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Sumário
Capa
Folha de rosto
Sumário
O terno que não vesti
As origens
O menino
O menino doente
A avó espanhola
O colegial ateu
Professor de cursinho
A maternidade
A culpa
Sanitarista frustrado
Pobreza, desnutrição, endemias
Os anos de chumbo
Boanerges
A convocação
Seu Osvaldo
A oncologia
A quimioterapia
Projeto Genoma
Prepotência
O SUS
Estratégia Saúde da Família
Os convênios
Na União Soviética
Medicina socialista
A bomba atômica
Instituto Karolinska
Compulsões
O cigarro
No olho do furacão
A enfermaria
Na rádio
Na cadeia
O mundo do crime
A biotecnologia
Entre cientistas
Projeto Rio Negro
Os antirretrovirais
A ovelha Dolly e o coração de porco
Crescei e multiplicai-vos
O médico doente
As enfermeiras
Medicina no século XXI
Doentes saudáveis
Os males da alma
A internet
As mulheres
Coisa de mulher
A dor alheia
A convivência com a morte
A ciência e a arte
O envelhecimento do médico
Epílogo
Sobre o autor
Créditos
O terno que não vesti
correr maratonas.
Embora a desigualdade social persistisse, o
crescimento econômico das décadas anteriores se
refletia na melhora das condições de vida e da saúde dos
brasileiros. A média da expectativa de vida ao nascer,
que em 1967 mal atingia 55 anos, já havia chegado aos
setenta na virada do século.
O envelhecimento mudara as características e o perfil
epidemiológico da população. O país predominantemente
agrícola tinha visto a maioria de seus habitantes migrar
para as cidades, onde o saneamento básico não
alcançava a maior parte dos migrantes. Ainda assim, as
endemias rurais deixaram de ser as doenças mais
prevalentes.
A segunda metade do século xx experimentou grandes
avanços no campo da agricultura e na tecnologia de
armazenagem, conservação e processamento de
alimentos. Entre nós, a fundação da Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) permitiu criar uma
agricultura tropical que tornou produtivas as terras de
extensas regiões do Centro-Oeste e possibilitou
desenvolver lavouras menos dependentes do clima no
Nordeste.
Na história da humanidade, nunca houve tanta fartura
de alimentos de qualidade acessíveis a grandes massas
populacionais. No Brasil, gradualmente, a fome ficou
restrita a certas épocas do ano e em pequenos bolsões
de regiões distantes. Essa realidade se modificaria com o
surgimento da pandemia do novo coronavírus em 2020,
que reconduziu a insegurança alimentar à periferia dos
conglomerados urbanos.
Os anos 1990 já haviam assistido à expansão da
indústria alimentícia, potencializada pelas campanhas
publicitárias nos meios de comunicação de massa.
Biscoitos, salgadinhos, iogurtes doces, achocolatados,
sucos açucarados e refrigerantes tamanho família
entraram na casa dos mais desfavorecidos, que
encontraram opções mais práticas e baratas do que
frutas e legumes. Ao mesmo tempo, a presença da
mulher no mercado de trabalho dificultava a preparação
da dieta baseada no arroz com feijão, anteriormente
presença universal na mesa brasileira.
A consequência foi o consumo explosivo de alimentos
de baixo custo, ricos em carboidratos, gorduras e
conteúdo calórico. Acompanhando a tendência mundial
e, principalmente, a de países como Estados Unidos,
México e Egito, os brasileiros começaram a ganhar peso.
Mulheres, homens, adolescentes e crianças, brancos,
negros, descendentes de asiáticos e até indígenas em
contato com brancos engordaram.
A mudança dos hábitos alimentares veio acompanhada
de dois outros fenômenos que contribuíram
decisivamente para a mudança do perfil epidemiológico:
a vida sedentária e o crescimento rápido da população
na faixa etária acima de sessenta anos.
