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INTRODUÇÃO À

ETNOBIOLOGIA
INTRODUÇÃO À

ETNOBIOLOGIA

ULYSSES PAULINO DE ALBUQUERQUE


(ORGANIZ ADOR)

1ª Edição • 2014
Recife/PE
Primeira edição publicada em 2014 por NUPEEA
www.nupeea.com

Copyright© 2014
Impresso no Brasil/Printed in Brazil

Diagramação e capa:
Canal 6 Projetos Editoriais

Revisão língua portuguesa:


Grupo Revisar

Tradução do inglês para o português dos capítulos 5 e 25:


Grupo Revisar

Revisão de normas técnicas:


os autores

Editor chefe:
Ulysses Paulino de Albuquerque

I61957 Introdução à etnobiologia / Ulysses Paulino de Albuquerque


(org.). - - Recife, PE: NUPEEA, 2014.
189 p. ; 23 cm.

ISBN 978-85-63756-23-7

1. Ecologia Humana. 2. Introdução à Etnobiologia. I. Albu-


querque, Ulysses Paulino de. II. Título.

CDD: 304.2

Copyright© NUPEEA, 2014

É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob


quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia,
distribuição na Web e outros), sem permissão expressa do editor.

NUPEEA
Recife – Pernambuco – Brasil
AUTORES

Alejandro Casas Diego Batista de Universidade Federal Rural de


Universidad Nacional Oliveira Abreu Pernambuco.
Autónoma de México, Laboratório de Etnobiologia
Gustavo Taboada Soldati
Centro de Investigaciones Aplicada e Teórica (LEA),
Universidade Federal de
en Ecosistemas, Morelia, Universidade Federal Rural de
Juiz de Fora. Pesquisador
Mexico. Pernambuco.
associado ao Laboratório
Ana Haydeé Ladio Ernani Machado de de Etnobiologia Aplicada
Laboratório Ecotono, Freitas Lins Neto e Teórica (LEA) da
Universidade Nacional del Universidade Federal do Vale Universidade Federal Rural de
Comahue, Argentina. do São Francisco. Pesquisador Pernambuco.
associado ao Laboratório
André Luiz Borba do Ivanilda Soares Feitosa
de Etnobiologia Aplicada e
Nascimento Laboratório de Etnobiologia
Teórica (LEA), Universidade
Laboratório de Etnobiologia Aplicada e Teórica (LEA),
Federal Rural de Pernambuco.
Aplicada e Teórica (LEA), Universidade Federal Rural de
Universidade Federal Rural Fábio José Vieira Pernambuco.
de Pernambuco. Departamento de Biologia,
Joabe Gomes de Melo
Universidade Estadual
Andrêsa Suana Instituto Federal de Alagoas.
do Piauí. Pesquisador
Argemiro Alves Pesquisador associado ao
associado ao Laboratório
Laboratório de Etnobiologia Laboratório de Etnobiologia
de Etnobiologia Aplicada e
Aplicada e Teórica (LEA), Aplicada e Teórica (LEA) da
Teórica (LEA), Universidade
Universidade Federal Rural Universidade Federal Rural de
Federal Rural de Pernambuco.
de Pernambuco. Pernambuco.
Flávia Rosa Santoro
André Sobral Jonathon Dombrosky
Laboratório de Etnobiologia
Laboratório de Etnobiologia Department of Geography,
Aplicada e Teórica (LEA),
Aplicada e Teórica (LEA), University of North Texas,
Universidade Federal Rural de
Universidade Federal Rural USA.
Pernambuco.
de Pernambuco.
José Ribamar de
Flávia dos Santos Silva
Andrew Barker Sousa Júnior
Laboratório de Etnobiologia
Department of Biological Laboratório de Etnobiologia
Aplicada e Teórica (LEA),
Science, University of North Aplicada e Teórica (LEA),
Universidade Federal Rural de
Texas, USA. Universidade Federal Rural de
Pernambuco.
Pernambuco.
Angelo Giuseppe
Gilney Charll dos Santos
Chaves Alves Josivan Soares da Silva
Instituto Federal do Piauí.
Departamento de Biologia, Laboratório de Etnobiologia
Pesquisador associado ao
Universidade Federal Rural Aplicada e Teórica (LEA),
Laboratório de Etnobiologia
de Pernambuco. Universidade Federal Rural de
Aplicada e Teórica (LEA),
Pernambuco.
Juliana Loureiro de Almeida Patrícia Muniz de Medeiros Thiago Antônio de
Campos Universidade Federal do Sousa Araújo
Laboratório de Etnobiologia Oeste da Bahia. Pesquisadora Pesquisador associado ao
Aplicada e Teórica (LEA), associada ao Laboratório Laboratório de Etnobiologia
