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TEXTO JORNALÍSTICO

Reportagem; Crónica da actualidade

A fraternidade da fala

Não gosto da palavra lusofonia. Nunca gostei. Sempre m pareceu desadequada - como tentar
comer sopa com um garfo. Os amigos romanos deram o nome de Lusitano à mais ocidental das
colónias europeias, em homenagem a Lusos, filho de Liber, antigo deus do vinho dos povos
itálicos. Até aqui tudo bem.
Acho, inclusive, que houve nisso algo de profético. Portugal, porém, não é Lusitânia, isto
é, o imperialismo romano, somando aos árabes (o imperialismo africano) mais a grande aventura
dos descobrimentos e regresso a casa. Hoje em dia ninguém em território português fala lusitano-
fosse lá isso o que fosse. Toda a fala português. Parece-me ainda mais desadequado estender tal
designação aos povos que falam português. Trata-se de uma lógica obtusa, do tipo, as galinhas
tem asas, os anjos também, logo os anjos são galinhas. No Brasil, concentrados em São Paulo,
vivem largos milhares de pessoas de origem japonesa. Todas elas falam português, mas, como é
natural, não deve haver muitos que se identifiquem com a antiga Lusitânia.
Ao mesmo tempo há milhões de pessoas, em Timor, em Goa, em Macau, bem como nos
países africanos de língua portuguesa, que, não falando a nossa língua, ou não falando como
idioma materno, se identificam com inúmeros aspectos da historia e da cultura que nos é comum.
A língua portuguesa é maior do que Portugal, maior do que Angola, maior do que o Brasil, maior
do que todos estes países juntos. Com tudo, Aquilo aqui desajeitadamente chamamos lusofonia
parece-me ser algo ainda mais vasto. Algo que ultrapassa largamente o domínio da língua.
O poeta e ensaísta Mário António de Oliveira, que está para Angola como Eduardo
Lourenço está para Portugal ou Gilberto Freyre para o Brasil, gostava de contar um episodio
relacionado com essa questão. Um dia, alguns anos após a independência de Angola, procurou-o
em Lisboa um responsável pelo novo regime. Queria saber um tanto irritado, por que razão
Mário António ensaística em referir-se a Luanda como uma ilha crioula. “ o que é que você
costuma comer no natal?”, perguntou-lhe Mário António. ” Ora essa”, respondeu o homem: “
bacalhau com grão’, claro está!”. O que poeta sorrio: “está a ver? Entre outras coisas, é por isso”.
O fervor pelo bacalhau o culto da saudade, Fernando Pessoa, Saramago e Jorge Amado,
mais também Eusébio e Pelé. O Fado, a morna, o chorinho e arebita. Amália Rodrigues,
Pixinguinha. Cesária Évora. Ouro preto, Olinda e Arcantara. A ilha de Moçambique nossa
senhora Muxima. O massacre da santa cruz. Aquele instante em que quase chorei, em que chorei,
em que choramos, quando avancei, quando avançamos, quando avançaram Ramos Horta, e o
bispo Ximenes Belo, nós todos, juntos, para receber o prémio Nobel da paz. É a tudo isso, e algo
mais, ainda informe e impreciso, que me refiro quando recorro á palavra lusofonia. E nada disso,
receio, cabe nessa palavra.

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