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Profº Jonas

ESTUDO DAS OBRAS LITERÁRIAS

O VENDEDOR DE PASSADOS
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
Esquema Literário:

ESCOLA LITERÁRIA: LITERATURA COMTEMPORÂNEA


ANO DE PUBLICAÇÃO: 2004
GÊNERO: NARRATIVO - ROMANCE
DIVISÃO DA OBRA: 32 CAPÍTULOS
NARRAÇÃO – 1ª PESSOA (EULÁLIO UMA OSGA – LAGARTIXA)
TEMAS: CRÍTICA À SITUAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL DE ANGOLA NUM CONTEXTO PÓS-COLONIAL

• O Vendedor de Passados foi publicado a primeira vez em 2004 pela editora Dom Quixote.
• O livro, dividido em 32 capítulos, constitui uma crítica à situação política e social de Angola num contexto pós-
colonial, tendo como protagonista Félix Ventura, um homem que passados ilustres, ainda que falsos, a quem os
deseja.
• Escrito entre 2003 e 2004, quando Agualusa já tinha voltado a morar em Lisboa, O Vendedor de
Passados foi publicado em 2004, em Portugal, e logo depois em Angola e no Brasil.
• O livro foi traduzido para vários idiomas.

Contextualização da ação

A ação decorre em Luanda durante a Guerra Civil Angola conseguir a sua independência em novembro de
1975, deixando de ser uma colônia de Portugal. Antes disso, na década de 1960, um movimento anticolonial
tinha-se manifestado no território angolano, sendo composto por três grandes grupos: MPLA, FNLA e UNITA.
Partilhavam o mesmo objetivo, a independência de Angola. Contudo, quando tal sucedeu, dois desses
movimentos de libertação (MPLA e UNITA) entraram numa luta pelo poder entre si, surgindo, assim, a Guerra
Civil.

• O romance, escrito por José Eduardo Agualusa e publicado em 2004, é uma imensa sátira política e
social da Angola atual.
• Em O Vendedor de Passados, Agualusa conta a história de Félix Ventura, um albino que tem como
profissão inventar passados gloriosos aos seus clientes.
• Em um enredo que mistura "antigamentes" fictícios com realidades não menos verossímeis, o leitor acompanha
o drama de uma osga que convive dramaticamente com as lembranças da sua encarnação humana, a insistência
de um homem em perseguir e validar o passado comprado, e a agitação constante mas sutil de uma Luanda
habitada por valas de lixo, por loucos e por elites que o são por engano.
• Uma ideia perigosamente interessante, extravagante, misteriosa... que mistura as metáforas e analogias com o
Mundo Natural.
• Povoado de personagens pitorescos como a osga, um assombro, sempre atenta a tudo e a recordar
o tempo em que era humana.
• Quem narra esta história é Eulálio, um dos moradores da residência de Félix Ventura. Eulálio é uma osga-tigre
(espécie de lagartixa malhada) de quinze anos que tem a capacidade de dar gargalhadas como os seres
humanos.
• Essa habilidade do animal chamou a atenção do morador da casa a ponto de Félix passar a conversar com o
bichinho (conversa em tom de monólogo, obviamente, já que a osga não fala).
• Foi o albino quem deu o nome de Eulálio ao pequeno réptil.
• O corpo da lagartixa é, na verdade, habitada pela alma de um (antigo) homem que, na vida passada,
cometeu suicídio.
• Enquanto tenta recordar os dramas de sua encarnação anterior e tenta fugir dos seus predadores atuais (Eulálio
tem tanto medo de ser comido por um animal maior que quase não sai da casa de Félix), a osga acompanha a
saga do amigo-anfitrião e dos seus visitantes: José Buchmann, Ângela Lúcia e Edmundo Barata dos Reis.

PERSONAGENS DA OBRA

Félix Ventura: é um homem albino, residente em Luanda, que ganha a vida a criar passados nobres a quem os
deseja. Abandonado pelos progenitores em bebê devido a sua condição, foi encontrado por um alfarrabista –
pessoa que vende livros usados – que o criou. Sendo dominado pela solidão a nível pessoal, acaba por se refugiar
totalmente no seu trabalho. Contudo, conhece uma mulher que o fascina, Ângela Lúcia, por quem eventualmente
se apaixona.

