitores e beneficiados, a segunda irmãos. Muitos não teriam a
coragem de esfaquear a Eucaristia, cuspir em cima dela. Todavia
toda vez que ofendem um abandonado, não pensem em fazer um
mal menor” (25.5). No restaurante Tantalo o presidente do
Rotary Club declara: “Estando em Nomadélfia é como estar em
frente a uma explosão de muita alegria ao ponto que também o
mais pessimista se sente vencido e espera no homem”. E eu: “Há
quem se queixa que temos muitas dívidas. Sim, mas também
muitos créditos para com Deus”. Nos nossos créditos só acredita
Deus, não os bancos nem a autoridade civil e menos ainda aquela
religiosa. E eu culpo a providência, que nos deixa nas dívidas,
para dizer: “Gente de pouca fé: não sabiam que eu estava no seu
barco?”. Quantas vezes a tentei, até preferir os rapazes pelos
quais ninguém paga a mensalidade!
A semente lançada vinga. Uns ricos, como a viúva Pirelli,
vão totalmente em crise até suscitar contrastes em família por ter
dado a sua casa em troca da fazenda Rosellana para nós. “Eu a
convido ao bem como faço com todos, porque todos devem
restituir a Deus as coisas de Deus. Nomadélfia não precisa da
fazenda, mas saber se ela ama do mesmo amor. Em Milão joguei
a minha carta sobre ela. E fico esperando se Deus joga sobre
mim” (14.6). A Nini explica a seu pai: “Em mim não há a menor
presunção. Enquanto fazia o negócio para padre Zeno, pensava:
que besteira estou fazendo? Nada de sentimentalismos, sei de ter
feito uma coisa certa” (29.9). Eu também escrevo a Alberto
Pirelli: “Os condenados desde pequenos à prisão estão se
segurando entre si como irmãos. Esse acontecimento comoveu
sua filha. Foi ela, de sua espontânea vontade, que nos propôs o
negócio da fazenda; depois de ter experimentado seu ato de fé,
aceitei”.
Alguns benfeitores, como miss Brindley, se queixam pela
nossa falta de gratidão: “Eu sei que a idéia de Nomadélfia é uma
grande idéia: mas quereria que não tivessem aquele complexo de
superioridade para o resto do mundo. Eu não posso conceber a
129

idéia de receber tudo como um direito e sinto-me desiludida,


porque fui verdadeiramente entusiasta…” (4.8.’50). A Pirelli
compartilha, mas com ela tenho mais confiança: “Sei que todos
em Nomadélfia não somente são reconhecidos ao Comitê, mas
admirados. Se não cumprimentam é porque sentem-se unidos por
uma fraternidade, que exclui as saudações necessárias entre
forasteiros. Já sabemos que nos queremos bem, por isso nos
angustiamos um pelo outro. Ela diz que julgamos vocês “como
pagadores de dívidas e mais nada”. Diz pouco? Quem paga as
dívidas? Ou pai, ou a mãe, ou o irmão. Agradeceremos quando
vocês forem escrever que não se interessam mais por nós. Para
mim é uma santa educação não agradecer” (julho ’50). “Nós
somos de poucos cumprimentos. É a injúria de um mundo que
nos oprime, que torna áspero o perdão. Os rapazes trabalharam as
terras, por isso ver sequestrar os mantimentos é causa de
mortificações superiores às suas forças. Se fóssemos santos, tudo
se resolveria com doçura, mas, mesmo querendo ser, muitas
vezes somos mundanos defendendo idéias e posições” (4.8.’50).
Também a condessa não mede palavras: “O Comitê não financia
o estudo fotográfico quando na casa de cura falta o necessário.
Parecem-me propostas de imperdoável inconsciência e nunca as
apoiaremos” (a padre Marchi, 22.9.’50).

4 – Excomungar os pobres

O atentado a Togliatti joga outras sombras sobre o quadro


político italiano (14.7). Scelba aumenta a repressão. Roma
excomunga os comunistas (16.7). Coincidência? O inesperado
decreto suscita maravilha na opinião pública, perplexidade no
clero. Na Emília é entendido como uma declaração de guerra. No
retiro espiritual aos servitas de Milão, comentarei:
“Chegamos a excomungar os pobres da Itália! Entre os
comunistas há muitas pessoas sem meios, que construíram
estradas, casas, igrejas, rádio através da qual receberam a
excomunhão. Oito milhões! Que baque, que rachadura! Foi dada
para que voltem para a nossa parte? Fazer o que? Não sabemos
convertê-los e os condenamos. Quando excomungamos? Quando
não conseguimos transformar as almas. Quando vomitamos?
130

Quando não assimilamos. Quando o pai se atira contra o filhos?


Quando não soube educá-los. Se não somos capazes de
transformar o povo, não podemos estar tranquilos na consciência.
Não sabendo como se defender da uma rebelião de massa, a
Igreja impôs um partido e negou os sacramentos a quem não vota
nele. O papa, coitado!, teve que dizer que os da DC são os
exemplos do cristianismo, porque combatem os comunistas. Eu
também votei. Nunca experimentei uma indigestão. Fiquei muito
mal por três dias. Ter que por a consciência naquele símbolo com
uma cruz e um escudo... Acredito que foi duro para muitos. E o
que devia fazer? Não temos nada para propor. Para mim não
houve momento mais triste do que aquele de se atirar contra
pessoas, que, mesmo no erro, procuram, a seu modo, a justiça. E
nós de mãos dadas com os ricos, pessoas cheias de
responsabilidades históricas. Aonde vamos acabar? Antes
excomungamos os liberais [Sillabo, Pio IX, 1864], agora de mãos
dadas com eles. Antes os ricos e agora os pobres. Lentamente
excomunga todos nós e fica sozinho” (18.1.’50).

“Estamos em falência: 100 milhões de dívidas, nem dinheiro


para a vida quotidiana” (9.10). Mando imprimir uma carta aberta:
Em nome de qual lei? Esqueceram Nomadélfia 700 abandonados
e ninguém se preocupa de seus sustentos: “Se deixamos morrer os
inocentes por omissão, por que não sequestrar o roubo aos
especuladores que acumulam?” (20.10). Nenhum jornal tem a
coragem de publicá-la. Querem que nós sejamos obedientes, isto
é escravos. Em vez de pedir com cabeça baixa, colo torto, eu
pretendo o direito à vida com as leis, não com a esmola. Para a
cultura assistencialista sou um subversivo. Quem prega mais a
justiça do que a caridade é considerado um comunista. Está aqui
o início da queda livre que me levará ao fracasso de ’52? Para
quem confiar as angústias da alma? “Meu Senhor, é a monotonia
das questões materiais que me leva a esse estado de cansaço e de
desgosto da vida? Um amargo cálice que todo dia devo beber e
do qual depende a vida dos filhos. Queria levá-los ao trabalho e
as dívidas nos proibiam; a desordem da matéria nos transtorna.
Pulo as refeições, sempre procurando pão. Digo isso com a
mente, o coração, a caneta. Onde estás. Que tu construas
Nomadélfia não duvido... e nós te ajudamos” (26.10).
131

5 – A relação do prefeito

Há tempo somos vigiados especiais. Relações e delações


chegam à escrivania do ministro Scelba. O ministério passa à
Santa Sê a relação da prefeitura de Modena e Montini a repassa
ao bispo. “Tratando-se de coisa grave e delicada, o pontífice me
confiou a tarefa de ouvir logo V. Exa. e prover que a ninguém
aconteçam desagradáveis inconvenientes”.
Os pontos de acusação: economia alegre; cheques sem
fundo; 40 milhões de dívidas, 35 penhoras, seis vendas leiloadas;
despesas supérfluas; carros que correm; eu passeio de carro;
promiscuidade e desordens morais; não são apontados os
procurados; a Obra é aproveitada por adultos ociosos. “Se, pelo
fechamento dos centros dos estrangeiros, devessem aqui
convergir também estes, não há quem não veja quanta
preocupação possa oferecer Nomadéfia para a ordem pública,
tendo em vista as ideias cristãs mas um pouco ousadas demais de
padre Zeno e que o centro está situado na vila de Fossoli, uma das
mais vermelhas. A Obra é vista com simpatia, mas entrou em
campos sociais dificilmente controláveis”.
A autoridade civil declara a abertura das hostilidades. O
bispo nos defende como pode, eu afirmo a argumentação: a
prefeitura não sabe fazer as contas! Cada adulto cuida de 22
menores. E por que as instituições insistem para que acolhamos
outros menores? Até o famoso penitenciário juvenil, o Beccaria
de Milão, nos oferece seus clientes. Acolhidos demais? Não seria
como acusar de excesso o amor, o qual não pode que ser
excessivo? A relação é somente o início do Calvário. A campanha
anticomunista é tal que cada mínimo sinal é marcado e
perseguido. [Vanguarda católica e Defesa Civil controlam e
ficham quem tem alguma simpatia vermelha].
A nossa assembleia responde, fazendo as contas no bolso do
ministro: de 25.4.’45 a 17.2.’50 gastamos 210.675.900 liras, mas
recebemos do Estado 10.018.000. “Da contabilidade aparece que
um Governo católico não compreende a importância social de
Nomadélfia. É contra nós, porque não nos dá o que nos deve.
Acusar-nos por dívidas é como condenar Cristo, porque é faminto
132

nos seus filhos. Nós temos que esconder as vergonhas destes


superficiais, que apresentam uma política cristã e afogam na
omissão tantos inocentes. Nós não temos medo de afirmar, que
desse jeito deixaremos as igrejas vazias, a Igreja voltará às
catacumbas. São crimes sociais por pessoas que se atiram contra
o comunismo, invés de combatê-lo através da justiça. Enquanto
Nomadélfia tem necessidade de enfrentar as dívidas, o Governo
tenta nos afogar com suas demoras. E que calúnias! Somos
defraudados, e nos é imposto o silêncio para não dar motivo à
raiva comunista. É um Calvário! Se temos erros, iremos corrigí-
los. No entanto o que se como, hoje, quando outros nos negam a
vida? Se quer o milagre? O Senhor pode fazer também o milagre
de nos dar força de morrer de desnutrição ao invés de deixar
tranquilos os que nos roubam muitas vezes em seu nome”
(14.2.’50).
Como explicar certas experiências a Scelba? “Quando uma
alma começa ver o mundo em perigo e vive Deus, lentamente se
sente sozinha e procura quem? Seus semelhantes: as vítimas
como Cristo. Nós éramos abastados e não podíamos sofrer que
existissem ricos e pobres. Visto que não podemos persuadir os
injustos, corremos para abraçar as vítimas e agradecemos, porque
nos escolhem. Mas, acreditem, são vítimas vocês, e o somos nós
também. Quando não nos dão o de que precisamos, sinto o eco de
Cristo: “Sabem por que o mundo lhes persegue? Porque não
pensam como ele”. Portanto todas as vítimas do egoísmo são
nossos irmãos e com eles devemos criar o mundo novo. Parece
um sonho, uma lenda, mas precisa acreditar, porque cada dia
vemos esse milagre: aumentamos sempre mais” (11.1.’50).
O ministro trama conter meu amor excessivo e eu retorno
com a campanha do bilhão. Aprendi de Deus não ser mesquinho.
A primavera não é uma ostentação de flores, o verão um excesso
de frutas? Poderia-se dizer: que esbanjador! O amor é assim:
pródigo, abundante. Sou seu filho: não devo imitá-lo? Faço o meu
plano: “Precisa obter a liquidação de 350 milhões de dívidas;
1.000 biolcas de terra em Fossoli, 150 milhões; 5.000 hectares em
Grosseto, 300 milhões; um povoado, 300 milhões; um moinho,
400 milhões; aparelhos, 150 milhões. Total 1.650 milhões. É o
mínimo para a auto-suficiência. Nomadélfia cresce em
133

progressão: em um ano mil famílias, nos dão mais 200; 1200,


mais 1240; etc. Não faço cálculos, porque veja neles a solução.
Escruto a providência, que procede por caminhos misteriosos. O
dever dos católicos é nos dar a vida econômica, porque é um ato
de justiça. Precisa pegar aqueles capitais. Um milagre? E por que
não pensar nisso, visto que Nomadélfia é somente milagre? A
nossa lei de vida é o evangelho, que é milagre. Se não
acreditamos, ninguém irá crer no bilhão” (a Pirelli, 2.12).

6 - Milão celebra Nomadélfia

Pe. Turoldo, pregador da catedral, nos abre as portas da


cidade. Apresenta-me ao cardeal e às autoridades civis. Os meus
dias de Milão estão cheios de abandonados. Não pelo gosto de me
tornar papai Noel! Grito do púlpito: “Uma sociedade que se
limita à beneficência é pagã, a caridade não basta. Os
abandonados não são sacos a serem preenchidos, são
defraudados. E, embora adotados, podem ficar órfãos de novo.
Precisa dar a eles um contexto social que não faça mais vítimas.
Nós lhes damos uma pequena sociedade nova onde a mãe não
morre mais, porque o indivíduo passa, a comunidade fica. Assim
se tornam verdadeiras as palavras de Cristo, que Nomadélfia
repete a cada acolhido: Eu sou a tua ressurreição e vida”.
Enquanto o Governo usa a máquina da repressão, nós
vivemos o nosso dia de glória: Milão celebra a Semana de
Nomadélfia. O anúncio é colocado sobre os meios de transporte,
nos jornais, em todo lugar. A imprensa nos dedica mais de 50
artigos: “Nomadélfia venceu Milão”; “Padre Zeno fez uma
revolução na caridade”; “O apóstolo da realidade. Fala padre
Zeno: não doutrina, mas fatos”. Um crescendo tal que no cinema
Missori, em frente a dois mil jovens me faz explodir:
“Nomadélfia é uma bomba atômica, que disparará no ventre da
Igreja”. Uma voz: “Cuidado que não estoure em suas mãos!”.
“Não há perigo, está nas mãos de Cristo” (6.11).
O calor e a participação de muitas pessoas me dão a
impressão que Milão tenha abraçado Nomadélfia. Insisto: “Eu
distingo os cristãos pelo bolso, porque a fé se mede pelas obras.
Esse Cristo tão místico, atraente, no juízo termina seu programa
134

com questões materiais: Tinha fome, sede... Para ele a justiça vem
antes de tudo. Também o homem, com suas necessidades, vem
antes do cristão”. A semana se conclui na majestosa cenografia
da catedral na presença de 30 mil fieis: o cardeal, com manto
grande, roquete, cruz de ouro; um monte de coroinhas vestidos de
branco; o órgão poderoso, o incenso penetrante. Nessa moldura a
vozinha de vidro do prelado faz ressoar palavras que se tornaram
famosas: “O que é o fenômeno de Nomadélfia? A volta dos
cristãos ao espírito do evangelho. Olhem estas catedrais, as
roupas canonicais, todas coisas externas. A parte material é útil,
mas não é ainda cristianismo, é moldura. Nomadélfia representa
uma página do evangelho. E a cerimônia que agora celebramos,
faz parte de seus ritos”. Segue a leitura de um texto da
constituição, o apelo das mães e de 36 crianças. Entrega dizendo:
Mulher, eis teu filho, filho, eis tua mãe. O povo, em respeitoso
silêncio, parece estar junto debaixo da cruz onde pela primeira
vez aconteceu esta entrega. A comoção invade corações e as
naves da igreja, Nomadélfia conquistou Milão. A Cederna
comenta: “Uma mãe loira para cada menino. Padre Zeno fez uma
revolução na caridade”. “36 crianças tiveram de presente uma
mãe. A padre Zeno a cidade custa meio milhão ao dia e está cheio
de dívidas. Se entendermos que as dívidas são nossas, aquele
povo viverá, senão morrerá, mas morrer de fome está em seus
programas. E se Nomadélfia morre, os fracassados seremos nós.
O que acontece no ex-campo de concentração não é algo de
interessante como uma novela. Pode ser algo que nos condenará
ou salvará para sempre. Ou se acredita nesta cidade, ou se nega e
se julga uma encantadora utopia. Mas para padre Zeno e seus
filhos é a única interpretação da vida; para eles a grande e
obscura utopia somos nós. Nomadélfia pode ser entendida
somente se vista do céu: daqui pode ser vista como uma bandeira
ou uma ameaça” (D. Porzio, Oggi, 24.11). O Dr. D. Medugno,
diretor do presidio Beccaria, me escreve: “Estou saindo agora da
catedral de Milão. A atração que vem da sua missão é grande. É
mesmo Novus oritur ordo e, talvez, os homens estejam no
caminho certo para se reencontrar como homens, filhos de um só
pai, para por fim a nefandas experimentações e talvez por isso
135

fosse necessário Fossoli com seus mortos e os vários buracos


negros: Buchenwald, Auschwitz, etc.” (13.11).
Ao teatro Lírico tinha dado a minha versão: “Chegou o
ônibus com os meninos do orfanato. Aproximei-me deles. Alguns
me olhavam com a sua personalidade de rebeldes. Fixo um nos
olhos: não me sinto mais padre Zeno, mas Milão, Londres, Nova
Iorque, o povo. Ele me olha seriamente. Digo: “Que mal fizeste,
menino, pois me olhas sem falar? Vás, encontrarás uma mãe!”.
Fixa-me, sorri. Eu o abraço, me olha ainda enquanto desço do
ônibus. Em nome de vocês, em nome de todo mundo lhe digo:
Perdoa-nos!” (9.11).

7 – Nunca mais gerar os pobres

As palavras de Schuster, um bocado de oxigênio. Os


visitadores, uma invasão aos domingos. Os milaneses prometem
ajudas, alimentam a esperança. Animado por tantos sinais de
aprovação, retomo o movimento do ‘45: “Precisa refazer a
proposta da fraternidade social: todos juntos no uso dos bens, sem
olhar os partidos”. Possível que somente a Santa Sê seja
contrária? Peço explicação ao papa: “Que os filhos devam muitas
vezes puxar o pai pela camisa, para que volte para os filhos
desolados, não pode ser um plano, mas uma humilhação da
providência. Os temores que se circulam nos ambientes vaticanos
a respeito do nosso movimento, para mim, vem dos duros de
cabeça. Vai embora Satanás. Pode um pai ter medo dos filhos?
Talvez Jesus possa estar de acordo? Qual sutil força maldita
consegue ter-me longe do papa? Tome cuidado, Santidade,
daquelas forças de satanás. Eu sou, por parte do Senhor, um
cachorro de caças: sinto o cheiro. Mas se o caçador de Deus tem
medo de entrar na floresta, em vão o cachorro corre e se agita.
Acredite em mim seu filho mais querido, agarrado a seu coração!
Desta vez não largo, como fez São Paulo com São Pedro. Não
tenho medo de me tornar um São Paulo, seria um covarde. Sei
muito bem que não vou contra Pedro, mas estou com Pedro, sou
para Pedro até a morte. Quando a audiência definitiva? É inútil
que queira ouvir outros por mim, deve me ouvir” (’49).
136

Confio a Turoldo: “O Santo Padre profetiza algo de mais


cristão. Entretanto os deserdados choram. Depois do discurso foi
almoçar; eu, enquanto escrevo sinto o cheiro da janta. Eu, o papa
e tu podemos justificar tudo; mas aqueles estão na cruz, escravos
sem patrão. Ao menos tivessem nós como patrões, jogaríamos
para eles farinha amarela, como se faz com os porcos. Isso não é
ainda cristianismo. O papa deve excomungar todos nós, ele
mesmo também, para abrir um ano de penitência durante o qual
em São Pedro, primeiramente ele e depois nós, assinássemos um
novo pacto: jurar de nunca mais oprimir os pobres, ou melhor, de
nunca mais gerar os pobres e de fechar a porta do templo na cara
de todos os que não dão a vida para se colocar no mesmo nível
dos oprimidos. Eu vou jantar... Mas há quem não vai jantar e
entendo que estou indo para acabar com aqueles que não jantam”
(27.12). “Cristianismo sem real e tangível amor fraterno não
existe” (dic. ’50). E nunca mais existiu nem um povo fundado
sobre a fé.
Se eu tivesse um caráter fraco, como poderia ter unidos os
filhos? É tão duro educá-los, que posso aparecer centralizador.
Ouço de bom gosto os conselhos dos amigos, mas tenham a
bondade de entender que devo agir na minha persuasão” (8.7.48).
“Todo dia vejo este mundo crescer e eu não sou mais um guia
insubstituível. Nascer gigantes é contra a natureza. Atualmente
somos meninos, o passo é lento. Tu, entretanto, deves derrubar os
cedros do Libano, isto é, aquelas almas zelantes, que estão
amarradas por cordas de aço ao carro do mundo. O mundo é a
carne. A carne é: escravidão da riqueza; escravidão de ser
benfeitores dos pobres; escravidão de depender das tiranias das
pessoas amadas; escravidão de querer ser mestres dos outros;
escravidão de não acreditar na fraternidade e que o mundo pode
ser revolucionado; escravidão de não acreditar que somos a Igreja
e podemos levá-la de novo à Pentecostes; escravidão de não
acreditar que podemos ser um povo de taumaturgos, que gera os
filhos amados por Deus” (28.12).
Lembro ao papa: “Esperamos que não queira assumir a
tremenda responsabilidade de deixar a Igreja em águas insidiosas,
como os nossos pais a reduziram. Submergem a Rússia, a China,
a Índia, os povos latinos; os anglosassônicos se enrijecem; os
137

africanos estão para se orientar ao materialismo. Não chegou a


hora de dizer basta?” (‘49). “Amarrados a uma concepção pagã
da riqueza, não atuamos Cristo no campo social. As massas estão
contra nós, porque não sentiram em nós seu palpite. Desse passo
a Igreja submerge, boiando somente a cruz, porque é de madeira.
Estamos divididos, cada um vive a sua santidade, cada um canta
a sua canção de salvação do mundo; ao contrário, há uma só
realidade lastimável: a autoridade de Cristo entregue a homens
muitas vezes mais pecadores do que nós. O sal não salga e o povo
se torna pagão nas obras, porque o clero é assim, já fede. Quererá
Cristo fazer ressuscitar este novo Lázaro ou pensará em servir-se
das vítimas? Eis o dilema do nosso século” (a padre Calábria,
22.11).

8 – Fuga mundi, fuga cenobi (1950)

Alguns padres servitas, fugidos do mundo (fuga mundi) para


viver em união com Deus, agora fogem do convento (fuga
cenobi), atraídos pelo fascínio de Nomadélfia, para viver em
união com os irmãos (8.12). Um deles escreve: “Preciso de
Nomadélfia como do ar” (3.7). Outro: “Não peço nem um ninho
nem uma toca, porque também os ninhos e as tocas reparam o
corpo, mas matam a alma quando há filhos de Deus, que não
sabem onde por a cabeça. Não me iludo, sei como deixar o
caminho largo para o estreito, mas, porque sei, não posso não
fazê-lo. A minha agradável cela me sufoca; estou no pecado
contra os irmãos que deveria salvar antes de pensar na minha
salvação. As regras fazem de mim um automa, a oração é uma
blasfemia, porque não me reconciliei com o irmão, portanto estou
no estado de pecado. O nosso ideal reduziu-se a nos salvar,
enquanto Cristo diz de nos perder. Não posso mais aceitar esta
vida religiosa sem me matar; não posso me matar de olhos
abertos” (22.10).
Como ignorar os gritos de ajuda de almas tão generosas?
Escrevo aos superiores: “Há um ano nasceram relações com
alguns dos seus religiosos. Aceitam enviá-los para nós para
preparar um exemplo de renovação de toda a Ordem?” (24.7).
138

Falo disso com o provincial e os conselheiros, que pedem a


permissão ao geral, o qual é contrário. Surgem malentendidos e
equívocos. O provincial escreve aos superiores: “Na circular
padre Zeno faz afirmações sobre os ritos sagrados, sobre as
regras, etc. que não estão em harmonia com o pensamento
católico. Se num primeiro momento o seu movimento recebeu
nosso apoio, agora sinto o dever de ter cuidado na adesão a tais
ideias, que nos colocam fora do campo católico” (10.9).
Os jovens frades insistem, a Ordem freia. Idealistas? Dizem
querer provar a eles mesmos. A vida fraterna de Nomadélfia os
apaixona até arrastá-los. Fogem dos conventos e os encontro em
Fossoli (8.12). A Ordem os declara fugitivos e prepara as
sanções. Escrevem ao papa: “Na viagem de Jerusalém a Jericó
nos encontramos em Nomadélfia onde mil filhos e irmãos são
agredidos pelos salteadores do pecado de omissão. Precisa descer
de cavalo sem pedir a permissão a ninguém: é um dever em
situação de extrema necessidade. Estão sem forças. Nas portas da
cidade outros 7.000 premem. Os possuidores do ouro negam a
eles pão, casa, saúde. Ninguém tem o direito de matá-los com a
espada ou com a omissão, de fechá-los em orfanatos. Eles nos
olham e dizem: “Somos náufragos, ajude-nos a sermos salvadores
de náufragos”. A Ordem não pode, não sabe fazer isso. Negar o
convite, è negar direito. Não e desobediência, mas colisão de
duas leis. E se cai teu boi no poço...? Estamos puxando para
cima. Precisa madeira, cortamos árvores, enquanto outros
escrevem artigos; precisa semear, aradamos; precisa o leite,
cuidamos das vacas; vivemos debaixo das tendas no inverno,
fazemos cal para construir casas. Não somos nem rebeldes nem
hereges, somos vítimas entre as vítimas. A Ordem proíbe e nos
julgas, mas não pense em nos tirar aos filhos e irmãos em
tribulação. Non possumus. Vim trazer a guerra: esta é guerra.
Que a Ordem nos excomungue, é um seu direito positivo”
(10.12).
Eu, rebatendo, escrevo à Congregação dos
Religiosos: “Se se tratasse de proeza de adolescentes ou de uma
ilusão mística, seria fácil pedir para que voltassem à Ordem. Mas
afirmam que não puderam se negar, porque se encontraram com
as vítimas dos salteadores. Não procuram comodidades, comem
139

quando acham. Eu os acolhi e coloquei no ermo debaixo das


tendas. Fiz mal? Bem-aventurados os cúmplices destes crimes. É
uma reforma em ebulição? Para se tornar rejeitados deverão
esvaziar-se de si mesmos, criar os calos nas mãos e na alma.
Deverão fazer o que pregavam. Até quando não chegarão ali,
Nomadélfia os tratará como forasteiros. Afirmam que a Ordem
não chegou ali. Tem razão ou não tem razão? Tenham o direito
de fazê-lo? Nós dizemos que sim, aliás uma vez descoberta a
vítima é crime não correr para lhe dar vida. Somente o juízo
universal nos dá razão. Eles se esforçam com todas as maneiras
para que as vítimas os aceitem de iguais para iguais. Os jornais
cantam como as rãs; os fariseus quereriam nos condenar.
Marcaram o fim das ordens religiosas? São desobedientes ou
entre os poucos obedientes?” (12.12). É concedido um tempo ad
experimentum (8.12.’50 - 31.8.’51).
No convento não lhes faltava nada, nem o privilégio da
pobreza e do estado de perfeição. Eles dizem que o espírito
demais è indigesto, por isso abandonaram o demais para
compartilhar o nada, que temos em abundância. Os filhos
pensam que os tenha enviado a providência como exemplo e
estímulo. Tem um grande ascendente sobre os jovens, porque se
dedicam às atividades mais humildes com o fervor dos neófitas.
Frei Gabriel, 22 anos, se torna o ajudante de Germano, 15 anos,
que com os jumentos transporta a lenha do bosque para a estrada.
Padre Vannucci, docente de Sagrada Escritura, é apelidado de o
governador, porque toma conta dos porcos. Um dia digo aos
hóspedes: “Vão lá com aquele que varre a estrada, lhe explicará
tudo”. Era ele. Vem para me dizer: “Se os seus garis são tão
cultos, imaginem os outros!”. Rogério, depois do trabalho, passa
pelos camponeses com uma bicicleta toda quebrada para pedir
ovos para os doentes. Ângelo, compositor, dirige os coros de
noite. Renunciaram a tudo, também à sua vocação para descer de
cavalo e tornarem-se vítimas com as vítimas.
Convido os religiosos para sair dos conventos e das
espiritualidades mofadas, da penitência pela penitência: não mais
fuga do mundo, mas corrida para o mundo dos oprimidos. “Por
minha parte vocês estão em pecado de grave omissão. Não ouvir
o choro de Deus em suas criaturas é como apunhalá-lo nas costas.
140

Perdem tempo em alimentar um culto, que é o canto do cisne,


porque o povo não o entende mais. Vocês são milhares e
milhares, mas não são a força viva da Igreja. Não têm a coragem
dos fundadores de abraçar Cristo no povo. São esmagados por um
monte de regras que vocês não observam, porque se as
observassem seriam múmias. Quando ensinam os alunos de
vocês, que observando-as se tornam santos, mentem porque
sabem que a santidade é viver e doar Cristo. Quem de vocês
ousaria adotar as coisas acidentais da Eucaristia e não a
Eucaristia? Aonde puseram o evangelho? Quando um jovem
abandona tudo, não podem matá-lo, mas podem privá-lo de tudo
até As raposas têm suas tocas… Se procurarem a toca não
abandonariam aquela que tem. Jesus teria aceito a vida de vocês?
Mas sobre quem pode confiar esta Igreja crucificada se também
vocês, fratres, creem na letra e não na vida? Se vocês também
caluniam Cristo, gritando com as obras que é um falido? Quando
vocês decidirão em crer que se tornar pais de família não é uma
vocação especial, mas um dever de todos os cristãos? Eu, nos
meus e seus filhos entrei nos seus muros para chorar e puxar a
sua camisa, para que corram e tirem o povo dos lobos rapazes.
Juntem-se a nós, pararemos a guerra, inauguraremos os tempos
da adoração de Deus em espírito e verdade, não com contorções
espirituais e comodidades materiais” (26.7). Ao meu apelo adere
Venâncio, um irmão esmoleiro, para com o qual não será tomada
nenhuma providência, pois “se trata de um leigo mendicante”.
Depois de algum tempo convido pe. Vannucci a nos falar de
sua experiência. “Nós religiosos nos iludimos de encontrar Deus
na calma dos conventos. Não vimos o véu partido nem
compreendido que a divindade abandonou as construções de
pedra e habita nos crucificados da injustiça. Nomadélfia
representa um exemplo de perfeita harmonia da vida humana com
o evangelho, do cristão com o homem. Em frente de vocês nos
sentimos perante um julgamento da nossa vida, escrito na carne
de criaturas humanas” (dez. ’50). “No começo vi em padre Zeno
uma espécie de padre Bosco. Depois entendi que aqui surgia uma
obra imensamente diferente. E como monge vi que para mim não
havia outra solução, que viver entre vocês. Não é uma defeção
mas é levar às extremas consequências a nossa vocação para a
141

comunidade. No meio de vocês nós não nos sentimos estranhos,


mas irmãos entre os irmãos. Esta não é uma obra igual às outras,
mas a Igreja que ressuscita. Como frades não realizamos
integralmente o cristianismo e viemos entre vocês com o sonho
de atuá-lo” (9.1.’51).
O tempo concedido passa rápido. Para que pudessem ficar
conosco, pedem a encardinação ao bispo de Grosseto (30.6.’51).
Roma, temendo que a pedrinha se transforme em avalanche,
ordena a volta aos conventos. Deixamo-nos em lágrimas. “Os
filhos chorarão muito por causa desta saída de padres, que se
demonstram verdadeiros anjos da guarda” (a pe. Bigazzi,
17.8.’51). Turoldo escreve: “Lembro o exílio daqueles dias. E
Vannucci dando voltas ao redor do convento: “Volto, não
volto?”. Volta com os ombros mais curvados pelo peso de tantas
sanções, triste pela suspeita de heresia. E se torna coroinha dos
confrades, ele, professor de sagrada escritura. Tentara mudar as
estruturas, demonstrar crer com as obras. E isso sempre é um
perigo. Perigoso ser consequentes. E precisava pagar”. Rogèrio, a
alma acorrentada, me confia: “Exilado, sou reduzido a um
fantasma. Vivo somente porque desejo a verdadeira vida. Talvez
a Igreja peça de mim, inexperiente do viver social, que trabalhe
somente com a oração? E use as minhas pernas somente para me
ajoelhar? Como o cego curado por Cristo sei uma coisa: sou cego.
Desejo encontrar Ananias” (31.10). “Esta exigência de voltar com
vocês é sempre mais irresistível. Penso com terror em o que seria
de mim se me fosse tirada a esperança de voltar com vocês. Aqui
é difícil a liberação de meus demônios, uma lacerante luta entre o
sonho de santidade e a vida de privilégio. Quanto me deixa
mortificado o comércio das coisas sagradas: pregações e missas
pagas. Sou um náufrago, se não conseguir me agarrar a tábua que
Nomadélfia me oferece, temo pela minha vida. Adeus”.
Se estes jovens entenderam a linguagem das obras do
evangelho, por que teologos e curiais não conseguem vê-las?
Viver na compartilha dos bens; acolher viúvas e abandonados;
eliminar o individualismo egoístico; abrir a família às vitímas;
haverá algo de mais evangélico?
142

XII – 1950: o movimento político

Cenário internacional – Choque entre Oeste e Leste na


Coreia (25.6): a China com o norte comunista, os EUA com o sul
(8.7). Truman ameaça os chineses com a bomba atômica (30.11).
No Japão os comunistas são perseguidos, nos EUA fichados.
Cenário italiano – Celebra-se o Ano Santo (três milhões de
peregrinos) com o tema da Grande Volta, o dogma da Assunção
em frente a 500.000 fieis (20.11), a canonização de Maria Goretti.
Prego o retiro aos servitas em Milão (16.1). No clima de
excomunhão aos comunistas é uma ocasião de autocrítica à luz
dos fatos do dia: em Modena a polícia acabou de atirar sobre
manifestantes pelo fechamento das Officine Reggiane: seis
mortos, 50 feridos (9.1). Nas paredes da cidade o desenho de seis
caixões com a escrita: “Ano santo”. Como não meditar sobre
estas mensagens do povo? Em frente aos mortos ainda mornos,
pergunto: “Quem são os sem Deus? Um povo caído debaixo dos
tiros, pode-se dizer, dos católicos, que não souberam prevenir o
mal. Um enterro ao qual participam todos os pobres, nenhum
padre, nenhum bispo! Nenhuma condolência por nossa parte, não
uma palavra de solidariedade, se não na idéia política, ao menos
na dor. São batizados, trabalhadores: construíram eles aquelas
oficinas. O dono, Orsi, comprava farrapos, ferros velhos e,
especulando, fez bilhões. Queria por para fora um monte de
pessoas… Por que nós padres ficamos por fora? Não se pode
culpár a DC, o PC: a culpa é nossa. Não somos mais o fermento
das massas, não nos entendem mais. Criaturas de Deus, pobres
que trabalham, passam fome, desempregados por meses e meses,
caídos fuzilados na praça. Não somos nem procurados. Esta
massa que se mexe sem Deus. São eles ou somos nós os sem
Deus? Nós padres sabemos decorada a escritura, a união
hipostática, as operações teândricas. Sabemos aonde acaba a
143

graça, chegamos a dizer que há uma graça suficiente, uma


insuficiente, uma abundante... Coisas do outro mundo! Mexemos
e remexemos nesse Deus: para alguém é avarento, porque lhe dá
poucas graças de modo que vai ao inferno, para outro é pródigo.
Sabemos tudo e talvez não saibamos que Deus quer que todos os
homens se salvem. Não sabemos ser fermento nas massas, porque
se não somos santos, não podemos ser sacerdotes. Não se torna
um Outro Cristo por profissão!”.
Na Câmara voam socos e palavras grossas (12.1). De
Gasperi ofende os caídos de Modena: “Mobilizaram milhares de
pessoas, entre elas pessoas recém saídas da prisão”. Ter a
coragem de dizer que, afinal, matamos ex-presos, faz explodir a
raiva de Togliatti: “Retire-se, provocador, delinquente!” (L’Unità
15.2). Desemprego enorme, lutas sindicais no norte, ocupações
de terras no sul: tudo vem sendo interpretado como o início de
uma revolução que deve ser reprimida com as tropas especiais de
Scelba. São perseguidos provocadores, comunistas e
flanqueadores. Togliatti denuncia a DC de ditatura (30.4). Pe.
Lombardi acusa os partigianos por ter cometido estragos. De
Gasperi acusa o Pci por ser a quinta coluna a serviço da URSS
(3.7). Dois dogmatismos: o anticomunismo da DC e o setarismo
do PC se opõem. Isso atrasa o desenvolvimento, cria
discriminação, produz clientelismo. A DC se torna o braço da
diplomacia americana como dique anticomunista. Da outra parte
“O fim último do PC é o completo controle da Itália e seu apoio
político à União Soviética”. O Vaticano é dominado por tanto
medo do comunismo que, se tem as suas motivações, acrescenta
“aspectos de irracional emotividade” (Di Nolfo). Para Pio XII
precisa defender a cristandade de uma nova invasão. Se fala de
Igreja do silêncio, martírio, cruzada, hipótese de conflto. A
imprensa comunista acusa o papa por fomentar a guerra contra o
Leste. O pontífice confia a pe. Lombardi: “Sem guerra, não
cedem”. Mas a um diplomático tinha dito: “Os desventurados que
estão fechados naqueles países, como numa prisão, reclamam a
guerra para saír. Mas não! Sobretudo não à guerra! Impensável,
apocalítica” (7.4.’49). A Igreja, exceto o Leste, tende ser a Igreja
do Ocidente. Na Itália a DC será responsável por aquela
cristianização materialista, que a Igreja temia dos sem Deus.
144

1 - “A salvação através dos inimigos”

A Itália é em estado de confusão: De Gasperi se demite (2.1)


e se representa (27.1); brigas na câmara para os mortos de
Modena (14.2), enquanto agitações dos camponeses e dos
trabalhadores agitam o país. O Governo emana medidas
repressivas contra toda ilegalidade, verdadeira ou presumida
(18.3).
Numa tarde se aproxima do campo de Nomadelfia uma
multidão de bandeiras vermelhas, o quadro vivo do Quarto
Estado. Uma representação nos convida a nos unir aos
manifestantes para aumentar o protesto. “Fiquem tranquilos, não
somos contra… nós não somos nem de direita nem de esquerda,
mudamos caminho”. Explico isso ao papa com um problemão
para aquele que se faz chamar pai de todos. Também dos
comunistas? Dizem que os inimigos de Deus sejam os vermelhos.
O Vaticano é terrorizado. E eu pergunto: mas se o comunismo
fosse um meio da providência parta sacudir os cristãos? Os
inimigos mais inimigos de Deus sejamos talvez nós, que
depreciamos, esvaziamos a onipotência da fé?
“Se Karl Marx tivesse sido um santo agora a terra seria uma
bandeira vermelha com esculpida a cruz de Cristo. Caíram
imperadores, reis, príncipes; cairão os patrões: somos irmãos. O
últimpo golpe à tirania satânica do homem sobre o homem deve
ser dado por Cristo. Marx não conseguiu e nunca irá conseguir
fraternizar o mundo, porque Jesus diz Sem mim nada podereis
fazer. Mas os mártires do marxismo não são menos daqueles do
cristianismo. Satanás ali sabe criar em nome de uma fé que
destrói a fé, com o pretexto da injustiça dos filhos da luz. Visto
que os inimigos de Deus sempre lhe fazem um serviço, a
salvação vem dos nossos inimigos, Marx continuará a servi-lo até
quando não teremos decidido de servi-lo nós. Nomadélfia é a
bomba atômica, que desvendará na Igreja toda intriga e a tornará
livre, para que possa voar para a revolução de Cristo. Santo
Padre, diga que está doente e passe dois dias comigo. Depressa. É
a hora de Deus?” (enviada?).
145

As dívidas, as nossas areias movediças: 11 milhões ao Banco


S. Geminiano; 10 a Alfa Romeo; 2 ao Consórcio Agrário. Os
pedidos caem sobre o bispo e a Pirelli. A Sociedade de Algodão
de Bologna nos faz causa por 10 milhões (24.2). O prefeito me
preocupa: “Se as coisas vão desse jeito, o Governo acabará com
Nomadélfia”. Pego isso com hilaridade: “Sou curioso de saber
como fará, eu nunca consegui”. A colaboradora Maria De Giorgi
me avisa “Um senador me informa que o Governo se nega
categoricamente de ajudar Nomadélfia, é contrário” (10.2).
Scelba sempre mais hostil. Será porque as minhas acusações ao
Governo levam votos ao PC? Entendeu que somos um osso duro,
mas não quer entender que os meninos devem comer. [Notória a
sua insensibilidade pelo social. Quando asume o ministério do
interior sabe que sobre 122 agentes da delegacia de Modena, 120
são inscritos ao partido comunista. Sabe do sangue derramado e
da estrutura militar clandestina do PC com sede em Modena e
Reggio. Em ’51 será descoberta uma grande quantidade de armas.
Achava, portanto, que Nomadélfia fosse um estopim na pólvora
emiliana?].
Cheio de dívidas, exasperado, não tenho que a voz para
gritar ao Ministro a minha revolta. Aproveito os estudos de
jurisprudência ou são os desventurados que falam pela minha
boca? Explico-lhe que a liberdade do rico se transforma em
violência contra o pobre. “Vocês dizem: Somos democratas,
queremos a liberdade para todos. Qual liberdade é se um tem 4
mansões e o outro dorme numa gruta com muitos apartamentos
vazios? Um ganha milhões ao mês, o outro nem o pão. O
Governo se serve da lei para impor a injustiça, defender os
opressores. É tirania. A escravidão não acabou: onde há um
homem só passando fome, é escravidão; onde é comprado e
vendido por um outro homem, é aberração social. Desde que
Cristo nos libertou, é escravo quem quer, porque cada um tem em
si mesmo a liberdade e a perde quando a espera de um outro.
Nunca vou aceitar de trabalhar debaixo do patrão; nunca permiti
isso a um filho. “Vocês estão contra o Governo?”. Nós naõ
estamos contra ninguém. É o Governo que está contra nós!
Podem-se chamar De Gasperi, Scelba, mas nos esfomeiam, nos
oprimem. Não têm na consciência 109 manifestantes mortos
146

debaixo de seus governos? [Cf G. C. Marino, La Repubblica


della forza, M. Scelba e le passioni del suo tempo, Milano, 1995,
167ss]. Temos 750 meninos: por que não providenciam o
necessário? Se não o fazem é tirania e com o tirano se enfrenta
qualquer coisa. Pode o pai oprimir um filho? Pode o Governo nos
obrigar à esmola enquanto outros estão muito bem? “Segundo
você, quem é De Gasperi?”. “Para mim é um tirano”. Estes
governos democráticos são opressores e injustos. Por que quem
tem terras e dá em parceria tem o direito a 50% da colheita? Vem
da terra e do trabalho. Se a terra é de Deus e produz, porque há
quem a trabalha! A parte de Deus é dos meninos. Para eles
trabalhou Deus: fez a terra, as minas, o carvão. “Mas há a
liberdade!”. Não é liberdade, é opressão. É católico aquele
governo que deixa manipular os bilhões aos especuladores?
Queremos saber: se como ou não se como? Podemos desaprovar
quem não acredita em Deus, mas a um católico dizemos que à
injustiça se junta a ofensa a Cristo. E nós nos rebelamos, porque
nos apresentam um Cristo que não é Cristo. Raça de víboras!
Estão no poder e não sabem se impor aos leões que devoram os
fracos. Por que para eles é lícito jogar milhões e a nós não é lícito
protestar? Que prove De Gasperi fazer as contas! Quantas
meninas fazem as prostitutas, quantos meninos presos por um
pedaço de pão! Que importa se a Celere [tropa de choque]
defende os preguiçosos? Venham com seus exércitos, não me
interessa. Deem de comer aos famintos ou atirem em nós. Sexta-
feira chega o núncio [representante do papa]. Estas coisas direi...
[palmas]. Tem medo do comunismo, porque se impõe também
com as armas. Temos a arma mais forte de todas, mas de nós não
tem medo, porque não tem medo de Deus. Ouviram esse peito
nas praças. Ou me joguem na prisão. Se alguém tem medo, pode
ir embora, porque nós atacamos. Que nos prendam, queremos
justiça. No campo da política não se perdoa. Se dou um bofetão a
um policial, prisão. Se vocês ofendem a lei, quem vos prende? Se
nos punem por coisas tão pequenas, não teremos o direito de vos
processar? Precisa dizer estas coisas, se não somos coelhos,
covardes” (6-17.2).