Universidade Federal Rural de de Etnobiologia Aplicada e Aplicada e Teórica (LEA),
Pernambuco. Teórica (LEA), Universidade Universidade Federal Rural de
Federal Rural de Pernambuco. Pernambuco.
Julio Marcelino Monteiro
Universidade Federal Reinaldo Farias Ulysses Paulino de
do Piauí. Pesquisador Paiva de Lucena Albuquerque
associado ao Laboratório Laboratório de Etnoecologia, Laboratório de Etnobiologia
de Etnobiologia Aplicada e Universidade Federal Aplicada e Teórica (LEA),
Teórica (LEA), Universidade da Paraíba. Pesquisador Universidade Federal Rural de
Federal Rural de Pernambuco. associado ao Laboratório Pernambuco.
de Etnobiologia Aplicada e
Letícia Zenobia de Oliveira Victoria Reyes-García
Teórica (LEA), Universidade
Campos Institució Catalana de Recerca
Federal Rural de Pernambuco.
Laboratório de Etnobiologia i Estudis Avançats, Barcelona,
Aplicada e Teórica (LEA), Rosemary da Silva Sousa Espanha.
Universidade Federal Rural de Laboratório de Etnobiologia
Viviany Teixeira do
Pernambuco. Aplicada e Teórica (LEA),
Nascimento
Universidade Federal Rural de
Lucilene Lima dos Santos Universidade do Estado
Pernambuco.
Instituto Federal de da Bahia. Pesquisadora
Pernambuco. Pesquisadora Rômulo Romeu da associada ao Laboratório
associada ao Laboratório Nóbrega Alves de Etnobiologia Aplicada e
de Etnobiologia Aplicada e Departamento de Biologia, Teórica (LEA), Universidade
Teórica (LEA), Universidade Universidade Estadual da Federal Rural de Pernambuco.
Federal Rural de Pernambuco. Paraíba.
Washington Soares
Marcelo Alves Ramos Sandrine Gallois
Ferreira Júnior
Universidade de Pernambuco Institut de Ciència i
Laboratório de Etnobiologia
(UPE). Pesquisador Tecnologia Ambientals,
Aplicada e Teórica (LEA),
associado ao Laboratório Universitat Autònoma de
Universidade Federal Rural de
de Etnobiologia Aplicada e Barcelona, Espanha.
Pernambuco.
Teórica (LEA), Universidade
Steve Wolverton
Federal Rural de Pernambuco. Wendy Marisol
Department of Geography,
Torres-Avilez
Maria Clara Bezerra Tenório University of North Texas,
Laboratório de Etnobiologia
Cavalcanti USA.
Aplicada e Teórica (LEA),
Universidade Federal do Rio
Taline Cristina da Silva Universidade Federal Rural de
Grande do Norte (UFRN).
Pesquisadora associada ao Pernambuco.
Pesquisadora associada ao
Laboratório de Etnobiologia
Laboratório de Etnobiologia
Aplicada e Teórica (LEA),
Aplicada e Teórica (LEA),
Universidade Federal Rural de
Universidade Federal Rural de
Pernambuco.
Pernambuco.
AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvi-


mento Científico e Tecnológico (CNPq), CAPES e Fundação de Amparo à Pes-
quisa do Estado de Pernambuco (FACEPE) pelas diferentes formas de apoio que
permitiram aos autores produzir esta obra. O editor agradece particularmente
ao CNPq pela bolsa de produtividade em pesquisa concedida.
Os autores do capítulo 5 agradecem ao editor pela oportunidade de escrever
o capítulo. Os dados da Figura 2, desse capítulo, são de pesquisa da Fundação
Nacional de Ciência Arqueométrica, Concessão de Desenvolvimento Técnico
nº 1.112.615.
Os autores do capítulo 25 agradecem o apoio financeiro do Conselho
Europeu de Investigação no âmbito do Sétimo Programa da União Europeia
(FP7/2007-2013)/ERC convenção da subvenção nº FP7-261987-LEK para a reda-
ção desse capítulo. Também agradecem aos Tsimané, aos Baka e aos Punan por
sua acolhida e paciência.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO............................................................................................................................. 13

PARTE 1: HISTÓRIA, ABORDAGENS E CONCEITOS


O QUE É ETNOBIOLOGIA?............................................................................................................... 17
Ulysses Paulino de Albuquerque & Angelo Giuseppe Chaves Alves