Eulálio: é o nome da osga que habita a casa de Félix Ventura. Em tempos, a lagartixa teria sido um ser humano,
reconhecendo-se ainda em si algumas características da sua forma anterior, nomeadamente o riso, que permite
que a sua presença seja frequentemente notada. Toda a história é narrada por si, surgindo dois planos narrativos
que correspondem a sua visão enquanto animal e à que possuía enquanto homem.
José Buchmann: anteriormente conhecido como Pedro Gouveia, José Buchamann é um homem estrangeiro que
recorre a Félix Ventura para que este lhe idealize um passado, bem como uma nova identidade pela qual está
desesperado (nascendo, assim, José Buchmann). Adotando essa nova vida, assume-se como um fotógrafo
profissional, natural de Chibia, que reside de momento em Luanda. É por meio de Félix que Buchmann irá
reencontrar a sua sua filha, Ângela Lúcia, bem como o homem responsável pelo assassinato da sua mulher,
Edmundo Barata dos Reis.

Ângela Lúcia: é uma mulher que Félix Ventura conhece e pela qual fica enamorado, sendo correspondido. É
caracterizada pela esperança que tenta transmitir a todos os que a rodeiam, algo que se reflete no seu trabalho
enquanto fotógrafa, visto que tenta apenas captar locais e momentos reflitam positividade, mantendo-se afastada
da atmosfera caótica que domina Luanda após os efeitos trágicos da guerra. É filha de José Buchmann, algo que
apenas descobre quando se vê reunida com este e com Edmundo Barata dos Reis, assassino de sua mãe, em
casa de Félix.

Edmundo Barata dos Reis: é um mendigo que é fotografado por José Buchmann na cidade, quando este tentava retratar a
desgraça que se fazia sentir em Luanda. Ex-sargento de Segurança do Estado, acabou por perder tudo o que tinha, ficando
na miséria. É o responsável pelo assassinato da mulher de José Buchmann e pela tortura à filha dele, Ângela Lúcia.

ENREDO

• O Vendedor de Passados retrata a vida de Félix Ventura, um homem albino, natural de Angola, cuja estranha
profissão se baseia na idealização de passados honrosos fictícios.
• Entre os seus clientes destacam-se empresários, políticos, generais, bem como grande parte da burguesia
angolana.
• Têm todo o reconhecimento social no presente novembro de 1975.
• O conflito foi uma luta de poder entre dois ex-movimentos de guerrilha anticolonial, o comunista Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a anticomunista União Nacional para a Independência Total de
Angola (UNITA).
• A guerra foi usada como campo de batalha de uma guerra por procuração da Guerra Fria por Estados rivais
como União Soviética, Cuba, África do Sul e Estados Unidos.

A OBRA

• A necessidade de uma nova identidade manifesta-se desde o início do livro, sendo que o trabalho de Félix
Ventura auxilia exatamente aqueles que procuram uma genealogia diferente da que possuíam na realidade,
ansiando por ancestrais fictícios que possam ser associados ao presente ilustre que vivem.
• Esta vontade e urgência de colmatar as falhas do passado resulta uma crítica social em que são condenados os
pertencentes à alta burguesia por desejarem aparentar ter vindo de uma família nobre à qual nãopertencem
verdadeiramente.
• No entanto, no caso de José Buchmann, o seu pedido a Félix foi feito com o propósito de tentar ultrapassar
acontecimentos que o atormentavam.
• Buchmann sentiu-se na necessidade de começar a incorporar a nova identidade que lhe foi
idealizada,transformando-se, ao longo do tempo, nessa nova pessoa.
• Assim, apagou da sua memória as recordações do sofrimento que viveu quando assassinaram a sua mulher e
maltrataram a sua filha, adaptando-se a sua nova realidade.
• Devido a esta sua incorporação da nova identidade, o narrador, ao relembrar José Buchmann, chega a afirma
que:

Olhando para o passado, contemplando-o daqui, como contemplaria uma larga tela colocada a minha frente,
vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim um estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém, se
fechar os olhos para o passado, se o vir agora, como se nunca o tivesse visto antes, não há como não
acreditarnele – aquele homem foi José Buchmann a vida inteira.

Tópico: figura feminina

Ângela Lúcia é vista como alguém que tem dor de alma, resultante da tortura da qual foi vítima quando nasceu
(Edmundo Barata dos Reis queimo-a com cigarros, tendo, em seguida, assassinado sua mãe. A amada de Félix
nasceu num período em que muitos angolanos foram atacados e mortos pela polícia política, dado que “ela
nascera em setenta e sete, era um fruto dos anos difíceis”. Dessa forma, o corpo da mulher em O Vendedor de
Passados funciona como o local de inscrição de uma história de atrocidades da responsabilidade do sistema
político do pós-guerra de descolonização de Angola, época em que as mulheres eram vistas como mais
vulneráveis aos abusos mencionados, uma vez que os homens serviam, na sua maioria, ao sistema referido.