2 - “Nomadélfia precisa ser vista com os olhos”


147

A Santa Sê manda o núncio apostólico, o qual examina tudo


e declara: “Nomadélfia não se pode entender de Roma, precisa
ser vista com os olhos”. Mandado para inquirir, fica
entusiasmado: “Para mim é uma grande revelação. Vi muitas
cidades, mas nunca uma assim. Aqui há fraternidade. Eu
represento o papa. Direi tudo e estou certo que confirmará esta
bênção” (17.2). A tarefa dos núncios não é de tratar com os
governos? Quer dizer que nos tratam como povo civil, não como
uma obra da Igreja. Mando-lhe o Plano econômico: “Precisamos
de ajudas para manter inválidos e viúvas. Cada cidadão custa 300
liras ao dia, os doentes 500. Orçamento: ativo 629.100.000.
Passivo: 349.100.000. A De Cecco [dona de impresa] nos pede de
aceitar 4.000 pretinhos nascidos durante a ocupação americana.
Para ela somente Nomadélfia poderia resolver isso” (19.2).
O clero também o favorável, nos julga com critérios
diferentes do nosso, preocupando-se mais da forma (templo,
batina), que da substância (saúde, comida, trabalho). Mons.
Valentini alerta o bispo: “Coloquei na minha cabeça que
Nomadélfia esteja em grave perigo. 1) Precisa salvar a Obra de
padre Zeno; 2) fazer as reformas necessárias. Ele não é tão
orgulhoso para não admitir defeitos e não tão desobediente para
não se submeter. 3) Esta Obra é de Deus. Um axioma. Compram-
se automóveis e ônibus e se celebra a missa em um teatro. 4) Os
sacerdotes façam os sacerdotes com batina honrosa e não os
trabalhadores. 5) A economia: se há provas evidentes, que Deus
quer levar à frente as coisas com sistemas extraordinários, se
continue; senão se recorra aos meios ordinários. Nomeia-se um
ecônomo, ao qual deva obedecer também padre Zeno e se
mandem embora os jovens que não trabalham” (21.2).
Como administrar mal o que não existe? Como implantar as
oficinas se nos falta o indispensável? O verdadeiro motivo das
dívidas é que não queremos vender o nosso suor. Hoje não
somente eu, mas 954 pessoas estão dispostas a caçar rãs mas não
a se submeter ao patrão. Poderiam nos matar de fome, não abro
mão. Eu tenho sempre na frente o anárquico nas massas
anárquicas, mas sedentas de justiça. O clero pensa que sejam
148

ateias e materialistas, mas o estômago não é ateu nem


materialista: é de interesse divino!
Apresento ao papa as razões das nossas dificuldades: “Os
benfeitores preferem ajudar as obras já implantadas. Os ricos não
ajudam de bom gosto Nomadélfia, porque não estão de acordo
sobre a educação social. Não gostam que os meus filhos formem
um povo livre e portanto não poderão subjugá-los como
trabalhadores a seu serviço. Entendem muito bem que é o último
golpe do cristianismo contra a escravidão. A própria mensagem
de fraternidade para eles é incômoda e deprecável. Quantas vezes
passamos fome por não ter aderido às suas diretivas! Não se pode
pretender que um neném pague o leite que mama da mãe. Como
Deus lhe dá o pequeno corpo para respirar, assim quem nos ama
nos conceda respirar com os capitais necessários ao trabalho.
Devemos evitar de cair na mão dos governos. Se interveem, são
patrões. Para refutar a opressão precisa ser livres, portanto auto-
suficientes com o trabalho das nossas oficinas” (maio, enviada?).
Chamo De Gasperi de tirano, mas lhe dou um bom argumento
para nos ajudar: “Se Nomadélfia fosse auto-suficiente seria um
golpe para os marxistas, cuja socialidade seria obscurada pela
nossa. Mas esta engrenagem quebra, porque sem uma intervenção
do Governo é obrigada a mostrar as suas dificuldades e explicar o
porquê. Na administração de emergência, a acusação de má
gestão não é exata. Para resolver a crise precisa transformar a
comunidade em cooperativa com um empréstimo agrário de Liras
200 milhões” (2.3).

3 – Os sinais de Deus

Tomo a bênção do núncio como um sinal para retomar a


proposta política. Atiro no Santo Ofício uma metralhada de
perguntas. “Não se pode mais permitir que a Igreja seja esvaziada
de sua missão redentora. Os inimigos estão vencendo uma partida
das mais ambicionadas: dividem a Igreja das massas,
demonstrando que se reduz ao culto e à doutrina especulativa e
não é conditio sine qua non da vida social. E os católicos
concordam. Como traduzem nas obras o mandamento novo, que
forma social trazem dele? O evangelho não leva a uma forma
149

comunitária ao menos entre as massas mais humildes? Porque


não fizemos, não acreditamos que seja possível? O liberalismo
não é um erro contra a fé, a negação da fraternidade? A aceitação
da opressão dos irmãos não é um pecado de omissão? O viver no
bem estar entre irmãos necessitados não é falta de amor? Quis ut
Deus? Quem sobre a terra pode ousar uma solução da socialidade
sem Deus ou contra Deus? É a hora de descer na luta sem
compromissos e sem medo dos fariseus. Eu, com meus filhos,
estou pronto. Falta somente um sinal: ser ouvido até tocar com
mão que Cristo, o papa, o povo estão conosco. Se os comunistas
da revolução russa foram chamados de demônios vermelhos, nós
seremos mais rápidos. O papa nos peça os sinais de Deus:
daremos bem visíveis, depois nos dê a espada do Anjo. Verá
precipitar os demônios como raios” (27.2). A Ottaviani, agora,
posso dizer tudo: “Proponho esta revolução social para o povo
para levá-lo de novo à sua Igreja. Eu acredito que esse
movimento seja de tanta repercussão divina nas almas que possa
evitar, como dom de Deus, a guerra” (11.3). Obtem que eu possa
ter um cólóquio com o card. Selvaggiani, que aceita na
substância, mas pergunta: “Quais são os sinais para afirmar que é
a hora do movimento e que é querido por Deus?”.
Aceito o desafio. Com fatos concretos nas mãos, enumero os
sinais de Deus: “1) As reformas sociais são promovidas pelos
inimigos. Sinal de Deus: os católicos são falidos. 2) Entre
sacerdotes, entre católicos há situações de injustiça. Traduzem em
doutrina escrita seu teor de vida e o Santo Ofício será obrigado a
condená-los. Sinal de Deus: são fariseus. 3) Os revolucionários
militam dabaixo de bandeiras anticatólicas. Sinal de Deus: por
falta de solidariedade, os oprimidos saem da casa do Pai. 4) O
direito de propriedade privada é privilégio de poucos. Sinal de
Deus: a nossa injustiça prejudica quem vive na miséria. 5) Os
miseráveis são vítimas não do fatalismo, mas dos que passam
bem. Sinal de Deus: são oprimidos pela omissão dos irmãos. 6)
Se o comunismo invadirá a terra, a Igreja será excluída da vida
dos povos, porque fracassou no social. Sinal de Deus: o doente é
grave, precisa urgentemente uma intervenção cirúrgica. 7) Os
católicos no social fizeram só assistencialismo. Sinal de Deus:
produziram emendas injuriosas, não soluções. 8) Impomos sob
150

pena de pecado mortal votar contra os comunistas. Sinal de Deus:


oito milhões de “filhos” votaram contra o papa. 9) O papa
reconhece aos pobres o direito à vida, mas os convida a ter
páciência. Sinal de Deus: ir aos direitos dos pobres é a
substância da fé. 10) Os católicos aplaudem Nomadélfia, mas
querem um milagre que Deus não fará: que a criança viva sem se
alimentar! Sinal de Deus: ela resiste para dar à Igreja o que não
tem: um povo de católicos voluntários. 11) Os democratas
cristãos fracassaram no meio da legislatura. Sinal de Deus: ou
uma revolução popular ou continuar opressores. 12) Eu não
posso dar um parecer sobre a santa Sê, mas as acusações são
graves. Sinal de Deus: o povo não é liberado pelos seus
“padres” da tirania capitalística. Se “no alto” [in capite]
houvesse “veneno” è dever apressar-se para desintoxicar-se. 13)
Aqui e acolá alguns místicos falam com o Senhor. Eu não desejo
isso, porque o Senhor me doou a fé. Sinal de Deus: eu e os filhos
vivemos heroicamente as diretivas da Igreja. 14) As massas
comunistas são as mais certas para renovar o catolicismo, porque
são sedentas de justiça. Sinal de Deus: deixá-las dominadas pelo
inimigo é um crime histórico (22.3).
A lição de ‘45 me ensinou novas estratégias. Publico Para
uma solidariedade humana com um salvo-conduto: “Esta é a
solução que nós, pais de família de Nomadélfia, propomos ao
povo etc”. Como dizer: não é mais um padre, isto é padre Zeno,
mas o povo por ele fundado, que propõe a sua política (La giusta
Via, 11.3). Obtenho um consultor, pe. I. Creusen, o qual me
acusa: “1) O que se faz em Nomadélfia è coisa ótima, mas querer
realizá-lo como sistema geral vai contra os fatos (como a
imperfeição da maioria dos homens) e por isso se torna utopia. 2)
Sobre a propriedade privada são expressos erros contra a
doutrina social da Igreja. 3) No regime proposto se centraliza
demais no estado. 4) O ótimo padre Zeno às vezes se deixa
vencer pelas ilusões. Estas observações foram feitas depois ter
reconhecido o tanto bem que há na obra e nas intenções de padre
Zeno” (3.5). Muito obrigado, respondo à tona: “1) A cidade de
Nomadélfia é uma população de voluntários, que vivem em
comunidade de fé e de bens, portanto, por sua natureza não pode
ser imposta a toda a humanidade. 2) A propriedade privada
151

segundo a nossa proposta responde igualmente às finalidades da


doutrina social da Igreja; modifica sua instituição jurídica para
torná-la conforme o novo sistema. 3) A nós parece que seja o
inverso, visto que o Estado é concebido a tutela dos direitos de
cada um e da coletividade. 4) Não gostando de cair em ilusões,
seria bom demonstrar a consistência do parecer”.
Turoldo dirá: “Para Nomadélfia o cristianismo não é utopia.
Utopia é somente em frente ao nosso egoismo. E diz que precisa
fazer antes de dizer. De outro modo a nossa religião é somente
um nomear o nome de Deus em vão” (6.5).
Explico várias vezes: “Não se deve entender que seja eu,
menos ainda a Igreja, que proponho uma reforma social, mas a
população de Nomadélfia. Propões o mínimo, isto é, a justiça,
mas é suficiente para obter o dom da paz. Alguém do Santo
Ofício duvida, mas nos comove com certeza. Realizado o
entendimento com a Santa Sê, será feito o milagre: A paz de
Cristo no reino de Cristo. Nomadélfia è a bomba atômica, da
qual se servirá o Santo Padre para dispersar o inimigo. Esse está
persuadindo também os justos, se fosse possível, que não existe
outro caminho se não uma nova guerra, que seria assinada pelos
católicos no poder [De Gasperi, para agradar os EUA, está
disposto a declarar guerra à Coreia]. Satanás é sabido, mas
estúpido. Bastará uma funda daqueles meninos, bastará uma
pedra, bastará dizer: atira là e veremos satanás precipitar como
um raio. Todo engenho de guerra aparecerá como se fosse nada.
Acredito naquela funda, naquela pedra; acredito naquele peito
maternal de uma virgem; acredito naquele filho inocente. Verão
as massas se prostrar em sinal de penitência. Será o unum
evangélico de Nomadélfia que fará o milagre nos perfeitos na
unidade. Nunca na terra existiu um cidade igual. Nunca se ousou
criar um Estado sem o nome de Deus como se fez até na Itàlia
com os católicos no poder. E então Deus se refugiou entre as
vítimas para criar para si outro povo” (13.3).

6 - Nomadélfia mete medo…

O jornalista Buzzati fala de Medo da bondade. “A vocação à


santidade parece contrastar com os nossos cuidados cotidianos.
152

Quem vive como Nomadélfia pode parecer estranho, excessivo,


incomodante. E por que negá-lo?, certo difundido ceticismo, ou
desconfiança ou até suspeita que em Nomadélfia, com a desculpa
da filantropia, se pratique uma espécie de não declarado
comunismo. E muitos que entusiasmaram-se e teriam ajudado
esta obra grandiosa, tiraram a mão que estava para se estender.
Por que? Nos últimos tempos Nomadélfia sentiu a seu redor um
pouco de frieza. Ou pode se tratar também de medo. Alguns,
ouvindo falar das obras santas como Nomadélfia, viram a cabeça,
espantados. São puxados por uma espécie de instinto de
conservação. Se ouvissem, talvez aquela voz os arrastasse. E se
obedecessem, para eles, homens do mundo, até hoje atraídos
somente pelo dinheiro, pela vaidade, pelo poder, seja a ruína”
(Corriere d’Informazione, 17.3). Gozzini: “É necessário
subverter os alicerces anti-cristãos da nossa vida associada,
quebrar a corrente do homem que explora o homem. Mas isso
nunca poderá ser feito pelo caminho do ódio. Amor, fraternidade:
palavras sem sentido para as massas sedentas de justiça. Até
quando continuam palavras sim; mas o dia em que se convertem
em fatos? O valor de Nomadélfia está aqui: mostrar um embrião
que possui em si a dinâmica da vida. Esta, portanto, é de verdade
a revolução cristã” (L’Ultima, 25.3).
A imprensa tem um abalo: “A Cidade da fraternidade está
para ser leiloada” (Il Tempo, 21.3). Recorro ao papa, que compra
tudo por dois milhões. Uma gota no deserto das dívidas. “Padre
Zeno vendeu a sua poderosa Alfa Romeo para pagar as dívidas.
Mas continua ir pedindo, incansável, heroico doído de Deus.
Devemos agradecê-lo por não ter fracassado a última nossa
esperança num mundo melhor” (L’Eco di Bergamo, 5.4). Os
senadores Caso, Riccio e Medici apresentam uma interpelação:
“O que entende fazer o Governo por Nomadélfia?”.
Precisa pagar as dívidas aos credores, mas eu tenho uma
dívida ainda maior com o anárquico. Falo disso com quem estava
comigo na Ação Católica e agora se encontra na antecâmara do
papa: “Sou chefe de um exército, cujos soldados mijam na cama;
mas não brincam, seus átomos são os mais certos para formar a
divina bomba atômica, que derrubará os exércitos. Os do
Ocidente se metem contra os do Oriente, um joguinho de satanás.
153

Nós somos a terceira força, uma casca de banana sobre o caminho


de dois gigantes: um joguinho de Deus” (a mons. D. Tardini,
enviada?). “É a hora de Deus para uma revolução pacífica. Não
me julgue como doído ou um menino, menos ainda um iludido.
Desde que vim falar com você em ‘36, nunca se apresentou o
momento para dar o ataque, portanto continuei a construir
Nomadélfia. As nossas angústias financeiras são pela falta do
dever dos católicos no poder. Não sejam diplomáticos.
Atormentem-me, mas me ouçam. Entrar nos seus departamentos
é uma coisa titânica. Os exércitos, todos satânicos estão se
preparando. Da Emília deve desencadear-se o terremoto social
cristão para perturbar todo mundo, até fazer nascer a fé na justiça
divina e na paz” (maio). “Dizer Nós somos da Igreja, para nós é
como dizer: somos imergidos no ar e respiramos. O Senhor nos
doou esta fé. Nomadélfia tem para o papa o mesmo amor que tem
para Cristo. A abundância forma guetos, o sofrimento nos fez
universais. Pelo fato que trabalhamos pelo bem estar comum,
nunca seremos ricos. Seremos sempre uma porta aberta” (13.5).

5 – Com a fé se fazem grandes coisas

O meu espírito menino, fortalecido pela fé, não pode não se


entusiasmar perante uma maquete de nova sociedade. Nem a
preocupação financeira me impede sonhar durante o nosso
Congresso: “Até hoje nos multiplicamos anualmente em razão de
um quarto dos presentes. A lei de probabilidade nos autoriza
pensar em coisas grandes e em decidir de plantar a semente de
algumas cidades: um povoado na Itália do Norte (Fossoli), um no
centro (Grosseto), um no sul, um em cada continente. Todo
povoado se multiplicará segundo uma lei constante por causa do
natural desenvolvimento das famílias. Da família nasce, cresce e
se expande a família. Do povoado nasce o povoado, que no
espaço de 50 anos criará uma cidade de 900 povoados com uma
população de 5, 6 milhões de habitantes. Eis como Jesus
construirá seu reino sobre a terra e o mundo crerá, porque uma
cidade assim é motivo de credibilidade. Proverão fazê-lo os
inimigos de Deus, mas falirão: somente a Igreja pode operar este
milagre. O papa deve vender tudo aquilo que é necessário para
154

procurar 1.208.000.000 Liras para adquirir esse campo, no qual


há o tesouro evangélico. E digo também que se não o fizer
grandes males acontecerão à Igreja. Aquela importância, muito
multiplicada, será subtraída ao papa, não mais para a fundação da
cidade de Deus, mas para se defender do inimigo. É um ato de fé
baseado em motivos de credibilidade. Se não acredita, venha,
veja, estude Nomadélfia. Entretanto o inimigo fabrica armas de
guerra. No Vaticano se arrisca repetir a vergonha de Bisanzio,
onde se discutia sobre fúteis coisas enquanto o inimigo estava às
portas. Prevenir o mal é ação de anjos” (maio, enviada?). Se nem
os cristãos conseguiram afundar o barco de Pedro, quer dizer que
há a mão de Deus? “Não é o mundo não cristão que quer
dispersar Deus e a sua Igreja; somos nós que temos preenchido de
mundanidade as suas artérias. Prove o Santo Padre reagir e verá
que será crucificado com mais astúcia que não foi usada com São
Pedro por aqueles grosseiros pagãos de Roma. A doutrina social
da Igreja é esta: Pai, o que é meu é teu, o que é teu é meu, assim
sejam eles. Precisa derrubar de uma vez capitalismo, marxismo e
propor a todos a justiça, aos católicos a charitas” (3.5).
Volto falar em Milão aos ricos. Os auditores parecem
sentados nos espinhos. Por que eles veem se sabem, que falo
duramente? “Fazem-se belíssimas igrejas, gastando muito
dinheiro. Não aceito e não gosto. Eu digo, antes de tudo, o templo
de Cristo é o sofredor: comunista ou não comunista, ateu ou não
ateu, é sempre seu rosto dolorido. Em Roma quase nunca vou em
São Pedro, prefiro os lugares onde Cristo chora. Peço a vocês:
quando irei descer do palco, cospem na minha cara, me batam,
mas falo como Cristo fala. Sabem quem era o samaritano? Um
herege, um cismático. Se eu arriscasse repetir esta parábola,
dizendo: “Passa um padre e vai adiante; passa um católico e vai
adiante; passa um comunista e desce de cavalo …” vocês me
licenciariam. Mas Jesus tomou como exemplo o adversário,
porque o rosto do amor não tem cor” (5.5).
Dizem que esta linguagem tenha provocado a reação de
muitos bispos. Eu gosto de saber a reação das vítimas. Chamo em
causa o Santo Ofício: quem me imergiu em suas estigmas?
“Foram vocês que me ordenaram e me mandam nos esgotos das
nossas omissões recolher um pouco de esterco do qual levantar o
155

pobre. E depois de anos volto, chorando, para depor aos pés do


papa um pouco daquele esterco: “Eis, Pedro, como foram
reduzidos os nossos filhos”. Qual escola teológica ousará não
chorar com o papa tanta desgraça? Naquele momento Jesus
operará o milagre do ataque. Alguma coisa proporemos, o povo
aceitará, porque o rebanho é sempre e somente de Deus” (11.5).
“Quando acetei o sacerdócio calculei sobre Cristo, que vi
mais na cruz que em outro lugar” (25.5). Se a ele foi reservado o
trono da cruz, que coisa podemos esperar para nós? “O mundo
não percebe as nossas lágrimas. Há 30 anos, todos os dias, o
mesmo sofrimento. Nomadélfia é um mundo que sorri com a
espada cravada na garganta. Viver perto de nós é um holocausto.
Pegamos pancadas, mas não vacilamos: do Jetsemani ao Calvário
há ainda muita estrada. O povo vem, vê as rosas, não os espinhos.
E se fôssemos somente nós a sofrer, seríamos muito felizes. O
Governo hesita. Depois de uma seção do Santo Ofício me foi
comunicado que Nomadélfia é “a coisa mais límpida e
sobrenatural que apareceu na história da Igreja”. “Se não
aceitamos a sua proposta, que será da Igreja?”. Você entende, não
pode ser que um holocausto. Plantei uma mina debaixo de uma
pedra secular. O estopim está pronto, peço um fósforo e me foi
prometido. Se conseguir, Nomadélfia seria como um farol de
vida. A respeito dos sofrimentos do caminho, mais graves serão
as horas da dor. Para chegar à vida eterna existe somente o
caminho do Calvário. O que há de bonito na vida se não a sua
conquista na dor?” (à Pirelli, 12.5).

6 - Tento o golpe àos caixas pontifícios

“Tenha a bondade de me receber logo. Sobre os filhos


ameaça o maior fracasso do fariseismo católico. América e
Rússia querem o domínio do mundo. A primeira recruta os
imbecis, a segunda os escravos, todas duas em nome da
liberdade. Se o papa vacilasse e tivesse medo de satanás, seremos
perdidos, o mundo cairia na barbaridade” (maio ‘50).
Em abril o papa tirou do bolso mais 5 milhões, salvando os
bens do leilão, que entestamos a pessoas inexistentes. Agora tento
o golpe àos caixas pontifícios. “A dívida de 350 milhões foi
156

reduzida a 200. O Governo declarou que pelas passadas


assistências não dará nada. Os credores nestes dias sequestraram
os produtos, gado, tendas. Ameaçam vender as nossas terras, ou
melhor, desvalorizá-las. Com ele nos comportamos como
cordeiros que invocam não ser degolados. Demos tudo e
sofremos com o sorriso da fé nos lábios. Uma autoridade
perguntou: “E se ninguém vem ajudar, o que farão vocês?”. “Os
nómadas”. “Nesse caso pegarão os filhos de vocês”. “Vamos ver:
vocês não são Deus”. Se Nomadelfia fosse um simples fato
financeiro seria desaparecida mil vezes, porque a criança não
pode pagar leite e fraldas. Mama e se aquece a crédito, pagará na
idade madura. A sociedade neopagã, habituada a bombardear e
esfomear, não pode sentir o amor. É ainda a hora de Barrabás. Eu
peço ao Santo Padre 200 milhões, para que tenham a vida, um
bom passo para a auto suficiência” (ao núncio, 30.5). Em
Grosseto está acontecendo o sequestro. Tento fazer entender ao
papa o que pode provar um pai, que vê levar o fruto de suas
fadigas: “Os filhos, depois de um ano de duro trabalho, veem
levar o trigo enquanto sai do trilhador. Carregam, olham, ficam
calados. 30 toneladas já se foram, enquanto o termômetro das
dívidas desce debaixo de 200 milhões. Pedi a V. Santidade, talvez
não pudesse. Mas agora peço 20 milhões. Precisamos de
fertilizante, sementes, nafta, sapatos, comida. Uma fácil profecia:
daqui a pouco o papa verá chegar os monadelfos com carros
cheios de produtos. Não peço uma colheita, mas uma semeadura.
É um negócio do Céu” (5.7).
O prefeito comunica que Scelba depositará 450 mensalidades
de 180 liras ao dia, a uma condição: o dinheiro seja somente para
os gêneros de primeira necessidade e para os assistidos (20.9). A
desconfiança é extrema. Como não bastasse, exige uma comissão
administrativa, não devem ser feitas despesas sem o
consentimento, não devem mais ser aceitos meninos (10.7). Eles
procuram formas de controle, eu, soluções na raiz. As tentativas
de descobrir os canais da providência se tornam frenéticos. O
Time de Chicago toma as minhas defesas: “Os nomadelfos
poderão ser a semente de um movimento destinado a sobreviver a
padre Zeno. “Aqui em Nomadélfia, ele diz, vivemos o verdadeiro
evangelho. Nós não temos dívidas, é a sociedade que tem a dívida
157

de manter os sem família” (26.6). G. Kumlien de Londres: “Uma


espécie de milagre cristão aconteceu e se chama Nomadélfia.
Muitos ricos acusam padre Zeno de ser um comunista. Ele pensa
que seus dons, mais de que uma boa ação, representem um dever
das classes abastadas. E Nomadélfia é pobre, tão pobre que
quebra o coração” (The Commonwealt, 14.7). Eu constato: “A
desnutrição nos prostra, mas paciência. Para trabalhar precisa
comer; para comer precisa trabalhar. Um círculo vicioso. Mas
viveremos, se não aqui, ao menos de là. De vez em quando o
Senhor nos lembra que somos irmãos dos que sofrem e morrem
de desnutrição e abandono. Estamos com eles” (1.8).
A economia piora. No Vaticano nos olham mal, porque o
critério canônico da bondade de uma obra assistencial é o fator
financeiro. Se é mais aquiescente, é mais bem vista. Para mim
não é facultativo, mas deveroso dizer a verdade na cara dos
governantes e benfeitores. Eu açoito a hipocrisia dos católicos, a
incoerência dos eclesiásticos, os privilégios dos ricos, porque se
não se denunciam as causas últimas da injustiça social nada
mudará. Não podendo me atacar pela frente, procuram pretextos.
Nos ambientes clericais de Carpi e Modena, por exemplo, circula
a voz de que eu administro mal a Providência. O núncio acha
inoportuno recomendar o Comitê de Milão pela colheita de
fundos nos EUA (Borgongini à Pirelli, 30.3.’50). Como explicar
aos prelados e a Scelba, que o que para eles é motivo de
condenação, as dívidas, para mim, é motivo de credibilidade? Sei
de fazer uma coisa fora do ordinário. Como posso saber que estou
fazendo a vontade de Deus? Então exigo um sinal extraordinário:
que a providência chegue atrasada, mas chegue.
Gozzini acerta: “Nomadélfia não é e não quer ser uma obra
para abandonados. A aplicação da palavra de Cristo faz algo de
muito diferente. Mas se nela o dinheiro não circula, como veio?
Da caridade dos ricos. Nem isso é exato. Em Nomadélfia se
acredita que os insolventes são os de fora que se consideram
credores. A relação burguesa de benfeitor e beneficiado está
quebrada, ao menos por uma parte, que não se sente por nada
beneficiada, mas satisfeita nos seus direitos vitais. Mas há mais.
Em Nomadélfia se está indo para a autosuficiência e teriam
conseguido se tivessem fechado as portas. Mas teria sido renegar
158

a si mesmos o amor, que não tolera cálculos e limitações. O amor


e a vida não vão de acordo com os balanços de paridade”
(L’ultima, 3.’50). A minha via crucis econômica é feita de tantas
daquelas estações! Cheguei àquela que me levará ao tribunal. A
Sociedade do Algodão de Bologna nos prometeu: “Agora tem em
nós inimigos prontos a tudo para dar-vos uma lição” (24.7).

7 – Aposto nos religiosos

“Vista a crise dos partidos recomeço falar ao povo, propondo


o movimento de ‘45. Nas praças, 10, 20 mil pessoas”. As irmãs
clarissas de Carpi oram na mesma hora do meu discurso. Sempre
em movimento, procuro aliados do meu sonho. O testemunho dos
servitas me convence em envolver os religiosos no movimento.
Antes de propor isso ao povo, precisa por ordem dentro de casa,
sacudir os bons da letargia. Os conventos fervem: em Roma há
um congresso internacional de atualização [vivaz a discussão
sobre o jogo de futebol nos seminários!]. Apresento ao papa o
projeto de preparar um grupo para lançar a minha ofensiva: uma
missão de penitência em preparação ao lançamento do movimento
em escada nacional. Se o pontífice será de acordo financiará. “Os
frades devem ser o exército da penitência. Os que querem ser
nossos consanguíneos se reunem em Nomadélfia por dois meses.
Apresenta-se o movimento, se discute, se faz um curso de espirito
debaixo das tendas, trabalhando as terras e eu mesmo prepararei
com uma meditação ao dia. Tema: a mensagem de Nomadélfia.
Fará penitência também a Santa Sê, desceremos todos do cavalo.
Calculo que serão, numa primeira remessa, não menos de 500.
Precisamos de dez tendas (30 milhões); aparelhos (30 milhões);
200 pequenos furgões com máquina de projeção (200 milhões).
Os comunistas não gastaram 15 bilhões na propaganda
eleitoral?”.
O vinho novo de Nomadelfia caberá nos odres velhos das
congregações religiosas? “Nomadélfia é o monacato social, não
mais de indivíduos, mas de famílias. As ordens religiosas são
exércitos na espera de morrer por esgotamento. Sempre foi o meu
sonho tirá-los da letargia para torná-los nossos consanguíneos e
159

nos mover para uma santa revolução social. Teologizando são


mais marxistas que católicos. Almas generosas, mas reprimidas.
Nas regras não acreditam mais, porque são formas sem
substância. A Ordem em si não tem nada a dizer. Se chega o
comunismo os varre de uma só vez; se chega antes o
comunitarismo os absorbe rapidamente. É a hora das massas
também no seio da Igreja. É a hora de tirar do cavalo todo o
sacerdócio (padres, não patrões) do alto para baixo sem tocar a
trombeta e curar o ferido. Se hoje o povo acusa a Igreja de
capitalismo, precisa demonstrar com os fatos que não é verdade.
Quando em Roma vejo construir prédios e meninas estupradas
pelo pai ou pelo irmão, me dá vontade de chorar, porque não
posso me jogar nem contra aqueles nem contra estas. Deve ter
algo que não vai… Muitos católicos esperam varrer o comunismo
através das armas aliadas. Raça de víboras! Eu penso que se
tivermos perdido a batalha de Lepanto e não tivermos feito as
cruzadas, os árabes seriam todos católicos. O compromisso não é
de natureza sobrenatural, é mundanidade, bom para o inferno. Os
bispos juram fidelidade aos governos; mas estes não se importam
dos direitos da Igreja: são todos opressores dos pobres. Pilatos-
Truman; Herodes-Stalin. Aos poderosos da terra não há outra
coisa a dizer: “Sim, não”. Esta é a Igreja, o resto é mundanidade.
Até agora não houve nenhum estado que tivesse feito os
verdadeiros interesses da Igreja e o povo humilde não pode
entender como possa estar de acordo com o Estado. Nomadélfia
demonstrará que a concepção dos estados é paganismo. Os
religiosos devem ser unum a todo custo. Se pedem ao papa 515
milhões…” (1.6).
Como reage o diplomático Mons. Montini? “Li com vivo
interesse; embora não possa não fazer reservas, resto pensativo
sobre o apelo às nossas responsabilidades. Não é de minha
competência entrar no mérito, visto que o Santo Ofício já faz
isso” (16.6). Procuro pegá-lo pelo coração: “Quem sabe quantas
reservas precisará fazer. É uma guerra, na qual nem sempre está
claro o objetivo de cada operação. Une-se também você a nós,
verá como lhe queremos bem. Somos uma massa selvagem, mas
verá que corações! Escrevo-lhe com tanta confiança porque sei
que você é uma alma íntima do Senhor” (20?.6).
160

8 – Amarrado mãos e pés

Algo filtra pelos muros do Vaticano. Mons. Crovini refere a


padre Marchi: “O papa não toma decisões, devolve aos órgãos
competentes; a Santa Sê nunca dirá não pela evidente bondade da
coisa, mas não dirá sim para ser livre de intervir no seu
desenvolvimento, se nascessem choques e contrastes. O espírito
sobrenatural de Nomadélfia os tocou muito. Uma das maiores
dificuldades é o medo de se mexer no povo no sentido oposto
aquele que se quereria. Teme-se a oposição de alguns, que
poderiam parar a coisa durante a sua atuação” (31.5). “Nunca dirá
não, nunca dirá sim”: esta é a diplomacia!
Faço notar a Ottaviani: “Calculava que com 500, 600
sacerdotes se podia ter uma missão de 3, 4 dias por paróquia. Se
as paróquias são 23 mil, em 4 meses se passaria na Itália toda. O
Santo Padre não concorda: assim seja. Voltamos ao projeto de
começar na Emília, onde nós somos suficientes. Mas também
aqui as coisas são impossíveis. Se numa cidade digo ao povo:
Organizemo-nos, perguntam se me coloco a disposição deles. E
sei que em consciência não posso garantir isso, portanto não devo
começar. O povo não pode dispor de mim e serei obrigado
abandoná-lo no primeiro choque como em ‘45. A lei eclesiástica
nos impede o abraço ao povo, porque nos pára com o simples
ponto de vista de um pároco. Um movimento não pode marchar
com sacerdotes, que podem ser parados na alfandega de um país
qualquer. V. Exa. me disse de começar, mas não posso porque
estou amarrado mãos e pés” (27.6).
Tomado pela paixão pela justiça, ouso escrever: “Santo
Padre, eu resisto; os guardas suissos não me metem medo; as
excomunhões não me tocam; sou filho, me abençõe. A Igreja é
levada pela história e pelas profecias a construir o Reino e a sua
justiça” (’50).
Enquanto eu penso na revolução no aprisco, Roma pensa na
caça às informações e delações. O card. Piazza pede notícias
sobre o clero, fieis, obras da diocese de Carpi. Em vão o bispo
tenta tranquilizar o card. Pizzardo: “O núncio visitou tudo.
Repetiu-me várias vezes que ficou entusiasta da Obra” (18.6). O
161

Santo Ofício é perturbado: como é possível que o inquisidor ficou


entusiasta de uma obra na mira do tribunal da Igreja?

9 - “Ouvimo-los mesmo blasfemando”

Sofri demais. Ironia e sarcasmo se tornam uma válvula de


escape para não explodir. As vítimas, as que no juízo serão
acusadores em Cristo, convidam os coirmãos a ouvir mesmo se
blasfemam. “Próprio vocês, antepostos para serem nossos irmãos,
pais e mestres, estão em dolo. Vocês nobres, nós ignóbeis. Aonde
vocês chegam abrem-se todas as portas. Aonde chegamos nós, o
cachorro de guarda late. Vocês se autorizaram para nos abater
através das prebendas; nos colégios comem melhor do que os
abrigados. Por que não nos pedem licença antes de tocar no
tesouro da Igreja? Não é patrimônio comum? Antes os
pequeninhos, depois vocês. Nas esmolas em que vocês nos dão as
migalhas, muitas vezes tocam a trombeta e nos ofendem. Não nos
acusem de heresia, sabem muito bem. Criaram para vocês uma
Igreja mundana, onde se como segundo a lei. Vocês nos mandam
pagar esta fé a alto e injurioso custo. Se nossa mãe nos tratasse
assim teríamos o direito de sair de casa sem perder a fé; mas
vocês fazem isso contra nós e somos obrigados ficar, porque
saindo do barco cairemos na água. Perdido se saímos, arruinados
se ficamos. Somos muitos. Não temos outro ato de amor que
combater por dentro. A pobreza no meio dos filhos e irmãos
pobres é um dever de estado. A própria morte no meio dos
inocentes ameaçados de morte é um dever principal. Não morrer
para depois exaltar nos altares é coisa de coveiros. A Igreja é
menina. O que são vinte séculos para uma criatura daquela força?
E vocês querem domá-la, ainda são seus tutores. Mas crescerá.
Nós somos a lava de um vulcão em erupção. Estamos nos
alicerces das suas estruturas pagãs. Derreteremos vocês. Este é o
amor: evitar de nos oprimir e de nos destruir. Vocês dizem que os
pobres estão no coração de vocês. Se ali estivessem, vocês seriam
mortos pelo remorso. Esta é uma acusação. Se tivéssemos dito
desgraçadamente a verdade?” (29.6).
Na cúria papal há muitas almas: o partido romano de
Ottaviani simpatiza pelas direitas, o partido católico de Montini
162

por um projeto cristão de sociedade. As personalidades fortes


como meu avô me são congênitas. Entre mim e Ottaviani nasce
quase um tácito entendimento. Certamente não ideológico!
Preciso de um prelado famoso que me escute e ele é entusiasta da
minha coragem. Eu sinto os oficiais do Santo Ofício mais como
irmãos, que juízes; o palazzaccio mais casa que tribunal. Não
poderiam vocês, entre o barulho das fortalezas voadoras que
punem os filhos sobre a terra [na Coréia], por à disposição o
supremo tribunal para fazer um processo por diretíssima? Sem
punir ninguém, mas curando o curável? Eu sou levado a fazer o
que faço pelas realidades nas quais Deus me jogou. Acredite,
nada parará esta caminhada dirigida para desintoxicar a Igreja.
Três guerras mundiais em 35 anos [o conflito coreano deu início
à terceira guerra mundial?]; nos interstícios as massas lutam pelos
seus direitos; a corrupção bestifica; os padres não conseguem
mais ser compreendidos; um Cristo tão mortificado que parece
um opressor... Não, não, assim não vai. Eu tenho muitas
propostas a fazer, mas vocês devem ser mais prontos para me
ouvir. Imaginem ter encontrado em mim um rude guia para
escalar vales e montanhas, que eu conheço porque sou daqueles.
Quando ouço dizer aqui que sou um iludido, pisam no meu pé,
para que não levante para vos pegar pela mão. Quando me dão
uma bofetada, acusando-me que financeiramente somos
desastrados, me afastam com uma calúnia. Não é culpa minha se
as crianças têm o vício de comer. Eu venho aqui, volto de novo,
experimento, experimento de novo, porque sei que aqui Cristo
deve estar mais do que em outro lugar. A história da Igreja deve
mudar de rumo a todo custo. Quem vos autoriza a desconfiar da
onipotência de vocês? Para vos obrigar a mudar o rumo dos
eventos? Os santos são imitadores daquele que vê na frente e
prevêm. Vocês fazem operações cirúrgicas nos frutos podres,
invés de curar as raízes doentes. Queira-me bem até abraçar-me,
também quando, exasperado, blasfemo na cara as blasfêmias dos
opressos em Cristo, que grita como um monstro: Tenho sede. É a
sua Igreja crucificada na cruz, que grita: Tenho sede. Não deem-
lhe fel, mas um rio de amor” (3.7).
As vítimas insinuam-se no Vaticano. O substituto do Santo
Ofício escreve para mim: “Mons. Ottaviani me encarrega de
163

responder, que pode fazer quanto propõe: isto é uma reunião


limitada ao lugar e ao número de pessoas. Pessoalmente gostei de
seu planejado manifesto, pela sinceridade e espontaneidade.
Padre Mario Crovini”.
Uma permissão genérica e sem protocolo poderá pular a
autoridade local? Eu entendo isso como uma licença e mando
uma cópia aos que desconfiam de mim. Reprovada a missão
nacional, tento na Emília. Para mim é como jogar em casa. O
bispo informa Mons. Montini (15.7) e chega o veredito: “O Santo
Ofício deixa em cima de mim toda responsabilidade e eu sinto
muito por não poder dar a permissão para a reunião” (27.7).
Jogado entre a Secretaria de Estado e o Santo Ofício,
continuo pela minha estrada. Informo os temas tratados no
congresso dos religiosos: exigências das regras e do evangelho;
papel dos leigos na Igreja; sua competência na aplicação do
evangelho em campo social e político. E as conclusões: nos
empenhamos em levar a Igreja ao espírito dos primeiros; nos
unimos aos nomadelfos como consanguíneos; pedimos aos
superiores de nos ouvir (22.7). Somente 15 assinantes. Tinha
previsto 500, 600! Avançamos a duas velocidades: eu, a minha,
Deus, a sua. Um sucesso é certo: os servitas abraçam a nossa
causa. Não somente: “Em Roma fiz examinar as finalidades de
Nomadélfia, para que sejam tirados dolorosos equívocos. Custou-
me um monte de tratativas e estudos. O resultado é satisfatório:
louvou a iniciativa, achou sobrenatural e o Santo Padre teve
expressões de aprovação” (julho).

10 – Os sacerdotes na comunidade são obstáculos?