HISTÓRIA DA ETNOBIOLOGIA.........................................................................................................23
André Sobral & Ulysses Paulino de Albuquerque

ETNOBIOLOGIA OU ETNOECOLOGIA? ............................................................................................29


Angelo Giuseppe Chaves Alves & Ulysses Paulino de Albuquerque

ETNOBIOLOGIA URBANA................................................................................................................35
Ana Haydée Ladio & Ulysses Paulino de Albuquerque

PALEOETNOBIOLOGIA....................................................................................................................43
Steve Wolverton, Jonathon Dombrosky & Andrew Barker

PARTE 2: A PERCEPÇÃO DA NATUREZA


O QUE É PERCEPÇÃO AMBIENTAL?................................................................................................55
Taline Cristina da Silva & Ulysses Paulino de Albuquerque

BASES BIOLÓGICAS E EVOLUTIVAS DA PERCEPÇÃO HUMANA SOBRE O AMBIENTE NATURAL.....59


Washington Soares Ferreira Júnior, Taline Cristina da Silva &
Ulysses Paulino de Albuquerque

PERCEPÇÃO DE RISCO...................................................................................................................65
Taline Cristina da Silva, Washington Soares Ferreira Júnior, Flávia Rosa Santoro,
Thiago Antônio de Sousa Araújo & Ulysses Paulino de Albuquerque

A RELAÇÃO ENTRE AS PERCEPÇÕES E O APROVEITAMENTO DOS RECURSOS NATURAIS............69


Taline Cristina da Silva, Letícia Zenobia de Oliveira Campos, Josivan Soares da Silva,
Rosemary da Silva Sousa & Ulysses Paulino de Albuquerque

9
PARTE 3: A CLASSIFICAÇÃO DA NATUREZA
COMO E POR QUE AS PESSOAS CLASSIFICAM OS RECURSOS NATURAIS? .................................77
Andrêsa Suana Argemiro Alves, Lucilene Lima dos Santos,
Washington Soares Ferreira Júnior & Ulysses Paulino de Albuquerque

VISÕES ALTERNATIVAS SOBRE AS CLASSIFICAÇÕES FOLK...........................................................83


Washington Soares Ferreira Júnior, Reinaldo Farias Paiva de Lucena
& Ulysses Paulino de Albuquerque

PARTE 4: O APROVEITAMENTO DA NATUREZA


PLANTAS MEDICINAIS................................................................................................................... 91
Thiago Antônio de Sousa Araújo, Joabe Gomes de Melo
& Ulysses Paulino de Albuquerque

PLANTAS ALIMENTÍCIAS...............................................................................................................99
Viviany Teixeira do Nascimento, Letícia Zenóbia de Oliveira Campos
& Ulysses Paulino de Albuquerque

RECURSOS MADEIREIROS........................................................................................................... 105


Marcelo Alves Ramos, Maria Clara Bezerra Tenório Cavalcanti
& Fábio José Vieira

RECURSOS ANIMAIS.................................................................................................................... 115


Rômulo Romeu Nóbrega Alves

FUNGOS....................................................................................................................................... 121
Washington Soares Ferreira Júnior & Ulysses Paulino de Albuquerque

PARTE 5: O MANEJO E A DOMESTICAÇÃO DA NATUREZA


DOMESTICAÇÃO DE PLANTAS..................................................................................................... 127
Ernani Machado de Freitas Lins Neto, José Ribamar Sousa Júnior,
Alejandro Casas & Ulysses Paulino de Albuquerque

DOMESTICAÇÃO ANIMAL............................................................................................................. 137


Rômulo Romeu Nóbrega Alves

O EXTRATIVISMO DE RECURSOS VEGETAIS................................................................................ 143


Juliana Loureiro de Almeida Campos, Ivanilda Soares Feitosa,
Julio Marcelino Monteiro, Gilney Charll dos Santos & Ulysses Paulino de Albuquerque
PARTE 6: FATORES QUE AFETAM O CONHECIMENTO BIOLÓGICO TRADICIONAL
A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO LOCAL OU TRADICIONAL
E O USO DOS RECURSOS NATURAIS............................................................................................ 151
Gustavo Taboada Soldati

CONHECIMENTO E USO DE PLANTAS EM CONTEXTOS DE MIGRAÇÃO........................................ 157


Patrícia Muniz de Medeiros, Diego Batista de Oliveira Abreu
& Ulysses Paulino de Albuquerque

GÊNERO E IDADE......................................................................................................................... 163