No entanto, Ângela Lúcia é, simultaneamente, a única personagem que traz consigo uma mensagem deesperança
num universo que estaria, à partida, condenado à ruína e ao sofrimento. Essa sua forma de estargera a
possibilidade de superação do passado, algo perceptível nas atitudes dela, nomeadamente na sua visão positiva
de tudo o que fotografa e na sua contínua vontade de não reviver assuntos que carregavam conotações negativas,
como se verifica quando José Buchmann lhe conta acerca dos países em guerra que já tinha fotografado, tendo
a jovem respondido de imediato “Basta! Não quero que as suas memórias deixem esta casa
suja de sangue”.
No livro também surge um tema caro à literatura universal: a meta-literatura. Por exemplo, contar a história
deum escritor. Meta-literatura um tanto alterada em O Vendedor de Passados, porém presente. O ofício de criar
histórias e personagens de Félix Ventura para seus clientes é em muito similar ao de um escritor.

O tema recorrente do autor está presente também nesse romance: a história de Angola, sua herança de Portugal
e as relações existentes entre todos os países ligados por esse idioma comum, a língua portuguesa.

ENREDO - RESUMO

• Nesta história, um albino morador de Luanda, capital de Angola, elabora árvores genealógicas em troco de
pagamento. Uma atividade um tanto quanto estranha exercida por um esquisito personagem principal - o
vendedor de passados falsos, chamado Félix Ventura e uma lagartixa que, na verdade, comanda toda a
narrativa.
• Esta, uma osga, espécie de lagartixa, vai contar como um negro albino, Félix Ventura, fabrica histórias de
vida para seus clientes, ou seja, cria uma genealogia de luxo para quem o contrata.
• São prósperos empresários, políticos e generais da emergente burguesia angolana que têm um presente e um
futuro próspero, mas falta-lhes um passado que não seja comprometedor. E arquitetar esse passado é uma
empreitada no qual, o personagem principal Felix se encarrega.
• Dois seres, um albino e uma osga (lagartixa), vivem à sombra e compartilham vivências, sonhos e criações.
• A osga busca na sua pretérita vida humana vestígios de outra reencarnação, a fim de compreender
suas emoções e reconhecer os vestígios literários e a sua aguçada percepção.
• O albino, Félix Ventura, busca a realização de um presente para si alicerçado nos alfarrábios que lhe serviram
de berço.
• A relação da osga (Eulálio) com a sua casa é visceral. A osga percebe sua respiração, penetra-a em busca do
útero "O corredor é um túnel fundo, úmido e escuro, que permite o acesso ao quarto de dormir..."
• A casa é o seu universo possível e seguro, distante dos campos minados de Angola, onde são revelados os
segredos e fantasias que criam o presente para os que buscam novos passados. Também é o ambiente
protegido para o resgate da vida de Eulálio, um ser comum que viveu quase um século na pele de homem sem
se sentir inteiramente humano e que agora se lamenta desses quinze anos com a alma presa ao corpo de
lagartixa.
• Felix está muito bem nessa empreitada, leva uma vida razoavelmente confortável até que uma noite essa rotina
é rompida com a chegada de um estrangeiro, fotógrafo de guerra, que quer um passado completamente novo.
De preferência que seja uma identidade angolana. Com o nome recente, José Buchmann, e uma fajuta e
fabulosa árvore genealógica, passa a buscar os personagens a fim de confirmar sua existência fictícia.
• José Buchmann procura o seu passado e, à medida que vai sendo criado por Félix Ventura, o encontro
com algumas situações surpreendem com a possibilidade da coincidência com o absurdo.
• A busca de sua suposta mãe, a aquarelista norte-americana Eva Mullher, a narrativa do corredor cheio de
espelhos e de sua povoada solidão no apartamento em Nova Iorque, a aquarela encontrada e o anúncio de sua
morte na Cidade do Cabo, tudo vai colorindo e recheando essa nova identidade.
• Entre uma venda de passado e suas implicações, são apresentados os problemas de uma osga (fugir de lacraus,
e refrescar-se do calor) e seus sonhos. E temos ainda que contornar o problema de um narrador animal que age
como um ser humano sem uma nítida compreensão animal do mundo.
• A lucidez da osga é admirável: A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do
meu passado humano. O passado costuma ser estável. Está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.
• Sua mãe, de Eulálio, aparece em seus sonhos (memórias da vida humana), fala sobre a realidade e o sonho e
aconselha: Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de
tudo que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolha os livros.
• Outra passagem interessante e que nos chamam a atenção: os inúmeros seres que precisam de uma trajetória
para legitimar as máscaras que vestem demonstram como os personagens históricos são imortalizados com
passados maquiados, enfeitados de fatos falsos, numa ficção memorialista.
• Numa das biografias forjadas, Félix se destaca ao criar para um de seus clientes um livro de memórias de um
Ministro (A vida verdadeira de um combatente), que credita a este cliente, homem público, um conjunto de fatos
notáveis para confirmar o personagem idealizado e contextualizado com as suas pretensões futuras.
• Contudo, o aparecimento do mendigo Edmundo Barata dos Reis, comunista assumido, ex-agente e ex-gente
nas palavras do próprio, cria novos rumos para a narrativa.
• Os personagens e seus duplos convergirão para um desfecho inusitado, consagrando a narrativa vertiginosa e
poética de José Eduardo Agualusa.
• Temos também, para complementar, uma trama de amor: Félix Ventura, vendedor de passados, apaixona-
se
• por Ângela Lúcia, mulher que gosta de fotografar nuvens.
Trecho do livro