A relação com Ottaviani é tal que lhe dou um conselho:


“Sendo que o bispo não pode assumir as suas responsabilidades,
não poderia V. Exa., de acordo com a Secretaria de Estado,
declarar que se trata de um movimento promovido por uma
comunidade social católica, a qual deve explicar seu apostolado
no povo com seus sacerdotes? Talvez estivessem ausentes nas
lutas eleitorais? Nós, que compartilhamos a vida deles, podemos,
por causa de pura disciplina, nos tornar um obstáculo ao
desenvolvimento da cidade? Seria uma grave prejudicial, que os
164

induziria a nos excluir, considerando-nos estranhos. Seria


quebrar a unidade fraterna entre Nomadélfia e os seus sacerdotes,
seria matá-la” (27.7).
Padre Vivarelli escreve: “Muitos demais descontam os
nossos cômodos sobrenaturalismos. Mas, amanhã, numa
estruturação comunitária, que deve absolutamente vir, qual será o
lugar do sacerdote? Quebrar e destruir a casta religiosa e
sacerdotal e imergir de novo o homem de Deus no povo, ao qual
pertence por raça e por vocação, é a nossa primeira exigência, a
nossa fome e sede” (Il Gallo, dic. ’50).
Trocas e contatos, viagens e correspondências, uma corrida
contra o tempo para obter de levar ao povo o respiro de Deus: a
justiça. Aperto Ottaviani: “As respostas dadas por meio de
Crovini a Vannucci não aparecem claras para conhecer a vontade
do Senhor. O Santo Padre é desconfiado sobre o êxito do
movimento por opinião pessoal ou por decisão apostólica? Se é
por opinião pessoal, nós julgamos isso não somente possível, mas
obrigatório. Se for o contrário por decisão apostólica,
obedeceremos” (fim de julho).
Obtenho de Mons. Boccoleri o inesperado: “O arcebispo de
Modena, examinados os documentos, respondeu que podemos ter
o congresso onde queremos. Escolhemos Modena” (ao bispo
15.8). Finalmente um aliado, que coloca à disposição a tipografia
para relançar o programa político.
Aos 22 de agosto La giusta via sai em edição especial, 30
mil cópias: Nomadélfia propõe ao povo a solução social. O
lançamento do movimento. Retorno na praça. Verdadeiras
marchas forçadas para alcançar o coração do povo: 46 discursos
em 40 dias. Parto de um fato concreto: “Vimos mortes demais. A
Itália participou de cinco guerras: Líbia, 1911; primeira guerra
mundial, 1915; campanha da África, 1935; guerra civil na
Espanha, 1936; segunda guerra mundial, 1940. A humanidade é
traumatizada pelas bombas atômicas. Queremos mudar estrada?
Depois da guerra eu vos fiz a proposta dos dois amontoados, mas
dividiram-se e na Coreia as armas trovejam de novo. Erramos
todos. Quem tem os meios move os homens como se chama o
cachorro com uma fatia de polenta. Democracia, governo do
povo! Não é verdade: é oligarquia. Foram postos no governo,
165

fazem o que querem e vocês aceitam. Para eles vocês são massa
informe, incapazes de se governar. É hora de mudar. Eu tenho nas
mãos o secreto para correr com vocês para parar o temporal”.
Meu amigo Raselli dizia: “A sua é uma oratória que tem muito do
profeta, mas também algo do tribuno. Este e aquele dão um
fascínio irresistível à sua palavra”. Ajudo-me com episódios, o
dialeto, exemplos práticos. Uma estratégia não ditada pela astúcia
ou cálculo, mas pelo coração.

11 – Na praça: no coração do povo

Na praça me sinto como um “deus”. Aquela multidão de


rostos, de expressões não pode ser que de Deus. Parece-me estar
na sua presença e o entusiasmo-me transforma: “Acorda, povo!
Tivemos um sonho feio: a história é um pesadelo de injustiças,
guerras, fome. Sejam como ao pássaros, ao menos! Em outubro
vão colher as uvas. Descem sobre as videiras e comem. Não
fazem provisões, não levam nem um grão. Por que acumular,
dividir-se em patrões e servos? Aprendamos deles que Deus nos
deu uma medida certa: se tens um estômago só, por que queres
ganhar por dez? Fazes indigestão, passas mal tu e os outros. Qual
é o valor de duas moedinhas? Põe na frente dos olhos. O que vês?
Nada! Ah, o dinheiro, o dinheiro! Nas minhas mãos não pára
nunca… Terá medo de mim? Em Mirandola fiz quatro discursos:
O dinheiro, Com o dinheiro, Pelo dinheiro, Sem dinheiro. O
bibliotecário comentava: “Toda noite via cair uma prateleira. Na
última noite caíram todas”.
Vai numa galeria e grita: “Roba, roba, roba…”. O eco te
responde: “Rouba, rouba, rouba…”. [No dialetto roba quer dizer
rouba...]. Deixo imaginar a hilaridade dos pobrezinhos como eu e
a raiva dos ricos. Quais são os lugares mais mentirosos da terra?
As lápides dos cemitérios: quando estão mortos, são todos
virtuosos, muito generosos. E esse mundo injusto de quem o
herdamos? Pela constituição o trabalho é um direito. Não é
melhor dizer que é um dever, assim sistemamos os ricos que
vivem de renda?
166

Ouçam esta. Um cego e um aleijado pedem esmola. Os


negócios vão mal. “Se estamos sempre no mesmo lugar não
conseguimos sair do buraco. Devemos andar, procurar novos
clientes. Eu tenho pernas boas, mas os olhos apagados, te carrego
no ombro; tu tens os olhos bons, mas as pernas mortas, me guie.
Eu sou as tuas pernas, tu os meus olhos”. Desde aquele dia os
negócios foram ótimos.
E a história do engenheiro? Os trabalhadores estão
construindo uma ponte. Um dia os encontra de braços cruzados.
“Cadê a minha ponte?”. Um responde: “Você diz que tudo
depende de seus desenhos. Experimente por seu pedaço de papel
no rio e vamos ver quantos carros passam pela outra margem!”.
Um silêncio! O povo retem a respiração. É o momento das
parábolas políticas, o meu cavalo de batalha. “O senhor rico mora
no castelo sobre a colina. Os súditos trabalham as terras ao redor.
Uma manhã abre a janela e vê uma multidão se dirigir para o
castelo: quem com a pá, quem com a forca, quem com a foice,
quem com a enxada. Percebe que está se preparando o temporal.
Toca a campainha, pergunta ao chefe dos servos: “O que faz
aquela multidão lá em baixo?”. “Beh, estão cansados, porque
foram explorados por seu pai, seu avô, seu bisavô...”. “Mas é
contra a lei!”. “É verdade, senhor, vá você explicar isso a eles”.
Reúne os servos. “Tu: pega mil liras, corre lá no meio e grita Viva
Jesus Cristo! Tu, eis mil liras: vá lá e grita: Viva Carlos Marx!
Tu, vá e grita Viva a Rússia! Tu: Viva a América”. E fica
olhando. Os camponeses dizem ao que grita Viva Jesus Cristo:
“Vamos no castelo para acabar com o patrão”. E ele: “Viva Jesus
Cristo”. “O que dizes? O que significas?”. Naquele momento
chegam os outros: “Viva Carlos Marx”, “Viva, a América”,
“Viva a Rússia”! E se dão pancadas: um desastre. Fecha a janela:
“Desta vez também fiquei livre”.
Concluo: “Ou vocês, quem em nome de Cristo, quem em
nome da justiça, vos abraçam e encontram a solução ou a política
não consegue. Não sejam escravos. Um povo não pode entregar
suas sortes a poucos homens! Caneta na mão, façam as contas.
Ou a contabilidade ou Deus nunca nos dará a paz, porque brota
da árvore da justiça. Deus pede a justiça para todos, aos cristãos o
167

amor. Com estas duas forças vem a paz” (Vignola, 6.9; DZR,
233ss).
Quando me referem que está presente o mais rico da cidade,
pego as palavras da Escritura: “Ai de vocês ricos, que
acumulem!”. “Raça de víboras…”. Conto, numa versão moderna,
a parábola do rico epulão, do tolo que enche os celeiros, a história
de Zaqueu. Ironizo, brinco. O povinho gosta e consente. Outras
vezes o amedronto: “Precisa apontar no coração dos ricos… atirar
aqui, no peito, onde eles têm a carteira! Caída aquela, somos
todos irmãos! Por que manter os piolhos que nos sugam o
sangue? Se faz assim e se esmagam…”.
Quem não me conhece me julga por um charlatão, mas não
percebe o meu tom de voz, do gesto, daquele fluído que emana da
minha pessoa incapaz de matar uma mosca! Eu comunico mais
com a presença que com a palavra. E quando se desabafaram
contra o rico, lanço o desafio ao pobre: “Se por um golpe de sorte
trocássemos as partes, nós, sem um tostão, o que faríamos dos
bilhões? Pode ter sentimentos humanos quem dispõe de meios,
que dariam de viver a muitas pessoas! Quantas mansões com os
guardas armados, os cães raivosos, as grades! Quando você fecha
a porta com duas voltas não se torna prisioneiro de si mesmo?
Que vida é viver com o terror dos ladrões, dos sequestros, da
falência? E nós quereríamos ser no lugar deles! Mas o rico é um
afortunado ou um degenerado?”. Depois do discurso o povo vai
embora pensativo. Aperta minha mão, me toca para se dar conta
que estou vivo, em carne e osso. Ou, talvez, tocando-me entenda
tocar o sonho de todos? No meio do povo me sinto bem e passo o
tempo nas conversações noturnas com os inevitáveis lanches,
vinho, sanfona. Navegar no povo é tonificante. Sinto-me bem
como uma criança no útero materno.

11 – Julgam-me utópico

Parte do clero dissidente, os políticos falam de bagunça,


presunção, utopia. O homem da rua justifica-se: “Não roubei, o
que tenho é fruto do meu suor. Por que deveria ser igual ao que
bebe o que poupou na taberna?”. Cavando no coração humano e
na história descobri que no Paraguai de 1500 os jesuítas
168

formaram comunidades para defender os índios: as famosas


reduções. Por que os assim chamados selvagens, tem ainda hoje
tudo em comum, não acumulam não especulam, veneram a terra
como uma mãe que os nutre? Se eles fazem isso com muitas
dificuldades de sobrevivência, por que defender que o interesse
pessoal ou egoístico é um instinto natural? Utopia é esta
sociedade, que reduz o planeta a uma câmara a gás onde o
individualismo asfixia até a nossa alma. Todas as comunidades
sociais fracassaram. Eis a necessidade da fé: nós cristãos
devemos fazer com a fé coisas, que outros, sem a fé, tentam fazer
e não conseguem.
Em casa revejo os olhos da multidão, ouço de novo os
aplausos, não para mim, para o sonho. “Ontem à noite, em Carpi,
aparece um trabalhador: “Esta é a vida certa e é tão bela, que
tenho medo de não conseguir realizá-la”.
Os cristãos amaram Cristo na maneira deles. Cada um, em
seu nome, constrói a mansão, a posição, as propriedades para os
filhos. E os irmãos? Então eis a queixa deles: “Nunca ensinaram
a nos amar”. Cada um, se defende do outro. Apresenta-se
Nomadélfia e diz: “Vocês são irmãos!”. Epa! Esta sim é uma
novidade. E se são irmãos no meio de vocês não pode ter o
patrão, que é um explorador. “Nunca conseguiremos tirar o
patrão? Sempre houve e nos oprime, nos divide”. Então rebato:
“Precisa fazer os dois amontoados”. “Sei que estou fazendo uma
proposta muito simples e que os aproveitadores a tornam difícil.
As coisas simples metem medo, porque quer dizer olhá-las nas
suas realidades essenciais. O que está procurando a humanidade?
A vida. Se Cristo condena quem não compartilha a vida, não se
trata de fatalidade, mas de responsabilidade (Mt, 25). Se por parte
do rico há o dever de restituir, pela outra há o direito de prender”
(13.10).
Estou convencido de ser levado por uma força superior: “Eu
não tenho medo dos que podem me parar. Se o povo nos seguirá
será uma avalanche. Tudo dependerá do congresso. Se fracassará,
os inimigos se arremessarão contra nós, se será um sucesso, em
poucos meses o povo estará no poder e fará novas leis.
Liberaremos a Igreja dos burgueses. Será fácil ser revolucionários
de todo o ocidente num abraço de paz e de progresso com os
169

povos do oriente comunista. Inútil se jogar contra os ricos e os


carolas. Precisa que o vento sopre e cairão como folhas secas.
Procuremos os sofredores, unamos as forças sãs e marchemos
para a revolução de Deus, que ama os crentes e os não crentes”
(1.9).
Um senhor de Mirandola comenta: “Os discursos de padre
Zeno fizeram uma enorme impressão. Para os comunistas é o que
precisa não como paliativo, mas como solução. Alguém duvida
que queira fazer o jogo duplo. Para os católicos é motivo de
escândalo e lhe atribuem frases inventadas contra o papa. Coisa
de loucos. Mas não pararão esta insubstituível evolução social”
(7.9).

12 - Scelba em Carpi

No cinema de Carpi vai falar o ministro do interior em


pessoa: Scelba (17.9). Por que uma personalidade grande da DC
vem fazer um comício na cidadela mais vermelha? O povinho o
compara a um canhão vindo para atirar nos mosquitos. Que
ostentação de forças da ordem ordenadas para a guerra para
amedrontar os sem deus! O efeito-Scelba aparece logo: é proibido
o nosso congresso já autorizado (3.10). Escrevo ao chefe da
polícia: “Critico os erros dos governantes para induzir o povo
assumir as suas responsabilidades. É motivo de maravilha que eu,
sacerdote, me dedique à luta social? Nomadélfia aceita as vítimas
das desordens para curar as causas. Não me interessa o
comunismo ou a tirania capitalística, mas unir os adultos. Como
explica a ordem nas praças, onde falo? No fundo da alma do povo
há um secreto: sente que fala o ministro daquele Cristo que é
justiça e bondade também nas lutas da vida pública. É absurdo
que um Governo DC se oponha ao congresso. É uma coisa muito
grave, para não dizer um crime...” (4.10). Reconfirmada a
permissão, difundimos o convite: “Venham em 15 de outubro ao
Congresso da Fraternidade Humana. Venham todos, de todas as
cores. Se vocês se unirem, realizaremos a justiça sem luta de
classe. Vão ao poder cancelar a lei da floresta, votando um novo
sistema social. Se a província de Modena o decidirá unida, irão
ver, será um sopro para toda a Itália” (5.10). “Também nas
170

células comunistas se estuda a nossa proposta e se diz que é o


único caminho a ser seguido. Depois as objeções: “Seria bonito,
mas não devemos nos confiar dos padres, é uma jogada para nos
dividir”. Os DC: “É favorecer o comunismo”. Confuto todos eles.
Uma luta de gigantes! A massa me entende, intelectuais e parte
do clero ficam frios ou hostis”.
A notícia do congresso ressalta somente na La Gazzetta di
Modena (15.10) e L’Avvenire d’Italia (17.10). Os partidos,
ausentes. As autoridades romanas ficam olhando. O único que
acredita perdidamente sou eu. Depois de dois meses, acalmadas
as águas, informo Ottaviani: “Nas minhas andanças falei a 200
mil pessoas. O povo participou apesar da proibição dos partidos.
Dois ou três párocos se opuseram do púlpito, outros me
favoreceram, outros se queixaram. Ninguém teve a coragem de
me contradizer. Apresentei a proposta de Nomadélfia. O bispo de
Carpi não compreende nada e se espanta toda vez que atacamos a
injustiça. Scelba veio em Carpi para dizer um monte de
insolências, prometendo chumbo e força, invés de pão e trabalho.
Os partidos organizaram manifestações para distrair o público do
congresso. O debate sereno durou 5 horas, com a participação de
outros agentes. Os 1700 presentes aprovaram a nossa proposta.
250 Promotores decidiram abrir um escritório em Modena, para
publicar um semanal, estendendo o movimento à Itália toda.
O meu estado interior? Crovini me disse que houve um
forte, mas secreto protesto contra mim. O prefeito me fez
entender que sacudiu a província; o povo confia em mim; os
comunistas esperam uma liberação, mas os chefões proíbem
aderir. Eu acredito numa coisa só: Jesus não permite que o papa
recua do seu conselho: “Faça o que quiser”. Clero e bispos
entendem pouco estas coisas, somente o milagre da firmeza do
papa pode me sustentar. Os que se opõem ou são hereges ou não
sentem a hora de Deus. Não é a maneira, mas a substância que os
ofende, porque são liberais. Quando falei com o Santo Padre,
senti uma dor profunda e exclamei: “É prisioneiro”. Santa
Caterina foi em Avinhão para libertar o papa dos demônios
encarnados. Mas aqueles dançavam, eram simples bárbaros; mas
estes se iludem de ser santos. Fossem mulherengos, patifes, seria
fácil levá-los à verdadeira santidade. Mas não estão vendo que o
171

papa é vítima de deletéria bondade deles? Não acreditam nem na


coisa mais fácil desse mundo: que Cristo pode parar a guerra.
Para eles (burros!) é inevitável. O Santo Padre, da grade de seu
cárcere, me dê a mão, o libertaremos em poucos meses. Os
brancos se tornarão pretos; os pretos, brancos; os inimigos
amigos; os amigos inimigos. Não tem a coragem de fazê-lo?
Espere Judas que está para soltar a bomba atômica sobre os filhos
[Truman a brande como ameaça contra a China, que luta com a
Coreia do Norte (30.11)]. Quer de mim outros sinais de Deus?
Ofereço de mãos cheias. Tem medo de me receber? Receberá
Stalin ou Truman, dois diabos nunca vistos. E aquelas piedosas
almas atulhadas que há 20 anos me atrapalham, não acreditam
que Cristo quer triunfar em nós enquanto nós queremos que
triunfe sozinho, para poder aplaudí-lo com um coro de cigarras. O
papa, hoje, é o maior concertista, levado entre as massas, para
que toque as eternas melodias da justiça. Mas o enganamos: está
no teclado, mexe nos registros, olha a música escrita pelo
Espírito Santo, todos olham, todos esperam, mas não toca. Então,
“Morte ao papa!”, gritam as massas. Coitado! Por que chora?
Pôxa, os filhos fizeram um corte no fole, o ar não chega. Eu sei
onde está o corte da insídia covarde. Não percamos tempo, se me
ouvirá, cedo tocará o hino da Paz de Cristo no Reino de Cristo.
Jesus é impaciente para fazer o milagre que irá maravilhar a
todos” (13.12).

13 – “Não sou louco…”

Declaro a Montini: “Veja que não sou louco. Se todas a


vezes que lhes levo uma barra de ouro e vocês a vêm como latão,
porque me chamo padre Zeno, nunca entraremos num acordo.
Protestos contra mim? Massas e intelectuais não fizeram um
protesto contra a Igreja? Da falta de cristianismo social nasceu o
comunismo e, antes, o liberalismo. Duas forças negativas que nos
levam à guerra. Que Deus tire o bem do mal é negócio seu e é
culpa nossa obrigá-lo fazer isso. O comunismo é uma religião que
leva a um novo feudalismo. Se vencerá teremos séculos de
barbaridades. Se vencerá o liberalismo teremos séculos de
opressão. Falar de democracia é loucura. Se domina o ouro é
172

escravidão. Tudo isso é o mundo. E quem é Cristo? Se terão fé,


afastarão as montanhas do comunismo e do liberalismo. Nós
somos cultuais (o ano santo não foi uma reforma de vida), não
afastaremos as montanhas e está para chegar a guerra. Eu digo
isso, dizem que sou louco. Mas eu sei que sou um pecador como
vocês, mas lhes digo que se pode fazer o milagre de parar a
guerra, portanto de afastar as duas montanhas e vocês não
acreditam nisso. Em ‘48 fiz uma proposta ao papa. Vocês não me
responderam. Agora digo a vocês que tenho em mãos o secreto
para parar a guerra e me põem a prudente distância. Eu digo que
vocês têm medo de Cristo. Não queremos fazer personalismos.
Então queremos a guerra. Amamos ou não amamos o povo? Veja
que não sou louco. Tenho nas mãos o secreto para parar a guerra.
Seria um sopro, mas vocês não acreditam e sem vocês não
podemos fazer nada. Devo assistir a um desastre que se pode e se
deve prevenir” (17.12, enviada?). Os meus desabafos são
tomados por loucuras, delírios de uma mente doente? Os artigos
do L’Osservatore Romano [14, 24, 28.2.’53; 3.3.’54] induzem a
pensar que, no Vaticano, alguém me acha louco.
Nesse ponto ou sim ou não, jogo tudo no coração do Santo
Padre: “Enquanto Oriente e Ocidente afiam as espadas [corrida
aos armamentos], a Igreja talvez tenha o tempo de criar o milagre
da paz. Eu, homem de mil sonhos, digo que sem o papa não se
consegue. Os dois colossos metem à disposição exércitos,
espionagem, diplomacia. A Igreja mete a fé no ditado: A paz é
fruto da justiça. Coitados de nós se permanece só um ditado! A
Santa Sê é uma máquina misteriosa. Aqui há Cristo, mas às
vezes, deve chorar. Eu fui exercitado pelo Senhor a cheirar a
catinga de satanás. Em alguns cantos se aninhou em modo
espantoso. Pelo fato que Vossa Santidade não percebe, estamos
com medo de um desastre. Ou não acredita nas forças de Cristo
ou satanás conseguiu realizar uma proeza de perfídia. Sem
milagre não se pode caminhar entre as potências do mundo.
Energias heroicas estão à porta do papa, prontas para se mover
por caminhos estranhos, mas seguros. Não as conhece, porque ou
são contra o papa, ou exasperadas por causa dos irmãos de fé. É
na prática de Cristo suscitar homens, aonde menos se pensa, aos
quais entrega a tarefa de salvar a Igreja. Eu os conheço, são
173

milhões entre as fileiras dos partidos, dos descontentes, mas neles


não há malícia. Eu devo demonstrar à Vossa Santidade os erros
da Santa Sê, do papa, do clero e os remédios. Sou de casa, sou
filho. Tudo é feito para me dar razão. Tenho em mãos os sinais, o
secreto para parar a guerra e abrir duas estradas: levar Cristo aos
homens de boa vontade, neutralizar o inimigo, obrigando-o a
servir a Cristo nos direitos naturais. Não acreditar num único
caminho seria largar do alto da sede de Pedro uma bomba
mortífera sobre a história de Igreja. Sobre a pessoa de Vossa
Santidade pesam os pecados públicos de seus predecessores. Se
deve pagar, pague; se nós devemos pagar, pagamos; mas a Igreja
deve responder ao apelo dos irmãos longe na forma e muito perto
na substância. E Pedro dormia... Santidade, use a sua
onipotência, acorde, me receba. Insisto, resisto, luto” (17.12,
enviada?).
Amo escrever a meditação na estação, onde o trem, como um
sonho, sempre vai. E, quando estou no trem, parece se afastar
sempre mais. “Meu Jesus, esta noite parto para Roma. O papa me
receberá? Aceitará as minhas propostas? Para o mundo é utopia
esse novo ataque à Igreja. Somente aquela purificada, que eu em
ti sinto que consigo limpar, pode dar a paz ao mundo. O papa irá
querer? Esse é teu negócio. Minhas palavras não irão valer nada,
não entenderá as minhas penas, não poderá ver as suas graves
situações se tu não intervir em modo milagroso. Aquele mundo,
de um ponto de vista, é a mais terrível fortaleza de satanás. Porém
é a tua casa, a sua sede. Por que me atormentas em subir aquelas
escadarias, em derribar as portas, em liberar aquele branco
prisioneiro? Minha indignidade é um penhor lisonjeiro de que
vou conseguir” (31.12).
Como posso pretender que nos entenda quem não fez
experiência de uma vida como a nossa? Por isso tem razão quem
me acha um ingênuo ou, digo eu, um louco! Mas é o último azar
de 1950 e o mando ao prefeito da Congregação dos ritos: “Poderá
parecer loucura, mas existem sinais de Deus para justificar nosso
pedido. O culto para nós é uma sobrestrutura da simplicidade dos
sacramentos, feitos de água, pão, óleo, vinho, corpo. O próprio
templo é coisa morta. Profano, em Nomadélfia, é somente o
pecado. Para nós o culto é uma expressão íntima e coletiva da
174

comunidade, um abraço a Deus vivo nos sacramentos e a missa


será a ceia a ser celebrada nas famílias como centro de vitalidade.
Pedimos um visitador, para que verifique se a nossa exigência
corresponde a um impulso de Deus”.

XIII – 1951: insubordinação política

Cenário internacional – Tropas chinesas e norte-coreanas


ocupam Seul. A ONU condena a agressão chinesa (1.2). No final
de março os americanos ocupam de novo Seul. Colóquios de paz
entre a ONU, EUA e Coreia do norte (29.6). Os EUA fornecem
assistência econômica e militar à Iugoslávia (nov.). A URSS
propõe à ONU um tratado entre as 5 maiores potências para
prevenir uma guerra mundial (8.11). EUA, França e G. Bretanha
abolem as restrições ao armamento e às condições de estado
inimigo à Itália (21.12).
Cenário Italiano – Emigração em massa do interior para a
cidade e do sul ao norte. Forte desenvolvimento econômico.
Gronchi acusa dois ministros PRI dei “histerismo belicista”,
porque apoiam a intervenção na Coreia (11.1). O Senado aprova a
lei sobre o armamento (16.5). A visita de Eisenhower provoca
greves e manifestações contra a guerra na Coreia. Quatros mortos
em Comacchio (16.1). A câmara autoriza proceder contra a
deputada comunista Laura Diaz, que ofendeu o papa em comício
(30.3). Eleições administrativas em muitas cidades do centro-
norte (27.5). A DC perde terreno, avançam as esquerdas e as
direitas. O card. Schuster pergunta “Os municípios serão
administrados pelos italianos ou por uma quinta coluna a serviço
estrangeiro?”. Aprova-se o projeto de lei pela defesa civil, com
poderes especiais em caso de guerra, calamidades, desordens
175

(11.7). De Gasperi volta pedir dinheiro nos EUA (set.). Inquérito


parlamentar sobre a miséria: no norte as famílias pobres são
5,8%, no sul 50,2%. Dossetti se demite da direção da DC (8.10).
Inundação do rio Po (14.11). A Santa Sê avisa que Pio XII teve
quatro vezes o privilégio do prodígio do sol de Nossa Senhora de
Fátima.

1 – Um sonho grande demais

O congresso anual (6-18.2) é tempo de verificação,


programação, admissão de novos cidadãos. Danilo Dolci é aceito
por levantamento de mão. No horizonte, nuvens negras. Padre
Troscia me adverte: “O cardeal Piazza te aprecia muitíssimo, mas
é preocupado por sua ousadia em economia! “Mais vezes, me
disse, vi o bispo de Carpi muito preocupado com a Obra” (12.2).
Para engordar o coro dos credores se acrescentam caluniadores e
delatores. Os superiores dos servitas querem se vingar de mim:
pe. Roschini me denuncia ao Santo Ofício. Quanto mais atacam
meu sonho, tanto mais o levo para o alto, como fazem os meninos
com a pipa.
Comprometo os filhos no meu sonho, grande demais para ser
sonhado sozinho. Na Ordem do dia um programa que para
realizá-lo, precisarão, quem sabe, quantos anos! Para mim é
como se fosse perto: “construir um povoado em Fossoli e um em
Grosseto; um povoado nômada para a missão no mundo; fundar
uma cidade na África; as missões ao povo; os consanguíneos ou
colaboradores externos; embaixada na Santa Sê; o papa será
também o bispo de Nomadélfia. Escolheremos os bispos entre os
nossos sacerdotes”. Tem o suficiente para amedrontar o Vaticano,
mas eu não posso conter a irrupção da minha fé, que não respeita
tempos e modos das Congregações. Roma é eterna, eu não.
Sempre viajando: em Modena (8-13.1), semana de estudos
sociais em San Giacomo (22-28.1) e em Carpi (12-18.2), reunião
dos promotores (11.3), palestras em Siena, Verona, Brescia,
Bergamo, Milão, Turim. A amizade com o bispo de Siena irá
além da simpatia. Diz para mim: “As obras não correspondem
mais à idéia. Escreva, escreva. Obras perfeitas, somente no céu”.
176

Falo na bela praça do Campo para 10 mil pessoas. A


tipografia da diocese imprime um livrinho tão pequeno, quanto
corrosivo: Depois de vinte séculos. Mando os esboços ao papa:
“Se o Santo Padre se opõe não o publicaremos. Isso esclarece a
posição do cristianismo na luta social. Arrancar a Igreja da
política atual é obra divina. Mas isso comporta a certeza que o
Vaticano não será contra nós, que colocamos na praça 600
voluntários e 1.000 promotores. A Igreja é agredida pelo liberais
e pelos marxistas. Beati pauperes! Nós somos os pobres, os mais
idôneos para curá-la. Nomadélfia è a única força límpida para
dizer ao comunismo e ao liberalismo, o que é catolicismo:
fraternidade heroica em Cristo. Dando-nos mão livre, o papa a dá
a Cristo, que está cansado da acusação de ser um egoista e um
burguês”.

2 – Depois de vinte séculos

O livrinho tem a assinatura do Povo dos nomadelfos. É o


grito das vítimas perante a indolência dos irmãos de fé. Uma forte
repreensão contra os hipócritas, ricos e políticos. Solicito a
reforma radical da Igreja e rejeito a caridade dos ricos como um
diversivo da justiça. Levantar os pobres não era tarefa da
antiigreja, do comunismo? A Santa Sê deve responder a esta e
outras perguntas. Eu devo responder aos sedentos de justiça.
“A terra e as matérias primas não têm dono, o trabalho é um
direito sagrado. Numa sociedade que respeite as leis naturais,
ricos e capitalistas não devem existir, porque ou parasitas ou
exploradores. Nem os pobres. Haverá prófugos e preguiçosos
para educar. Para os católicos o amor não exige as coisas das
quais tem direito. Portanto, em favor das vítimas, devem dar bens
e vida e lutar no campo político, a fim de que se realize a justiça.
Não pregá-la sem as obras, mas por-se no mesmo nível dos
oprimidos, se tornando oprimidos como eles. Quem não se torna
irmão do sofredor, se ilude de amar. Até quando não realizaremos
o perfeitos na unidade, o mundo nunca poderá entender Cristo e a
Igreja. Falar de unidade espiritual e doutrinal, quando não há a
compartilha dos bens é absurdo e falso. Muitos acreditam de crer,
mas o Deus deles é o ventre. Para outros a Igreja é uma boa
177

panela, uma bela decoração. Para outros ainda uma espécie de


Montecatini, cômoda cura intestinal para lavar as tripas da alma
com algumas missas. Certos eclesiásticos têm dois sacrários: o da
hóstia e o do dinheiro. Comem as carnes de Cristo para alívio da
alma e comem as carnes dos irmãos como alívio do corpo.
Quantas pessoas na passagem de Nossa Senhora Peregrina
jubilava: “Quem sabe não nos salve dos comunistas, não salve o
mundo da guerra! Santa Senhora provê aos pobres, mas salva as
nossas propriedades”. Viram estes católicos, guiados pelo pároco,
ir a seus pés com o tabelião e fazer o contrato para restituir os
bens sugados aos explorados? Uma confissão sumária e basta...
“Igreja, Igreja, negócios à parte!”. Se fosse somente humana, já
teria desaparecido. Muitos estão trabalhando para uma nova
primavera. Nós também estamos cortando os galhos secos do
protecionismo de Constantino e do poder temporal. Cortam-se
aqueles eclesiásticos que pensam mais à ilustre existência deles
que àquela dos sofredores. E’ preciso fazer cristianismo puro, não
anticomunismo. Não se fazem compromissos com nenhum
sistema político injusto. Esta a penitência: fazer as contas. Haverá
muitos cismas? Sempre houve. A hora trágica do mundo pede
uma reforma radical. O Movimento da fraternidade humana è
utópico? Para eles é utopia todo que propõe uma solução social,
preferem que o doente continue doente. Mas se as massas abrirem
os olhos, de repente estarão no poder, farão o que o marxismo e a
burguesia, cúmplices muitos eclesiásticos, impediram fazer”.
Visto que a competência passa a Montini, lhe explico:
“Cristo quis o movimento e o provocou com o trauma das
vítimas. Com isso libertará a Igreja das opressões da política.
Acredito que cedo a Itália [corrigido: a Emília] explodirá em tal
modo que irá edificar o mundo inteiro. Sei que o papa me quer
bem, por que não quer falar comigo? Se erro me corrija e se eu
acredito que seja ele errado.... Não sou louco dizendo isso, sou
estúpido porque não corro mais rápido para libertar a Igreja de
insídias demais. Imergidos numa atmosfera de idiota humildade
pagã, é difícil acreditar na nossa onipotência. Que Jesus não nos
diga: Longe de mim satanás. Parece-me uma feia saudação. Veja
que certos erros ou fraquezas não se podem repetir sem que o
178

Senhor não diga uma vez ou outra: Basta. A Igreja é coerência


com Cristo, o resto é veneno” (15.1).

3 - De direita e de esquerda

Não somente da direita, agora apanho também da esquerda.


O PC me ataca duramente: “O bom Deus pagará as dívidas
colossais de Nomadélfia” (Il Paese, 3.4). “Revolucionário com o
imprimatur? A função de padre Zeno parece aquela de confundir
os termos da luta política” (Emília, janeiro). “Em Nomadélfia se
aprende a fazer nada. Uma cidade dos rapazes governada pelo
clero. Milhões jogados fora” (L’Unità, 1.4). No mesmo dia o
escritor C. Alvaro responde: “Precisa lembrar o nome de padre
Zeno Saltini. Mas talvez sejam os fatos que o lembram, seja que a
vida italiana o aceite ou o rejeite, faça dele um apóstolo ou um
rebelde” (Stampa). Para o PSI o movimento é “um dos tantos
diversivos aos quais a Igreja recorre para dispersar votos”
(L’Avanti! 16.2). O mesmo jornal escreve: “Ninguém melhor de
que um socialista pode entender Nomadélfia. Poucos no mundo
ignoram que, num rincão do modenese há um experimento de
cristianismo integral, que chamou dezenas de convidados
especiais. Os nomadelfos são benevolentes para com os
jornalistas, mas repreendem a superficialidade, especialmente aos
jornais católicos que parecem ter visto pouco mais de uma forma
de assistência, enquanto o experimento é bem de outra natureza”
(30.5). Na entrevista, padre Ennio, enxada na mão, rebate:
“Socialistas nós? Não, nós somos mais adiante, superamos a
simples igualdade e estamos realizando a fraternidade. Esta ainda
não é Nomadélfia, mas sua semente”.
Na outra margem politica não se poupam os elogios: Cidade
de Deus, Cidade do sol, Cidade do ouro, Cidade do amor.
“Nomadélfia, cidade de crianças, de santos e de loucos” (La
Provincia, 5.4); “A Utopia tornou-se realidade” (Il popolo, 12.4);
“Nomadélfia é um milagre do amor cristão” (Il popolo, 1.4). N.
Fabro é mais realista: “O terreno de Nomadélfia não é mágico:
não basta por pé lá para sentir-se curados. As mulheres histéricas
continuam histéricas; os deficientes, deficientes; os impulsivos,
impulsivos, começando por padre Zeno. Mas podemos arriscar,
179

sem medo de estragá-la, a palavra amor. Não o sentimental, mas


o que falta à nossa vida de cristãos pela metade. Ouvindo-os falar
vem a idéia que acreditem mesmo que Nomadélfia seja o único
caminho no mundo de hoje; e o restante todo seja somente
compromisso ou cristianismo de pequeno porte. Mas depois,
discorrendo mais longamente, percebemos que o exclusivismo é
entusiasmo e pureza” (Il Gallo, 25.5).
Dois caráteres volitivos, o meu e o de pe. Turoldo, não
podem não produzir faíscas. Afirma que se pode ser de
Nomadélfia também fora de Nomadélfia: a mania católica de
sempre que basta a intenção ou fazer as coisas espiritualmente?
Esclareço: “Somos ou não somos cidadões de Nomadélfia. Tu
não és nomadelfo, és um religioso. Admirável, pois é o nosso
ministro do exterior, mas nós marchamos para abater aquele
mundo para o qual tu és indulgente demais; portanto abatemos
também a ti, se conseguirmos, porque tu és um membro de uma
Ordem, que não corresponde mais à revolução social de Cristo.
Por isso não entendes o Movimento da Fraternidade Humana.
Que nós tenhamos defeitos graves é a marca humana; que eu
tenha sempre razão é fora de lugar somente dizer isso brincando.
Tu disseste aos nomadelfos: “Precisa jogar os ricos fora da
igreja”. Estavas brincando ou falando sério? Se brincavas terias
feito a eles uma ofensa. Se falavas seriamente, por que não os
tornas pobres e não os aceitas na Igreja? Com Deus e com as
vítimas não se brinca” (13.2). Acho que as suas reservas a
respeito do movimento provenham do medo de pisar os pés dos
benfeitores, onde vai pedir. Sugere uma estratégia particular: “O
meu é um desabafo pelo medo que te fechem a boca. Gostaria
que tu fizesse tudo o que pensas e até mais, mas não gostaria que
saíssem recriminações por ações erradas. Mazzolari foi somente
admoestado por Roma [31.3]. Não tenho dúvidas da idéia, mas
das nossas ações táticas. É tanto o amor que tenho por
Nomadélfia, que não gostaria que pela nossa pressa a ação de
Deus encontrasse resistências próprio por parte de nós que
queremos ser instrumentos desta ação” (11.5).
Depois da Reunião provincial dos servitas me escreve:
“Discussões dramáticas; fiz tudo que estava em meu poder.
Minhas preocupações estão na nossa atitude para com a Igreja e o
180

povo, mas confio na tua sabedoria e prudência. Sei que o


evangelho e o teu instinto cristão sempre te inspiram e portanto
me sinto muito na paz” (11.6).
Pe. Vannucci me segue fascinado. Organiza palestras em
diferentes cidades para difundir o Movimento e colher os fundos,
mas os frutos são magros.
“Iremos acabar debaixo das pontes? Fracassado o apelo do
bilhão estamos em frente ao problema de volta para ser nômades
como fomos por 17 anos. Esta sociedade nos vomita” (a Turoldo,
junho de ’51). Turoldo aconselha: “Vão roubar, mas não assinem
mais cheques sem fundo: é uma atitude que fortalece os
adversários em seu preconceito contra nós. O roubo é clássico, o
cheque sem fundo é jesuítico, cheira falsidade. Para o bem de
Nomadélfia te esconjuro: dá esta ordem a todos. E procuremos
não ficar inimigos da providência” (11.6). A emergência me
obriga a especificar: “O cheque é uma forma comercial e, uma
vez avisado o credor que é sem fundo, não é mais um engano.
Roubar é difícil demais, porque a lei o proibe em forma penal.
Usamos as formas legais, embora arriscadas, porque não
podíamos fazer diferente. Procurarei limitar o uso destes meios”.
Mas os problemas judiciários apertam: penhora das ações das
propriedades; procedimento penal contra padre Silvio e contra
Mariano pela insolvência fraudulenta (9.11). A que santo apelar?
Escrevo, em vão, ao presidente da República (3.7).
Apesar de tudo, tomado pelo entusiasmo pelo afluxo dos
visitadores, a bênção do cardeal Schuster e do núncio, lanço de
novo o apelo: “Precisa um bilhão para fazer viver as duas
Nomadélfias”. Envolvo o povo no sonho: ele coloque os capitais,
nós o coração. “Para uma cidade menina é um peso insuportável
manter 900 rapazes e criar um centro em Grosseto, onde vivemos
debaixo das tendas. Não é uma obra de beneficência, mas uma
cidade onde a única lei é o amor” (13.3).

4 – Um cisma que amedronta

“Absorvido há 20 anos num perene trauma me retiro em


oração. O Senhor irá me falar”. Na meditação aparece uma
dúvida: eu sou um deles ou para eles como um assistente
181

eclesiástico qualquer? E se nascesse um conflito poderia dizer aos


filhos: “Serei o pai de vocês até quando a Igreja permitir”? Peço
isso ao papa: “Abraçaram-me, mas devo observar uma disciplina
diferente da deles? Se não fosse um deles, isto é no mesmo nível,
seria considerado um forasteiro e me expeliriam. Pode ou deve o
sacerdote ser um deles? Cristo é neles, porque somente Ele pode
modelar uma cidade assim. Para eles todos os oprimidos são de
Nomadélfia, todos os não oprimidos, são opressores. A Igreja me
mandou nos esgotos e daqui condeno quem nos deixa no esgoto.
Se vissem um cortejo papal diriam que são coisas mundanas e o
sucessor de Pedro é prisioneiro. Se conhecessem a Santa Sê,
acredito que assaltariam o papa, venderiam tudo, para alimentar,
também numa única refeição, todos os famintos do mundo. Fui
enviado a eles como um Menenio Agrippa, mas me encontrei
com Cristo que não aceita o apólogo do estômago e dos membros.
Quantos são aqui? 1.300. Fora daqui, milhões. Os que estão aqui
amam Cristo e os que estão de fora o blasfemam, porque
acreditam que seja ele que os oprime. Mas se revelará também a
eles, quem sabe como e quando. Na Igreja há um cisma entre
oprimidos e opressores, que tem em comum doutrina e jerarquias,
não o mesmo amor. O que será da Igreja se Pedro demorar em
aceitar Paulo? Esta massa é o grito de Paulo. Santidade, aceite o
meu filial abraço, mesmo sujo destes esgotos” (13.5).
Escrevo aos bispos, enviando Depois de vinte séculos: “A
nossa voz e as nossas lágrimas não chegam aos irmãos. Se os
filhos devem ouvir e respeitar os pais, estes devem ouvir e
respeitar os filhos. Nós, em família, somos tratados como
excluídos. As palavras são bonitas, a realidade um escândalo”.
No alto se preocupam mais da disciplina: o card. Pizzardo exige,
que eu apele os sacerdotes ao uso da batina (2.6). O Santo Ofício
manda retirar Depois de vinte séculos. Nomadélfia baixa a
cabeça, mas anula o voto, enquanto o episcopado obrigava os
católicos a votar na DC, a qual passa de 49 % (1948) a 36,2 %. O
PC em Carpi recebe 60% dos votos. Os nossos 105 votos são
insignificantes, mas DC e PSI perdem uma cadeira. O bispo me
chama de noite (9.6). “Quando perguntei em quem deveríamos
votar, você respondeu: “Façam o que quiserem”. Os meus filhos
disseram: “Tratando-se do Município lhe damos uma tranca,
182

anulando o voto com três traços, para que saibam que fomos
nós”. Em Carpi todo cala, mas o Governo começa bater
seriamente” (DZR, 246). Para o jornal Avanti! não parece
verdade: “Os Nomadelfos disseram não à DC. Estamos
esperando os raios da cúria. Desobedeceram e implicitamente
condenaram a menina dos olhos da Igreja” (15.6).
A Santa Sê está preocupada por uma eventual vitória
comunista, que se imagina em Roma: um representante de
satanás governará a cidade santa? O pontífice aperta para uma
aliança da DC com os partidos de direita, M.S.I. incluído. Scelba
não pode suportar uma contestação aberta como a nossa. A minha
pregação é indigesta e se começa uma campanha difamatória
contra nós, que dá logo seus frutos. Durante as palestras no Norte,
pe. Vannucci me comunica: “O cardeal não quer que tu fales,
porque Turim deve manter muitas obras locais” (9.6). O frade
corre na Secretaria de Estado, eu pergunto a Montini: “Se fosse a
autoridade política a nos esfaquear saberíamos nos defender. Mas
com nossa Mãe Igreja, como fazer? Acredite, há algo de muito
grave na Santa Sê que não presta” (20.6, enviada?). Naquele
muito grave há: “a incompreensibilidade de muito clero”; o apoio
a “um partido católico burguês até o escândalo”; a ilusão de
dispersar a barbaridade vermelha com as condenações e de curar
as chagas sociais com esparadrapos das cruzadas da bondade,
Nossa Senhora peregrina, as palestras de pe. Lombardi, que “se
reduzem a pouco menos de uma jaculatória”.