A tríade obesidade, sedentarismo e envelhecimento
criou as bases para a mudança radical do padrão
epidemiológico; migramos daquele das endemias rurais
para o das doenças crônico-degenerativas: hipertensão
arterial, diabetes, doenças reumatológicas, problemas
ortopédicos, doenças pulmonares obstrutivo-crônicas,
degenerações neuropsiquiátricas, enfermidades crônicas
associadas ao aumento do risco de infartos do miocárdio,
derrames cerebrais, insuficiência renal crônica, perda de
visão, obstruções arteriais, demências, transtornos
psiquiátricos e outras condições que demandam
assistência médica continuada, exames laboratoriais,
imagens de apoio, tratamentos dispendiosos,
hospitalizações frequentes e abordagens
multidisciplinares, com a participação de enfermeiras,
fisioterapeutas, psicólogas, fonoaudiólogas, assistentes
sociais, terapeutas ocupacionais.
Nos anos 1960, qualquer um de nós era capaz de tratar
pacientes com hipertensão ou diabetes, porque só
dispúnhamos de meia dúzia de medicamentos. Hoje, há
tantas classes (cada uma com diversas drogas) deles,
que o ideal é encaminhar os pacientes para os
especialistas.
A assistência médica se tornou dependente de
instalações ambulatoriais, hospitais equipados,
laboratórios clínicos, serviços de radiologia e, sobretudo,
de recursos humanos.
Para aumentar a complexidade, cinquenta anos atrás o
país não prestava assistência à maioria dos brasileiros,
descaso inaceitável depois da criação do sus. A
necessidade de dar acesso à saúde a toda a população
criou um enorme desafio que o sistema único tem
procurado enfrentar: assistir os 170 milhões de
habitantes que dependem exclusivamente do sistema
único e também aqueles que a saúde suplementar deixa
de atender por alguma razão.
Apesar do financiamento insuficiente, das
interferências políticas, da definição inadequada de
prioridades, da corrupção, das mudanças bruscas de
comando e da descontinuidade de programas
importantes, o sus tem conseguido prestar serviços de
saúde que jamais chegariam a tantos se ele não
existisse.
Quando lembro que minha infância não teve pediatra
nem vacinas e que, ao me formar, quem trabalhava sem
carteira assinada era classificado como “indigente” ao
chegar aos hospitais, fico impressionado como
conseguimos implantar um dos serviços de saúde pública
mais respeitados do mundo.
Desafio até certo ponto semelhante é enfrentado pela
saúde suplementar, obrigada a se ajustar aos tempos
com níveis baixos de inflação, realidade que decretou o
fim da especulação desenfreada. Sem os lucros auferidos
no mercado financeiro, as operadoras se viram forçadas
a lidar com os custos crescentes da medicina — que
aumentam quase 20% ao ano por causa da incorporação
de novos tratamentos e tecnologias —, sem ter a
possibilidade de repassá-los integralmente a seus
usuários, empobrecidos pelas sucessivas crises
econômicas que têm atormentado o país nas últimas
décadas.
Esse sistema híbrido, meio público, meio privado, deu
origem a contradições que se prestam a mal-entendidos
constantes: assim como os que dependem do sus sofrem
com as dificuldades para conseguir consultas e
internações, os que contratam um plano de saúde
reclamam que o médico não lhes dá atenção, que os
exames demoram para ser marcados e que lhes foi
negado determinado procedimento.
O problema é que nem o sus nem a saúde suplementar
estavam preparados para enfrentar a mudança do
padrão epidemiológico da população que envelhecia
numa velocidade bem maior que a dos países
industrializados.
Esperar que as pessoas adoeçam para só então tratá-
las é uma política suicida para qualquer sistema de
saúde. Ou interferimos com estratégias de prevenção, ou
faltarão recursos financeiros para mantermos a
assistência médica no país.
Veja o caso dos Estados Unidos, país que investe em
saúde 17% ou mais de um Produto Interno Bruto de 19
trilhões de dólares anuais. São cerca de 3,2 trilhões de
dólares para atender os que procuram os serviços de
saúde, ou seja, o país gasta com saúde cerca de 50%
mais do que o pib inteiro do Brasil, uma das doze maiores
economias do mundo. Para justificar tamanho
investimento, quantos anos deveria viver o americano
médio? Cem anos? Pois em 2019 vivia em média 78,8
anos, dez anos menos do que os japoneses e um pouco
menos do que catarinenses e paulistas.