Félix Ventura estuda os jornais enquanto janta, folheia-os atentamente, e se algum artigo lhe interessa assinala-o
a tinta lilás com uma caneta. Termina de comer e então recorta-o com cuidado e guarda-o num arquivo. Numa
das prateleiras da biblioteca há dezenas destes arquivos. Numa outra dormem centenas de cassetes de vídeo.
Félix gosta de gravar noticiários, acontecimentos políticos importantes, tudo o que lhe possa ser útil um dia. As
cassetes estão ordenadas por ordem alfabética, segundo o nome da personalidadeou do acontecimento a que se
referem. O jantar dele resume-se a uma tigela de caldo verde, especialidade da Velha Esperança, a um chá de
menta, a uma grossa fatia de papaia, temperada com limão e uma gota devinho do porto. No quarto, antes de se
deitar, veste o pijama com tal formalidade que eu fico sempre à espera de o ver atar ao pescoço uma gravata
escura. Esta noite o estrídulo da campainha interrompeu-lhe asopa. Isso irritou-o.

Dobrou o jornal, levantou-se com esforço e foi abrir a porta. Vi entrar um homem alto, distinto, nariz adunco, as
maçãs do rosto salientes, bigode farto, curvo e lustroso, como não se usa há mais de um século. Os olhos,
pequenos e brilhantes, pareciam apoderar-se de todas as coisas. Vestia um fato azul, de corte antiquado, queno
entanto lhe ficava bem, e segurava na mão esquerda uma pasta em cabedal. A sala ficou mais escura. Foicomo
se a noite, ou alguma coisa ainda mais enlutada do que a noite, tivesse entrado juntamente com ele.
Mostrou um cartão de visitas. Leu alto:
"Félix Ventura. Assegure aos seus filhos um passado melhor". Riu-se. Um riso triste, mas simpático: "É o
senhor, presumo? Um amigo deu-me este cartão."
Não consegui pelo sotaque adivinhar-lhe a origem. O homem falava docemente, com uma soma de pronúncias
diversas, uma sutil aspereza eslava, temperada pelo suave mel do português do Brasil. FélixVentura recuou:
"Quem é você?"
O estrangeiro fechou a porta. Passeou pela sala, as mãos cruzadas atrás das costas, detendo-se um largo
momento em frente ao belo retrato a óleo de Frederick Douglass. Finalmente sentou-se numa das poltronas e
com um gesto elegante convidou o albino a fazer o mesmo. Parecia ser ele o dono da casa. Amigos comuns,
disse, e a voz fez-se ainda mais suave, tinham-lhe indicado aquele endereço. Haviam-lhe falado num homem
que traficava memórias, que vendia o passado, secretamente, como outros contrabandeiam cocaína. Félix
olhou-o desconfiado. Tudo no estranho o irritava – os modos doces e ao mesmo tempo autoritários, o discurso
irônico, o bigode arcaico. Sentou-se num majestoso cadeirão de verga, no extremo oposto da sala, como se
receasse ser contagiado pela delicadeza do outro.
"Posso saber quem é você?"
Também dessa vez não obteve resposta. O estrangeiro pediu licença para fumar. Tirou do bolso do casaco uma
cigarreira de prata, abriu-a, e enrolou um cigarro. Os seus olhos saltitavam de um lado para o outro, numa
atenção distraída, como uma galinha ciscando entre a poeira. Deixou que o fumo se espalhasse e o cobrisse.
Sorriu num inesperado fulgor:
"Mas diga-me, meu caro, quem são os seus clientes?"

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