5 – A marcha para Roma

Para sacudir os alicerces de Pedro precisa uma forte


contestação. Por que não marchar para a Cidade eterna?
Anuncio isso ao Santo Padre: “40 famílias sem casa, partiram
para Roma. Irão pedir audiência com o papa e o Governo para
tratar seus interesses” (junho). O plano não poderá ser realizado.
O bispo escreve a Ottaviani: “Padre Zeno é tomado de grande
agitação pelas condições econômicas. Declara-se obediente, mas
eu condeno quanto diz de errado e pouco respeitoso com a Santo
Padre. A respeito da desobediência eleitoral, espero que seja a
última dor. Peço o visitador permanente” (24.6). O visitador é um
183

inquisidor das congregações religiosas e para nós virá ainda o


núncio, o qual, não sabendo como me avaliar, perguntará: “Mas
você quem é? Um civil sacerdote!”. Disse bem: eu não gerei uma
obra da Igreja, mas um povo civil que vive o evangelho como lei
civil.
Fracassada a marcha para Roma com as nossas pernas,
continuo com o coração e a caneta. Mais de que marcha, assédio.
“Ver Nomadélfia como amor realizado em forma de cidade,
produz brigas e divide. Quem se exalta até mudar de vida, quem
se joga contra, dizendo que é utopia. Do colóquio com o Santo
Padre apareceu claramente que a Igreja nunca poderá realizar
Cristo na terra, senão tornando-se oprimida entre os oprimidos.
Suplicou-me para fazer a todo custo, segurando-me que está
comigo. Eu vou entre as massas na angústia de quem procura
Cristo e não consegue achá-lo, muitas vezes, nem entre seus
pregadores. E eu amo os inimigos, os quais correm para me ouvir.
Amo como namorado os pecadores, como quando jovem era
louco por uma menina. Eu amo o papa, pelo qual luto. E saberia,
in Corde Jesu, resistir-lhe, como saberia resistir ao sol até me
queimar se fosse um ato de amor. Amar assim é um milagre,
portanto dom da minha Igreja, que me foi doado, para que o
doasse aos filhos desventurados. Nomadélfia, na Igreja, é como o
espermatozoide no útero materno, que procura o óvulo, para que
gere os novos tempos. Na China o cristianismo não enraizou,
porque não enraizou ainda no ocidente, onde é um ideal. Precisa
ter a santa coragem de reconhecê-lo. Qual foi a hora histórica
mais propícia desse pós-guerra que tiveram os católicos para
dizer ao mundo o Amor? Pelo contrário rolaram numa política
burguesa condenável não menos do que o comunismo. 18 de abril
não se pode mais repetir. O compromisso mata. Não queira a
Santa Sê se manchar com esse crime! Esta é uma trégua de Deus.
Da Itália deve partir a contra revolução ao comunismo. A Igreja
está gravemente doente. A fala de unidade entre nós é como um
corte a uma artéria: um reino dividido em si mesmo… Prometi ao
papa fazer e o cardeal de Turim me pára. Visto que Nomadélfia é
um fato novo, nenhuma congregação é competente, por isso é
livre das leis canônicas. É um povo católico, que tem o direito de
propor seu modo de viver a fé na vida social. Esta é a contra
184

revolução. Se o Santo Padre deixou livres os DC, que se


demonstraram opressores dos pobres, acredito irá fazer menos
esforço para deixar livre um povo que nas obras diz o
Mandamento novo. Tenha a bondade de me receber. Eu estou
aqui, parado, com a faca nas costas, estou sangrando e rezo. Se o
Santo Padre poderá tirá-lo, retomaremos o penoso caminho” (a
Montini, 24.6).
O que impede à Santa Sê de nos ouvir? Não se olhe o dedo,
mas a realidade que ele indica. “O comunismo nasceu como fruto
da nossa falta de justiça social. Olhamos os abusos em nossa
casa: o clero segurou para si casa e sustento, deixando no
abandono os dos que dissemos ser pais. Se isso não é escândalo…
Um pai que nega a comida ao filho, e mais ainda como na cara
dele, está acabado, exautorado. Se esta não é cruel heresia,
gostaria de saber o que é uma heresia. E os fieis aprendem dos
eclesiásticos. Se a Igreja nega os sacramentos aos concubinos,
por que não se decide impor em consciência a justiça distributiva
aos católicos? Por que não paramos a guerra, não dispersamos o
marxismo e a burguesia? Se irão submergir o mundo, a culpa será
nossa. Vocês amam de verdade a Igreja? Creem que Cristo possa
suportar as injúrias em seu nome contra os filhos sofredores? Mas
o Santo Ofício se espanta pensando que a excomunhão bem
merecida ao comunismo tirou da Igreja 20 milhões de católicos
entre pais, mães e filhos, os quais já criam suas escolas, sua
religião? E de quem são os votos da DC? Se reagem com tanta
violência a uma pregação sobre a justiça, é sinal que estão fora da
Igreja. Ficaram com medo pelos muitos protestos secretos? Eu
nunca disse as besteiras de muitos oradores. Não vacilei como fez
a diplomacia vaticana. Não querem nos conceder nossas
liberdades? Dissolvam Nomadélfia. Se a Igreja estivesse morta
não teria estas forças frescas e decididas em seu seio. Digam ao
Santo Padre que mantenha a todo custo a palavra que me deu.
Conheço bem o vôo de Deus. Não temem, é o amor que avança
arrastador” (27.6).

6 - O Vaticano afasta os sacerdotes


185

Depois da insubordinação eleitoral o Vaticano ordena aos


sacerdotes de se retirarem. Motivo: o clero não deve dedicar-se a
trabalhos indecorosos; deve se dedicar às praticas de piedade e a
uma vida distinta da dos leigos (can. 124); não pode fazer
atividades políticas (can. 139). Coloquei Roma em dificuldade?
Como por nos sagrados cânones esta menina rebelde? “As leis
que limitam o nosso ser deles pertencem ao direito positivo, não
aquele natural. Os nossos bispos nos permitiram de nos vincular
ad experimentum e Nomadélfia é livre de nos excluir. O Santo
Padre não poderia igualar os nossos sacerdotes aos leigos,
conservando o celibato?” (29.6).
Estou enraivecendo: qual pai gera uma família e depois a
abandona por normas disciplinares? Se uma população vive o
evangelho, o padre será excluído de uma cidadania evangélica
que prega com palavras, mas lhe é proibido praticar pela lei
eclesiástica? Até quando ficará no pedestal do sagrado, nunca
poderá descer para se tornar irmão do povo. Nomadélfia exige o
seu sacerdócio como toda árvore exige sua própria linfa. Ouso
dizer ao papa: “Deixe que o matem, antes que matem
Nomadélfia. A Igreja a concebeu e deve gerá-la sem aborto. Eu a
curei como o meu Menino Jesus. Se estivesse em meu poder a
lançaria sem medo como um foguete de santa guerra no mundo
inteiro para anunciar a Doce Notícia: somos irmãos. O grande
mundo católico e não católico esqueceu isso. Trata-se de refrescar
sua memória com as obras. Eu, sem representar Nomadélfia, não
tenho nada a dizer ao povo, posso desaparecer da cena. Se não
pudesse mais seguir os filhos, seria demitido e a cidade aceitaria
um pároco qualquer, mas o julgaria um forasteiro. Nos será
permitido em consciência abandoná-los a si mesmos? Resistirá
um povo amarrado por leis sobrenaturais sem que corra em suas
veias o sangue? Se Nomadélfia deve combater suas lutas políticas
e religiosas, os sacerdotes não poderão seguí-la. São uma classe
diferente e por isso mesmo excluídos. Se Vossa Santidade não
superar as leis positivas vigentes, prevejo o martírio da
comunidade. Eu não sou mais o leão de ontem, sou o cordeiro
esfaqueado pelo cardeal de Turim. Se o papa não poderá doar a
Nomadélfia seu clero, ela deverá expulsá-lo. Por direito divino,
um crime; por direito positivo, a coisa mais lógica desse mundo.
186

Eu terei que chorar um contraste do espírito: o sacerdócio me


amarra a uma casta, não posso ser um pária. São os paradoxos da
história: animados pelas mais santas intenções os nossos pais
anularam com lei positiva a ordem do sem alforge aos
sacerdotes, que não podem ser ordenados sem um título
econômico. Ser sacerdotes de Nomadélfia significa ser seus
cidadãos, perante a qual não existem circunscrições e confins,
porque um povo universal não admite restrições de amor para
com os irmãos do mundo inteiro. Não somos uma obra, mas um
movimento. Se Vossa Santidade será longimirante, irá predispor
que tenha seu sacerdócio, suas paróquias, suas dioceses” (1.7).
Trato o argumento no congresso (16.7). Segundo a
constituição somos membros efetivos, mas pelos sagrados
cânones não. “Não podem engolir o nosso modo de ser padres,
porque colocaria em crise o sistema eclesiástico. Mas se o ser
padre implica privilégios, títulos canônicos, como é possível ser
no mesmo nível? Para nós antes somos nomadelfos, depois
sacerdotes; antes povo, depois sacerdotes. Não é mais um mestre
que forma uma casta por si, mas o homem jogado no meio do
povo, é povo. Eis o evangelho: sem alforge, sem calçados, sem
recursos, sem nada, sem casa paroquial, sem sobrinhos. Vocês
têm a família, eles não, são pais universais. Jogados ao leu,
dormem aqui e acolá. E, até quando serão assim, Nomadélfia será
Nomadélfia. Se o padre emerge, porque quer ser algo mais,
deem-lhe um empurrão para que volte debaixo da água. Até
quando estiver debaixo da água produz a vida, logo que emerge
se disseca. Quando não sentiremos mais a diferença entre o
sacerdote e o não sacerdote, teremos vencido o combate de
Cristo. A unidade leva o sacerdote no meio de nós e o torna igual
a nós. Se se vangloria pelo sacerdócio é um tolo. Pega um
jumento e cobre ele de ouro: è sempre um jumento. Pega um
homem, põe em cima dele o sacerdócio que é de Cristo, não seu.
Tu és um irmão como todos os outros. Em todos deve ter
fecundidade: eis o amor, que se torna paternidade em sólido”
(7.2). Desço na prática: “A Igreja enviou para as obras de
assistência os sacerdotes, mas ficavam fora da realidade dos
pobres. Nomadélfia exige de seus sacerdotes que se façam povo,
não mais para, mas com as vítimas. Portanto não mais de fora ou
187

de cima, não mais assistentes nem assistidos, o amor é póssível


somente entre sujeitos no mesmo nível. A Igreja nos ouvirá,
porque a toda instituição concedeu seu sacerdócio. Os sacerdotes
partirão de noite, levando consigo o machado para o trabalho na
mata, a caneta para as reuniões noturnas. Irão se retirar nos
bosques, em Grosseto, para rezar, estudar o que fazer para repetir
a vida de Jesus na terra, tornando-se povo por amor do povo”
(16.6).
O congresso sanciona: “Não podem ser membros da
comunidade pessoas ligadas a votos religiosos. Se poderão aceitar
como hóspedes, mas nos cargos que comportam cidadania sejam
substituídos por leigos. Pede-se ao Vaticano que o clero possa ser
comunitário, no mesmo nível” (16.7). Dário me substitui, eu, seu
assistente eclesiástico. Informo o papa: “Não somos deles,
portanto não temos nenhuma razão para restar entre eles. Podem
ter a assistência dos párocos, os quais garantirão que vivem no
barco de Pedro, seja somente na estiva com os ratos, famintos,
enquanto nas classes superiores se como e se fala de coisas belas.
Dizer que somos deles espiritualmente é ofensivo. O Salvador
não foi ao Calvário espiritualmente, mas realmente. Eles o
seguem. E caem debaixo da Cruz. Se chorássemos na cara deles,
diriam: Não sobre nós, mas sobre vocês chorem. Enquanto se
polemiza sobre as sortes e ortodoxia de Nomadélfia os filhos
lutam para não se deixar afogar pelo egoismo humano” (23.7).
Esse exílio voluntário é a extrema ratio, à qual recorremos para
forçar a mão de Roma. Como dizer: nos autoafogamos, porque
não nos resta outro meio para que vocês possam entender as
nossas razões.

7 - Nos auto-laicizaremos

Recorremos ao Santo Padre: “Somos deles, portanto somos


cidadãos de Nomadélfia. Se não poderá conceder isso como
eclesiásticos, nos auto-laicizaremos. Aceitaremos a perda de todo
direito para não comprometer a hierarquia. A nossa decisão não é
um elaborado da mente, mas uma realidade para não trair filhos e
irmãos. Secularizados, conservaremos o celibato. Somos deles,
portanto escravos, cidadãos do Céu e esterco para os homens,
188

para os quais não queremos mais estender a mão, mas gritar:


Amemo-nos como Cristo nos amou. Até quando haverá um
oprimido, Nomadélfia jurou, será oprimida. Tornar-se como eles
é ter Cristo em nós. Estamos em Roma para tratar esse negócio de
Deus com Vossa Santidade, mas se isso não será possível entre a
corrente semana, voltaremos a Nomadélfia auto-laicizados.
Santidade querer é poder. Além das leis canônicas está Cristo e
seu vigário.
Assinam os sacerdotes: Zeno Saltini, Vasco Pirondini,
Alessandro Marchetto, Giovanni Vannucci, Paolo Simonelli,
Michele Signori, Ennio Tardini, Walter Ferraguti, Walter Marchi,
Nino Bozzoli, Aldo Troscia, Ciro Blasutic, Ruggero Rao, Luigi
Berté, Silvio Galavotti, Paolo Morotti e os professos Paolino,
Gabriele”. [Depois dos colóquios com a Congregação do
Concílio e do Santo Ofício esta declaração será tida prematura,
portanto não enviada].
Parece-me estar no Calvário, em companhia de Pedro. “Se
quando fala ao povo da sacada, colocasse em seus braços um
menino procurando a mãe e Vossa Santidade o jogasse debaixo,
que seria da Igreja? E se o doasse a uma mãe de Nomadelfia? Eu,
para o papa, sou Paulo de Tarso. O milagre é feito, o homem
novo, menino, está entre as mamas de uma virgem. Para cortar a
cabeça da cobra que tenta afogar mãe e filho, penso eu com os
meus irmãos. E quando o papa e eu nos encontraremos alegres,
abraçados como dois irmãos perante Jesus, nos dirá: Era sem mãe
e vocês dois me doaram uma. Quanta festa no céu, quanto sorriso
de inocentes na terra!” (22.7, enviada?).
Nomadélfia é o oxigênio da minha alma. “Aqui tudo se
anima, se ouve cantar, vagir. Iminente o cataclisma? Em todo
lugar há uma viva discussão sobre nós. Se discute, mas não se
aceita a justiça. As contas não conferem. Os católicos
desobedeceram ao papa em campo político. Agora debandam e se
jogam contra nós. Um senador disse que espera a nossa falência
financeira para nos dispersar e por os meninos nas colônias.
Ameaça que nos fizeram os comunistas na véspera de 18 de abril
de ‘48. Satanás se veste de cor diferente para chegar ao mesmo
fim?” (30.7).
189

O silêncio das matas, a companhia de Cristo me ajuda a


cavar nas realidades de Nomadélfia à procura de suas raízes: “Na
Igreja muitos rejeitam, como superior às forças humanas, a
superação do instinto do sangue e do interesse pessoal. Nós
seremos perseguidos, porque o nosso modo de conceber a vida se
torna um ataque aos outros sistemas, também se fôssemos mudos.
Desenvolver Nomadélfia significa criar um futuro contraste,
porque um abismo dividirá o nosso costume daquele do povo. A
Itália dá sinais que não nos suporta e nem aqueles católicos, que
não aceitam a oração de Cristo até traduzi-la em forma social e
comunitária. Ir embora poderia ser um respiro de uns vinte anos,
durante os quais fundar uma cidade de 150 povoados com 100
mil cidadãos. Agora, todos, também a Santa Sê nos vomitam
como fermento concentrado demais e a nossa linguagem é mal
entendida. Tentarei ir para a América do Sul para ver a
possibilidade de uma emigração” (a Crovini, 31.7).

8 – A condenação dos católicos injustos

Os católicos, deformados pela prática da caridade, perderam


de vista a justiça. O rico dá algumas migalhas e os padres lhe
garantem acumular tesouros também no céu. É esta caridade tão
gratificante que nos impede intervir nas causas estruturais da
injustiça? Ai de vocês que usam os pobres para se sentir bons e
matam a sede com as lágrimas das vítimas: Já receberam a sua
recompensa. Não atiro na ambulância que socorre os feridos. Se
sabe, as estradas da história estão infestadas por brigantes e na
emergência precisa o pronto socorro. Mas se isso invés de
exceção se torna norma, como farão os oprimidos a ver o
amanhecer da liberdade? Na praça do juízo universal seremos
convocados todos, cristãos e não cristãos: ali não se cita nenhum
Deus; não se fala de caridade, nem se apela ao perdão, porque o
exame sobre a justiça diz respeito ao homem antes do cristão. Dá
vontade de dizer: “Tu, que acolhes prostitutas e pecadores
públicos, por que não fazes uma anistia geral?”. Não! A injustiça
é uma ofensa tal à substância humana, que não pode ser perdoada
sem reparação e restituição do roubo, pena à cumplicidade com o
injusto. Eu não sou nem um torcedor nem um passageiro no trem
190

das vítimas, mas um inquilino para a vida toda. Nos critiquem,


nos combatam, temos o direito de saber se também os pecadores
podem se dizer seguidores de Cristo.
“Nos reunimos no congresso para pedir que a Santa Mãe
Igreja intervenha, através do Santo Ofício, para julgar e, se for
preciso, condenar aqueles católicos que se tornaram culpados,
porque a fé nos ensina julgar pelas obras. Se demonstram
incoerência entre as obras e a fé, deverão ser julgados in Ecclesia
como pecadores se conscientes, como ignorantes se em boa fé.
Nenhuma norma poderá ser aplicada na anulação do mandamento
novo, não sendo um simples conselho, mas lei sub gravi, porque
quem não ama é em estado de morte. A Cidade de Nomadélfia
acusa muitos católicos dos seguintes erros:
1- o preceito do amor é um simples conselho evangélico, não
vincula em consciência; basta observar as leis naturais. E isso
para eliminar o equívoco que faz da Igreja uma mistura
heterogênea entre quem observa o preceito do amor e quem se
comporta como pagão, mesmo professando a fé.
2- Em consciência basta observar as leis do Estado nas
relações econômicas, para que das injustiças sociais é
responsável a sociedade, não cada um. Esse erro nega a
solidariedade humana, lei de Deus em rerum natura.
3- O investido de benefícios eclesiásticos pode em
consciência viver abastado ex honesto sustentamento também se
as almas das quais deve cuidar passam fome. E’ um direito que
se perde pela presença dos irmãos em extrema necessidade.
4- Os pobres sempre existirão como fatalidade social, por
causa do pecado original, portanto eu não devo ser pobre se
tenho a sorte ou a habilidade de segurar meu pão. Isso nega o
livre arbítrio, tornando irresponsável a sociedade e cada um pelas
injustiças sociais e torna a fé um caprichoso dom de Deus, que
quer todos salvos. O homem deve viver segundo a razão, pode se
impor uma norma contra os baixos instintos e a fé é um dom à
disposição de todos. A presença dos pobres, vítimas das
injustiças sociais, é um crime social contra o Espírito Santo,
sendo uma opressão que grita vingança perante Deus. É um
pecado individual para todos os católicos, que não se tornam
pobres com os pobres por amor sobrenatural. Se não são
191

oprimidos são opressores por omissão, porque rejeitam o amor de


um pelo outro. Nomadélfia pede que seja definido: quem nas
obras apela à ex iustitia, anulando a lei do mandamento novo,
peca e é herege.
Denunciamos os componentes do Governo pelos seguintes
crimes públicos: permitindo o abuso da riqueza, se destinam ricos
salários, descuidando dos desempregados e inválidos; permitem
possuir casas de luxo e mais apartamentos, penalizando quem
tentasse ocupá-los; admitem diferentes salários e explorar o
trabalho alheio; prometem justiça social, mas são réus por deixar
na fome os trabalhadores.
O congresso de Nomadélfia, antes de produzir a lista das
pessoas responsáveis, pede ao Santo Ofício: a condenação como
pecadores públicos e hereges de todos os católicos no poder; a
condenação dos católicos e eclesiásticos, que abusam da riqueza
privada e dos benefícios eclesiásticos; a condenação da seguinte
fórmula: em política se deve necessariamente ir ao compromisso.
“Os católicos têm o direito e o dever de se explicar em política
ativa, mas não podem chegar ao compromisso quando implica
renúncia aos direitos derivados das leis naturais; nesse caso
devem colocar-se na oposição, e não aceitar cargos de direção
que os obrigam a aplicar leis injustas e contra a fé”.
Aperto a Santa Sê: “Não há instituição no mundo que se fez
defensora da sociologia da Igreja. Será dispersa Nomadélfia,
porque está tentando isso? Tenho a sensação que os católicos
estejam para vomitar o fermento de Nomadélfia, não sabendo
assimilá-lo. O card. Pizzardo me disse coisas que revelam uma
corrente de desconfiança” (a Montini, 1.8). Deixou-me
desanimado, porque acha impossível que se possa amar do
mesmo amor um filho carnal e um acolhido. Isso me deixa
irritado, até jogar na cara dele: “Você é um luterano! Não acredita
na força da graça, a qual tem o poder de aumentar o nosso amor
na medida daquele de Deus. Não nascemos dele?”. A imprensa
irá falar disso da seguinte maneira: “O casaco de padre Zeno e a
púrpura do cardeal” (L’Europeo, 24.2.’52). Mais adiante pedirei
ao núncio: “Diga ao card. Pizzardo que se não lhe quisesse bem
como um filho verdadeiro o teria tratado com tanta descarada e
devota sinceridade” (out. ’51?). “Entendo as preocupações que
192

pode suscitar Nomadélfia. É uma revolução em ato. O nosso


comportamento no culto é relaxamento? Covarde calúnia. Como
nas populações perseguidas do leste europeu o sacerdote pode se
imergir no povo como simples trabalhador, assim em Nomadélfia
há exigências que comportam uma atitude particular. Há a Igreja
oriental e ocidental. Talvez nós propomos a Igreja comunitária
com rito e costumes próprios. Não mais uma ordem monástica,
mas um povo, cuja lei é somente a revelação. Não pense que nos
rebelamos. Entre cardeais e sacerdotes há quem exalta
Nomadélfia até ver nela o triunfo do evangelho na vida social e
quem a vê como uma alteração” (16.8).

9 – O memorial de Nomadélfia

A minha identificação com os últimos é completada. Depois


de vinte anos escrevo o meu memorial: Esta é Nomadélfia. “O
Governo veja Nomadélfia como uma conquista social, à qual se
inspirar para curar a chaga dos filhos de ninguém. A família
adotiva não basta. Somente a comunidade dá segurança que não
fiquem mais abandonados, porque não morre. Quantas celas
fechamos para sempre! Podem criticar nossos defeitos, mas
valorizem os resultados. Multiplicar homens e mulheres que
vivem o nosso amor, significa prevenir a violência de menores.
Pensar que todo o mundo se torne Nomadélfia, é idealismo.
Acreditar que seja mais eficaz das obras assistenciais é realismo.
Não somos um refúgio, mas um pequeno navio que transforma os
náufragos em salvadores de náufragos. Quem vive esta vida, não
pode entendê-la nem pode pretender de julgá-la utópica. Os
Nomadelfos, decididos em fundar uma primeira cidade que
chegue, no tempo, a uma população de 200 povoados, decidem
de pedir ao Estado Italiano: 1- se entende reconhecer a
personalidade jurídica de Nomadélfia; 2- se cede um território de
30 mil hectares; 3- se oferece o dinheiro para a autosuficiência; 4-
se permite de nós irmos em outro lugar se isso não pode ser
realizado na Itália; 5- se paga a dívida a cargo da assistência
pública. Autorizam os órgãos da cidade a agir e se empenham
segundo as presentes decisões. Assinado: Dario pro-patriarca,
padre Zeno, assistente”.
193

Quais reações aquém e além do rio Tibre, desafios, ameaças,


projeções de cidades, pedidos de 30 mil hectares? Será que dou a
ocasião de se convencer: “É um utopista, um plagiário, que
arrasta as pessoas ingênuas, que precisam se apoiar a um homem
forte?”.
Em agosto os servitas nos deixam. Os jovens os sentiam
irmãos e, improvisamente, “deixaram enormes vazios, porque
assistiam 200 jovens. Os caminhos do Senhor são misteriosos. Os
amigos dizem que muito depende de mim, mas de mim não
depende nada. Ai de mim cometer o erro de fazer pesar a minha
pessoa” (31.8).
Entretanto acontece um fato estranho. Um jovem pede de
estar conosco. Apertados como sardinhas, sou obrigado a recusá-
lo. Se mata sobre um banco do parque de Modena e para mim
será um remorso inconsolável. Durante a missa peço perdão,
chorando: “Aquele sangue grita a Deus da terra. Há mais
responsabilidade a dizer não que sim”. Um sinal? Como induzir
Scelba e os prelados a entender isso? Eles não levam em conta “a
experiência dos primeiros 20 anos, a qual demonstra que a cada
ano aumentamos em razão de um quarto dos presentes. Eis
porque precisamos de um vasto território onde criar, em 20, 30
anos, uma primeira cidade auto-suficiente. Em 1972, se não
sucederão diásporas, chegaremos a 120.000. Nada diz que seja
impossível: nestes últimos anos a progressão passou de um
quarto a um terço a mais, porque a vida dos nomadelfos se torna
mais atraente” (set.). “O Governo responde, ameaçando o
desfecho. Aquele povo é cego. Atingida a inocência, atingido
Cristo. Os nomadelfos não guardam rancor, mas decidiram fundar
uma cidade na Itália e uma no exterior. Os milaneses trabalham
para nós ficarmos aqui, mas precisa encontrar um território. Na
região de Grosseto haveria um por dois bilhões, mais um bilhão
para os aparelhos”.

10 – Cheque mate

A condessa Pirelli, chamada por Scelba, me informa que me


deu cheque mate: “O ministro declara de não aprovar Nomadélfia
nem assistencialmente, nem socialmente, nem politicamente.
194

Exprime-se muito duramente também com você. Às minhas


sentidas respostas diz ter tido mão livre por parte do Vaticano,
tendo garantido o abrigo dos filhos nos orfanatos. Nos vê
somente como obra assistencial, que mais ainda desaprova nas
suas particularidades. Seu pensamento: constitui-se uma
comissão técnico-financeira, excluído padre Zeno; assuma
fisionomia jurídica; o Governo tentará sanar a situação das
dívidas; se não aceitarem se reserva de tomar as providências que
achar necessárias” (10.10). Comunico ao núncio o que a condessa
me fala: “Para o ministro Nomadélfia é uma trapaça e se
maravilha como uma filha de Pirelli que se interesse assim que a
sua atividade pessoal se torna um aval à mesma trapaça. Padre
Zeno é um herege. O pedido dos nomadelfos não é aceitável,
porque não é justo dar terras e pagar dívidas enquanto há muitos
desempregados e muitos institutos endividados [Scelba dá à
Juventude católica 300 milhões numa só vez! Cf. F. Piva, op. cit.,
162ss, 396] Se querem ir ao exterior lhe pagamos armas e
bagagens”.
“Em Nomadélfia reina uma grande calma e se reza: Não a
minha, mas a tua vontade seja feita. Os filhos me perguntarão se
é verdade, que a Santa Sê tenha dado mão livre. Quanto ao
herege o ministro não tem a missão de tratar estes argumentos.
Quem nos ajudou, defendeu alguma vez? Ninguém. Quanto aos
meninos prejudicados, nada de extraordinário: paga sempre a
inocência, a mais valiosa moeda que circule sobre a terra e que é
válida no reino dos céus” (9.10).
Respondo a Scelba no congresso: “Se tivesse necessidade da
mão livre do Vaticano, a Itália não seria mais um povo livre. Se o
ministro abrisse as Escrituras, saberia que o amor não se pode
derreter. O Governo pode fazer o que quer. Que tente! Por que
não ajeita aqueles 7 mil meninos que pedem para morar conosco?
Se tenta atingir o nosso amor: vocês, abandonados, não podem
abraçar e transformar vocês em irmãos, para que, unidos, se
tornem uma ameaça aos exploradores. A fraternidade liberta
vocês da escravidão. Isso, para eles, não é uma boa notícia.
Parece-me ouvir Nero: “O cristãos se amam demais entre si: é
uma religião perigosa”. E então se encontra a desculpa das
finanças. Que façam as contas melhor. Deputados e ministros
195

gastam para os seus filhos 60 liras ao dia como gastaram para os


nossos? É uma luta não somente para nós, mas para milhões de
meninos e desempregados, que pedem justiça. Vendo que em
Nomadélfia está se formando uma fraternidade forte, pensam em
destruí-la por medo que os desgraçados, um belo dia, sejam
defendidos por santos e não por estúpidos. No momento em que
irá surgir não um santo só, mas um povo de santos, irão ver que
choque para o mundo todo. Portanto somos simples como
pombas, expertos como cobras, porque debaixo das palavras
deles há uma ameaça. Eu estou pronto para abraçar padre Monari
que foi fuzilado, os nossos filhos que foram massacrados, mas
não desisto” (12.10). A assembleia aceita a comissão, mas nega
que se constitua em entidade jurídica, porque, debaixo do
controle estadual, seria em liberdade condicionada. A condessa
refere: “A resposta à relação de Nomadélfia foi dada no meu
colóquio. Mais do que resposta, um ultimatum: “Diga a padre
Zeno que se querem ir embora, eu darei todo meu apoio...”
(18.10).
Conrado Alvaro conta: “Na praça São Carlos encontro um
padre com boné. Planejava uma espécie de socialismo cristão e
via surgir inteiras cidades desse tipo. Esperava o choque e o
choque veio com o governo e as altas hierarquias. Nomadélfia
exige uma voz no orçamento do Estado, como para uma obra
pública de bonificação ou para uma cooperativa, mesmo singular.
“Somos em crise”, me diz o padre. Digo brincando: “Com o
céu?”. Responde: “Um pouco mais em baixo”. Naquele pouco, há
ainda muita obediência” (La stampa, 20.10).

11 – Confidências de um heresiarca

Há um estranho movimento ao nosso redor. “Vozes


contrastantes, caras estranhas. O bispo não fala; a Santa Sê
observa; as podestades da terra ficam caladas; o povo distraído.
Os filhos plantam sobre a terra a cidade do homem novo que
raciocine, veja, viva, ame somente como o Filho do Homem. São
loucos, iludidos, ingênuos? Sentem-se ameaçados, caluniados,
exaltados, esquecidos. Quando caem debaixo da cruz, antes caio
eu. E quem vem conosco ouve cantar. Diz que: “É um
196

manicômio, são irresponsáveis”. Outros: “É um Paraíso na terra”


(28.10).
Nunca esquecerei aquele 27 de novembro, chamado, com 4
sacerdotes no escritório do núncio mons. F. Borgongini Duca.
Nós imputados, em pé; ele, o dedo apontado: “Você desonra o
clero; você é a causa de um cisma… Você é um heresiarca! E
vocês, dirigindo-se aos sacerdotes, feitos a sua imagem e
semelhança”. As lágrimas descem incontidas. Quem me chama
de herege é o representante do papa, portanto o próprio papa? As
denúncias não são pela substância, mas pelas formas externas:
reza do divino ofício, missa cotidiana, trabalho, paridade com os
leigos.
“Fiquei escandalizado quando vi o núncio se comportar
como juiz. Senti um choque, um trauma. Agia em boa fé, mas
estavam em jogo os interesses de Deus. Impressionou-me como
um carrasco, inocente, somente porque não sabia o que fazia, ao
qual não precisei pedir perdão, porque, pela sua mentalidade,
fazia somente seu dever. Quem sabe quantas vezes eu mesmo
cometi o mesmo crime! Um dia um jovem, por mim ofendido,
foi embora, chorando e disse: “Padre e patrão tem sempre razão”.
“Pedi aos sacerdotes para me substituir. Até quando não
serei certo que a acusação de heresiarca será retirada, não tenho
coragem de ensinar. Nunca na minha vida uma autoridade se
permitiu uma tal coisa. Peço a Deus que me faça a graça de não
ser um covarde. Como fundador de Nomadélfia a considero
dissolvida. Ficam homens e mulheres católicas que se amam e se
gastam para salvar-se. Tem filhos adotivos, dos quais eu sou o
197

primeiro responsável. Sofrem a desnutrição, porque nós


eclesiásticos estamos discutindo sobre coisas doutrinais, sobre as
quais estamos todos de acordo. Se a Santa Sê deseja manter
Nomadélfia tente tratar com os leigos. Retiro-me numa porcilga
abandonada e ajudo os filhos carregar a lenha com os jumentos.
Talvez vou ser preso, pois assinei cheques sem fundo para
alimentar estes delinquentes! Se terão fome procurarei nutri-los.
Se farão algum crime direi que fui eu o responsavel. E se
morrerei de dor, está certo, pois amei demais a minha Igreja
mesmo acusado de tê-la maltratada” (ao núncio, 29.11).
Que contraste entre a tempestade do Vaticano e a serenidade
de Nomadélfia! “É festa. Os meninos saem das famílias, belos,
elegantes como passarinhos; jovens e meninas, homens e
mulheres, em grupos variegados, vão assistir minha missa de
meio-dia. Que mistério os empurra? Toda vez que falo com o Pai,
parece que me diga: “Por que não amas mais o meu povo?”. É o
seu povo. E eu gostaria de evitar a responsabilidade de ser
sacerdote de Nomadélfia. Uma acrobacia para nós que crescemos
numa outra forma mentis. Quando me encontro perante o Santo
Ofício, uma voz me sussurra: “Virá o dia em que neste palácio
será escrito com caracteres de sangue: Nesse tribunal se perdoa
70 vezes ao dia. O povo o chamará o Palácio da Ressurreição.
Todos os que entraram tremendo, sairão exclamando: O felix
culpa” (ao núncio, 21.10).

12 - O congresso da Porcilga

Os filhos me encarregam de nomear um Conselho Diretivo,


ao qual delegam todo poder. “Qualquer desgraça, para eles, é
vontade de Deus” (a Ottaviani,7.12). Retiro-me para rezar no
eremitério de são Severo. De noite, chegam dois jovens: “Todos
te procuram. O que fazes aqui, sozinho?”. “Sozinho? Estou
falando com Jesus. Estava sentado ali…”.
Depois de alguns dias de agonia interior convoco o
congresso numa choça usada como chiqueiro: a Porcilga (4-
7.12). Os acontecimentos nos pedem maturidade da santidade
social: devemos ser como uma esfera, cada ponto sustenta todos
os outros. “Se a Igreja me considera herege não posso continuar a
198

construir sobre a heresia, envolvendo outros. Na espera que se


esclareçam as coisas, nos retiramos em silêncio nesse eremitério
social para rever a nossa vida”.
A assembleia decide: a Cidade de Nomadélfia não existe
mais, existe o eremitério social para aperfeiçoar a vida
comunitária; a constituição continua em vigor; nos constituímos
em associação civil. Precisa tirar tudo que é heterogêneo,
portanto hóspedes e abrigados se retirem. Eu fico no eremitério
com os de maior idade para estudar, trabalhar, nos modelar
segundo o espírito da cidade de Deus.
Antes do término se apresenta um jovem: “Quero fazer parte
da vossa família”. “Sabes comer?”. “Sim”. “Aceitado!”. Para nós
é um sinal do Céu: “O Senhor, enviando esse jovem diz que é
feliz em nos entregar seus filhos”. O que tinhamos de atraente?
Tendas como casa, pouco pão, tanta miséria. Mas são as eternas
estigmas de Jesus que atraem os generosos. Vem da vizinha
propriedade de Sassigrossi e é apelidado de Pedragrande para o
templo vivo de Deus.
Perto do término da última sessão, improvisamente, uma
explosão, muita poeira. O vento bate a porta com violência.
Espero que todos se ajeitem, depois: “Quando desceu o Espírito
Santo se ouviu um rombo como de trovão e encheu a casa onde
se encontravam os Apóstolos”. No silêncio mais profundo doou a
benção. Lembro que desde 6.2.’45 perguntava: “Acabaremos nos
eremitérios?”. Agora Jesus nos dava a resposta.

XIV – 1952: afastamento e repressão

Cenário internacional – A ONU cria uma comissão para o


desarmamento (11.1); a França propõe um exército europeu em
função antisoviética (out.). No XIX congresso Stalin anuncia a
passagem ao comunismo (2.10). Na G. Bretanha o primeiro teste
199

atômico (3.10), nos EUA aquele termonuclear (1.11). Eisenhower


presidente (5.11). Na Bulgária, processos contra os bispos.
Cenário italiano – Aperto anticomunista: a Fiat licencia
diversos grevistas e o diretor dos serviços sociais (1.1). Greves
em Turim, Milão, Genova. Manifestações em Trieste (20.3). O
papa e parte da DC tentam a Operação Sturzo com uma lista
anticomunista (abril). Projeto de lei excecional polivalente para
reprimir subversão, ocupação de terras e estabelecimentos (13.5).
A DC perde, avançam as esquerdas (25.5). Lei-Scelba para a
repressão do neofascismo (20.6). Depois da morte de um
dirigente Fiat, um deputado DC denuncia: o PC incita ao ódio de
classe (8.7). Para De Gasperi o governo com os comunistas é em
conflito com a democracia (31.8). 130.000 homens católicos em
Roma para o XXX aniversário (11.10). O card. Schuster solicita
medidas contra os protestantes (15.10). Calamandrei denuncia a
lei trapaça (12.12).

1 - Na Maremma arranhando nossa alma e nossas mãos

“Nos bosques de Grosseto estamos acampados no canteiro


de trabalho”. Terra ingrata, comida insuficiente, trabalho
massacrante. Sem luz, sem água, sem estradas. Reduzidos a
náufragos para sentir na nossa carne a dor das vítimas. Para
conquistar a consciência que, perdendo tudo se salva tudo. A
tábua à qual estamos agarrados é a certeza, que, mesmo na
miséria, somos irmãos. Eu me interesso de muitas coisas
terrenas: “20 toneladas de cal por semana, 100 metros cúbicos de
brita ao dia, dois milhões de faxinas. Produzimos isso com
trabalhos em massa e o rendimento é surpreendente, porque a
fraternidade tem seus benéficos resultados. Vestidos e calçados
200

como podem, arranham suas mãos, rompem seus dedos, se


formam” (16.1). “Uma vida primitiva: fundas, arcos, ninhos,
caça, fruta nativa” (21.1). “Há quem diz: Serão dispersos. Será
que já não estamos? O bosque, batido pelo vento, nos fala uma
linguagem estranha. Os bichinhos do bosque nos ensinam tomar
cuidado”.
A senhora Pirelli, na intenção de opor à prepotência do
ministro uma Comissão financeira influente, convida para fazer
parte personalidades do mundo econômico: Falck, Cicogna,
Faina, Radaelli, Imbriani, Cenzato, Prinetti, Marazza, os
ministros Fanfani e Campilli. Tudo em vão, também as
intervenções dos On. Andreotti e Dossetti. Temporais e bonanças.
“Entre Scelba, Vanoni e Medici se está definindo algo de
concreto, mesmo com algumas nuvens ameaçadoras. Procure
dizer uma boa palavra ao on. Scelba” (ao núncio, 26.1). Confio a
Turoldo: “Os inimigos de Nomadélfia são muitos e poderosos. Os
amigos, poucos e fracos. Somente Jesus pode nos conduzir pela
mão” (11.1). O caminho dos pioneiros é íngreme e desconhecido,
sobretudo por nós que tentamos passar os confins do homem
instintivo para fazer a descoberta do homem-irmão. “Eu penso,
sem medo de pecar de megalomania, que Nomadélfia é para a
Itália o que Colombo foi para o mundo. Todavia eu sou mais
espectador que ator, porque cresceu ao redor de mim uma árvore
201

desconhecida” (12.1). “Ás vezes sou obrigado a abandonar o


pequeno navio à desventura. São as horas de Deus e de satanás
nas quais todo esforço fica neutralizado. Aonde vai Nomadélfia?
Por que tu a amas? Por que outros a amam e muitos a condenam?
Reunimo-nos em Grosseto para fugir de uma ameaça e somos
ameaçados pela falta do necessário” (20.1). Turoldo: “Os
credores chegam numerosos. O comitê nunca se meteu em tantos
problemas financeiros. Aonde vou pedir, me respondem que já
passaram os nomadelfos em meu nome. Ao menos me
avisassem…” (15.1).

2 – Crescemos rapidamente demais?

Envolto no silêncio dos bosques, faço o eremita. “Subo e


desço os atalhos, medito com o Senhor. Até ontem falava às
multidões, hoje falo às árvores e aos pássaros. A vida do eremita
nos ajuda em ver que somos res nullius, mas queremos resistir,
porque o primeiro ocupante seja o divino Mestre. Revemos o
passado para eliminar erros e aprofundar nossa vida” (a Ottaviani,
23?.1).
As dificuldades externas, acrescentam-se às internas. O
primeiro que vacila é Danilo Dolci. Alguns desempregados vem
pedir trabalho. “Se querem se tornar irmãos compartilhamos o
que há, mas nós não somos donos de ninguém”. Ou irmãos ou
202

nada, de jeito nenhum! Eles querem o salário no final do mês.