A conclusão é lógica: dinheiro é condição necessária,
mas não suficiente para manter sistemas de saúde de
boa qualidade.
O exemplo americano é didático. Os Estados Unidos
chegaram a essa situação porque adotaram um modelo
centrado na assistência médica privada, que deixou para
trás a prevenção e a atenção primária.
A consequência mais eloquente dessa política está
refletida no aumento do peso da população: 42% dos
americanos adultos estão na faixa de obesidade (imc >=
30), enquanto os que sofrem de obesidade grave (imc >=
40) são 18% dos adultos. No total, há 99 milhões de
adultos obesos no país. Os índices de excesso de peso e
de obesidade também são crescentes em crianças e
adolescentes.
Um estudo realizado pela Escola de Saúde Pública da
Universidade Harvard, publicado no The New England
Journal of Medicine, fez uma projeção apontando que, se
a tendência atual se mantiver, em 2030 cerca de 50%
dos americanos adultos serão obesos, um contingente de
164 milhões de pessoas. A obesidade grave estará
instalada em 25% dos adultos, ou seja: um em cada
quatro adultos será candidato à cirurgia bariátrica.
Desconfio que nem o pib americano inteiro seria
suficiente para arcar com os gastos de complicações
ortopédicas, doenças cardiovasculares, diabetes, câncer
e demais enfermidades crônicas associadas ao acúmulo
excessivo de gordura.
Nós, no Brasil, caminhamos na esteira da epidemia
deles. A Pesquisa Nacional de Saúde realizada em 2019
mostrou que 60% dos brasileiros adultos estavam acima
do peso (eram 40% em 2003) e que 30% dos adultos
estavam obesos (eram 12% em 2003).
Nos meus anos de faculdade, não tivemos uma aula
sequer sobre obesidade, problema entendido na época
como restrito àqueles que abusavam da comida. Essa
visão equivocada e preconceituosa retardou a chegada
da ciência moderna a essa área da fisiologia, ignorância
que explica as dificuldades para ajudar quem precisa
perder peso. Afinal, o que podemos oferecer além da
recomendação de que façam exercícios e reduzam o
aporte calórico?
Na minha experiência, grupos de autoajuda que
reúnem pessoas interessadas em emagrecer conseguem
fazer mais do que os médicos. O mesmo acontece com
os Alcoólicos Anônimos e os Narcóticos Anônimos no
tratamento do alcoolismo e do abuso de drogas ilícitas,
respectivamente. Quando leigos obtêm resultados
superiores na abordagem de determinado problema de
saúde é porque a medicina está muito atrasada nessa
área.
Infelizmente, as faculdades ainda não preparam os
alunos para lidar com a magnitude do desafio criado pela
obesidade e pelo perfil epidemiológico da sociedade em
que atuarão. Os anos ganhos na expectativa de vida nas
últimas décadas ficam ameaçados pela disseminação
epidêmica de um agravo à saúde, enquanto as escolas
médicas formam profissionais sem dar prioridade a ele.
Mudanças da sociedade demoram a ser percebidas pela
academia.
Esperar uma pessoa desenvolver obesidade grave para
tentar tratá-la sem dispor de tratamentos eficazes é
frustrante, sobrecarrega o sistema de saúde e custa caro.
É evidente que todos os esforços devem se concentrar na
prevenção, tarefa que envolve a educação desde a
infância, campanhas de esclarecimento pelos meios de
comunicação de massa, medidas governamentais que
dificultem o acesso a alimentos de alto teor calórico e a
bebidas açucaradas, e a formação de profissionais
especializados nas áreas de nutrição e da atenção
primária para orientar aqueles com tendência a ganhar
peso antes de se tornarem obesos.
Doentes saudáveis
Capa
Alceu Chiesorin Nunes
Preparação
Ciça Caropreso
Revisão
Ana Maria Barbosa
Clara Diament
Angela das Neves
Versão digital
Rafael Alt
isbn 978-65-5782-389-7