Danilo quer que eles fiquem a todo custo. “Não sou eu que nego
abrir as portas aos sofredores, é a lei da impenetrabilidade dos
corpos que o impõe. Se o cirurgião não operasse o paciente, que
está nas suas mãos, para curar o que bate à porta, não seria nos
planos de Deus. Quando terminar a operação, cuidará do outro.
Perdoe-me, para mim tu estás errado. Temos hóspedes demais,
que sabem receber amor, não restituí-lo. Nós estamos fazendo
uma operação cirúrgica delicada: cortar o individualismo para
doar ao mundo um exemplo de santidade social” (2.2).
Somos sempre cheios e nos apertamos para deixar o lugar ao
último náufrago. Mas onde encontrar trabalho para não trair o
pacto com o anárquico: “Nem patrão nem servo”? Devemos
inventar formas de subsistência, não com cálculo egoístico, mas
para vivermos como irmãos na produção do necessário. A
sociedade nos dá a ilusão de sermos livres, mas é cruel: “Se não
serves o patrão, não comes”. Esta é a causa última das nossas
dificuldades. Não é posta em evidência, porque perturba demais?
Falo disso com Andreotti: “Nomadélfia é ameaçada por
incompreensões externas e imperfeições internas. Precisa ser logo
auto-suficientes. É difícil se fazer entender, porque os homens
nunca aceitaram os obras de Deus em seu começo. Elas têm uma
linguagem nova e muitas vezes são uma repreensão ao mundo.
203

Eu sou um espectador chamado para ser ator, mas quem dirige é


Outro. Ficará na Itália a Cidade de Deus ou expatriará?
Perguntaram-lhe: “Mestre, onde moras?”. “Sigam-me e verão”. E
viram que morava no Calvário” (15.1). “Uma personalidade diz
que se conseguirmos produzir para a auto-suficiência tudo se
ajeitará. Mas os credores incomodam a Santa Sê” (27.1). Sempre
suspenso entre esperança e apreensão. “Parece que Scelba seja
mais razoável. A força mais mortífera da política é demorar e
neutralizar as iniciativas importunas. Se ele seguir esta idéia nós
suaremos sangue” (16.1). Padre Marchi comunica: “Severini
disse que se a Santa Sê nos aprovar, o Governo ajudará, mas
encontrou Scelba duro e De Gasperi compreensivo” (19.1).
No Vaticano cresce o terror que o município de Roma caia
nas mãos dos vermelhos. Nós não queremos depender do Estado,
porque hoje reconhece a liberdade de associação, mas amanhã?
“Nunca aceitaremos uma intromissão que nos torne escravos de
um governo anticatólico. Ontem à noite pensava que ia morrer
por um ataque de coração. Minha dor é ver que os pobres e as
massas se afastam da Igreja. No bosque atormentado pelo vento,
voam folhas, caem árvores. A noite toda barulho, violência. O
que podemos esperar dos homens? Os filhos se agarram a mim,
mas entendem que a aflição lhes tira o pai e o irmão, porque um
só é o pai e o irmão deles: Deus” (22.1).
204

Turoldo me avisa: “Parece que em Roma a situação virou. A


meu respeito a situação é muito grave. Uma por uma todas as
portas se fecham. Repito o que me disseste: no Calvário se está
mal, mas estamos em boa companhia” (gen. ‘52). Escrevo a padre
Calábria: “Reze e mande rezar, porque seja feita somente a
vontade do Senhor. Chegamos. Uma rajada está caindo sobre
nós” (dez. ’51).

3 - “Não sou mais o pai de vocês…”

Comunico aos filhos a explosão das hostilidades: “Em 5 de


fevereiro, o núncio lê um decreto do Santo Oficio, no qual me
ordena sair de Nomadélfia. Garante que uma comissão enfrentará
as passividades e que virão os salesianos. Não sou nem o papa,
nem a Igreja e acredito em Jesus, porque acredito na sua Igreja.
Escrevo com minha própria mão: “Agradeço ao Senhor que me
faz o dom de aceitar um ato de obediência. Obedeço in Corde
Jesu”. O Núncio: “O que pensas?”. “Não o compartilho”. Retiro-
me e rezo: “Jesus, vês o que está acontecendo? No Getsemani tu
obedeces a Deus, eu obedecendo ao papa obedeço a um homem
como eu”.
“Obedeço sem muito entusiasmo. A Igreja me mandou a
vocês e agora me arranca. Não sou mais o pai de vocês. Eu devo
seguir uma lei, que não é a de vocês. Sou um entre os homens
205

mais infelizes. Se vocês precisarem do meu sangue, me


encontram e podem bebê-lo todo. Adeus. De vocês e não mais de
vocês, padre Zeno. Sejam livres da liberdade dos filhos de Deus”
(9.2).
Em Assis desabafo com Francisco: “Esta experiência me
revelou um mundo eclesiástico surdo à voz dos oprimidos, aos
quais quer ir com esmolas, não com a redenção da escravidão dos
exploradores” (6.2).
“Passo a noite na capela da Corsia dei Servi (Milão),
chorando sobre o altar com Turoldo e os íntimos (9-10.2).
Nomadélfia retoma seu Calvário enquanto o mundo passa em
cima dela sem perceber”. A mim e aos padres é proibido entrar na
comunidade, encontrar os colaboradores. O clero indagado, o
bispo desautorizado. A decapitação da comunidade acontece por
meio da autoridade eclesiástica sob mandado do braço secular.
Para um governo eleito com os votos dos católicos seria
impopular demais intervir contra uma obra, que declara
fidelidade à Igreja. Eu, nascido para ser padre, devo dizer aos
filhos que me custaram muito: “Não sou mais o pai de vocês”!
Quem enche a boca de paternidade espiritual, nunca poderá
entender a minha tragédia?”.
Encontro o bispo: nos abraçamos, chorando. “Desejo ir
embora da Itália. Pode ser até amanhã de manhã. Um amigo me
206

convida no Brasil. No decreto se fala de doutrinas. Garanta ao


papa que a minha é aquela da Igreja. Estou fugindo de todos, se
quiser falar comigo, irei de noite” (11.2). Dias obscuros, a alma
em aflição. Refugio-me no lago de Como na mansão da senhora
Pirelli. “Cara Nini, quando jovem, mons. Pranzini me disse:
“Sabes o que é a dor?”. “Não”. “Saberás”. Se perguntar hoje
talvez responderia que não. A dor invoca o silêncio, porque
nenhuma palavra pode ser igual na eloquência” (9.2).
Os filhos me acompanham na via crucis da obediência:
“Com a mesma dor com a qual padre Zeno aceitou o decreto do
Santo Ofício, nós aceitamos seu afastamento, que esperamos
provisório. Rejeitados, nele encontramos o pai, o irmão. Nunca
poderemos renegar este amor, que transmitimos aos que
acolhemos como filhos. Pode a sociedade nos impedir de amá-
los?”.
Os nomadelfos traumatizados, a imprensa agitada. Em
janeiro nos dedica 4 artigos, em fevereiro 110, até dezembro 400.
A imprensa católica interpreta isso como condenação de um
método pedagógico; aquela leiga atribui isso ao deficit
econômico. Padre Bedeschi grita: “Em Nomadélfia ventila
bandeira branca” (Il Popolo, 12.2). Silvio Ori rebate: “Não
ventila bandeira branca, mas a cruz de Cristo plantada num lago
de sangue dos mártires pela justiça e pela liberdade” (Epoca, 8.3).
207

Marise Ferro diz de mim: “Um anjo na fogueira. A obediência de


padre Zeno, sua humildade o tornam maior do que
acreditávamos” (Milano-Sera, 18.2). La Cittadella de Mantova:
“Nós acreditamos que a razão principal seja o sistema pedagógico
submetido desde 1947 ao Santo Ofício, o qual se pronunciou
afastando o fundador. Para ele os vínculos da caridade são
superiores aos do sangue; daqui a fórmula das famílias de
eleição, formadas por pais e mães, que cuidam dos filhos entre os
quais se encontram também jovens que têm, às vezes, quase a
idade deles. Esta heroica fórmula não parece que tenha dado
inconvenientes morais, mas a autoridade não seria disposta em
apoiá-la futuramente” (24.2). Atacam-me na minha descoberta,
no que de mais original tirei do evangelho: a família regenerada
por Deus. Aquela do sangue recolhe os filhos vivazes em colégio
e confina os idosos inúteis no asilo. Como pode uma realidade
fundada no amor fazer chorar os mais fracos da sociedade? Não
se quer admitir que a família isolada é insuficiente e eu diria até
contra natureza. Todo dia sai de casa e não sabes se voltarás.
Expões ao perigo de ficarem viúvas e órfãos tua mulher e teus
filhos. Ou Deus é cruel, que nos embarca num avião sem
paraquedas, ou cruéis somos nós que não nos precavemos. Na
história da família sempre se procurou algo de mais amplo para
sustentá-la: tribos, clan, grupos, famílias patriarcais. A sociedade
208

exasperou o individualismo seja do indívíduo seja da família. E


os inocentes pagam sempre. Também nós deveríamos enfrentar
esse nó e o desataremos, inventando o grupo familiar (1954): 3, 4
famílias administram juntas a vida cotidiana na casa comum,
hortas, animais de quintal, e, ao redor, as casinhas com os quartos
de dormir para cada família. Os filhos crescem mais serenos e
seguros. Um deles escreverá: “Conosco a mãe não morre mais. Se
morrer há logo outra”.
Dino Buzzati: “Seu ato de obediência é mais impressionante
do que se pensa o que significa para ele ter que deixar seus filhos,
a finalidade de sua existência. Dizem que, quando não há
ninguém, chora. Mas para quem se aproxima dele demonstra uma
serenidade maravilhosa. “Aos meus filhos não dei nem darei
conselhos. Basta que escutem sua consciência. Aprendi a
verdadeira obediência em Nomadélfia. Antes obedecia por
raciocínio, depois vi como obedecem os rapazes. E agora faço
como eles. Nomadélfia é uma perola nascida do povo sofredor.
Quererão quebrá-la para ver o que há dentro? Os filhos da
desventura se apresentaram ao mundo e disseram: Somos irmãos.
Qual for o destino de Nomadélfia, uma coisa é certa: visto que
entrou no profundo das almas, não há força no mundo que possa
apagar o bem que fez” (Corriere della sera, 12.2). Mazzolari: “A
novidade de Nomadélfia não era isenta de defeitos e sombras: fé
209

na providência sem curar as coisas; condenação da sociedade


capitalista e exploração da filantropia; trabalho mal organizado;
personalidade de padre Zeno magnífica mas irregular; seu
seguidores, simples repetidores. Nada a ser condenado ou
exaltado, tudo a ser continuado, completado. Pagar as dívidas é
coisa boa, se não for prelúdio do desfecho da cidade da
fraternidade nome altissonante, mas que convem à comunidade
de padre Zeno, o qual será, mesmo com alguns desleixos, um dos
pioneiros, que serviu a causa da Igreja e dos pobres” (Adesso,
15.2).
M. V. Mezza: “No começo Nomadélfia pareceu um ótimo
álibi para desmentir a insuficiência da missão da Igreja: se é
capaz de exprimir de seu próprio seio esta renovação, significa
Cidade
que seus valores não estão vencidos” (14.6). Mas agora a
onde a fraternidade é lei è em liquidação forçada. A linguagem
mostra o cinismo com o qual a Igreja tentou desferir uma mortal
patada. O núncio não a elogiou? O decreto afeta padre Zeno, não
Nomadélfia, que não deve obediência ao Direito Canônico. Se a
Igreja quiser domá-la, deverá usar violência ao Conselho diretivo,
que é como o conselho de administração de uma sociedade. Não
foi o déficit que induziu o Santo Ofício punir o padre de Fossoli,
mas uma semente de cristianismo integral. O bívio é duro para a
Igreja: não pode se declarar hostil a uma fraternidade realizada,
sem declarar a si mesma que está fora do cristianismo” (Avanti!
14.2).

5 – Duas batinas: a branca e a preta


210

Como conciliar a intervenção com tantos elogios? A diocese


do papa não quis recorrer a nós para dar a mãe aos rejeitados? A
autoridade acredita que sejam todos meninos e não calcula os
adultos, os quais temem que um pároco estranho à vida deles
introduza uma educação diferente. Manda-se no lugar um
plenipotenciário, pe. Castellano, um dominicano rígido, preciso,
ex oficial. A sua figura esbelta, envolta na batina branca, ficará
impressa nos filhos. Alguns tempos depois aparecerá um jesuíta
com batina preta. Duas batinas, a branca e a preta, se alternam na
nossa cena: uma para indagar, a outra para oferecer uma mão
amiga. Todavia devemos acreditar que todas duas sãos as mãos
de Deus para nós. O dominicano fala com Dario, o presidente dos
nomadelfos: “Decidimos por os salesianos para a educação dos
rapazes”. “Os salesianos mesmos? Não queremos fazer um
colégio!”. Roma parece não conhecer a natureza própria de
Nomadélfia: não esteve em contraposição à fria assistência dos
religiosos? A pedagogia deles prepara os jovens a serem
funcionais para uma sociedade de explorados e exploradores.
Segundo nós deveríamos ensinar que somos todos irmãos, e não
empurrá-los para encontrar uma posição nas costas dos outros! Se
eles veem como educadores estragarão os nossos filhos? Em 16
de fevereiro se dá ênfase à nomeação do novo pároco, padre
Pomati: para o instituto salesiano di Modena são doados três
211

carros de comida e roupa. O núncio introduz, apelando à vontade


de Deus. Dario retifica: “Esta é a vontade dos homens, não de
Deus. A Santa Sê pode mandar um salesiano como pároco, não
como educador. A comunidade é uma população civil, depende
dela mesma, não da Igreja”. Eu ensinara: “A autoridade de vocês,
como povo, é de Deus: defendem-na da ingerência da Igreja”.
Enquanto os prelados emilianos dão disposições sobre o
costume de banho dos padres, o visitador toma posse do ofício do
bispo, o qual é obrigado sair e executar ordens. Sente-se tão
humilhado que exclama: “Mas quando vai embora aquele lá?”. O
jogo não dá certo com a comunidade. Pe. Castellano percebe que
uma coisa é analisar Nomadélfia sentado na mesa, outra estar na
frente da cidade do homem, não da cidade dos rapazes. De fato
trata com pessoas maduras, que o induzem a corrigir os planos de
Roma, publicando um esclarecimento: “As competentes
autoridades eclesiásticas declaram que padre Zeno sempre gozou
e ainda goza a máxima estima; a providência não é punitiva, isto
é por erros doutrinais, mas administrativa. Nomadélfia vai bem;
as famílias podem continuar sua vida. Em Fossoli será enviado
um salesiano, não como salesiano, mas como pároco” (15.2).
Padre Marchi me revela: “Se não aceitar o pároco, Nomadélfia
seria censurada, os sacerdotes retirados, porque não são previstos
numa obra não aprovada da Igreja e o Governo teria retirado todo
212

subsídio” (19.2). Em frente à chantagem, devemos baixar a


cabeça, mas as contradições ficam: se eu gozo da máxima estima,
por que me tirar? Roma veio para ajeitar as coisas e se reduz a
aprovar. Como população civil se libera das interferências
clericais, mas servirá as estatais?
Eis como reagem os íntimos. Turoldo escreve ao Prior:
“Padre Zeno e seus filhos deram um grande exemplo. Schuster
me disse ter ficado impressionado pela sua obediência” (12.2). A
senhora Pirelli em vão apressa Pizzardo a respeito das
passividades. Faz de tudo: corre a Roma, escreve ao Sen. Medici,
porque “Nomadélfia está passando fome, agravada pelo
afastamento de padre Zeno”. Pede ajudas à nobreza milanesa,
mas a condessa Cicogna adverte: “O povo ficou desnorteado
pelos muitos artigos e mais ainda pelas numerosas fofocas e hoje
parece que ajudar Nomadélfia signifique se rebelar ao Vaticano”
(21.2). Os vários grupos de Amigos são obrigados suspender as
ajudas. O Sen. Medici se justifica, fazendo entender que no alto
não há nenhuma intenção de pactuar. “A Comissão está sepultada
antes de nascer”.
Faço notar: “Os oprimidos deverão talvez ficar oprimidos
por muito tempo. Em 20 anos de preparação atirei um gancho
numa baleia: o mundo na minha Igreja. Talvez toda a minha luta
213

tinha como finalidade este objetivo. Jesus, em plena derrota, pode


exclamar: Venci o mundo” (17.2).
Convido o papa a refletir sobre os fatos. “Quanto tempo o
Crucifixo nos deixará para abraçar os oprimidos? Eu não sou
mais deles. Nem o papa. Que eles amam, ao qual sabem obedecer
melhor que os eclesiásticos. A grande novidade: o comunitarismo
católico arrombou, abrindo uma brecha nas muralhas do Santo
Ofício. Entrou na Igreja, parido da Igreja através de um
sacerdote. E é obrigado a negar a cidadania a mim, que o gerei,
por causa de uma legislação superada. Mas a Igreja, que não pode
errar, escuta seus filhos, entra em acordo e reconhece a eles o
direito de livre convivência. Venceram. Eu, pelo contrário sou
derrotado. E comigo o papa. O que pode fazer? Não pode impor
nem dissolver um casamento. Não pode impor o amor, não pode
dissolver o amor. Ficaram sozinhos! E se debandarão, de quem
será a culpa? Minha e de Vossa Santidade. Por que o Santo
Ofício invés de se perder em insignificantes particularidades não
cuidou para não cair nesse desastre? Sucumbindo a Nomadélfia,
esculpiu na história uma sentença: papa, bispos, sacerdotes,
somos uma casta. Fosse uma blasfêmia! Serei livre desta
dilacerante angústia que me leva resistir ao papa que tanto, tanto
amo” (23.2).
214

5 – Barile no Santo Ofício

Os termos de imputação não são os princípios, mas episódios


e atitudes corrigíveis. A Santa Sê não conseguiu ir além dos
limites humanos. Os simples, os últimos, como meu primeiro
filho, parecem colher as realidades de Deus melhor que os
prelados. Conta isso Barile da França aonde emigrou: “Enquanto
bebo um litro de vinho na taberna, uma pessoa me pergunta:
“Italiano, conheces Nomadélfia?”. Abro o jornal: “A Cidade de
Nomadélfia ficou sem seu pai”. Então morreu? “Não, foi
substituído pelos salesianos”. Volto, corro falar com o bispo de
Carpi, que pego por um braço: “Acertaram meu coração,
afastando meu pai. Onde está?”. Eu sou corpulento, tenho o nariz
de boxeador, a voz rouca e ele, espantado: “Precisa pedir isso ao
Santo Ofício …”. “Que seja um ofício sim, mas santo, não!”. Sou
analfabeto, mas me viro. Ando por cima e por baixo dos
corredores vaticanos. Em todo lugar padres vestidos de vermelho,
cor que fazem para mim o efeito que faz ao touro. Insisto até
quando me levam ao chefe, um certo Ottaviani. Jogo na cara dele
o livro de padre Zeno com a minha história, bato um murro na
escrivaninha: “Mesmo delinquente e beberrão, sou sempre seu
filho. Ele me arrancou da prisão não vocês, papoulas! Por que
não o substituíram com os salesianos quando se comia polenta?
215

Não importa se vocês não o reconhecem, para mim é meu pai e


para ele dou a vida”.
Deixa uma mensagem para mim: “Manda dizer quem
devemos espancar, no restante pensamos nós…”.
Quem sabe se o papa poderá me entender! “Parece a hora de
Barrabás. Jogamos nas mãos do braço secular os filhos prediletos,
um escândalo de superficialidade. Irresponsáveis. E, o que mais
me entristece, também a Santa Sê? Não se quer entender que
Nomadélfia é um fato de Deus e que irá vencer. 18 sacerdotes
colocaram em risco sua personalidades para se tornar cidadao de
Nomadelfia. Fomos abatidos como fôssemos criminosos.
Corresponsáveis por lei natural como leigos, nos tornaram
impotentes pelo código do evangelho. “Obedeceram”! Que
descoberta! Mas quem faz aquelas coisas de Deus, ama
inevitavelmente a Igreja, porque somente aquele que ama a lei do
amor consegue fazer isso. É uma injúria e uma loucura nos
amarrar à piedade. Talvez não seja ato de suprema piedade perder
a vida pelos irmãos? Ostentamos um crédito de 450 milhões. Se o
Governo não quer liquidar e continuará a mandar a polícia para
induzir os parentes a retirar seus filhos, jogando-os num orfanato,
seremos obrigados a reagir. Como fez o Santo Ofício a me livrar
de compromissos, que nem Deus pode tirar, sem fazer uma
injustiça? “Padre Zeno é impossível”. Não sou eu o impossível, e
216

a realidade que precisa de bísturi. E a realidade é a vontade de


Deus. Espero que Deus me deixe morrer de dor. Um menino
rolava na lama e os policiais o jogaram no trem com a força. Mas
não há ninguém que me dê um tiro de espingarda?” (6.3).
Não posso por pé em Fossoli, mas em Grosseto há somente
um acampamento de desesperados. Vagando, de noite retorno ao
Cefarello. Virgílio conta: “Uma buzina anuncia a chegada de um
caminhão. No volante Azio, um dos nossos. Foi parado pelos
policiais em Batignano: “Viu padre Zeno?”. “Não”. Ninguém
sabia onde estava. Abre porta e sai ele mesmo, o nosso padre.
Atrás dele, caixões de biscoitos, frascos de vinho, cigarros, coisas
nunca vistas. De Caprarecce, Rosellana, San Severo chegam
outros filhos. Abraços, lágrimas, cantos até o amanhecer. Ele dá
força na sanfona, nós nos pulmões”.
A vida continua, os filhos acreditam no amor. Celebramos o
casamento de Virgílio e Ana Maria com a roupa da festa, o véu
da esposa tirado do mosqueteiro. Na fotografia de recordação, ao
redor dos noivos, uma auréola de oito filhos acolhidos (2.3).
Depois, dois pulos, a sanfona, os nossos cantos. São tão
angustiantes, que quanto mais toco, mais se houve os soluços. No
final tocará a sanfona sozinha.

6 – Denúncias e delações

O Santo Ofício procede na sua política com outros meios:


denúncias, delações. Como encaixá-las no evangelho? Exorto os
filhos: “Vigiem. O mundo não suporta as realidades de Deus e vai
contra” (3.3). “Os acontecimentos confirmarão se tudo isso é de
217

Deus.” (19.3). “Ottaviani diz que o Vaticano ajudará e me proíbe


de participar da assembleia para tratar dos compromissos dos
sacerdotes. O Santo Ofício parece que ficou perturbado da
resistência dos nomadelfos, mas planejava colocar os salesianos
para contê-los com a disciplina das obras da Igreja. Portanto o
fato de ter afastado os sacerdotes salvou a liberdade dos leigos,
desamarrando-os da obediência ao bispo. Contestam que nós
queremos “que o clero fosse no mesmo nível do povo enquanto
deve ser uma elite”. Nós pensávamos que fosse um fermento vivo
imergido no povo, não uma elite a latere. Muitas acusações,
porém não revelou nenhuma. São inflexíveis, porque não querem
dar a Nomadélfia seu clero. E o que deverá fazer Nomadélfia?
Entretanto a seguram com a fome. Se tivessem tido argumentos
mais decisivos, teriam desacreditado tudo. E se não houvesse a
reação da imprensa quem sabe o que teriam feito. Quando os
nomadelfos irão perceber, ficarão abalados. Temo que os atirarão
na armadilha com pretextos de costume ambíguo. O pároco em
Fossoli, o doutor do Ente Maremma em Grosseto, acredito sejam
os dois espiões” (a padre Vincenzo, 16.3). Mesmo assim “entre
mim e o Santo Ofício correm boas relações; acredito que nos
queremos bem, mesmo trocando tapas. É a procura de um mundo
novo que atormenta a todos” (19.3).
218

A minha carta é lida na assembleia: “Razões disciplinares me


proibem participar. Se os filhos caissem em desgraça, o Senhor
me oferecerá o Sinal para descer de cavalo. Não tenham medo,
sou sacerdote de Cristo, portanto nunca a sua Igreja quererá que
eu esteja em condições tais de trair minha missão” (18.3). A
senhora Pirelli fala das várias tentativas para obter de Scelba a
Comissão e de Merzagora a reunião com Medici: “A
comunidade, organizada em cooperativa em Grosseto, se
dedicaria à agricultura, carpintaria, tipografia. Uma comissão
providenciaria a liquidação das dívidas com a condição de se
sujeitar às diretrizes do Ente Maremma. O Governo não tem
nenhuma obrigação, mas se se pagassem os credores com 200
milhões, isso seria a máxima contribuição” (23.3). Eu tinha
interpretado o afastamento dos sacerdotes como um
reconhecimento de maioridade: “Caminhem com suas pernas.
Celebrem a liberdade como povo, não tem mais precisão de
tutores”. Beatriz evidencia isso na assembleia: “A autoridade
eclesiástica, considerando-nos uma população, nos dá um pároco
e com isso aprova a vida de comunidade. Padre Zeno entrega em
nossas mãos a cidade. Aqui fora brincam os filhos, que esperam
se tornar adultos. Como entregaremos nossa cidade nas mãos
deles?”.
219

Irene esclarece: “Padre Zeno é o nosso fundador, porque nos


acolheu como filhos, não como assistidos. Seu amor deriva não
do sentimentalismo, mas da sua qualidade de sacerdote. Desse
amor nasceu a cidade de Deus. A Igreja nos tirou o padre, mas
seu enviado declarou: “Padre Zeno não foi substituído por
ninguém”. Ninguém poderia substituir o fundador de uma cidade
de Deus”.
César apresenta a relação administrativa. Quem diria que ele
era um enjeitado? “O nosso amor nos autorizou assumir
compromissos econômicos para salvar criaturas inocentes, mas
hoje nos impõe tomar cuidado com a insídia, que poderia nos
confundir por causas financeiras. Isso não admite perder a
liberdade. As dívidas são nossas, nossos são os capitais. Se o
Estado quisesse reconhecer nosso direito à vida sancionado pela
Constituição, deveria examinar a razão do passivo: de 25.4.’45
acumulamos 1.684.236 dias de assistência, que, calculadas por
300 liras per capita, totalizam 505 milhões de liras. Contribuíndo
com 60 liras ao dia, resta um passivo de 371 milhões. Se quisesse
nos impor a restituição da liberdade administrativa, seremos
obrigados a não nos vender. Entende resolver a crise financeira?
Nomadelfia não deve morrer. Não iremos à falência, mas, se
seremos constrangidos, ficaremos sempre irmãos e pagaremos
com o suor e a ajuda de quantos nos amam. Perdemos padre
220

Zeno, que não é diretor de Nomadélfia, mas nosso pai. Ensinou-


nos que somos homens e não raça inferior. Ninguém no mundo
será capaz de nos comprar ou de nos vender. Proponho esta carta
para o ministro: “Nomadélfia pergunta o que o Governo entende
fazer para liquidar as passividades devidas pela falta de
contribuições assistenciais. Se não teremos resposta entre o dia 31
de março seremos obrigados a nos orientar para iniciativas que
presumem sua recusa”.

7 - Nomadélfia é um fato de Deus

Escrevo ao Santo Ofício: “Como sacerdote conheço bem:


Nomadélfia é um fato de Deus. Uma força atômica. Criou
problemas a mim que a gerei em Cristo, criará muito mais à Santa
Sê. Não tenho medo de dizer que Jesus se serve dela para reportar
o mundo no seio da sua Igreja. Todas coisas que não posso
provar, mas que já tem suas premissas. Vence a todo custo,
ficando na Igreja, porque é parto da Igreja. Viu como acabou a
assembleia? Declaram-se filhos do sacerdócio, portanto da Igreja,
decididos a tudo para libertar o mundo do servilismo. Cristo está
da parte deles. Não cedem, aliás, se agarram a Cristo e Cristo se
agarra a eles, porque juntos devem vencer. Quem autoriza a Santa
Sê a jogá-los nessa duríssima prova? É verdade que deu mão livre
a Scelba?” (29.3).
221

“Apesar do choro da cidade, não voltarei mais lá se não


como cidadão. A Santa Sê nunca entendeu isso em toda sua
importância. Começou com um preconceito e terminou atingindo
Cristo, que há séculos procura o unum. Nomadélfia ficou
ofendida, mas se vê que acredita somente na Igreja. Espero que
não pensem que estas afirmações sejam ditadas da falta de
humildade. Tratei vocês como pais e por isso resisti. Vocês,
muitas vezes, me trataram como filho e irmão; mas depois, por
velho costume, me julgaram. Se cairão em desgraças graves
deverei ajudá-los, mesmo se não faz parte das leis dos homens.
Que Deus nos ajude, porque com palavras não nos entendemos
mais” (23. 3).
Olho os acontecimentos por diferentes posições, como
afirmações paradoxais: “Querida Nini, precisava que eu fosse
tirado, para que a Igreja descobrisse que Nomadélfia não se pode
desligar nem do papa. Daqui a necessidade de ceder o sacerdócio
comunitário não como um favor, mas como vontade de Deus.
Prevejo que Scelba ficará zangado até perder os estribos. Mas
Deus obrigará os DC a mostrar-se o que são, não o que querem
fazer acreditar ser” (24.3). Insisto: “Um nomadelfo pode ser
sacerdote de Nomadélfia, mas um sacerdote qualquer não pode,
porque não vivendo a vida, não pode entendê-la. Será avulso ele e
sua pregação. São 20 séculos que se prega o unum e, uma vez
222

realizado, a Igreja é obrigada retirar os sacerdotes que o geraram


e que são privados de suas responsabilidades de direito natural.
Paradoxal, para não dizer monstruoso. As realidades de Deus não
se suprimem com opiniões. Aos leigos é possível ser um pelo
outro, aos sacerdotes é negado. Ou Nomadélfia está no erro, e
então deve ser condenada, não com o pretexto dos defeitos, mas
com substâncias bem definidas (nesse caso precisa se pergutar
porque o Santo Ofício a reconheceu como entidade leiga), ou é
coisa de Deus e então tergiversar é tiranizá-la. Ou é um erro a
pretensão de ser cidadão no mesmo nível e o direito ao seu
sacerdócio, ou éstá no erro a Santa Sê em negá-lo. Quando as leis
positivas não marcam as exigências da natureza, são uma tirania.
Se pelo contrário a Santa Sê pode demonstrar que é na natureza
do sacerdócio não ser no mesmo nível uma comunidade cristã da
natureza de Nomadélfia, então aparece o problema de dispersá-la
como um erro social, coisa, para mim, absurda” (29.3).
“Se a minha forma mentis produz desconfiança, podemos
nos explicar? As minhas publicações têm o imprimatur. Depois
de vinte séculos é revolucionário, mas as revoluções não se fazem
com água de cheiro. Ninguém me acusou de erros doutrinais.
Para mim é um problema de consciência: basta individuá-los. O
Santo Padre invoca uma mudança de rota (10.2). Se se quer
mesmo, precisa dar um giro de ângulo no leme. Não encontro um
223

só movimento que tenha por programa a coerência à doutrina


social da Igreja, a qual confundiria esquerda e direita. A contra
revolução é inevitável e somente os católicos podem fazê-la,
porque têm um tesouro de doutrinas, do qual extrair a substância
da luta. Se Depois de vinte séculos está errado não saberia onde
achar o segredo da contra revolução” (8.4).

8 – “Jamais serei um herege”

É tanto o bem que quero ao Santo Ofício, que a voz do


coração prevalece: “Um fraterno abraço nos leve a ser todos
melhores. Por que não tomamos como diretriz a minha vocação:
Precisa mudar rota? Pararam Depois de vinte séculos. Não se
podia corrigir? A intervenção autoritária, a proibição de falar em
Turim confirmaram nos adversários a idéia da falta de liberdade.
Se a Igreja fosse uma associação privada se poderia evitar de
criticá-la. Mas é a luz sobre o candeeiro, toda sombra é vista e
não pode ser justificada. Se se quer abater o adversário, não há
outro caminho: reconhecer seus erros. Tentem os competentes
demonstrar os meus. Ficarei alegre. Eu amo Jesus, portanto a
Verdade; vocês também. Estamos de acordo. Portanto eu não
serei jamais um herege. Obedeço, mas seria melhor evitar estes
joquinhos, que freiam o bem. O barco de Pedro é imenso. Pode-se
224

viver nele também calando. O essencial é não ir ao compromisso”


(22.4).
Ao meu irmão posso mostrar as estigmas interiores:
“Reprovo a dor da incompreensão do clero como no tempo da
Obra Realina. Falido uma segunda vez. No Santo Ofício foi
tratado com muita bondade, mas para mim é uma malvadeza
secular. É um outro mundo. Não entenderam nada. Jogar em
polêmica um ato de amor tão comprometido é crueldade. Eu
estou tentando um golpe de asa para virar a situação financeira,
mas a Santa Sê nos põe nas mãos do braço secular. Parece-me a
fábula do lobo e do cordeiro. Tudo isso não diminuiu meu amor
pela Igreja, aliás, quanto mais é maltratada, mais a amo. Não
acredito mais no clero. Não sabe amar e se enaltece como juíz.
Conhece a verdade, mas a aplica no compromisso, que é a sua
praxe. Quanto mal trocamos entre nós com reta intenção…”
(15.5).
Meu irmão, metódico, calmo, me refere sua conversação
com pe. Castellano: “Tive a impressão que se parou nos detalhes.
Lastimei que não disseram a vocês quais eram os erros; que tu
sempre procurastes saber isso. Respondeu que tu sabes o que te
disseram, mas ninguém condena a si mesmo; que há coisas
perigosas. E as providências aos sacerdotes sem dar a
possibilidade de se corrigir. Respondeu: “Mas foram os
225

nomadelfos que excluíram os sacerdotes. Nós somente aderimos


à decisão deles”. Não é assim! Nomadélfia quer atirar a atenção
sobre o problema dos sacerdotes. Para pároco, mandar um
salesiano... como se mandassem os jesuítas cuidar de vocês
dominicanos, não como visitadores, mas como superiores! É uma
questão de espirito”. Disse-lhe que, pelos elementos que possuo
Nomadélfia é uma obra de Deus. A respeito dos sacerdotes o
problema é ver a possibilidade de um clero mais unido ao povo.
Retrucou com as palavras do núncio: “Talvez que precise
trabalhar o dia todo, omitir o breviário, etc?”. Disse que não era
verdade (interrompeu: “Temos tudo!...”), que se podia intervir
para melhorar. Pela parte econômica disse: “Não deve pagar o
Vaticano. Depois as duas partes se endureceram… Acredito seja
questão de tempo, mas as coisas se ajeitarão” (21.5).

9 – A pancada de Schuster

Outra pancada chega das mãos consagradas daquele, que na


catedral nos tinha entregue os abandonados: “Vai insinuando-se
um movimento místico social que tem como chefes os
fundadores de Nomadélfia. A um programa humanitário se
associa um outro doutrinal, que apresenta graves perigos e erros.
As desastrosas consequências dos critérios econômicos são bem
conhecidas sobretudo aos credores. Errar é humano, mas não é
226

cristão elevar o erro a norma de vida. Ainda mais perigosa é


aquela espécie de oculto misticismo comunista. Nomadélfia
significa lei da fraternidade, nome equívoco que poderia
justificar qualquer desordem moral. Ao lado da normal família
cristã, os adeptos criam uma outra de filhos adotivos ou do
sangue. Jovens, atraídos pela ilusão mística de Nomadélfia,
fogem de casa e vão na nova cidade, onde se casam. Muitos pais
vieram protestar, invocando uma palavra esclarecedora.
Conforme a norma dos cânones 336, 2; 343, 1; 1326; 1347, 2, nós
condenamos esse movimento e proibimos aderir. Aos pastores de
Nomadélfia proibimos por a foice na seara dos outros” (22.5). A
notícia resalta nos jornais com o efeito de um tiro fatal. Os leigos
respondem melhor que os padres. “Há uma coisa clara: alguns
jovens fugiram de casa com as namoradas. Em Milão existe um
conhecido professor de papirologia, pai de um dos jovens, que
parece está preparando dossier das imoralidades de Nomadélfia.
Se existe é um monte de besteiras ou de má filologia. Nós não
temos simpatia pelos rapazes que fogem de casa, menos ainda
pelos pais que os fazem pegar pela polícia. Pior ainda pelos
cardeais! Foram em Nomadélfia, provavelmente vítimas de uma
sugestão religiosa. Talvez fosse melhor aconselhá-los voltar para
casa. Mas eram uma dezena da casos. E seria muito lastimável,
que o ressentimento de algumas famílias desiludidas tivesse
227

pesado no destino de mil nomadelfos. A dissolução do comitê


milanês marca o fim das subvenções” (G. Pampaloni, Il Mondo,
26.7). L. Santucci se faz porta-voz do comitê: “Caímos na
escuridão e muito perto da blasfêmia. Nós todos teríamos
desembainado a espada, pe. Turoldo primeiro”.
Procuro diluir a amargura com os íntimos. Um peso
carregado junto dá a ilusão de ser mais leve. A Turoldo: “Sobre o
amor fraterno em Cristo, que muito nos entusiasmou e fez sofrer,
foi desenganchada a bomba atômica por aquele que em
Nomadélfia via o evangelho. Cuidado com as radioatividades.”
(28.5). Ao bispo: “É uma tempestade da qual, confio, o Senhor
colherá santos frutos. Quanto mal nos procuramos entre nós!
Perdoe, é a dor que fala” (28.5). A padre Calabria: “Nunca teria
acreditado que se chegasse a tanto. Os milaneses protestaram no
Santo Ofício. Eu penso que o Senhor, através de Nomadélfia,
colocou o dedo na chaga: “Quando vão ao templo para rezar, eu
me viro da outra parte, porque são injustos” (Isaías). Até quando
se diz, vai muito bem. Mas logo se tenta por em prática se torna
uma duvidosa doutrina. Muitos se sentiram enganados, por isso
reações e calúnias. Mons. Pranzini me dizia: “Cuidado com os
padres, porque quando assaltam são tremendos”. Mais do que
enfrentá-los, prefiro morrer. Combinaram coisas que só o diabo
saberia fazer. Quantos inocentes são prejudicados!” (30.5). A
228

Ottaviani: “É um golpe mortal ao comitê. Posso somente aceitá-


lo, calando e chorando” (28.5). A meu irmão: “Fui falar com o
cardeal; manifestei-lhe a minha dor. Respondeu que não citou
nomes e não quis proibir as ofertas. “Disse que deem não
milhões, mas bilhões”. Pedi para esclarecer os equívocos, falei de
certos pareceres contra os sacerdotes. Respondeu: “Ouvi dizer”.
E eu: “A imprensa falou de imoralidade”. “Façam a querela
contra ela” (2.6). Não seria ele que deveria ser querelado?
“Começam as acusações, porque Deus não deu a eles nenhuma
missão. Quando terão acabado de caluniar o Senhor passará
abençoando e animando as vítimas” (28.5).
Bato e rebato: “Não nos entendemos, porque é um mundo
novo que quer nascer. Os nomadelfos veem em mim o pai-
sacerdote não para que façam teologia, mas porque são ramos da
videira que eu represento. Não peco de presunção, sinto isso
como minha vocação. Não é personalismo, foi o Senhor que nos
uniu assim, abençoados pelos nossos bispos. Muitos são os erros
nossos e dos outros. Mas estamos unidos na Igreja, onde perdão e
compaixão são lei. Escrevi ao núncio, que Nomadélfia é um
girino destinado a ter outra forma. Não sabendo me exprimir
melhor, posso facilmente ser visto como um sonhador. É muito
difícil falar de coisas que se apresentam na alma; mas devem
passar pela experimentação! Nossa vocação invoca compreensão
229

e perdão não para arraigar defeitos, mas para corrigir na


realização do sonho. Fizemos sofrer a Santa Sê, mas também a
nós! Nomadélfia exige que a autoridade a trate mais na base do
de iure condendo, mais que na base do direito positivo. E’ uma
coisa tão vasta, que somente amarrada às autoridades poderá
continuar. Certas atitudes não são fruto de maldade, mas de
imaturidade. Sente-se na alma este empurrão para uma vida nova
e muitas vezes a fantasia corre mais do que as pernas. Não se
poderia mandar a mim e a um visitador, como pai, para fazer o
que quer a Santa Sê?” (29.5).
Fazem de tudo para demonstrar que a nossa vida é uma
excessão. E eu, estou, dia e noite, em frente ao muro das
lamentações: a incoerência dos irmão de fé. Desabafo com
Cristo: “Te segui em dar à Igreja um novo fermento aplicado ao
evangelho. Ela o rejeita, porque Nomadélfia é uma revolução.
Parece que se passe da persecução à dispersão. Entraram em
nossa casa como donos com o engano e cometeram verdadeiros
crimes contra a inocência. A Santa Sê é um horror de
mundanidade, por isso comete tais crimes. Tenta me domar, para
reduzir-me a um híbrido burguês avulso da vida dos irmãos, aos
quais quer que eu pregue o que o clero e bispos não fazem. E
queria fazer da minha vida uma admirável excessão e não me
230

deixar como um qualquer entre milhões de seus filhos oprimidos


e explorados por eles mesmos, que querem ser uma casta” (9.6).
Eis o ponto: não querem que digamos que o que nós fazemos
é o que todos deveriam fazer. “Nomadélfia é vida católica, sem
votos, baseada nas leis comuns. Se amar até ser um pelo outro
fosse uma coisa especial, então o que seria o amor pregado pela
Igreja? Paganismo materialista. A Santa Sê poderá dissolver
Nomadélfia, porque tem defeitos, mas isso é monstruoso.
Corrigem-se, porque sempre haverá. Não pede decretos, mas o
sacerdócio do qual nasceu. Se o Santo Ofício não faz uma virada
de bordo, ninguém poderá entender, porque se quis atingir um
mundo de irmãos. Dirão que não tem nada a ver com os rebeldes
e a padre Silvio de vestir o macacão debaixo da batina. Assim
seremos exemplares!” (6.6).
Obrigatoriamente deviam frear uma revolução de vida não
de fofocas. Porque é uma reprovação dentro de casa: como dizer
ao papa de compartilhar o que tem com os pobres. Não pelo gosto
da esmola, mas porque um pai não pode comer na cara dos
filhos. Há algo mais descarado do que isso? “Agitamos as águas
podres da mundanidade, isto é de um teor de vida que sob o nome
de catolicismo não repete a vida de Cristo. Caminhamos nas
estradas do Calvário ora exaltados, ora privados até dos filhos.
231

Estamos tristes? É sinal que estamos vivos. A dor acompanha o


amor” (à Pirelli, 6.6).

10 - Roma: uma fortaleza que precisa derrubar

O Santo Ofício lavou as mãos quando a comunidade


afirmara não ser mais uma entidade religiosa (17.2). Um dia
depois a batina branca mandava revogar o decreto da aprovação
diocesana. Mas os filhos exigem a fidelidade à minha
paternidade, “senão se definirá com a autoridade eclesiástica a
sessão de Nomadélfia” (14.5). “Uma criatura não pode viver sem
seus pais e Dário diz que sem mim não tem mais coragem de
continuar” (a Ottaviani, 18.5). Aceitarão o pedido de Dário? A
Santa Sê responde: “Examinado o pedido [da minha volta],
consideradas todas as circunstâncias do caso, a Congregação
decidiu que seja respondido: negative ”( 7.6).
Entendo: una aprovação oficial de Nomadélfia queria dizer
desaprovação obsequiosa do costume dos católicos. Turoldo dirá
isso sem manobras curiais: “A Igreja se sentia julgada pelo povo
por causa de Nomadélfia. Teria sido ela mesma que impediu que
nós vivêssemos o evangelho. Eles nos pararam, porque tinham
medo que fizéssemos a revolução cristã. E foi proibida da Igreja
com a DC. Todavia padre Zeno costumava dizer: “Pulos mortais,
mas sempre dentro do barco”.
232

Abro a alma a meu irmão: por que a Santa Sê não aceita que
o sacerdote se torne irmão dos leigos? Eu poderia aceitá-lo como
medida disciplinar, não como doutrina. E depois que eu tenha
filhos e irmãos, é um dado de fato, não uma idéia sobre a qual
discutir. Que o papa queira ou não queira, sempre filhos e irmãos
são eles, sempre pai e irmão sou eu... “Se reconhecer aos
sacerdotes a paternidade e a fraternidade pode ser uma mudança
de rota no costume clerical, está na faculdade do papa decidir. Se
não faz isso não há motivo para se rebelar, mas a Igreja se torna
opressora. Como poderá recomendar a prática da fraternidade aos
fieis e proibí-la aos padres, que devem pregá-la? Ou comer esta
sopa ou pular desta janela: esse o teor do decreto do meu
afastamento. Eu obedeci, porque não podia pular da janela. Uma
espécie de extorsão: ou a bolsa ou a vida. Meu ato de
obediência, tão exaltado por quem não entende nada, é uma
necessidade perante uma violência! Os santos de amanhã
procurarão a humildade de pegar os lugares de comando na
Igreja. Muito melhor que se tornar vítimas. A Santa Sê é
mundana e avulsa dos sofrimentos dos oprimidos e portanto não
entende estas coisas somente na teoria, enquanto na prática, por
oportunidade, reprime, matando sem piedade. Poucos apontaram
para Roma, mas aquela e somente aquela deve ser a fortaleza a
ser derrubada. Sai da igreja? Sai da vida. Vives na Igreja? Deves
233

obedecer às ordens daquela mundanidade. Não aceitas? Fica


calado. Queres fazer estes raciocínio publicamente? Estás
suspeito de heresia. De fato negas à Igreja docente o direito de
reger a Igreja de Deus. Acredito que é obra maior atormentar
Roma, que lutar para curar algumas suas vítimas, sendo milhões.
São o nosso inimigo número um. Parece-me um monstruoso
absurdo que Roma deva ser o Sinédrio. Suportar isso é uma coisa
imperdoável, traição do sacerdócio” (24.5). “Apesar da certeza
que não existem erros, tenho medo que o papa não consiga dar de
novo o sacerdócio a Nomadélfia. Seria uma firme mudança de
rota. Conheço obstáculos muito graves, que dependem dos
homens, os quais não têm a coragem de dar a vida, por casusa dos
graves traumas que Nomadélfia com seu sacerdócio traria para o
ambiente eclesiástico e político”.

11 – Intervenção manu militari

Nomadélfia, com a auto-dissolução (11.6), reconhece não


poder manter os hóspedes provisórios: para mim, o Calvário, para
Scelba, rendição total. Não resta que intervir manu militari. Já em
maio a prefeitura começa uma indagação, que fazia surgir mais
de uma suspeita sobre nosso fim: queria a lista dos bens e dos
nomadelfos por idade, sexo, situação familiar. O prefeito volta de
Roma com a ordem de ignorar os procedimentos judiciários
234

previstos pelas falências e decreta a liquidação coata [Gazzetta


ufficiale della Repubblica Italiana, 6.11.’52, n. 257]. O delegado
de Segurança Pública de Carpi é encarregado de executar o
mandado. A polícia invade o campo, arranca mais de 300
crianças dos braços das mães para deportá- las nos colégios. As
ordens são ordens, como na guerra. O geral Panerai manda: “50
menores sejam transferidos para a Pia Casa S. Giuseppe de
Mantova; outros 20 para o Istituto Mons. Martini”. Remetidos
daqui acolá, como mercadoria. “A polícia não usa de
compreensão: irmãos e irmãs são mandados um de um lado e um
do outro. Se impõe a cada indivíduo e às famílias de voltar para
seu lugar de origem, na base do artigo 157 do T. U. das Leis de
PS (Pública Segurança, 18.6.1938). Padre Vincenzo informa o
bispo: “Uma moça direita chega em seu município e o prefeito
lhe diz: “O que fizeste? Te mandaram de volta com a artigo das
mulheres criminosas”. A Polícia se apresenta com derisões, o
pároco não seria capaz. A comunicação oficial não dizia que
“Nomadélfia podia continuar, as famílias vão bem”? A injustiça
de ver publicadas as calúnias e não uma palavra de retificação
pode ter abalado padre Zeno e levado a gritar contra todos e
talvez perceber vozes erradas. E assim, de confusão em confusão,
estamos em plena tragédia” (23.9).
235

Para o general é fácil mandar nos meninos, mas seu estilo de


militar é contraproducente com adolescentes briguentos. Padre
Marchi propõe à Proteção nacional do menino pagar uma
mensalidade para seu sustento, agregando-os à nossa cooperativa
agrícola com o direito de se tornarem sócios na maior idade. É
interessada a Secretaria de Estado e o Santo Ofício. Respondem:
“A Delegacia de Modena tem a tarefa de liquidar Nomadélfia
para impedir o renascimento da instituição com outra veste e
outro nome. Qualquer iniciativa para poder ficar um mínimo
núcleo de nomadelfos é considerada inoportuna, portanto
cortada” (2.9). Eles nos querem não somente nos calar, mas nos
destruir.
E chegamos à hora das trevas. Tivessem crucificado a mim,
teria sofrido menos. Assistir impotente à crucificação dos filhos
foi o excesso do Calvário. “Ver os meninos levados pelos carros
da polícia... Referem seus comentários: “Deus é cruel conosco:
antes nos mata a mãe; depois nos ressuscita dando de novo uma
mãe e agora nos faz morrer de novo”. Um trauma, que chamamos
matança dos inocentes (DZR, 265).
A jornalista Fallaci refere: “Foi tremendo, diz padre Zeno,
não imaginam a dor daqueles meninos arrancados pela segunda
vez da mãe deles. Cheguei a dizer coisas terríveis. Eu perguntava
porque Deus não os deixou morrer com a mãe deles”. Passa as
236

mãos nos cabelos brancos e chora. “Os meninos não são como
nós. São como certos pássaros que na gaiola morrem. Para eles
estar num orfanato é como estar na gaiola, entendem? Tivemos
que aceitar de novo quatro meninos, pois na gaiola morriam. Um
dia as mães foram visitá-los e eles se jogaram de joelhos,
entendem?, suplicando que os recebessem de novo. Até as freiras
choraram” (Epoca, 6.12). “A experiência de Nomadélfia
terminou. Enquanto nos tempos bons era objeto quase de
peregrinações, hoje ficou fiel a ela somente o agente sequestrário.
As mães fazem comida e choram. Prometem: “Tenho que dar
todos os meus meninos. Mas aquele pobre Carlos sem pai e mãe,
tão delicado, que para que como precisa que brinque, aquele
como poderia dar a eles? Morre logo! E Luisa, que não dorme se
não me vê perto dela, tem medo que tirem a mãe dela outra vez…
E depois, como faço dá-la, sozinha, o pai dela preso, me sentiria
morrer”. Uma mãe de 14 anos, não tinha coragem de dar nem um
só. Todos dizem: “Eu estou só. Ajudarei os outros irem embora e,
quando forem, irei eu também” (Pampaloni, Il Mondo, 26.7).
“Quando se chega a estes extremos tudo é explicado. Os
homens se apresentaram na forma de cordeiros, mas são lobos
rapazes. Um crime. Disse ao Santo Ofício: “Nós eclesiásticos
estamos em constante pecado de injustiça, por isso não
conseguimos entender estas coisas e toda vez que aparece Cristo
237

nos oprimidos se grita ao erro, ao escândalo” (26.6). Rodeados


pelos credores, perseguidos pelas autoridades, condenados à
desnutrição, não resta que abandonar o navio.
Dario escreve aos nomadelfos: “O negative do Santo Ofício
destrói Nomadélfia, porque lhe tira o pai. Para o Conselho
diretivo não tem outro caminho que nos dissolver. Ele assume
para si a liquidação [303 milhões] com padre Zeno [que concilia
com os 1.141 credores de restituir 70%]. Cada um decida em seu
coração se padre Zeno continua ser seu pai, esperando que o
Senhor lhe conceda exercer a sua paternidade, não somente em
cada um, mas também organizando a Teopoli. Ele diz que isso
depende da nossa santidade pessoal e de um milagre, que Cristo
irá fazer se formos dignos” (11.6).
Um comunicado da imprensa informa: “A Cidade de
Nomadélfia se dissolve e se disperde. Os bens serão liquidados
em favor dos credores. Se o povo italiano ama estes filhos, pode
demonstrar isso enviando ajudas, para que sejam colocados na
maneira menos humilhante possível, evitando explorar inocentes
vítimas, que nada tem a acrescentar, mas somente: perdoar”
(11.6).

12 – Em plena tragédia
238

“Muitos meninos não conseguem falar. Somente Deus sabe o


que passa em suas pequenas almas. Teria preferido mil vezes
morrer que assistir a um tal acontecimento” (13.6). Luciana,
assim revive o acontecimento: “Deram uma mãe toda para mim.
Tinha os olhos brilhantes como um espelho. Acreditava de
sonhar, de estar no paraíso. A cada instante chamava: Mamãe! e
não era mais uma brincadeira. Uma mãe de verdade. Depois
houve um dia que não consigo esquecer. Veio a polícia. As mães
tinham no colo os filhos e os seguravam tão estreitos que, para
separá-las precisou usar pancadas. Gritos e choros por muitos
dias. Eu, com calafrios de espanto, corria para me esconder nos
armários vazios, debaixo das camas. Vi minha mãe pela última
vez da caminhonete, eu entre dois policiais e ela, minha mãe,
corria com os braços estendidos para me pegar. Depois caiu.
Parecia morta pela dor”.
Por causa destes excessos escrevo ao prefeito: “Vocês são
bárbaros. Se não pararem de acionar a polícia, faço uma
revolução na praça” (16.9). Peço que me receba: “Demonstre-me
que meus filhos são delinquentes. A que providência ministerial
se referem as violências contra eles?”. “A autoridade eclesiástica
local é assustada entre dois fogos: Santo Ofício/Scelba. Treme e
deixa passar verdadeiros crimes. Não nos iludimos que
Nomadélfia esteja dissolvida nos planos de Deus. surprimÉ uma
239

força que nos atormenta e nos colocará em frente a tremendas


responsabilidades, se quisermos suprimí-la” (a Ottaviani, 22.9).
O clima de suspeita é tal que padre Ferraguti adverte padre
Pirondini: “Não confie em ninguém, nem nos amigos. Vem para
conhecer tudo. As crianças deixam as mães e os irmãos,
chorando. Devemos ter uma mão no coração para que não
estoure”.
L’Avanti! escreve: “O perdão de Nomadélfia é o último sinal
de sua certeza de não ter vivido no erro, mas de ser vítima de uma
violência” (26.6).
“Estou andando, vagabundo. É escuro, espero o trem. Pe.
Castellano disse a Lazzati: “Os nomadelfos deviam entender que,
tirando padre Zeno, pretendia-se dissolver Nomadélfia”. Quase
sempre sozinho, em perene meditação, envolto no mistério.
Fofocas, críticas, acusações passam perto de mim como coisas
além de nós. O mundo está longe de mim. Os amigos não deixam
nada no meu caminho, os inimigos não me interessam. Penso em
Jesus que passou entre o povo incompreendido, mas fazendo o
bem para todos. Alguém diz: “Quando será fechada a página de
Nomadélfia quem sabe como te tratará o Santo Ofício!”. Pior de
assim! Ela vence perdendo, triunfa na derrota, porque fica entre
os oprimidos. Até quando será assim, ficará na sua missão
também desaparecendo. Estou outra vez sozinho como quando o
240

papa me abraçava: “Faça o que quiser, o papa está com você”. Da


fato faço o que quero: aceito as derrotas” (a padre Vincenzo,
26.6).
Quem acreditaria nisso? O Santo Ofício colabora com a
polícia. A prova de que não sabem o que fazem? Mas no alto é
lícito não saber que os filhos são sepultados uma segunda vez nos
institutos, verdadeiros cemitérios civis? Ottaviani comunica a
padre Pomati: “Por interesse do Santo Ofício, a Pontifícia
Comissão de Assistência decidiu prestar sua colaboração para
colocar os meninos de Nomadélfia. Que a acolham com ânimo
grato e que tudo aconteça na maneira mais ordenada e solícita
possível. É lógico que se agirá com o entendimento da
autoridade. Diga às mães que nenhuma proposta acerca do futuro
será examinada se antes as crianças não forem todas colocadas
em institutos idôneos ou com os pais” (3.7). Em que consiste a
piedosa colaboração? Sendo coveiros para meninos. Entenderá
pessoalmente isso Virginia Dalmati. Convidada ao lugar, quando
percebe que colaborar significa arrancar os filhos dos braços das
mães; quando ouve seus gritos desesperados; quando percebe na
sua carne as unhas e os pontapés dos meninos que se agitam,
recusará a tarefa.
Com a liquidação coata perdemos o campo de Fossoli e o
Cefarello. A maior parte se abriga em Grosseto, outros com
241

amigos. As calúnias são tais que destroem também a moral dos


nomadelfos. Se faz de tudo para demonstrar que são contra a
Igreja e na estrada da perdição. De 80 ficarão umas cinquenta
famílias. Quem poderá contar nossa dor abandonando aquele
campo, que tanto nos fez sonhar? Agora é uma cidade fantasma.
Não mais choros de recém-nascidos, nem flores, nem sorrisos.
Seus anjos não cantam mais.

13 – “O amor não se dissolve”

Quantas vezes disse isso: O amor não se dissolve. Será que


pode se dissolver Deus? Tinha dito aos filhos que, perante uma
causa de força maior, cada um podia ir ou ficar: não uma
determinação, mas uma separação consensual. “Depois de três
meses fazem uma assembleia e se constituem em Sociedade dos
nomadelfos, para recomeçar tudo de novo. A notícia aparece em
todos os jornais” (7.9). O palazzaccio está preocupado, o
processo de normalização pára.
Quem vive com a corda no pescoço tenta tudo por tudo.
Parece que Jesus está de acordo com esta lei dos desesperados.
Em cena volta a batina branca do dominicano e aquela preta do
jesuíta. O primeiro com carta branca para tentar de normalizar
meu sonho; o segundo para oferecer uma saída: “Padre Casella
me propõe de reconstruir Nomadélfia no Brasil, mas não posso
242

fazer isso, porque o Santo Ofício negou a minha volta entre os


filhos e, de consequência, se é auto-dissolta. Agora está num lago
de dor, eu sepultado vivo na alma. Em 5 de fevereiro obedeci
cegamente por causa de força maior. Então se podia ainda entrar
em acordo. Como nos reunir, agora? Somente o Santo Padre pode
fazê-lo. Se a Companhia de Jesus aceita, os meus filhos estão
prontos a seguir-me. Mas esteja bem claro que eu sou pai e eles
filhos, não porque queremos ser pelo cérebro, mas porque somos
de fato. Calúnia seria dizer que esta é uma rebelião. Não podemos
fazer coisas de natureza diferente daquela que somos” (a p.
Arnou, 20.6). Aviso ao meu irmão:“O provincial dos jesuitas no
Brasil pediu ao Santo Ofício o que há contra Nomadélfia.
Resposta: “Nada, seja a respeito da doutrina, que da moral. No
Brasil poderia fazer um bem imenso” (28.6). Estudo a
possibilidade de expatriação: “O Governo brasileiro aceita fundar
uma grande cidade. Parece disposto em assumir as despesas de
implantação para nos entregar os abandonados. Vossa Excelência
me disse que sobre mim há uma desconfiança tal que obstacula a
minha paternidade sobre os nomadelfos. A realidade induz pedir
um sinal do Senhor claro, seguro. Continuar curando as vítimas é
um dever que a moral me impõe, mas construir Nomadelfia é
uma responsabilidade que não assumo mais se não tiver a
confiança do Santo Padre. Preciso de: sim, não” (3.11). A
243

resposta: “Em 11 de novembro foi intimada ao sacerdote Zeno


Saltini a proibição de reconstruir Nomadélfia na Itália ou em
outro lugar. Aceitou e prometeu obediência e submissão. Card.
Pizzardo”.
Impossível cancelar o sonho da alma! “Parece que o Senhor
queira que nunca se apague sobre a terra a vocação de doar à
Igreja uma comunidade social. É de tal importância que espero
obter depender diretamente da Santa Sê. Nomadélfia está
reduzida às linhas mais simples possíveis, para ser assimilada
pelo povo, que deverá não somente admirá-la, mas imitá-la. A
imprensa tentou de tudo para demonstrar que sou um ingênuo,
acreditando de realizar esta comunidade na Igreja. Devem ver as
obras, pois nos perseguirão até a morte, porque os humiliará. A
Santa Sê tem urgente necessidade de uma grande Nomadélfia. É
opinião de muitos que o Santo Ofício foi cruel, mas o estranho é
que eu me sinto mais em minha casa que em outras congregações.
Posso dizer que foi muito paciente comigo e, mesmo usando suas
terríveis armas, foi divino. Nomadélfia é ainda quase tudo casca,
portanto dura e amarga. Cairá a casca e a Igreja oferecerá ao
mundo o fruto nutriente. E’ uma vocação aparentemente bizarra,
mas há algo que nos foge e que se desenvolve nas vísceras do
tribunal mais poderoso da terra, que sabe trovoar raios do Céu.
244

Diga ao Santo Ofício que tenha piedade dos meus filhos” (a


Ottaviani, 29.6).
Um leigo acerta no alvo: “E’ esta a dor deles: renunciar a um
trabalho começado, sem conhecer as razões da condenação. Se
sabe, Scelba não aprova a experiência, mas De Gasperi declara
de não visitá-la, porque “ainda não é digno”. No dia em que faltar
o pão a centenas de meninos, poderia continuar longamente esta
neutralidade? Não se tornaria um problema de ordem pública? A
Igreja cala e ordena o fim da experiência. Nomadélfia é portanto
um dos sinais da politização da Igreja. A habilidade foi fazê-la
cair no plano financeiro. “Padre Zeno, se diz, é um poeta.
Generoso, mas com o dinheiro dos outros”. A opinião pública
reduziu tudo a uma questão de dinheiro. Quando o Governo
ofereceu receber os filhos em um instituto salesiano, de um lado
ofereceu a capitulação da cidade, do outro a tranquila economia,
a sistemação burguesa. É claro que Nomadélfia foi acusada; de
que coisa, muito menos. Não foi cautelosa administradora?
Talvez estas acusações sejam cômodos álibis. A coisa mais
tremenda que diz padre Zeno: Nomadélfia é como a adúltera do
evangelho. Ninguémn a condena, mas ninguém a quer. Todos
perdoaram, mas todos a mandam embora” (Pampaloni, Il Mondo,
26.7).

14 – As vítimas não se rebelam à Igreja


245

Com muita amargura lembro ao pastor da diocese: “Muitos,


obcecados pelo fanatismo, podiam esquecer o bem que fiz na
diocese de Carpi, mas não meu bispo. O que lhe resta a salvar se
deixa maltratar os filhos mais desventurados? Dilaceram os filhos
como lobos rapazes e V. Exa. cala enquanto o povo fica
indignado, pois quem representa Deus não defende os interesses
de Deus. Tem notícias daqueles documentos contra pessoas
perigosas e suspeitas, inquilinos em casa de minha propriedade?
Tratado como um delinquente. Dispuseram dos meus filhos e
meus bens como se eu não existisse. Que espanto de crianças…
Tudo isso não altera o afeto que sinto por vocês, somente lhe
peço de ser meu pai e amigo” (19.9).
Continuo refletindo sobre o acontecimento, quase para me
convencer que verdadeiramente aconteceu. Desafio Mons.
Ottaviani: por que os inocentes pagam sempre o preço das
prepotências em nome da verdade? “Não ter reconhecido uma
vocação nova foi um misterioso golpe de punhal. E quem pode
sentir-se autorizado a torturar uma vocação porque não a
entende? Se entendesse, a teria ele mesmo. Dizer a um acolhido:
“Eu não sou mais teu pai” é uma traição. Se não tivesse tido no
meio a autoridade não teríamos cedido a custo de sermos presos.
O Santo Ofício agiu com severidade e precipitação. Examinamos
os resultados: 750 menores escandalizados e dispersos. Oh! Se o
246

Santo Padre tivesse assistido a certas cenas! Uma menina de 4


anos grita: “Mamãe, por que me vendes?”. Pelo restante
poderíamos nos entender, mas aqui cometemos um crime. Um só
menino aterrorizado grita vingança na presença de Deus.
Esperamos que não nos acuse de pecado, coisa muito difícil. Nem
o Vaticano nem o Ministério dos Interiores poderiam calar esse
choro, porque as vítimas falarão sempre mais forte. E é a vez que
não se rebelam, porque Deus lhes fez entender que a Igreja é a
sua terra, a casa deles, a família deles, a vida deles. O que irá
acontecer no juízo quando o Rei dirá: “Era filho de uma
prostituta, tinha encontrado uma mãe e você me arrancou dela em
meu nome”? Perante uma criança que chora, que grita: “Por que
arrancam minha mãe? O que fiz de mal?”, há pouco a ser
desculpado. Seria mais cristão pedir perdão com respectiva
reparação. Esta é a lei dos inocentes pela obra de nós
eclesiásticos... Aqui a política não tem nada a ver. Teria sido
melhor ter acreditado somente nas forças de Cristo e ter sido
menos diplomáticos, enquanto nos colocou na nossa frente como
inimigas as massas, em vez de como inimigos os opressores.
Perante Deus o oprimido tem sempre razão, enquanto o opressor
e quem anda com ele, sempre estão no erro. A fé nos leva nos
braços dos oprimidos como caminho mestre para nos encontrar
247

nos braços de Cristo. Sou amargo! Bebi fel demais ofertado com
inesperada severidade” (4.8).

15 – O amor que tudo pode

“Não tenho nada para repreender, somente a falta de


colaboração também econômica dos meus co-irmãos e dos leigos,
que nos carregaram de filhos e depois passaram a nos criticar e
injuriar. Quem alguma vez sonhou em justificar os defeitos? Eu
não, mesmo suportando-os como incidentes do caminho. O bem
se faz bem quando se programa a eventualidade de erros e a firme
vontade de corrigí-los. Se o catolicismo pretendesse ser o que é
hoje, acabaremos em não reconhecer mais sua missão. Nunca
aceitarei ser cúmplice destes desvios, pois colaborar é loucura. Se
deve aplicar a justiça e o mandamento novo senão a Igreja
aparece distorcida para os que têm o direito de encontrá-la e
abraçá-la. Se existem muitíssimas almas santas, por que não
devem vencer sobre os fariseus, que pretendem ser a tonalidade
da Igreja? É Roma que é fraca e tem medo dessa gente. Descer na
praça para dizer aos patrões que são piolhos é uma carície em
comparação a seu sistema escravista. Precisa jogá-los fora do
templo como fez Cristo, porque são lastro e por nossa culpa se
iludem de cumprir uma missão. Jesus entrou na casa de Zaqueu,
mas com as contas na mão. Talvez que a Igreja precise ser
248

defendida contra os comunistas por aquela gente? Ilusão fatal.


Não podemos ser cúmplices daqueles safados. Se virá Stalin
quantos colocarão o lenço vermelho no pescoço e dirão: “Agora é
o partido nacional”. Assim se disse do fascismo e foi declarada a
compatibilidade das duas naturezas: a católica e a fascista. E os
galhardetes ventilam, abençoados, nas catedrais. Estejam fora ou
se dê fogo ao templo. A Igreja não é uma meretriz. Eu viajo com
meus filhos no barco de Pedro, prontíssimo para as mais
audaciosas empresas, prontíssimo para me sentar como simples
passageiro, mas não faço compromissos” (7.8).
No cadinho se veem as coisas sob outra luz. “Muitas
profissões exercidas por freiras e frades serão absorvidas pelo
Estado. Ter professores, médicos, deputados, um Estado católico
seria tocar o céu com um dedo. Porém são coisas que podem
fazer também os não católicos. Os verdadeiros católicos se
diferenciariam se souberem ser imitadores de Cristo no amor. Ele
expõe dois casos: o amor unilateral do samaritano, que se faz
próximo de quem não se faz próximo e o amor recíproco de seus
discípulos: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. O
primeiro é possível também para os gentios, o segundo
caracteriza seus seguidores. Eu nunca pensei que somente
Nomadélfia seja catolicismo. A nossa vocação é viver o amor na
forma de comunidade social e as vantagens são muito superiores.
249

Quando afirmo isso nos pulam por cima todos os chapeleiros que
querem nos impor seus chapéus, insígnias e coisas afins. E os
outros querem que nós fôssemos comunistas, assistenciais, cidade
do menino, heróis sem glória. Nomadélfia está dilacerada porque
a Santa Sê não a entendeu, portanto não protegeu. Telefonou-me
Dario: “Hoje houve um outro funeral”. “Um funeral?”. “Sim, 12
meninas foram deportadas nos colégios”. Também o cirurgião
para quando percebe ter provocado graves hemorragias. Até Jesus
trocou de idéia perante a cananeia! Vocês são seus ministros,
vejam se é o caso de imitá-lo. Acredite, a humanidade e a Igreja
precisam de Nomadélfia como Jesus tem sede do nosso amor”
(7.8).
A minha não é uma mania de meninos que querem construir
uma cidade sobre a areia. A história não viu ainda que a força do
bem é mais sedutora que aquela do mal. Os cristãos devem
acreditar que não há nada de mais forte do poder de ser filhos, o
qual implica o poder de ser irmãos. Precisa conseguir apresentá-
lo aplicado em larga escala. Quantas cidades se podem construir
em nome do amor que tudo pode! Mas se não acreditam nisso os
funcionários de Deus, quem poderá crer? “Veio à tona também
do Santo Ofício que Nomadélfia parece um protesto para mudar o
mundo, uma megalomania utópica. Não sou tão ingênuo em
acreditar que Roma esteja sempre pronta para percorrer os
250

tempos. A história nega isso. Ela é acostumada a esquecer que o


Senhor suscita uma simples mulher como Santa Catarina, que
consegue vencer o papa. E o bonito é que estas almas não sentem
ter razão senão quando o papa dá a elas. A verdade não é
monopólio de Roma. É guarda e infalível proclamadora, mas
antes de chegar ali os homens às vezes são tremendos. Precisa
passar por certas prensas... É a aspiração das almas que se jogam
na peleja, para que ela se torne mais plástica, mais materna, mais
divina, menos autoritária. Alguém disse que Nomadélfia quer
tratar o Santo Ofício no mesmo nível. Se assim fosse, não teria
obedecido. Se os filhos brigam com o pai, o tratam no mesmo
nível? Nomadélfia não morreu. Os defeitos são da casca, não da
linfa. Não estou sonhando: tenho os olhos abertos, os ouvidos
atentos” (7.8).
Volto sobre o tema da piedade para cortar a cabeça do touro.
Pegaram a piedade dos monges como modelo único e exclusivo.
Os leigos devem se santificar como leigos, eu quero fazer um
povo, não um convento. O sacerdócio regal deles se exercita no
material, no social e no político, campos de exclusiva
competência deles. Se eles omitirem fazer isso para dedicar-se à
espiritualidade dos religiosos, quem irá fazer o que somente eles
podem e devem fazer? “Demais diretores espirituais tornam as
almas ridículas, levando-as em acreditar que não há santidade
251

sem certas práticas de piedade. É de doentes pensar que uma alma


possa ter escrúpulos porque não fez a comunhão. E se já fez, não
julgue quem não a fez. Se não celebro a missa, sou suspeito de
pecado; se não frequento a novena, não amo a Virgem Maria.
Mas posso aceitar estas escravidões? Percorri a estrada mestre da
liberdade para tornar livre a fé de meus filhos. Estava levando-os
no plano de homem novo e o primeiro resultado é amar-se como
irmãos. Pode existir um amor tão heroico se não tivessem espírito
de piedade? Roma deve defender a minha vocação, porque é
coisa de Deus. Estão vendo os resultados da duas piedades?
Antes os meninos eram sorridentes, agora tristes. O Governo não
quer nos ajudar. Que o Senhor lhe perdoe, mas será difícil,
porque nesses crimes há pouco para ser construído. Antes do
decreto o ministro Vanoni promete 50 milhões logo, 50 num
segundo tempo. Pede a aprovação para Scelba. “Não! Nomadélfia
deve ser transformada e padre Zeno ir embora”. Muito obrigado.
Fui embora, mas o malfeito ficou. Também a piedade de Scelba e
de De Gasperi deu um péssimo resultado. O perdão recíproco
seria uma coisa santa e bela! Mas com resultados práticos. Estou
sempre pronto para ver se pudesse prevenir o irreparável. Esta é a
minha piedade ” (a Ottaviani, 8.8).

16 – O papa virá jantar conosco


252

Quando se perde tudo, não se tem mais medo de nada, até o


ponto de brincar com o fogo. “Por que o papa não me aceita na
sua diocese? Eu não aceitei, porque me proibia a paternidade
sobre os nomadelfos. É o bispo mais indicado para hospedar os
filhos rudes, mas fieis como nós. Vende uma tiara e pegamos o
lugar mais quebrado para fazer ali uma paróquia; De Gasperi
paga a falta de justiça; o papa coloca atrás de nós um bom
observador, você. Aposta que acabaria fazendo um passeio para
vir jantar conosco? Loucuras? Aquele pobre bispo de Carpi
tremia quando se mexia Nomadélfia, mais por medo de Roma
que das repercussões locais. O papa não temeria e quem sabe
quantas belas coisas poderia realizar com estes filhos audaciosos
ao ponto de pregar a fraternidade cristã com as obras! Sob o
manto do bispo de Roma seremos mais corajosos e menos mal
entendidos. Quer um ajudante no seu ofício? Basta que faça a
seção da justiça social, eu topo! Roma salva Nomadélfia, me
deixe profetizar, Nomadélfia salvará Roma ameaçada pelo
merecido anticlericalismo e pelo ateísmo invadente” (a Ottaviani,
8.8).
Talvez eu seja acusado de ter amado demais a Igreja, ao
ponto de passar sobre a minha consciência e o corpo dos meus
filhos? O que quer dizer esse amor louco? “Servi a Igreja e a
servirei pelo restante da minha vida. Não saberia fazer
253

diferentemente, porque para mim a vida é naturalmente possível


somente na Igreja. Quis salvar a honra das hierarquias, aceitando
as injúrias. Obedeci, fazendo calar a minha vocação, violando as
leis da justiça natural, deixando exterminar os filhos. Atingido
por um foguete em nossa casa, o pequeno navio de Nomadélfia
há meses afunda no pranto. Os supérstites pedirão a Deus para
reconstruí-la. Experimentada aquela maneira acabarão para sentir
que a Igreja tem urgente necessidade de ser amada até estas
formas de terrível obediência. Quem ama a Deus, ama
necessariamente a humanidade e portanto somente pode se
oferecer também nestas formas de holocausto, para que volte para
sua Igreja. Mas dois fatos pedem reparação: recuperar os filhos,
saldar os credores. Portanto peço uma graça ao Santo Ofício: a
autorização para reunir os responsáveis para realizar nossos
compromissos e liberdade de ação para ser solidário com os
filhos. Nada de rancor, mas tenho a consciência muito
perturbada” (11.8). Nem me respondem! Tentei todos os
caminhos, somente me resta que me libertar do que tenho de mais
caro: o exercício do sacerdócio. “Visto que não tenho coragem de
voltar para cuidar de almas, peço a graça de ser livre de qualquer
ministério, que limite o exercício dos deveres que a moral me
impõe. Parece muito difícil que o Senhor suscite vocações para
decepá-las.” (a Ottaviani, 24.8). “Para mim, não as finanças mas
254

a concepção da família determinou a tragédia. Família, cujo amor


derrubou as muralhas daquela pagã elevada a dignidade de
sacramento, mas incapaz de estender a alegria da conviência a
outros desventurados e de aplicar a santidade dos vasos
comunincantes a outras famílias para serem perfeitas na unidade.
O sacramento existe, mas seu desenvolvimento sobrenatural é
situado nos pântanos do paganismo instintivo. Família que pode
ser definida como a DC: o mal menor. A sociedade está cansada
de esparadrapos, quer penicilina. Somente nós a temos, bem
guardada. Há quem nos acusa de ter sido imprudentes. Quando?
Fraternizamos os arruinados pela ordem pública; dissemos nas
praças que os ricos são ladrões, porque sentíamos muito imitar os
santos da primeira hora: “O rico, ou iníquo, ou herdeiro do
iníquo”. Longe de nós repetir as frechas de Cristo, dissemos que
os pobres têm direito à vida não somente nos livros, pois com as
conversas não ferve a panela. Precipitamos as coisas, porque o
mundo ainda não está disposto em ouví-las? Quem sabe quando
serão atuadas!” (a Crovini, 25.8).
“Como um leão rugente a força pública está atenta para nos
derrocar. O comissário de Carpi diz que eu sou um delinquente.
Quem quer o nosso extermínio? E se Deus não o quisesse? Os
nomadelfos terão a graça de saber ficar no barco de Pedro e
ninguém conseguirá jogá-los na água. Decidirão as realidades,
255

porque com palavras não conseguimos nos entender” (a


Ottaviani, 10.9).

17 – É a hora de Barrabás

Alguns sacerdotes aconselham os nomadelfos de abandonar


o navio e por-se em salvo. Eu os advirto: “Querido filhos, é a
hora de Barrabás, na qual é fácil perder a fé. Jesus está no centro
da nossa luta para defender o amor fraternal, que trocaram entre
si. Está em perigo. Salvem-no, sendo cada um o sustento do outro
e tudo será salvo. Todo mundo vos falará de amor mas vocês irão
ver que não se trata de sermos irmãos, mas benfeitores. E,
enquanto se iludem de fazer vocês santos, separarão vocês e
tornarão isolados sem irmãos. Não podem entender o nosso amor,
porque nunca tiveram irmãos. A nossa é uma vocação nova
nascida na última ceia: o unum. Sejam bons para com todos, entre
vocês sejam um coisa só em Cristo. Passaremos por graves
provas, mas recomeçaremos” (19.9).
Afundo a mão do papa e dos prelados na chaga: os filhos nos
colégios são sepultos vivos. Se recebessem o verdadeiro amor,
não sairiam com traumas e perturbações psíquicas. Oh se cada
como filho!
prelado tivesse recebido um, em sua casa, “Há sinais
de enterro de crianças. Alguns pediatras as declaram
traumatizadas por serem sido tiradas das mães. Aquelas, em
256

estado de prostração, em secreto, foram restituídas às mães. Se


acontecerão enterros, se salve quem puder, porque poderia
estourar a ira de Deus. Em vários institutos há uma real oculta
persecução: censura, controles. Em centenas de cartas afirmam
aceitar tudo isso como provação de Deus, mas sonham na sua
cidade como o dom maior. Santo Padre, vencerão, porque é a
nossa vocação” (1.10). Se chega a tal ponto que o diretor do
Instituto salesiano de Udine escreve a uma mãe: “Mário tem a
proibição de lhe escrever. Estas são as ordens da autoridade do
prefeito. É também proibido mandar pacotes, vir visitá-lo, ter
uma relação qualquer. Está em relação com sua verdadeira mãe,
que lhe quer bem e lhe escreve muitas vezes” (12.11). Lembro
isso muito bem: “quando subia o altar jurava ao Senhor, que
nunca mais fundarei colégios. Nunca fiz esta profissão de
benfeitor. Eu digo que os meninos arrancados em Nomadélfia são
confinados no cárcere. E se reage contra mim na Santa Sê, pois
ofendo quem os hospeda com admirável zelo. O que ela responde
ao mudo protesto dos inocentes? Que prestam os institutos,
cárceres nas quais o menino perde toda noção de família? Os
fundadores não afirmam ser remendos? Quer impor tanta
monstruosidade, quando tinha nascido para eles a cidade do amor
fraterno? Nomadélfia é uma Via Crucis na carne dos inocentes.
Quem foi? O Santo Ofício, porque não entendeu a minha
257

vocação. Escrevi por dois anos à Santa Sê. Quem sabe quantas
inexatidões! Mas acreditava estar entre pais e filhos, pelo
contrário … um encontro se transformou em choque. Reprimiu
uma vocação, portanto não nos entendemos” (a Ottaviani, 1.10).
As mães são reduzidas a piedades (de Michelangelo) sem
mais lágrimas. “Somente pensam nos filhos perdidos e em como
recuperá-los. Com elas se raciocina somente nesta dor.
Advogados, magistrados tentam abrandar as injúrias. Deus sabe
tudo e acredito que não deixará impunes os responsáveis de tanta
injustiça” (a Ottaviani, 2.10). “Nós somos enfermeiros dos
feridos, coveiros dos mortos? Tentei uma contra revolução e
fracassei. Fiz isso em nome da Igreja, que é o meu único amor.
Fracassei eu e os meus coirmãos? Somente Deus sabe. Eu digo
que fracassaram eles por me fracassar” (a Ottaviani, 2.10).

18 – Não quero excomunhões

Insisto, levo para as cordas. Que erre um prelado, pode ser,


mas que erre um organismo oficialmente e em nome de Deus, não
é demais? “Não é a primeira vez que o Supremo Tribunal comete
erros desastrosos. Inexpicável, paradoxal. E no caso de Galilei
gasta 4 séculos para dizer que errou. A Igreja não pode aceitar ser
um monumento histórico. Por quanto suprema, a Congregação do
Santo Ofício não pretenderá se substituir a Deus! Se nós não
258

queremos viver os sistemas sociais dos católicos, poderá nos


negar? Quer dar razão às mesquinharias do Governo que nos
deixou com fome? Quer negar o direito natural de adoção e
associação? Somos rebeldes? Quer que sejamos anjos sem
defeitos? Quer se negar de fazer um ato de virtude, dizer que
errou, enquanto me condenariam se eu não o fizesse? Quer
defender o cardeal de Milão, cujas calúnias nos difamaram?
Espero que se confessou, portanto não me resulta, porque deviam
lhe impor de reparar. O Santo Ofício respeite a nossa vocação
como nós respeitamos a sua missão. Perdão recíproco. A
disciplina é necessária, mas recíproca, senão é prepotência.
Comece mudar de rota, porque há séculos condena sem permitir
uma defesa aberta e pública. E seria alegre se, fazendo isso,
chegasse a dar razão aos adversários. O essencial é que triunfe a
verdade. Nós somos oprimidos embora o Santo Ofício diga que
não. Demonstre se não digo a verdade, antes de pular em cima de
mim com tanta violência. Se diga sejas nas alturas que nos
esgotos: Erramos. Coisa que Roma deve fazer, porque para nós
só resta ser seguidores dela. Eu não quero excomunhões.
Nomadélfia seja salva pelo choro das crianças, porque contra elas
não se pode sentenciar uma excomunhão” (1.10).
“O que ficou de Nomadélfia? Uma dívida de 400 milhões a
meu cargo. Quem posso chamar em causa? Conforme os artigos
259

36, 37, 38 do Código Civil, os que agiram em nome e por conta


de Nomadélfia, que é uma Sociedade Civil. Fizemos todo esforço
para um concordado extrajudicial, mas 20% dos credores não
aderiram. Se apresentamos a contabilidade no tribunal será uma
confusão. Os leigos ficaram em seu lugar, nós sacerdotes os
abandonamos, dando prejuízo às firmas. Obedecemos, mas a lei
não considera as ordens do Santo Ofício e menos ainda dos
credores. Todo contrato entre os contraentes é lei. Eu quero pagar
e se os outros não quiserem os cito em juízo. Uma vocação se
pode discutir, as dívidas não. Ou o Santo Ofício me dá um cheque
para liquidar tudo ou não crie obstáculos para mim. Antes de nos
citar em juízo seria melhor entrar em acordo com os leigos”
(5.10).
Convoco sacerdotes e religiosos, mas o Superior geral dos
Servitas me escreve: “Você não está autorizado para chamar
nenhum religioso, nem por mim, nem pelo Santo Ofício como
você falsamente afirma. Peço que nos deixe em paz. Já fez muito
mal aos servos de Maria” (12.10). Ele apela ao direito positivo,
eu aquele natural. Também pe. Vannucci afirma que eram
hóspedes. Mas como? Não se empenharam em descer do cavalo,
em cuidar das vítimas? Ao juíz divino poderás exibir uma Regra,
produzir o estado de perfeição ou o privilégio da pobreza para te
justificar, ver se tu eras hospede ou cidadão efetivo?
260

Respondo ao padre geral: “Sou aturizado por fatos graves,


não somente para chamar os religiosos para atualizá-los, mas para
pedir-lhe de não fazer polêmica. A questão financeira de
Nomadélfia passou no tribunal. É coisa sábia entrar em acordo
em tempo. Os leigos são decididos em nos chamar em causa
como responsáveis em sólido” (16.10).
O geral avisa os superiores locais, que 7 fugitivos para
Nomadélfia assinaram um compromisso de responsabilidade em
sólido de 450 milhões de liras. Exercitaram um ato de domínio
contrário ao voto de pobreza, que quer envolver a Ordem nesse
triste negócio, cometendo uma grave desobediência. Além disso
dizem de se por “a completa disposição da ex Cidade de
Nomadélfia onde é necessária a obra de solidariedade deles”. Por
causa destes fatos é proibido aos nossos religiosos interessar-se
ou ter relação, mesmo por interposta pessoa, com Nomadélfia”.
Seguem as penas canônicas(31.10). [Se os religiosos fossem
presos por causa das dívidas assumidas para alimentar os filhos
de ninguém, o povo de Deus não teria sido edificado?]
Os ex sacerdotes e religiosos de Nomadélfia reconhecem:
“Achamos dever de justiça sub gravi enfrentar as obrigações
contraídas. Obedecemos até nos tornar culpados de traição. Não
queremos nem desmentidas nem excomunhões, mas não podemos
ficar muito tempo nesse estado. Amamos a Igreja, por isso nos
261

deixamos torturar até serem reduzidos em ruína” (ao papa,


16.10). Escrevem isso também aos nomadelfos e esses
respondem: “Achamos que nossa vocação de sermos irmãos seja
inseparável da de vocês e irrealizável sem vocês. Somente nos
ficou esta, todo o restante se resolveu em um mar de desgraças.
Não conseguimos mais nos separar, pois nos amamos como um
só” (18.10).

19 – A consciência em estado de emergência

Roma não entendeu que não faço questões doutrinais, mas de


vida ou de morte. Sucede próprio o que tinha prenunciado ao
Santo Ofício, o qual respondeu, que teria assumido as dívidas, a
assistência, tudo. Também dos filhos que voltaram para a prisão?
Mas sabem o que significa ter um filho delinquente? “Alguns
rapazes são processados em Modena, Bologna, Milão. Dois
fazem um assalto: “Dez mil liras ou atiramos em ti”. E eu no
processo: “Foram salvados e são jogados de novo na perdição. Dê
para mim, senhor juiz, comigo não fazem o mal”. Não serviu para
nada, 5 anos de prisão” (DZR, 271).
A consciência em estado de emergência. Pode a Igreja
dispensar um pai da obrigação de prover às necessidades dos
filhos? Não se trata de uma briga por 4 moleques, mas de uma
guerra em defesa de uma humanidade crucificada. “Rendendo
262

justiça aos nomadelfos, a rendo também aos oprimidos. Não


tenho medo nenhum de dizer ao Santo Ofício, com o coração em
mão, que Nomadélfia é um fato de Deus e invoco piedade como o
menino pede tempo para demonstrar que é um homem. Quase
todos os credores são pacientes. E vocês, nossos pais, tenham
paciência. Nomadélfia não pode ser suprimida, somente
torturada. Todas as coisas de Deus, feitas pelos homens são
alteradas por eles mesmos e Jesus é paciente. É uma graça que
invoco” (a Ottaviani, 27.10).
Não sou mais disponível a me tornar corresponsável, com o
meu consentimento, de crimes de omissão. O meu “Não” se torna
sempre mais explícito: “Digo que não... Digo que não! Vivi 23
anos de sacerdócio em antítese com a mentalidade e o costume
social de vocês” (1953). Inicio o caminho interior para a
liberdade das obrigações eclesiásticas para poder exercer in toto a
paternidade. Somente eu sei quanto me custa. Quantas vezes
ironizarei: “Pensava que a Igreja para salvar filhos teria assumido
um civil e o teria feito sacerdote. Pelo contrário, eu, sacerdote,
tive que me fazer civil para continuar a ser pai dos abandonados”.
Não calo. “Nunca será dito que para salvar a honra da Santa Sê se
deva cometer violências contra jovens inocentes, um pecado
público que grita vingança na presença de Deus. Lá onde eu
pequei, eu pagarei; lá onde pecaram outros, outros pagarão. Não
263

falo somente de finanças, há algo de mais grave. O Santo Ofício


deverá responder de seu comportamento. Se tivesse querido, estas
coisas não teriam acontecido. Se permitiu que se fossem jogadas
pela janela muitas vítimas, subirá as consequências” (ao papa,
11.11, não enviada).
O primeiro a pagar é o meu bispo, que é convidado a se
demitir. A imprensa comenta a seu modo: “O bispo de Carpi vai
embora por culpa de padre Camilo [um padre muito conhecido
nos filmes pelas atitudes rebeldes dele]” (L’Europeo 1.12).
Padre Mazzolari toma as nossas defesas: “Outra vez a lei
ameaça exilar a caridade. Temos a impressão que se proceda
contra uma cristandade, que tinha deixado de lado a prudência
para dar de comer aos famintos, uma mãe para os meninos de
ninguém. Não é um espetáculo edificante em nenhum lugar,
especialmente no coração de uma província que se separa de
Cristo com o pretexto que os cristãos não têm coração” (Adesso,
15.11).

20 – No tribunal

Na primeira página dos jornais: “Padre Zeno no tribunal por


fraude e elogiado crédito”. Publico uma carta aberta: sou eu que
devo ser processado ou quem nos condenou à fome? “Na Itália,
entre gente que gasta bilhões, se deixa o povo passar fome, e se
264

jogam os filhos no abandono. Promete-se justiça e depois, se eles


tentam viver como irmãos, se separam. Os pretextos não faltam
mais. Mas a magistratura pode indagar mais a fundo para
individuar em que mão está o cabo do punhal. Nossa derrota é
uma derrota do país. Pode-se demonstrar. Cabe à magistratura a
nobre tarefa de fazer isso” (31.10).
Cheguei à estação da Via Crucis, que me leva ao tribunal, em
Bologna. Eis o que me faltava para demonstrar o que provaram
tantos filhos: a humilhação, entre os policiais, perante o juiz, eu,
com batina e chapeu, debaixo de um crucufixo que me olha e
parece ironizar: mas é verdade mesmo que a lei é igual para
todos? É claro, se trata de um processo político. Mas os
acusadores arriscam ser culpados por falta de testemunhos,
porque “Nomadélfia não usou nem enganos nem astúcias para se
fazer entregar a mercadoria” (Il Popolo, 19.11).
“O Juíz de direito dr. Mario Ranieri absolve com fórmula
plena os imputados, entre salvas de palmas do público, dos
jornalistas e, o que é mais curioso, com evidente alívio dos
próprios credores, aos quais aparecia odiosa a parte dos lobos
maus num cândido rebanho já dizimado pelas adversidades. Os
nomadelfos são devedores sim, mas não ladrões; os comerciantes
são credores sim, mas não carrascos. Mais do que uma arenga,
aquela do advogado defensor Luis Vecchi, foi um exame de
265

consciência perante os problemas humanos que Nomadélfia


propõe ao cidadão e ao cristão”. Todos de pé no silêncio mais
absoluto, ressoam as suas palavras: “Nós pensamos no nosso
próximo por 10 minutos ao dia, depois voltamos a nos fechar.
Mas Nomadélfia tinha aberto as portas ao mundo, e não podia
dizer basta aos órfãos, que queriam entrar. Por que, mesmo com a
ajuda da generosa Milão e os muitos consentimentos, não pode
continuar? É uma reposta difícil. Um dia, talvez, quando da
crônica passaremos à história, nós refaremos o processo a
Nomadélfia. Ou talvez seja Nomadélfia que o fará a todos nós?”
(La stampa, 21.11).

21 - Autocrítica

Analiso a tragédia de outro ponto de vista, jogando alma e


olhar além do cotidiano, das tramas, das mesquinharias, das
hipocrisias. “Queridos filhos, tudo que nos aconteceu é salutar se
conservarmos o amor. Se cada um, perdendo casa e irmãos, não
se sente mais irmão, quer dizer que nunca amou com o amor que
o Senhor exige com o perfeitos na unidade. Esta dispersão é um
grande ato de bondade de Deus, porque nos liberta de muitas
almas que não entendiam a nossa missão. Estavam conosco, mas
pertenciam ao mundo. Precisam estar prontos para ter a casa e
prontíssimos para perdê-la; prontos para ter a família, e
prontíssimos para dispersá-la, para reuní-la logo possível.
Quantos pobres são obrigados emigrar! Eles por necessidade, nós
por Cristo. E antes de renunciar ao nosso amor aceitamos também
a dispersão. Estou certíssimo que não foi a Santa Sê ou o
Governo que nos dispersaram, mas o Senhor para que façamos
um passo para frente. Se fizermos a vontade de Deus, ora nos
unirá, ora nos disperderá, mas seremos sempre seus imitadores.
266

Se a mudança de situações muda a nossa alma, quer dizer que não


somos um para o outro. Ficar dispersos ou refazer a cidade não
depende de nós, mas de Deus através da sua Igreja. Quem entre
nós é de Deus, entenderá esta carta” (10.12).
Estudando a minha criatura por diferentes pontos, chego a
conclusões que podem aparecer contraditórias. “De 1150 nos
reduzimos a 200 na pior miséria. Uma prova? Querida por Deus?
Não acredito. Deus quis salvar Nomadélfia e permitiu a matança
dos inocentes. Estava em crise, mas não merecia tanta
brutalidade. Venceu milagrosamente porque o Senhor a quer. Em
‘51 previa a derrota, porque não era entendido, diria que não
podíamos compreender. A imprensa e o povo deram a culpa à
Igreja e ao Governo. Foi, em parte, uma crise dos nomadelfos.
Contra nós levantaram-se as forças da política e a intervenção da
santa Sê, que para mim continua um mistério”.
Escondo-me no coração de Cristo para rezar: “Meu Senhor,
te segui desde jovem procurando amor. Vi que a Igreja não é
planejada no teu mandamento como costume. Levaste-me ao
sacerdócio, mas meus confrades se organizaram numa lei que
lhes impede ser um para o outro e todos juntos com o povo. São
mestres, não irmãos e pais. Tentei contigo fundar uma sociedade
nova. E o sucessor de Pedro nos dispersou com sádica crueldade.
Seu costume é mundano, mesmo se observa certos aspectos da
tua lei. Mas não é pai, não é irmão, é um rei da terra, um tirano
que atingiu covardemente a nascente tua sociedade. Se lesse, me
atingiria sem piedade, porque para ele também, como para casta
eclesiástica, a verdade torna-se ofensiva. Serviu-se das calúnias
como pretexto de agressão. Devemos fazer o que diz, mas odiar o
que faz, sendo pecado grave. Escandalizou as crianças, atingidas
267

as mães. Mandou no aprisco ímpios soldados, enquanto atrás da


cena, cardeais e sacerdotes davam ordens sem piedade. Se
somente aquela fosse a tua Igreja com tanto poder, procura nos
abrir o caminho para convertê-la e fazê-la voltar ao espírito dos
primeiros tempos. Manifestaram-se lobos rapazes que não
aceitam a santidade do amor”.
“Oficialmente sou um falido. Mas não paro de acreditar nas
forças de Deus” (24.11). “Na Igreja somos dois blocos: injustos e
vítimas das injustiças dos irmãos de fé. Todo o restante vem
desse pecado contra o Espírito Santo: opressão dos pobres.
Minha luta é contra claras injustiças. Precisa desmascarar esta
traição, mesmo apanhando golpes mortais. O mundo está se
arruinando, porque os fariseus continuam matando o divino
Salvador. Sou sacerdote e não estou de acordo com muitos
confrades e católicos, porque são os mais cruéis traidores de
Cristo. Se uma vez ou outra a Igreja pudesse fazer uma limpeza
seria um santo acontecimento histórico. Um corte preciso. Que
Deus suscite os homens capazes de tanta bondade” (a padre
Calábria, 2.12).
268

XV - 1953: laicização e liberação

Cenário internacional.
Morre Stalin (5.3). A URSS reconhece a independência da
Alemanha (28.5) e faz o primeiro teste termonuclear (12.8). Na
Polônia o card. Wyszinsky é acusado de anticomunismo e preso.
Nos EUA são mortos como espiões soviéticos os cônjuges
Rosenberg (19.5) e despedidos 531 funcionários suspeitos de
comunismo (2.7). Fim da guerra na Coreia (27.7).
Cenário italiano.
Nenni propõe a alternativa socialista, saindo da oposição
(8.1). A aprovação da lei eleitoral majoritária (21.1) provoca
greves. A Fiat recorre a sanções contra os grevistas (22.1).
Expulsão do pastor evangélico Calandro. Nenni e Togliatti no
enterro de Stalin; os trabalhadores da CGIL cruzam os braços por
vinte minutos (9.3). A campanha eleitoral das esquerdas chama
os DC forchettoni (grandes garfos). A coalição DC, PSDI, PLI,
PRI obtêm 49,85 % dos votos e não pode usar a lei fraude (7.6).
Em Siracusa Nossa Senhora chora (29.8). EUA e Grâ Bretanha
retiram as tropas da zona A de Trieste (8.10). A polícia britânica
atira: 6 mortos, 60 feridos (4.11). Os exércitos italiano e
iugoslavo se retiram do confim (dic.). Pio XII abre o ano santo
mariano (8.12). Greves pelos salários (dez.).

1 – Nos comportamos como coveiros

Despido de tudo, esvazio o saco com Ottaviani: “Em 20 anos


nem um filho acabou mal. Em poucos meses, 4 no tribunal.
Comportando-nos como coveiros, mandamos aos institutos os
269

menores de idade que se dobraram. Uns trinta aram as terras na


região de Grosseto. Tirá-los dali significa vê-los na prisão.
Adquiri os bosques do Cefarello para dar a eles um ambiente
onde passear, mas a propriedade está à venda. Aonde irão? E os
credores? O Governo vai por caminhos falimentares. Não aceito.
A providência é dona de tudo e sabe quando deve pagar. Scelba,
por orgulho mundano, não quer se dobrar aos caminhos do
Senhor. Roma está muito doente. Não me interessa a ordem
pública, o pecado não é mais ordem. Para parar a inundação
comunista não se faz uma margem de mitra, mas uma forte
sociologia. Em ’46 o senhor me disse: “Precisa evitar as
polêmicas”. Seria bonito, mas é absurdo, porque as obras de Deus
por sua natureza trazem sempre confusão nas consciências.
Parecem se jogar contra todos, mas se defendem de quem não
quer suportá-las. Uma vez concebido um filho, as mulheres
podem pecar de aborto, mas Jesus nunca permitirá que a sua
Igreja aborte Nomadélfia. Fui eu ou foi o Senhor que me segurou
em equilíbrio sobre os abismos?” (22.1).
Repasso para Montini meu problema de consciência: “Em
nome de que Deus, nós oprimidos somos induzidos votar nos
nossos opressores? A DC, apoiada pelos eclesiásticos, se
apresenta às eleições depois de 8 anos de opressão dos pobres.
Incoerência insuportável. Somos acusados de crimes, porque
arrastados por um costume burguês. A Santa Sê aceitou o jogo.
Por que deixa aos opressores a liberdade de nos explorar e nega a
nós a liberdade de nos defender? Eu, com os opressores, sou parte
em causa. Defendo-me e, defendendo-me, servo a Deus. O
Governo para mim está em pecado. Não aceito as injustiças. Não
queremos ser escravos e nos rebelamos. E com isso presto um
grande serviço à Igreja, portanto ao povo oprimido” (1.2). Ele
acredita que eu fique contente com as migalhas da caridade do
Santo Padre. Não! Pretendo o que me pertence, não pela causa
dos meninos, mas pela causa do homem. E responde irritado:
“Deus sabe se eu pudesse ajudar a causa dos meninos e dos
pobres. Mas, por defeito de competência, não permitiu que
fizesse isso. Pois, se devesse me ocupar disso, não poderia
admitir certas afirmações, nem o tom usado, especialmente se é
um pedido à caridade do Santo Padre. Acompanhei de longe o
270

senhor, com interesse e trepidação; e permite que lhe diga que


nunca deveríamos fazer o bem com espírito amargo e arrogante:
“A caridade é paciente, é benigna, não se irrita, não pensa mal,
tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 Cr 13,4-6)”
(5.2). Quando o filho do homem nos pedirá conta da justiça
[fome e sede dos irmãos Mt 25], tu poderás apelar ao defeito de
competência, defendendo-te atràs do hino à caridade de São
Paulo?

2 – O que é a caridade?

Precisava uma provocação assim para que eu cuspisse o


sapo. “É grave seu convite. Mas o que é a caridade? É também:
Descia da Jerusalém para Jericó um homem... É também: Ai de
vocês... Um dilema: ou dobrar-se para ser injustos, faltando de
caridade, ou se jogar contra a injustiça, realizando a caridade.
Meu fracasso é a ruina dos outros. Um problema de
contabilidade: para viver precisam 105.000 liras por cabeça ao
ano. Não nos foi concedido. E porque tentamos viver fomos
punidos. O restante são pretextos que se enfrentam depois, não
antes da refeição. Podem dizer no Vaticano que foram tratados
como nós? Não se pode reconhecer a ninguém o direito de nos
dar esmola com os bens que nos foram subtraídos. Na Italia
somos seis milhões de miseráveis. Se gasta contra nós um roubo
de um bilhão e 800 milhões de liras ao dia, com os quais se fazem
palácios, mansões e se paga a polícia para que nos calássemos.
Veja, Excelência, que o estômago é de interesse divino. Se dizer
isso é ofender, quem se ofende está em dolo e falta de caridade,
ofendendo a verdade, que dissemos para que triunfe a caridade. O
Santo Padre diz que milhões de homens pedem uma mudança de
rota. Quem fará isso? Quem está no leme. Então se comece do
Vaticano com o exemplo. Irreverente? Sou mais tenro que o juíz
divino. O direito à vida deve ser resolvido antes da noite; é
sempre tarde demais. Não nos maravilham nem guerras, nem
revoluções, para nós é sempre guerra e revolução. Nos interessa o
direito à vida terrena, não somente àquela eterna. É a
contabilidade que nunca funcionou. A Santa Sê não fez bem a
não excomungar os políticos. Não me responda: “Como podem
271

fazer?”. Peça ao on. Scelba como faz quando nós dissemos que é
injusto. Aponta o revólver e nos manda para exílio. Não tenho
caridade? Mas então somos melindrosos… E que poderíamos
dizer para não dizer o falso? O núncio mantem as relações entre
Igreja e Estado. Não sabe que o Governo nos afama? Eu não
tenho nada nem contra você nem contra o Governo. Esclarecendo
estas realidades provoco a desordem? É loucura, para não dizer
delinquência social. A contabilidade não é uma opinião política.
Eu desorno a Igreja? Eles a aviltam e perseguem. Resta somente
mandar ao Santo Ofício contadores com ótimas calculadoras e
fazer as contas do alto para baixo. Vão vocês pedir esmolas, nós
não queremos mais ir, queremos voltar a sermos homens. Os
políticos conjugam os verbos no futuro, coisa que agrada aos que
comem no presente: “Socializaremos, reformaremos”. Falsos e
descarados! Para nós deveria ser presente com efeito retroativo.
“Padre Zeno é um utopista, um violento, um herege”. E os DC
são puros espíritos? Por que cometem estas opressões contra nós?
Dizem certas almas piedosas, que se viram: “De Gasperi é um
santo homem; não pode fazer certas coisas!”. E então por que está
no poder? Pode ser católico quem manda num sistema social
infanticida e faz matar 109 manifestantes? Diga ao Santo Padre
que mande ao Santo Ofício aqueles contadores com as
calculadoras. Seriam, mais úteis do que os teólogos. Enquanto se
preparam as bombas de hidrogênio é coisa santa fazer as contas.
Se as fizéssemos teríamos um milagre. Da nossa justiça Deus
doará ao mundo a paz. O povo agradeceria Deus, porque
finalmente a Santa Sê se converteu e será de exemplo. Em cada
confessionário, uma calculadora. Não seria mal escrever em todos
os manuais de piedade, registros de caixa: Barriga cheia não
cheira vazia. O Santo Padre não tem outro caminho. Além do
mais os inimigos da justiça nos enforcarão. Somos milhões que
pedem à Santa Sê mudar de rota. Não fazer isso é uma ofensa tal
que provocaria o abandono do mundo para a ruina. O Céu faça o
que quiser, nós já somos arruinados” (11.2). “Andei 52 anos e,
com esta carta, lancei a pedra no pombal. Consegui o que queria,
posso morrer. Não me atirei contra o papa, defendi a fé” (DZR,
276).
272

3 – Os empobrecidos condenam os políticos como


opressores

Ataco também os políticos. “Querido Bettiol; nos formamos


juntos. Você, chefe parlamentar DC, foi acabar onde se fazem as
leis e me manda fazer um papelão. Vocês são o mal menor, isso é
o maior bem dos ricos. Quem são os verdadeiros cristãos? Os
justos. Vocês são politicamente injustos, portanto mudaram de
religião. Sabem quantas famílias são sem casa? Conhece as
violências que subimos? Tenho as fotografias. A nada valeu obter
as contribuições, das quais temos direitos. Se os membros de seu
grupo se confessassem comigo não lhes daria a absolvição.
Condeno vocês como opressores. Vocês são Nero, isto é, patrões,
nós os escravos. Há 8 anos fazem anticomunismo e geram o
comunismo à nossa custa, enganando-nos com a falsa
combinação: demo-cristãos. Mendiguem o voto para outras
pessoas. Individuamos vocês entre aquelas potestades da terra
que satanás ofereceu a Cristo, o qual as recusou como inimigas da
humanidade. Condenam-nos à ruina em seu nome. Mas quem
oprime os pobres é inimigo do povo, da Igreja. Demos a vocês o
voto, porque reconheceram o direito à vida para todos e
demonstraram que não é verdade” (2.2).
Digo isso também aos prelados que apoiam a DC: “Quem
tem fé não pode não ver o diabo naqueles políticos. Satanás os
levou para um caminho cego. Pagaremos os crimes sociais com
rios de sangue. Deus não os perdoa, seria contra si mesmo” (a
Ottaviani, 2,3). “Não acredito que a Santa Sê entenda fazer da
política democratacristã um motivo de credibilidade. E nem que o
nosso nos defender favoreça os comunistas, porque 70% dos
italianos não quer traumas e os párocos os tranquilizam: “O bem-
estar é dom da providência, a paciência em subir a injustiça é
penhor de vida eterna”. Não ousam dizer que a miséria é castigo
de Deus, mas falta pouco. Eu amo a Igreja e aquela não é a Igreja.
Escolhe, louco Galileu: ou o paraíso vermelho o capitalístico.
Um bilhão e 400 milhões de bem-aventurados estão concentrados
no primeiro, os outros 800 milhões no segundo E a Igreja? Está
fora do combate. Quero trazer em seu seio os oprimidos, única
força sadia que ficou na reserva. Ela sabe que faço sempre com
273

muita calma violenta. E não nos iluda que eu seja um iludido.


Erro, porque tenho direito 70 vezes 7 ao dia” (a Ottaviani, 5.4).
Podem me chamar de iludido, eu explico-lhes o que é um
fundador: “Os fundadores não são infalíveis, mas não erram
sobre certos pontos, porque geram as obras do Senhor de uma
semente que não conhecem, mas que vem ser a vontade de Deus.
Se dissesse que um girino se torna rã e uma lagarta borboleta,
ningúem acreditaria. Nomadélfia é a lagarta que se transformará
em borboleta santa. Vinte séculos de cristianismo viram a Igreja
gerar muitas obras incompreensíveis durante sua metamorfose.
Nomadélfia (parece um contrasenso) nascia no momento em que
o Santo Ofício, com a varada de 5 de fevereiro quebrava a casca
dela” (a Ottaviani).
Olho em nossa casa e escrevo aos filhos que é a hora do
crivo: “Entristece-me quando alguém se desorienta. O Senhor nos
aperta para ver quem não é dos nossos. E até quando não tiver
feito a sua prova não desistirá. Meus filhos são os que resistem”
(13.2). “No mundo há dois bilhões, que vivem pior do que nós e
eu gasto a vida para defendê-los. Devem saber que amo vocês
mas não como o mundo, que ama somente os filhos e os amigos.
Eu amo todos os oprimidos e amo os opressores, para que se
convertam. Combato no seio da Igreja as doenças dos egoístas. Se
o Senhor me tirou de Nomadélfia terá as suas razões. O que me
acontece não é vontade somente dos homens, é permitido por
Deus, porque está cansado de um mundo que não quer se amar.
Quando os nomadelfos terão o bem-estar, Jesus irá em outro
lugar. Nunca disse: “Bem-aventurados os que passam bem”.
Quem não suporta os fracos está longe de meu coração de pai.
Quem calunia, explora o irmão, cai. Quem está sempre pronto
para perdoar, será entre os fundadores da cidade de Deus” (2.5).
Não aguento mais. Convivo com uma objeção de
consciência: posso suportar a minha ruína quando arrasta os
inocentes? “Suportei a ocupação violenta e ilegal da cidade.
Coisas da Rússia. Por que fiz isso, estragando almas que tinham
direito de ser defendidas também com as armas?” (14.2).
“Enganado pela autoridade, o meu status é incompatível
enquanto devo me defender das consequências que atingiram a
mim e a terceiras pessoas arrastadas da minha ruína” (23.2). “O
274

Santo Ofício decidiu. Bem-aventurados seus componentes se se


sentem tranquilos em consciência. Eu digo que erraram de cheio.
Cristo nunca se dobrou à injustiça (a Ottaviani, 25.2).

4 – “O Mestre com a cauda…”

Exigo o direito à legítima defesa. “Sou indelicado? Peço


desculpa, eu falo a linguagem dos oprimidos. Entendo os
raciocínios dos opressores, mas não tem nada a ver com os
nossos. Podem me demonstrar que a raposa é uma criatura de
Deus, mas se a vejo agredindo o galinheiro ou uma criança, atiro
sem pensar duas vezes. Também a espingarda é uma criatura de
Deus. A justiça e a verdade fazem sempre bem, também quando
provocam rios de sangue. Não é arrogância se levantar contra as
forças do mundo: é santidade. Experimente vir conosco, ser
rejeitado e logo irá pensar como nós. O comunismo nos nossos
confrontos é crassa burguesia. Comunismo, capitalismo,
fariseismo, rótulos de um idêntico conteúdo: o mundo. Com
palavras nem o Mestre conseguiu convertê-los. A Igreja deve
invadir o mundo, mas deve aceitar o purgante. Somente os
oprimidos podem entendê-la e levá-la ao mundo. É verdade que
em caso de emergência a Santa Sê se transferiria no Brasil? Eu
espero que o papa deixe ir lá os medrosos. O papa é o papa
também nas catacumbas” (a Montini, 27. 2).
“Senti o pulso da Santa Sê. Quanto chorei! A amargura era
tanta que preferi a morte. Tenho mil motivos para acreditar, que
se não cede será atingida por espantosas desgraças e acabará para
nos obrigar pedir a laicização. Não queremos quebrar a
disciplina, seria um grave escândalo e não conseguiríamos fazer,
mesmo se o Céu nos demostrasse que salvaremos o mundo.
Ainda não entendeu que a nossa obediência é uma crucificação?
Por que faltar de respeito com as vocações? Vocês não são donos
das almas. Nosso amor é tão vivo e simples que provoca tonturas.
Eu amo a Santa Sê como minha casa natal. O Senhor obrigou
vocês julgar folhas secas e ramos, que estávamos para podar com
mais competência que vocês. Mistério!” (a Ottaviani, 2.3).
275

“Há séculos se prega a fraternidade social. Não entendo


porque, uma vez aparecida, se deva maltratá-la nesse modo” (ao
bispo, 28.3).
Dias de Calvário. A Gazzetta di Modena anuncia: “A
palavra fim sobre a cidade da fraternidade” (28.3). Luto entre os
filhos da casa de cura obrigados a ir embora e os três no tribunal
em Modena. “Desde o dia do decreto os vi na prisão. O que irão
fazer os dois absolvidos? Depois de 8 meses de cadeia se
tornaram criminais profissionais. O que é o crime? Sabia que era
uma infração às leis, mas agora não sei mais nada” (a Ottaviani,
28.4).
Mais se aproxima o dia da grande recusa do estado clerical,
mais sondo as minhas responsabilidades: “O que é um sacerdote?
Com certeza não um covarde. Acolhi os mais desastrados para
ensinar-lhes a serem irmãos. Percorremos o rio de milhões de
escravos. Mas ninguém tem o direito de provar assim as almas. O
Santo Ofício será um tribunal supremo, mas sempre um tribunal,
que me levou à falência. O decreto de afastamento foi uma
bomba atômica. Tente o Santo Padre nos dar razão e verá o que
vai acontecer no Vaticano. Tente nos condenar e verá que
desastre. Recusamos reconhecer a todos o direito de nos oprimir
com a omissão. Quem ousa se substituir a Deus? Desnutrição e
morte podem ser infligidos por Deus, nunca pelos homens, menos
ainda pelos católicos. Não pense que eu seja um exaltado, sou um
observador. A Igreja deverá ser o diapasão dos novos tempos e o
será mergulhando-se nos oprimidos, condenando toda forma de
opressão. Eu penso que nós sacerdotes decidimos ir para o
inferno. Desculpe, mas o inferno é feio. Vocês que são a
magistratura da Igreja, por que não aplicam a Lei? Jesus não nos
queria assim. A Igreja é sua e tem as mesmas chagas. É quase
toda ariana. Eu penso que também o Vaticano aos 90% é
arianismo. Jesus deve se sentir mal entre aquelas paredes. Vocês
mandam que ele faça tudo: o diplomático, o guerreiro, o
espantalho, o fraco, o caprichoso. A burguesia é satanás e no
Vaticano há no mínimo 90%. Luis XVI, enquanto a revolução
trovejava, decretava a medida dos lenços das damas. Pio XII,
enquanto o mundo submerge, decreta diminuir de um metro a
cauda dos cardeais [Motu proprio, 30.11.1952]. Imaginem o
276

divino Mestre passeando com a cauda? Por que não me assume


no Santo Ofício para organizar a seção suprema da justiça social?
Faça conta de criar uma fábrica de ácido sulforoso. Sou exaltado?
Confio que uma vez ou outra, se persuadirão que Cristo é mais
forte do que uma bomba atômica. Eu digo que nós eclesiásticos,
em procissão convosco, decidimos ir para o inferno. Resultou em
que o barulhão do Grande Retorno de pe. Lombardi? Três
jaculatórioas de uma parte, muita raiva da outra. É de loucos
querer forçar o Cristo a nos dar razão. É verdade que o Vaticano
se criou um tesouro áureo na América? Não vale mais a nossa
pobreza pessoal, porque somos de vocês. Quem autoriza vocês a
envolver-nos nesses pecados? Me assume no Santo Ofício?
Comigo irão dois bilhões de almas sedentas de justiça. Pergunto
aos irmãos padres: “Em que raça de livros tu meditas? Fizeste
para ti um Cristo dos pés chatos, um tímido que não sabe entrar
nos prostíbulos de suas filhas e irmãs. Tu meditas trocar satanás
por Cristo?”. Chegam os fascistas, torna-te fascista; chega a
burguesia, torna-te burguês; chega Marx, torna-te marxista; chega
a democracia, torna-te democrático. Se fosse rabanete seria tal
também num monte de cebolas. Jesus é um homem vivo, um
Deus prático: faz as ameixas ameixas, as raposas raposa, as
galinhas galinhas, os estômagos estômagos. Pregaram alguns
esparadrapos nos furúnculos sociais, mas nunca se falou de
penicilina. Condenar Cristo ao insucesso é rápido e o povo
concorda, porque é mais cômodo um Cristo embalsamado que um
Deus vivo. Cristianizam tudo e consagram tudo ao Sagrado
Coração. Com a comunhão das primeiras sextas-feiras do mês se
vai direto para o paraíso. Coisas bonitas, mas que desastre! O
mundo procura a Igreja, não pode estar sem ela. Por que a
escondemos a eles? É urgente uma revolução de palácio” (1.5).
“Vocês têm os pés de chumbo. Na Igreja é contra a natureza que
as revoluções nasçam do baixo, porque como chefe tem Cristo,
revolução permanente. Não sejamos distraídos! Cristo é feito
assim. Que culpa eu tenho?” (a Ottaviani, 17.5). “O Santo Padre
fala de moral católica em campo social: oxalá a praticássemos!
Veria os comunistas se tornarem parentes dos cristãos democratas
e juntos gritarem que o papa ficou louco” (1.5).
277

5 - “Não estamos de acordo”

Publico a minha autodefesa: “Não estamos de acordo” [com


as cartas a Montini e a Bettiol]. Sai sem o imprimatur na fase
mais aguda da campanha eleitoral. As esquerdas a exploram seja
nos comícios que nos jornais: “Aberta denúncia de um sacerdote”
(L’Avanti!, 27.5); “Padre Zeno acusa: os cristãos democratas são
anticristãos” (L’Unità, 28.5). Se vota e a DC se reduz a um
governo monocolor. As 3 mil cópias da primeira edição e as 7
mil da outra edição esgotam logo. O editor propõe uma edição de
50 mil. Não concordo: “Vencer é de heróis, vencer demais é de
covardes”. A imprensa católica ignora seja o livro, que o barulho
das esquerdas. Anuncia uma retratação imposta pelo bispo, que
tenta colocá-lo no Index!
A cópia reservada ao papa merece uma dedicatória especial:
“Santidade, esse livro é um golpe de machado na raíz do mal,
que é muito mais profundo de quanto está escrito. In rerum
natura nunca se viram os pais e as mães ricos e os filhos pobres,
famintos, nús, sem casa. Se viu e se vê muitas vezes o contrário.
Nós eclesiásticos, pais por divina eleição, perante os filhos somos
portanto contra natureza, no pecado, do qual eles têm direito de
se defender. Quer mudar de rota? Eu topo e quem sabe quantos
topam. Talvez a maioria dos eclesiásticos. Não quer? O nó
chegou no pente: na Igreja as revoluções não se podem fazer do
baixo para o alto, mas somente do alto para baixo” (25.5).
Confio aos íntimos: “O livro me custou o sangue da alma.
Luto no seio da Igreja, que Deus construiu para que seja a sua
família na terra e não um conserto de preguiçosos e exclusivistas”
(a Dario, 2.5). “Imagina que escândalo! Vibrei um golpe que
acerta o objetivo. Se Roma me castigar não tem problema. Eu não
vivo, sobrevivo” (ao irmão, 19.4). “Em geral no Santo Oficio há
pessoas muito boas, mas isso não exclue que juntas possam ser
uma mala bestia. Montini se espanta só nos vendo, não dorme de
noite” (a Merzagora, 2.5). “O meu nada me anima para combater
os gigantes. Não tenho direito de pretender que acreditem na
minha sinceridade, as obras o devem demonstrar. Estar de acordo
sobre a doutrina nem sempre significa compartilhar as mesmas
angústias, porque muitas vezes ela se coagula infecunda no
278

cérebro, o qual pensa em possuir a verdade e não se deixa


perturbar pela incoerência. E sou audacioso como milhões de
oprimidos, porque nos foi negada a cidadania na terra. Quantos
eclesiásticos deveriam ser laicizados! Quem não é imitador de
Cristo como teor de vida é um herege e está fora da Igreja. É
ardente impulso da minha alma servir heroicamente a Igreja,
porque somente nela se pode abraçar Cristo, diria, sensivelmente.
É verdade, porque vendo uma vítima, pulo no colo dela,
compartilho seu sofrimento, tentando salvá-la. Faço isso não
somente porque me comove, não só feito de pedra, mas porque
digo que aquela é a Igreja também como doutrina e naquela
vítima vejo Cristo. Descem de cavalo também os hereges, porque
é um dever humano antes que cristão. Eu luto para defender a
doutrina social da Igreja contra o costume social dos padres e dos
católicos, sendo o mais diabólico obstáculo doá-la ao mundo, que
a espera como única capaz de libertá-lo do homem lobo para o
homem” (a Ottaviani, ’53).
Padre Vincenzo não concorda: “A insistência da autoridade
sobre a unidade dos católicos é tão clara, que dificilmente poderia
se desculpar pela desobediência e presunção” (10.5). Respondo
no mesmo tom: “Não somente não aceito, mas desprezo a política
de vocês, mesmo apoiada pelo Vaticano. Contratacarei, mesmo se
a fizesse o papa. Quem se aproxima do erro? Para mim, periferia
e centro, vocês estão no erro. A contabilidade não quadra. Não
vingança, mas reação. Eu nego o voto aos afamadores. O
problema social é unido à paternidade de Deus: o injusto a nega,
portanto nega Cristo, nega tudo. Se as altas esferas são injustas,
devem ser punidas, pois quem as julga é a presença das vítimas,
entre as quais eu. Provoco perturbação? A quem? Digo que não à
política de vocês, a nego como minha inimiga e combato o
costume social de vocês como o diabo em pessoa. Que 70 mil
sacerdotes e 300 bispos ofereçam ao povo italiano numa hora tão
trágica um partido burguês e injusto é o máximo dos fracassos.
Por que não impuseram à DC de se por no plano da justiça e dar
as provas antes das eleições? Porque são iguais a eles. Eu estou
numa outra margem, onde certamente está a Igreja” (maio).
Para alguns é um suicídio, para outros um livro escrito por
santos. Mazzolari fala de páginas desesperadas; perturbação
279

espiritual; cedeu à revolta e Deus está para abandoná-lo;


“encantado pelo seu coração acreditou poder fundar a cidade
onde a fraternidade é lei, exilando uma e outra”; “Nomadélfia é
sepultada debaixo destas páginas que pesam mais do que a
grande pedra do sepulcro” (Il Popolo, 31.5).
Não me deixo levar por momentos de exaltação, é o Senhor
que me guia. “Confio-te que não acredito em mim mesmo, mas
penso que somente o Senhor opera em coisas tão graves. Para
mim aquele livro e o barulho que causou são pequenas coisas. Há
algo mais. Quando padre Mazzolari escreve que Deus está para
me abandonar, é sinal que perdem os estribos. Não vê que quase
se tenta reconstruir uma espécie de sinédrio para condenar os
oprimidos, porque blasfemamos? Dois mundos opostos estão para
se chocar. Quem vencerá? Vencerá o livro, na hora de Deus.
Poderão sepultá-lo, chamando-me para cavar a cova, ma já
explodiu” (a Merzagora, 31.5). Que um padre tão crítico da DC
me ataque próprio no jornal do partido, me deixa perplexo.
Escreverei-lhe: “Sobre uma coisa estamos de acordo: que não
estamos de acordo”. Ele vive entre livros, artigos, eu entre
meninos aspirantes a serem tuberculosos e debandados aspirantes
a serem delinquentes.
Contrário por natureza e por graça, vejo os fatos antes de um
lado e depois do lado oposto. Escrevo ao meu ex professor de
direito: “E como poderia a Igreja jogar no mar a DC quando nada
de concreto se opõe à mesma? Defendo-me como oprimido de
uma opressão que eu, você e muitos provocamos e que a Igreja
não teria querido. A DC não soube se defender, confutando meu
livro. Se não fizer isso, acabou. Não esqueça que desobedeceu ao
papa. Somente um anjo de Deus teria podido dar aquele golpe de
espada. A suprema autoridade sabe muito bem que não é rebelião,
mas legítima defesa. Poderia provocar choques também trágicos,
mas sempre no seio da Mãe. O povo humilde entende estes
problemas, porque os vive como um menino, mas não pode levar
ao poder a sua vida. Ele confia em nós, mas muitas vezes é
frustrado e traído. O que disseram os intelectuais para preparar as
eleições? Somos avulsos da vida. A multidão me dá pena: produz
pão e como polenta, vinho e bebe água. Nós somos falidos, não o
povo. E a política não é a sua, mas a nossa. Por isso é infame” (a
280

A. C. Iemolo, 2.6). “É o século da bomba H2 e das tragédias


devidas à falta de aplicação da justiça. Todos gostam da
verdadeira santidade. O costume social dos eclesiásticos e dos
católicos, como tonalidade geral, é odiado, porque é farisaico.
Mas a santa Sê não vê estas coisas?” (12.8).
“A imprensa anticlerical faz pouco barulho, porque estão
todos de acordo com a DC. Podem me chamar de herege, diabo,
mas a última palavra é de quem poderá dizer: Se como ou não se
como com vocês? Se não respondem com os fatos, poderemos
dizer: “Deus não abandonou vocês, mas não está de acordo com
vocês”. Nunca se deve renunciar ao próprio direito em favor do
oprimido quando fazer isso significa confirmá-lo em seu pecado.
Perdoar sempre, mas reprovar, golpear o pecado e criar leis que o
neutralizem. É uma traição deixar que o povo pense que no
cristianismo não haja a solução social. Se o episcopado não se
opus à traição da DC, quer dizer que passou da parte dos
traidores. O oriente está para ir embora, o ocidente está para ser
traído por nós, a Igreja se salvará sozinha. Deus nunca
abandonará os oprimidos, que querem ser um para o outro” (2.6).
Um jornal acerta no alvo: “Nomadélfia se torna o símbolo de
um drama eterno: pobres e ricos; oprimidos e opressores; o
direito à vida, reconhecido teoricamente por todos, mas que por
muitos fica letra morta. Esse é o verdadeiro tema do livro de
padre Zeno” (La Stampa, 30.6).
O card. Ruffini escreve a Montini: “É muito doloroso que
padre Zeno desenvolva larga obra em vantagem do comunismo.
Deve ser um desequilibrado que acha a única salvação da religião
e da Itália na obra por ele começada e providencialmente caída.”
(3.6).
Eu, sempre mais explícito: “Se fosse no lugar do Santo Padre
teria medo de Nomadélfia… Humildemente, tão humildemente
que me humilho se me expressar como um soberbo, digo: se
cuide também o Santo Padre em torturar um fundador de um
movimento desta força. Os fundadores são de Deus e sentem os
tempos como os profetas: vê com olho nú o que para os outros é
misterioso. Tem uma linguagem que os sábios não entendem e
dos quais se sentem ofendidos. As misérias pessoais deles como
aquela de Pedro, não incidem na missão. Eu sou um entre eles,
281

coisa que vejo com tanta simplicidade como quando criança


levava ao destinatário uma carta importante de meu pai” (a
Ottaviani, 13.6).

6 – Peço a laicização

Resisti tanto, mas um dia no bonde em Milão, dois senhores


comentam os fatos de Nomadélfia: “Como pode um padre
abandonar os meninos que pegou como filhos?”. E o outro: “Será
que poderá dizer a eles: “Não são mais filhos, pois a Igreja não
quer?”. Concordam: “Precisaria que ele largasse a batina…”. Era
vox populi, vox Dei? Com a morte na alma escrevo ao bispo:
“Peço a laicização, porque não posso desprezar a justiça” (16.7).
Ele apela ao direito clerical, eu ao direito natural: “Quando
assinei o decreto não podia negar os direitos nascidos entre mim e
meus filhos. Invoco o respeito da minha vocação. A autoridade
me proibe vivê-la no exercício do sacerdócio? Tenha a bondade
de me laicizar. Desde 5 de fevereiro ’52 vivo em estado de
traição. Impuseram-me o impossível com todos os crimes que
derivaram. Quando me se demonstrará que o samaritano não
tinha o direito de descer de cavalo, será demonstrado que Cristo
estava errado em atirar contra o sacerdote e o levita. E quando me
se demonstrará que os compromissos entre privados não são
contratos bilaterais, portanto objeto de direito civil e penal,
teremos conseguido cancelar o homem como sujeito de direito. A
caridade não pode ser negação da verdade e da justiça” (6.7). O
bispo responde: “Não são obrigações necessárias de direito
natural, mas livres obrigações assumidas: 1- ex charitate, por isso
não são obrigações insuprimíveis, mas (além de serem sujeitas a
despensa) não obrigam com grave incômodo: e para um
eclesiástico é grave incômodo a incompossibilidade de tais
deveres aos quais se é precedentemente amarrado; 2- ex fidelitate.
Se as obrigações derivadas de Nomadélfia fossem incompatíveis
com aquelas do estado sacerdotal, derivadas da virtude da
religião, me parece que seria mais lógico pedir a dispensa
daquelas, e não destas” (20.7).
Quem pode dispensar da obrigações de direito natural?
Desabafo com Ottaviani: “O bispo fala de coisas bonitas, mas não
282

tem nada a ver. Se ex charitate, ex fidelitate quebro uma perna ou


queimo a casa de alguém, nasce uma obrigação que depende da
justiça. Submergir não posso, pois afogaria terceiras pessoas. Não
fui eu que sepultei Nomadélfia, mas Roma, daqui e de lá do
Tibre. Talvez eu tenha contribuido com as minhas misérias, mas
há uma diferença: eu queria curar as inevitáveis feridas da
viagem, outros a agravaram. Há quem diz: “Precisa passar por
cima”. Da moral? Dos feridos? Da justiça? Não passarei por cima
de nada” (3.9). “O decreto me destruiu. Se não corro para pular
para fora, caio em pecado mortal por grave omissão. Estamos no
caminho que de Jerusalém desce a Gericó, onde aconteceu o
feito. Minha lei é a lei dos náufragos do direito natural. É fora de
lugar violentar-me, estando nós na água entre tubarões. Até disse
ao bispo: “Se não quiserem me laicizar por graça, o façam por
punição” (24.7).
A padre Vincenzo: “O bispo se opõe à minha laicização. Eu
não me revolto, se revoltam os fatos. Tentam nos afogar, mas não
conseguem. A derrota não será nossa, mas deles. Cairão assim
muitos mitos e a Igreja acabará para ser simplificada. Até quando
a massa será constituída por muitos coelhos tudo isso se repetirá,
depois virão novos tempos e Roma será menos autoritária se bem
mais respeitável” (18.8). “Há dois anos Roma me persegue , mas
não estou cansado de lutar. Sou torturado por aquela força que
tenta me suprimir ou me dobrar. Por sorte perdeu as eleições [a
DC não obtem a maioria], senão quem sabe o que teria
combinado contra mim. O bispo estava disposto a me deixar ir
para a prisão por 75.000 liras enquanto lhe cedia um patrimônio
por pouco dinheiro. Não há coração, não há um pouco de moral.
Que pais são? Os eclesiásticos são organizados como uma areia
movediça, que engole sem piedade e deixa na cruz. Se for
reduzido a um rejeitado teria satisfeito nos meus compromissos:
vítima com as vítimas. Serei mais sacerdote como leigo, que
atormentado dessa maneira” (19.8).
Somos um belo problema! “Aprovar Nomadélfia significa
revolver o costume social dos católicos, que é contra a sociologia
da Igreja. O conceito de caridade é alterado até as migalhas do
supérfluo, condenado por Cristo. A Santa Sê cala e espera,
porque está no meio um fatal erravimus. Um reconhecimento de
283

Nomadélfia a levaria à frente das reformas sociais; a repressão


revolveria, tornando as hierarquias perseguidoras. Tudo que na
Igreja parece grandioso e poderoso é paganismo, que tenta matar
a menina, a qual é muito límpida: Que sejam uma coisa só”
(16.6).
“Vossa Excelência disse que Nomadélfia será condenada. As
condenações não me espantam. Se se trata de política os fatos
falam por si mesmos. Seria bonito que tivesse medo de defender
os direitos dos oprimidos! O estranho é que se lança contra nós a
autoridade eclesiástica, invés de nos defender. Quer nos
condenar, porque pedimos fazer as contas? Eu nunca entendi que
me fazer católico e, mais ainda sacerdote, quisesse dizer de se por
ao serviço da burguesia, pior ainda defendê-la. É diabólica. A
contabilidade não é uma opinião. Fora os erros! Pe. Castellano
não tranquilizava os Nomadelfos sobre a ortodoxia deles?”
(15.8).
Quem pensa que eu esteja exagerando, saiba que queriam
nos dobrar com a fome. Testemunha isso a senhora Pirelli: “As
consequências da condenação do card. Schuster foram de uma
gravidade extrema. Um pedido por mim enviado aos industriais
milaneses deu somente 75.000 liras! A situação se torna mais
trágica. Eu sei que por semanas comeram somente espinafres”
(12.9).

7 – Nos auto-destruimos?

Alguns padres perturbam os filhos até induzí-los acreditar


que eu estou fora da Igreja e alguma mãe não recebe absolvição.
“Sou obrigado me defender de misteriosas tentativas de nos dar o
golpe de graça. Uma corrente insidiosa nos é inimiga até o
fanatismo. Conheço bem estas pessoas. É aquela burguesia
clerical, que ensina os jovens para alcançar uma posição, não
para abraçar-se aos oprimidos” (13.8). Explico para quem duvida:
“Quando a Igreja condena o faz com decretos bem claros. Eu e a
Sociedade dos nomadelfos estamos na regra. Diversos dizem
coisas graves contra mim. Se entre os apóstolos havia um Judas,
imaginem entre nós! Era necessária esta prova. Deus a quis, Deus
seja agradecido. Tu sabes que sempre perdoei. Por isso abusam
284

da minha caridade. Diversos de vocês não me amam mais, o vejo


pelas obras. Sabem por experiência que saberei lhes perdoar.
Muitos de maior idade se queixam dos jovens, mas o exemplo
deve vir do alto. Os jovens são todos amáveis, especialmente
quando erram. Quanto ao comer somos perseguidos como todos
os pobres do mundo. Quem nos persegue está muito bem e não
entende o sofrimento. Acontecerão desgraças novas para mim,
porque amo vocês e porque vocês fofocam, mas com a graça de
Deus saberei enfrentá-las” (15.9).
Dario afirma: “Antes nos auto-dissolvemos, agora nos auto-
destruimos”. “Na comunidade há desnorteamento. Notei que a
luta do clero os feriu. Acredito que muitos estão para perder a fé.
Eu tenho bem estreita a justiça e não a rebelião à Igreja, mesmo
que ex iustitia deva jogar pedras de volta” (5.10). Convido os
filhos a verificar a sua vocação: “Gastei a vida para ensinar vocês
uma coisa só: o amor fraterno. Estão certos de amar vocês um ao
outro como eu lhes amei? Temo que alguns nos enganam,
pensando somente em si mesmos. O amor se vê das obras.
Éramos quase mil. Quantos não foram de palavra! Nenhuma
força conseguirá nos dispersar por fora, mas por dentro sim.
Quem se deixa prender pelo egoísmo cai. Não posso acreditar em
quem não ama, porque mata o amor e onde passa deixa as
pegadas do inimigo. Semeei em vossos corações o amor. Se
aproxima o dia no qual o Senhor pedirá os frutos” (8.11).
“Nem o papa nem eu podemos saber o que quer fazer Jesus.
É a profecia da nossa constituição: “Obedecer à Igreja até a
destruição da cidade”. Haverá uma ressurreição? Não depende de
nós. Agora é a fase do barulho das armas, flagelações, calúnias. E
Jesus calava. Quando falava, naquelas horas, condenava e
perdoava. Pouco antes disse a Pedro: Vai embora, satanás. Não
me resta que atirar-me contra a Roma mundana na mais afetuosa
dedicação à Roma oprimida pela sua mundanide. O status
clericalis em mim é uma paradoxal sobrestrutura, porque a minha
lei é ser náufrago. De fato nunca mais irei pregar, porque não
saberia o que dizer. A hierarquia me suporta e não me laiciza para
não criar um escândalo. Vejo clara a minha situação e não digo
aos nomadelfos, porque talvez não entenderiam. O próprio Santo
285

Padre não poderá fazer nada. Um mistério profundo envolve toda


a realidade” (a padre Vincenzo, 5.10).

8 – Amo vocês como filho… E vocês?

“Sempre escrevi ao Santo Ofício na máxima confiança filial.


E o que fez? Um desastrado crime de engano e de fraude no
campo econômico e moral. Inútil continuar tratar-me como um
fanático ou um ingênuo até me reduzir à falência por causa das
minhas heroicas obediências. Erros? O que me importa se ficam
secretos? Quem me disse um só deles? Mas as nossas almas não
valem? Seja talvez inimigo de vocês? Amo vocês mais do que
poderiam imaginar. Tenho direito de ter com vocês a
familiaridade e a confiança que tenho com Jesus. Vocês são meus
padres, não devem me arruinar. Eu não tenho medo de vocês…
Para evitar questões disciplinares, expliquei a vocês
primeiramente o meu plano. Eu amo vocês, mesmo com que
aconteceu, que não aprovo, porque vim para vocês como filho e
vocês pularam em cima de mim como juízes severos. Não
acreditava que estava no tribunal, talvez porque na minha alma e,
aqui eu errei sem me arrepender, não sei me persuadir que um pai
possa se tornar juíz. Antes me abraçaram e mandaram para o
fogo, depois jogaram uma pedra na minha cara, sem me dizer o
porquê. Não é uma acusação, é o choro de todos os feridos
comigo. Vocês agem conosco como se estivessem em frente a
luteranos, liberais, comunistas. Mas não nos mandem ser
burgueses. Peço a vocês, sejam mais plásticos, evitamos um
desastre” (23.8). “Vão ouvir como se explica o evangelho nas
igrejas e perceberão que desastre! Leiam o Osservatore Romano,
que louva pessoas ladras e especuladoras. Temos a corda no
pescoço e continuam em fazer acreditar que não é verdade. Mas
quem na Santa Sê é tão meu inimigo de não ver até que ponto,
para nos destruir, está jogando na desordem a Igreja?” (23.8).
“Qual mistério debaixo desse tormento? Parece que tudo
piore. Desde ‘48 Scelba tinha dito que nos teria disperso. Depois
definia Nomadélfia uma fraude nacional. Fraude de quem? Os
tribunais sentenciaram, que não defraudamos ninguém. Por que
não ver nisso um sinal de Deus que impõe mudar rota?” (a
286

Ottaviani, 25.8). Devem admitir: “Ter afastado os sacerdotes foi a


causa da destruição da cidade. Ninguém pode compreender o
nosso choro, porque ninguém viveu esta vida. Os homens não
querem o nosso amor social e o agrediram, porque não pertencer
a seu teor de vida, os choca” (22.8).
Escrevo ao bispo: “Eclesiásticos respeitados nos difamam e
confirmam que “perdi a graça do estado e desobedeci à Igreja”.
Que um co-irmaõ critique o trabalho público feito por um
sacerdote é um ato leal, mas somente Deus pode entrar nas
consciências. Não quero causas penais ou civis. Nomadélfia não
existe mais, existem seus habitantes destruídos. A vítima é
sagrada também quando no tribunal passa algemada. Se tivesse
tido expressões pouco respeitosas, peço perdão. Aversão, ódio,
irreverência não me pertencem. Não ouso pedir compreensão,
mas um ato de suprema e santa justiça” (13.9). Tudo é preferível:
“Pegaria como uma libertação também a censura e a laicização
como punição com suspeita de heresia. Basta-me et ultra a graça
do batismo. Uma serenidade profunda e até milagrosa invade a
minha alma, não tenho medo de nada” (4.9).

9 - Laicização: uma separação legal

“Nem a suprema autoridade pode aconselhar almas unidas


por relações de responsabilidade ex justitia abandonar os filhos.
Eis o erro dela. Eu sempre obedeci enquanto ela não tem nenhum
mandado de violar os direitos naturais. Inspirações privadas? Não
tenho nem acredito naquelas dos outros. Tu sabes quais íntimas
relações eu tinha com pe. Pio e padre Calábria. Mas para estas
coisas não preciso de interrogá-los para não perturbar a minha e a
alma deles, porque se trata de direito e moral. Eu perdoo, mas não
posso fazer aquilo que nem Deus pode fazer: ser injusto. Roma é
contra nós, nós não somos contra Roma. Não resisto, defendo os
direitos de Deus. Sacerdotes alheios desorientam as almas. 30
famílias sobre 83 foram embora, 290 menores dispersos, 1.141
credores enganados. Pecados gravíssimos contra o Espírito Santo.
O que faz daqueles tesouros o Santo Padre quando um de seus
organismos cometeu uma tal injustiça? Boa fé? Mas então o que é
287

a verdade? Se soubesse o que passamos! Todo dia a fome nos


agride, a miséria nos avilta. De vez em quando um mandado de
prisão. Trata-se de salvar a alma e o meu dever é descer de
cavalo. A Igreja não tem o direito, fosse também para salvar a si
mesma e o mundo inteiro, de sacrificar uma só criatura com um
crime. O fim não justifica os meios. Tenho direito de me laicizar,
porque não sou um eclesiástico, mas um sacerdote despojado pelo
crime deles. Falta so de oficializar o que foi consumido. É uma
graça que peço aos meus tiranos, que não sabem o que fazem” (a
padre Vincenzo, 20.9). “Em 5 de fevereiro marquei o meu fim
como eclesiástico. Tenho direito de sobreviver para remediar as
consequências do desastre. Que os meus padres voltem a serem
padres, laicizando-me. Não há outro caminho” (ao Santo Ofício,
7.9).
Interpelo o papa: “Não posso admitir que a Santa Sê
transforme a casa do Pai em um organismo tirano. Sou
aconselhado pelas autoridades eclesiásticas a pecar contra a
justiça. Com a presente peço a graça da laicização, uma espécie
de separação legal por incompreensão recíproca. Não tem medo
do inferno os perseguidores? Quem nos persegue? A burguesia
clerical que acabará para descristianizar a Itália e tornar suspeita a
Igreja no mundo. Bom serviço a Jesus, que é amaldiçoado pelos
pobres e pelos oprimidos, seus tesouros! Não percebe que a
burguesia é a mais tremenda heresia prática? Como o arianismo,
ameaça esvaziar a Igreja da divindade de Cristo. O problema
social é o problema de Deus Pai. O burguês renega a paternidade
de Deus, portanto não acredita. Vossa Santidade não terá tempo
para ver o colapso, mas não gostaria de estar nos panos de seus
sucessores. Burguesia e marxismo estão para se dar a mão, uma é
o avesso do outro. São sádicos quando pisam nos direitos dos
pobres, convictos de render glória a Deus, ao deus deles. Tente
condenar a concepção burguesa: diriam que o papa não é mais
infalível! Para eles o evangelho é uma ingênua utopia. Peço a
laicização para manter a palavra dada e com isso sirvo e honro a
Igreja. Sobre a injustiça não se constrói nada, o injusto vai para o
inferno. Irei voltar, destruído entre os destruídos; os levarei de
novo para o seio da Igreja, que não pode ficar sem eles, diria,
porque é a Igreja. Foi o Senhor que me trouxe a um bívio: ou
288

pecar de injustiça ou ser laicizado. Guardarei a batina, porque sou


convicto que, acabada a minha nova missão, a vestirei de novo
quando os destruídos como eu, voltarão ao templo, vitoriosos e
santos, para refrescar a Igreja. Não estou delirando, o Senhor quer
isso. E precisa perguntar porque Vossa Santidade permitiu esse
crime” (21.9).
“A Santa Sê não tinha razão, o Governo foi ladrão e sádico
contra nós. Nós somos os imorais, a peste, os inimigos de Deus,
filhos do pecado antes, filhos da prostituta, agora. Scelba disse à
Pirelli: “Você desonra a sua família e a sua classe estando com
aquela gente!”. O Senhor suportará longamente este crime na sua
Igreja? Não acreditamos mais nos perseguidores, sejam eles
revestidos de qualquer forma. Acreditamos em Cristo e na sua
Igreja; por isso obedecemos, pagando de pessoa. Cegamente,
desastrosamente. Ousamos entrar na Santa Sê: nos vomitaram.
Disperdem-se!, que significa: voltem para as paludes, não são
dos nossos. Mas conosco fugirá o próprio Cristo. Minha
laicização é inevitável, está nos planos de Deus, para que não
sejam dilaceradas demais as carnes das suas vítimas” (a
Ottaviani, 21.9).

10 – Bombardear vocês com o amor

“Olhamo-nos na cara: como podemos ser vivos depois de


tantas crueldades? Nos é negado o direito à vida, porque ousamos
dizer que somos irmãos também no estômago. Nós devíamos
manter os filhos com 71 liras ao dia. O café com leite custa mais.
Somos milhões de pessoas que estão cansadas desta barbaridade
e, como Cristo, devemos obrigá-los sentenciar: Seja crucificado.
Dizem que somos rebeldes, perigosos, delinquentes. A nossa
presença na terra é a condenação de vocês, o nosso lamento é
aquele do crucifixo. A perfídia de vocês é tão ofensiva que nos
faz correr para uma única vingança: agredir vocês com o amor,
bombardear vocês com o amor sem calar a verdade, o diabólico
delito de vocês: são os inimigos do homem, gostam da esmola
para ouvir dizer: Obrigado, Deus lhes pague. Mas Jesus condena
vocês: Ai de vocês que dão as migalhas do supérfluo!” (’53).
289

“Não nos entendemos mais, porque se trata de dois mundos.


Se quisesse se salvar, a santa Sê deveria nos laicizar. É a solução
mais razoável. Pensaremos nós, ex stercore, em nos tornar
sacerdotes dos esgotos. Nos crucificamos em seu nome, iludidos
de render glória a Deus. Vocês tentam cristianizar o pecado
social, que gera pobres. Nós percebemos e individuamos os
cúmplices nos que ainda não perceberam. O náufrago vê e escuta;
quem não é, medita nisso. Se se quer entender deve-se pular entre
os náufragos e lutar com eles. Fazer o que de um sacerdote que
não é no estado de vida dos rejeitados? Não repete Cristo, o qual
não se fazia cúmplice das injustiças e por isso acabou na cruz. Tu
sabes quanto eu ame Roma e os confrades. Mas para eles não
poderei mais jogar na água um só menino. Deixar correr, basta.
Desci de cavalo. Nomadélfia não existe mais, Roma a sacrificou a
César. Que os leigos sejam obrigados agir contra os sacerdotes é
infernal. Que Roma erre nestas coisas é muito fácil, porque vive
um costume oposto ao nosso. Eu não tenho medo de Roma.
Nascerá uma ruptura? Quem tem razão? Certamente quem vai
adiante não tem razão. Imagina em que estado se encontre quem
se fez salteador” (a padre Vincenzo, 1.10). “Se como eclesiástico
não posso me defender, não sei por que deva ficar nesse estado.
Para pecar contra a moral? Aviltamentos? Somos jogados nos
esgotos como cachorros. Roma errou. E aqui não supre a Igreja,
porque se veem as vítimas. Jogou-nos na fome cientemente
pecando gravissimamente. E agora devo me precipitar entre as
vítimas, não como salvador, mas como vítima. Tu dizes que
sofrem. Não, foram arrastados e alguém perde a fé. Tenho uma
coisa só para salvar: a alma. Não quero sair da Igreja, me adapto
à moral. Sei somente que um sacerdote e um levita foram adiante
e Jesus os condenou. Polemizo com Roma para mitigar as feridas,
mas aqueles não entendem… O filho cai nos salteadores e o pai
vai adiante. O filho ataca o pai, porque como na sua cara e o pai
se defende! Mas não se podem cometer estes crimes sem negar a
substância da fé. Quem não vê o homem, não vê Deus” (4.10).
“Não sei me acostumar ver a matança dos filhos. Se sobre
eles tivesse caído uma bomba atômica, diria que foi uma
crueldade da política. Mas caíram debaixo dos golpes dos meus
290

padres e não sei por que não percebem e não procuram remediar”
(25.9).

11 – Uma cúria: pouco mais, pouco menos

“Estes dias de espera do responso me encontram sereno.


Penso no sonho de voltar a ser útil à Igreja. Se fosse um profeta
choraria sobre as ruínas de uma cidade falida, que não pode atuar
o plano evangélico. O povo não tem mais ideais, os cultos são
confundidos, o clero não é fermento. Somos todos homenzinhos
incapazes de ver os problemas de Deus. O império romano de
476 a 525 foi reduzido a ruínas; olho o povo moderno e penso
que poderia subir a mesma sorte. Desse passo o cristão se torna
uma obra prima de fariseismo. E a Igreja? Eu estive muito em
contato com Roma. É uma cúria, pouco mais, pouco menos.
Maquiavel dizia que não tem força bastante para começar as
reformas e tem para neutralizá-las. Também os adversários veem
os nossos males. É coisa espantosa ver florescer à sombra das
torres dos sinos um capim tão selvagem como o comunismo
próprio na alma dos explorados, dos mais queridos ao coração de
Deus. O que semearam os nossos padres para nos deixar uma
herança tão árida? E nós continuamos caminhar nas pegadas
erradas deles. Se não será comunismo, será burguesia, de cristão
não há nada” (a padre Vincenzo, 21.10).
Meditando com Cristo, sinto-me em companhia de todas as
vítimas do mundo: “Minha causa é render justiça aos nomadelfos,
sempre porém no barco de Pedro, seja mesmo em companhia dos
ratos e dos gatos na estiva. Rendendo aos monadelfos, a rendo
também aos quais pertencem: os oprimidos. É portanto a causa da
justiça social que Deus me apresenta naqueles dos quais sou
padre. Sou um deles. Não posso traí-los. Seria suicídio, um pulo
na noite de satanás. Devo me debater entre dois mundos: a lei
positiva e aquela da extrema necessidade” (7.10). “Para mim,
para os credores acontecem coisas muito graves. A culpa, agora,
é toda da Santa Sê, porque fiz mil propostas e não quis ouvir-me.
Se não decide sobre a laicização, o que quer de nós? O nosso
extermínio? Não tem o direito. Escrevi até ao Santo Padre, cujo
291

mote é Opus iustitiae pax. A justiça não é feita de palavras, mas


de números e estes não brincam. De 5 de fevereiro a hoje assisti a
tantos crimes que a terra me parece um inferno. Individuamos os
verdadeiros inimigos da Igreja. Conhecemos pelo faro. Até
quando o evangelho diz bem-aventurados os pobres, bem-
aventurados os sedentos de justiça se aceita como um canto à
dor; o feio começa com o Ai de vocês, raça de víboras. Pior ainda
com as parábolas ofensivas contra os ricos e com o Mestre que
excita as massas. Trata-se sempre da luta entre duas correntes,
aquela dos oprimidos, que é da parte de Deus; aquela dos
fariseus, que é da parte do erro. Não sou rebelde, mas vítima. E
os nossos defeitos valem para demonstrar, que aqui há o dedo de
Deus. Se não acreditasse na Igreja teria dito que não é aquela de
Cristo e teria ido embora. Mas corre no meu sangue e também
laicizado seria duas vezes sacerdote e a defenderia do mesmo
modo, porque fora é a perdição” (a Ottaviani, 5.11).
Arrasto a Pirelli para a prova. Ela, uma condessa, vai pedir
esmola para nós entre seus pares e eu cuspo na cara dela: “Não
foi o nome Pirelli, que fez você encontrar aquele pouco esterco de
satanás, tirado ao deus mamona. Foi Jesus. Quer ser uma de nós
em missão entre os ricos? Podemos falar disso com um cheque de
300 mil liras como peagem para passar o fosso. Irá pagá-lo para
mim, depois falaremos a fundo como Deus nos inspirará” (6.10).
Até agora foi uma benfeitora. Chegou o momento de se tornar um
dos nossos, no mesmo nível na desventura? “Querida Nini,
procure acreditar que Deus não precisa de seu dinheiro e
consequentemente nem eu. Se digne querer ter precisão de mim e
consequentemente eu me honro em ter precisão de você” (9.10).
Rebate: “Dei para você um terço do meu patrimônio (acerca de
70 milhões). Se considerasse Nomadélfia a quinta filha, ela teria
já tido mais do que não terão as minhas meninas. Dei a mais do
supérfluo. Eu amo vocês com a alegria de amar vocês e sofri
muito com vocês. Porém não tenho o chamamento, talvez seja
outra minha missão. Não sou dos de vocês, mas penso que posso
ajudar vocês na sua viagem, mesmo vendo-lhes partir. Dentro
nosso comum barco há um lugar também para mim” (10.9).
Tudo ao meu redor tornou-se terra queimada. Penso com a
condessa um extremo plano de salvação: “O problema financeiro
292

com a Santa Sê seja tratado por você como nossa delegada. Eu


trato na representação dos sacerdotes. Será um duelo a fundo, os
poremos com os ombros na parede: enquanto nos afamavam você
nos sustentava. Veio a nos defender no tribunal e eles dormiam
ou deixavam correr …” (19.11). Ela escreve a Ottaviani:
“Imploramos que os sacerdotes sejam laicizados e gostaríamos de
saber se a Santa Sê manterá as promessas de uma intervenção
financeira” (24.11). E a Montini: “Dei aos nomadelfos tudo
quanto tinha de meu. A única coisa que poderia fazer seria de eu
assumir a dívida deles, pedindo um empréstimo à santa Sê, a ser
restituído parcialmente, sem grave incômodo e que garantiria
com letras de câmbio por mim assinadas” (25.11). Pensava: nas
minhas letras de câmbio não acreditam, acreditarão naquelas de
uma condessa, que com esse gesto desafia os prelados. Montini
responde negativamente (19.12). Outro golpe que me leva desejar
a morte: “Queria morrer… Vivo a mesma fé, tenho imprimido o
mesmo sacerdócio, mas vivo num outro mundo. Sim, mistério!”
(a Ottaviani, 28.11).

12 – O inimigo número um: Scelba

“O que aconteceu a nós por causa da Santa Sê, aconteceu ao


povo. Na Itália mais de dois milhões de famílias estão na pior
miséria. Uma espécie de campo de concentração. Se pode ir de
braços dados com os culpados? Fazer obra de persuasão? Jesus
não o fez. Falou sem reticências. Aceitam vocês como capelão
nas prisões e nas oficinas como amortizador das revoltas dos
oprimidos. Nomadálfia não servia ao jogo e a Santa Sê não pode
defendê-la. É evidente pela frase de Ottaviani depois do decreto:
“Foi imposto fora do Santo Ofício”. Pe. Castellano disse: “O
inimigo número um de você: Scelba”. O episcopado em grande
parte teve que se dobrar, se sujeitar ao calcanhar do poder secular
e renunciar a dar pareceres sobre o mal governo da DC” (a padre
Vincenzo, 7.11).
Explico ao papa: “Por que não nos rebelamos? Pelo grande
amor, confiando que a Santa Sê teria acabado para se arrepender
e reparar o mal. É a casa do Pai e tem os meios para remediar.
Reduzimo-nos a traidores. Por que? Para obedecer. Santidade, a
293

diplomacia, também aquela vaticana, tem as pernas curtas. Pode


acontecer que o Senhor se sujeite à violação dos direitos mais
elementares da vida? Os nossos erros acabaram em nada,
enquanto ficou evidente que ela cometeu um abuso de autoridade.
Nós somos escravos e a nossa presença, pela lei da extrema
necessidade, anula o direito de propriedade público e privado e o
condena como um roubo, sendo nos nossos confrontes um imoral
privilégio e uma evidente subtração. Esta é a moral, esse é o
crime dos que o episcopado mandava reeleger sob pena de
pecado. Mas se o costume social deles é amoral, por que se quer
insistir até no L’Osservatore Romano, que como políticos são
católicos? Devem se fazer atormentar invés que pecar. Tocaram
em Nomadélfia e tocaram mal. Pisar em nós é pisar na Igreja.
Nunca será dito que defendendo os arruinados queira dizer
favorecer os comunistas. Um estúpido pretexto. Peço a laicização
e insisto. Se não se apressar, os leigos nos chamarão em juízo. E
eu não serei tão ingênuo de me fazer citar pelos filhos! Eu não
ameaço nada. Deus fará o que? Seguem-me e verão. E, de
surpresa em surpresa, nos arrasta ao Calvário” (9.11).
Também os padres trabalhadores, a modo deles, procuraram
quebrar a camisa de força da casta clerical. “Por que se
reduziram mortificar seu heroico esforço? Outra monstruosa
falência. Disse a um deles: “Trabalhar pode fazer bem, mas é um
fato contingente. Vocês não mudam nada: o povo espera de nós
que sejamos, mesmo como costume social, repetidores de Cristo.
Somente disso necessita”. A Igreja os declarou impotentes da sua
impotência para penetrar as massas, sendo ela mesma planejada
no erro social. Que desolação! Sim, o costume social da Santa Sê,
dos protestantes e da DC é pagão. Enquanto a hierarquia é pronta
em condenar os detalhes de erros, em frente a esta heresia fica
impotente. Se condenasse o erro social, condenaria ela mesma
num mar de problemas. Se quisesse fazer uma mudança de rota, a
periferia não a acompanharia e iria em confusão” (16.11).

13 - “Nem eu, nem você, nem o Santo Padre...”


294

A resposta de Roma não chega. Procuro forçar a mão do


bispo: “A moral me impõe sair da disciplina eclesiástica, sendo
eu em estado de extrema necessidade e de perseguição” (25.11).
Acontece um fato estranho e corro falar com Ottaviani:
“Sabe o que me aconteceu ontem à noite? Chego a Roma e vou
na pizzaria. Entra uma moça toda pintada, com um homem: uma
das minhas filhas. “O que faz aqui?”. “Você me abandonou. Este
senhor me mantem e faço o que ele quer...”. Como se fosse de
propósito tenho debaixo do nariz a prova que os filhos voltam à
delinquência por minha causa. Então eu tenho o dever de dizer-
lhe que, se não corrijo, não posso celebrar, pois sou no pecado.
Vocês me ensinaram a moral. Agora também você sabe e é
corresponsável. Daqui a pouco você vai falar com o papa e ele
também é responsável. Se não me dão a laicização nem eu, nem
você, nem o Santo Padre podemos celebrar. Se não se remedia, o
perdão não existe. Eu fico com a minha responsabilidade que
assumi quando peguei o primeiro filho. Me fiz padre para salvá-
los e agora peço a laicização para salvá-los de novo. Serei sempre
sacerdote”. “Para padre Zeno o sacerdócio corre no sangue, é
absurdo que se laicize”. “Se o tenho no sangue, ninguém irá tirá-
lo”. “Mas que coisa dirá a opinião pública?”. Limpo a garganta e
vou fingir de cuspir no belo tapete vermelho: “Se Cristo tivesse
tido medo da opinião pública não teria ido ao patíbulo dos
escravos. Faço como ele, não me importa nada!”. “Vá a Carpi,
encontrará o decreto”. E, abraçando-me: “Para a Igreja é uma
página obscura” (DZR, 280).
Alguns dias depois o bispo me chama: “Chegou o decreto.
Sinto muito!”. “Sinto eu também. Até hoje sacrifiquei Cristo.
Mas esta manhã imolei Cristo e a minha pessoa. Foi a última
missa”.
Deus tem suas estradas, mesmo se levam ao Calvário e nos
deu uma conclusão: “A laicização colocou a Igreja em frente a
uma realidade: eu, como leigo, confirmava Nomadélfia como
povo civil, um fato que não tem nada a ver com as obras da
Igreja” (DZR, 285).
Compartilho com Ottaviani meus sentimentos: “Recebi a
notícia com profundo reconhecimento: O bona crux... Eu sou
como os jumentos, ando nas bordas dos precipícios para alcançar
295

metas que por outros caminhos não se alcançam. Em cada grave


perigo perco muitos amigos de viagem, mas encontro outros. A
Igreja na hora de Deus sempre me abriu a vereda como fez
também nesta misteriosa ocasião pro gratia. Em ’52 tinha 360
milhões de dívidas e 650 de capital. Hoje, 100 milhões de dívidas
a mais e bens perdidos. Os nomadelfos se reduziram pela metade.
Lá no fundo vejo se delinear algo que parece com um Calvário.
Reze por mim, não esquecendo que a dedicação à Igreja sempre
me custou e me custa um preço igual à vida. Talvez sofri demais”
(a Ottaviani, 30.11).

14 – Os filhos repousam na minha volta

Quase todos me desaprovam. A laicização é considerada


uma defecção sacrílega ou um castigo por culpas graves. Da
minha parte, poucos íntimos. Sinto-me como o náufrago que
deixou atrás a tempestade. Na noite tenho somente o Cristo em
que confiar: “em cima da minha cama a batina e o manto preto.
Imolei-os para os filhos, que repousam alegres, sabendo que
voltei entre eles, pai e para sempre sacerdote. Tinham-
me perdido e me reencontraram. A Igreja, através desse
holocausto me deu de novo a eles. Fiz a vontade do Pai como
Aquele do qual sou sacerdote e irmão. Consumi um daqueles atos
que nem uma fibra desse meu pobre corpo poupou à dor, como a
linfa que goteja do ramo ferido pelo podador que a ama. Amanhã
de manhã qual das minhas filhas pegará a batina e o manto para
guardá-los no armário como relíquias viventes? O pai deles sou
eu. Amam-me e eu os amo. Aquelas relíquias contarão a eles o
amor. Não comentam estes eventos, todos sabem respeitá-los, os
vivem comigo. Por isso nasceram de mim, não da carne nem da
vontade dos homens, mas do meu sacerdócio, portanto de Deus.
Dei tudo a eles. A noite se ilumina pelo raiar do novo dia. Os
filhos repousam na minha volta. Estou cansado demais. Mas o
novo dia me espera. Tenho 53 anos” (2/3.12).
Sem forças, o sacrifício maior da minha vida. A overdose de
dor é um anestésico e vou em letargo por 15 dias: acordo, como,
volto dormir. Meu inconsciente recorre a esta estratégia para não
sucumbir? Os médicos disseram que o coração resistiu graças ao
296

sono (DZR, 280). Quando se chega a estes extremos o que conta


não é a própria pessoa, mas o bem da humanidade e da Igreja. O
meu obedeço fica como um sinal cravado na história e suscita
quesitos que vão além da minha história pessoal. Convencido de
obedecer a uma ordem errada agi contra consciência? Ou se trata
de um gesto extremo [extrema ratio] para dizer à santa mãe
Igreja: deveria resistir; com a cabeça não te entendo, mas a fé me
leva a ver que, mesmo com os limites humanos, és sempre
sacramento de salvação. Escandalizar-se da sua humanidade não
seria como escandalizar-se daquela migalha de pão que suporta a
Eucaristia? Recorro, por istinctum charitatis, à estratégia do grão
de trigo que morre para dar a vida. Continuo me torturar e
torturar: “Pode a Igreja condenar Nomadélfia? Parece-me que
não, porque condenaria a si mesma” (20.8). E continuo bater os
pés, para que uma Igreja ávida de aplausos escute, na minha, a
voz das vítimas: “Por que obedecemos? Faço isso como fazem as
crianças, cientes que sozinhas nada podem. Por que lutamos sem
nos rebelar, mas somente batendo os pés? Fazemos isso como
fazem as crianças, certos que, se teremos razão, o Pai nos a dará e
dobrará a Mãe para que faça isso” (a Ottaviani, 12.11.’54).
O bom senso da fé [sensum fidei] me ensina depor a batina e
o manto sobre a Igreja, De Gasperi, Scelba, Pio XII, Schuster,
Pizzardo, as molecagens dos meus meninos, o Santo Ofício, o PC
e a DC, o partido dos padres, para cobrir como fizeram os filhos
de Noé, as fragilidades do povo e da Mãe. Sem justificar o
injustificável. E eu, livre de todo impedimento, continuo
abençoar a família humana como no campo de Fossoli, no por do
sol, enquanto as famílias se apresentam para a bênção vespertina:
pego o menor, o levanto sobre o mundo e com ele traço no ar um
sinal de cruz. Não é o primeiro fotograma que ficou impresso da
vida, na cama grande dos pais? Hoje, é a Mãe Igreja que
escancara os braços para abrir a janela da história, formando uma
cruz sobre o por do sol vermelho como um mar de sangue.

Nota conclusiva
297

Laicizado, passando fome, continuamos a peregrinação no


deserto da Igreja para a nossa terra prometida: doando-lhe um
povo que diga com as obras “Sejam nossos imitadores como nós,
enquanto povo, somos imitadores de Cristo”. Entre nós não há
rico e pobre, patrão e servo, benfeitor e beneficiado, assistente e
assistido. Todos filhos, todos irmãos, partimos o pão certos de
não comer a nossa condenação.
Constrangidos recorrer a sacerdotes externos para a
assistência e a educação religiosa, ao longo dos anos penetra em
mim a necessidade de transmitir a Igreja através do meu carisma.
Nos anos ’60 o tempo é maduro e peço retomar o exercício do
sacerdócio. O Santo Ofício se certifica que podem continuar sem
mim como chefe civil e que as dívidas sejam saldadas. Eu
proponho: “Se somos uma população deve ter o pároco. Poderiam
me nomear”. Aos 6 de janeiro de 1962, na comoção geral, celebro
a minha segunda primeira missa, em qualidade de pároco da
primeira paróquia comunitária. A Santa Sê em troca quer as
minhas demissões de chefe da comunidade, a elaboração de uma
nova Constituição; a apresentação do orçamento econômico; o
empenho em não acolher um número de abandonados superior às
possibilidades financeiras.
Por dez anos (1953-1962) vou a missa como um leigo
qualquer. Deixo imaginar o meu sacrifício ouvindo certas
pregações! A única coisa à qual me agarro com as vítimas é
aquela migalha de pão levantada sobre o mundo, que diz à
história a verdade última sobre o homem: “Tinha fome de irmãos
e vocês se fizeram meus irmãos, um povo de irmãos. Era eu que
estava neles”.

A última entrevista (de Antonio Donat Cattin, jornalista RAI,


4.1.1981)

“Por toda a vida procurou o homem. O encontrou a 80 anos?”.

“Encontrei o homem em mim, antes de tudo. Vi em mim mesmo


todos os homens. O homem, quantos tipos! Um mais vivo do que
outro. Se todos entrássemos em acordo: nós somos homens, todos
iguais… Mas o que quer dizer persuadir o povo que somos homens?
298

Se um conseguisse ver o homem no homem, o mundo não faria a


guerra. Antes ou depois explodirá e a culpa é nossa, também minha,
sinto-me responsável. O que se pode fazer? Procurar o homem, amar o
homem. Fazem iniciativas mas não duram, porque não se fazem
irmãos. Não se faz assim para fazer a guerra. Há pouco em que
esperar, se não aparecem movimentos desarmados que façam as
contas, juntem as riquezas e comecem dividir”.

“Qual é portanto o caminho para salvar a humanidade?”.

“A primeira coisa é a justiça. Antes não somos cristãos, antes


somos homens. A solidariedade humana é escrita na natureza, não na
religião. Que queres pregar se és injusto? Façamos as contas, este é o
único caminho para criar o mundo novo. São brancos, vermelhos, de
todas as tintas, mas têm uma sede de verdade que mete medo… Vimos
pessoas que não acreditavam em nada, mas fizeram coisas grandes em
favor do homem.
Também esse encontro entre nós, por exemplo, nos faz sentir a
humanidade. A única coisa que fica, quando nos deixamos, é que nos
encontramos homens. O contato chegou, houve uma corrente entre
nós, nos sentimos irmãos, homens. Imaginem se começarmos todos
dizer que somos homens!
Nós fomos mais nas praças e nos teatros que nas igrejas. É da
natureza de Nomadélfia se fraternizar com o povo. O povo é a minha
vocação. E deve ser arado, como se ara um campo, deve ser
atormentado porque existe na terra uma força só que pode transformar
a vida: aquela do povo”.

Como um testamento

Poucos dias depois, atingido por um ataque cardíaco, diz aos


filhos: “Gosto de partir para a vida eterna. Senhor, seja feita a Tua
vontade; vamos fazê-la juntos. Doamos ao mundo um mundo novo
que há milênios procuraram e vocês o encontraram.
A vida. Esta é a vida! Mah! Eu não sei julgá-la. Vivo. Quanta dor
em mim! E desabei rapidamente. Eh! Meu querido Senhor, sempre Ti
fui fiel. Cometi pecados, mas os arremessei como o vento na neve.
Sempre fiz a Tua vontade. Nem sei se estou morrendo, se estou mal,
299

não sei nada. Estou bem no sofrimento. Nunca desde menino pensei
que gostasse do sofrimento, todavia estou gostando… Se for para lá,
volto passear por aqui. Conheci sobre a terra um mundo novo, os
filhos de Deus, os verdadeiros filhos de Deus; os encontrei sobre a
terra e os encontro no Céu. Farão coisas em que ninguém nunca
pensou e já fizeram grandes coisas. O mundo terá necessidade e a
tem… Nomadélfia. E o Senhor precisa de Nomadélfia, o Senhor
precisa de nós. Sempre, aqui e acolá. E lhe fizemos um prazer em
serví-lo, em amá-lo. Teremos pecado, mas a realidade é que nós somos
grandes amigos de Deus e o amamos. Eu não conheço as medidas de
Deus, porque é infinito, porém humanamente falando o medimos e o
temos abraçado: o abraçamos.
Isso parece um testamento; se for, agradeço ao Senhor e se não
vamos continuar.
O mundo é de vocês, queridos filhos, o amor é de vocês. E sejam
dignos! Se retomo a vida continuo. E se for para lá… Mah! Parece-me
já estar metade por lá. Tenho a sensação de estar metade por lá …
Uma coisa é certa, que agarramos o mundo, o temos nas mãos.
Que eu possa sempre dizer: “Cupio dissolvi et esse cum Cristo”.
Fui com Ele, estou com vocês; com Ele e com vocês é a mesma coisa!
Sou atingido por tremendas dores e pela alegria de ter amado tantos
belos filhos. Mah!
Esse será um testamento, será um encontro, será… Vai Senhor
entre os meus filhos, vai, e leva a Tua vida. Eu sempre vi vocês e senti
no meu coração e isso sempre terão. Abençoo todos vocês, durmo, não
durmo”.

[Pe. Zeno Saltini (1900-1981), fundador de
Nomadelfia (Nomos=lei, adelphia= fraternidade) quer demonstrar que
as famílias, não só padres e freiras, podem aplicar o
evangelho, transformando todas as realidades da vida humana:
casamento, educação, trabalho, sociedade, etc. Porque: 1° “Nao é pela
carne, o sangue, a vontade do homem, mas de Deus nascemos; 2°
“Tudo aquilo que é meu é teu, aquilo que é teu é meu. Assim sejam
eles”. Seus seguidores, adultos, voluntários, aceitam o desafio de viver
300

o evangelho até as extremas consequencias, isto è até o heroísmo. Na


comunidade (Itália) hoje tem cerca de 50 famílias com
filhos próprios e filhos abandonados. Entre os membros da
comunidade não há ricos e pobres, patrão e operário, benfeitor
e beneficiado, assistente e assistido, mas todos
são irmãos também como famílias. De dia partilham a vida na casa
comum onde as mulheres se revesam cuidando dos meninos, da
cozinha, da lavandaria, etc.e os homens trabalham nas impresas
internas. Ao redor tem casinhas separadas para os casais e os filhos
pequenos, os rapazes, as mocas. Essa è a prova que o evangelho não è
utopia.

fausto.marinetti@gmail.com -   Veja o site da comunidade


www.nomadelfia.org
e a fiction da RAI TV italiana: https://www.youtube.com/watch?
v=q5tj7DBXmVc

Você também pode gostar