Wendy Torres-Avilez, André Luiz Borba do Nascimento, Leticia Zenobia de Oliveira
Campos, Flávia dos Santos Silva & Ulysses Paulino de Albuquerque

ETNIA, RENDA E ESCOLARIDADE................................................................................................ 169


Patrícia Muniz de Medeiros, Juliana Loureiro de Almeida
& Ulysses Paulino de Albuquerque

URBANIZAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS........................................................................................ 175


Washington Soares Ferreira Júnior, Flávia Rosa Santoro
& Ulysses Paulino de Albuquerque

STATUS SOCIAL E CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL................................................... 181


Victoria Reyes-García & Sandrine Gallois

APÊNDICE I:
DECLARAÇÃO DE BELÉM............................................................................................................. 187

APÊNDICE II:
PRINCIPAIS REVISTAS CIENTÍFICAS QUE PUBLICAM TRABALHOS EM ETNOBIOLOGIA............... 189

11
APRESENTAÇÃO

Apesar dos grandes avanços da etnobiologia, mundialmente ainda carece-


mos de livros e textos que possam servir de referência para o seu ensino. Não há
dúvidas de que nos últimos anos apareceram muitas obras que vieram preencher
lacunas no ensino e na pesquisa em etnobiologia. Neste sentido, esta obra tem,
então, a proposta de subsidiar o ensino inicial de etnobiologia na graduação e
pós-graduação. A ideia foi produzir capítulos curtos que introduzissem o leitor às
principais ideias sobre o assunto abordado. Obviamente que, dada a complexida-
de da etnobiologia, não nos foi possível apresentar todos os pontos de vista e abor-
dagens sobre o tema. Por isso, esta obra é, de fato, uma breve introdução ao tema.
Dividimos o livro em seis partes, cada uma delas cobrindo os aspectos que
julgamos relevante para facilitar a leitura e o aprendizado. Na primeira parte,
tivemos a preocupação de trabalhar os aspectos mais históricos e conceituais
da etnobiologia. Dois capítulos são particularmente oportunos, pois tratam de
abordagens relativamente recentes ou pouco debatidas, pelo menos no Brasil: a
paleoetnobiologia e a etnobiologia urbana.
A apropriação da natureza, nos mais variados aspectos, passa inicialmente
pela forma como a percebemos. Por isso, a segunda parte do livro aborda justa-
mente essa etapa inicial do relacionamento entre seres humanos e natureza. A
terceira parte, por sua vez, traz à tona o debate clássico e os principais aportes
teóricos sobre como a nossa espécie classifica a natureza percebida.
Já na quarta parte do livro tratamos de um dos aspectos mais trabalhados
na etnobiologia: a utilização dos recursos naturais1. Optamos aqui por tratar
apenas os recursos mais estudados pelos etnobiólogos, como uma introdução
muitos simples e direta a cada um desses recursos. A quinta parte configura-
-se como um desdobramento muito natural desta, pois trata das consequên-
cias dessa nossa relação utilitária com a natureza. Optamos, então, nessa quinta

1 Nesta obra a expressão “recursos naturais” é empregada várias vezes como sinônimo de
biota, não tendo, portanto, conotações econômicas ou utilitárias.

13
parte, por abordar o extrativismo de produtos florestais e a domesticação de
plantas e animais.
Por fim, a sexta parte é uma síntese sobre o que afeta a nossa experiência
com os recursos naturais, dito de outro modo, sobre quais variáveis afetam o
conhecimento biológico tradicional (CBT). Embora não tratemos de tudo o que
pode influenciá-lo, oferecemos ao leitor um conjunto de informações que, sem
dúvida alguma, servem como uma aproximação ao assunto.
Assim, acreditamos que esta obra, possa auxiliar os professores de etnobio-
logia e estudantes a terem uma aproximação relativamente amena ao tema. A
lista de referências bibliográficas complementa a obra, permitindo aos leitores o
aprofundamento dos temas abordados.

14
PARTE 1:
HISTÓRIA,
ABORDAGENS E
CONCEITOS
CAPÍTULO 1

O QUE É ETNOBIOLOGIA?
Ulysses Paulino de Albuquerque & Angelo Giuseppe Chaves Alves

O termo etnobiologia remete a uma união de competências que abarcam do cul-


tural ao biológico, compreendendo o estudo de relações muito diversas. É desafiante
a tarefa de definir um campo tão complexo como esse, que comporta diferentes abor-
dagens e problemas teóricos. A etnobiologia classicamente tem sido definida como
o estudo das interações das pessoas e dos grupos humanos com o ambiente. Isso faz
com que, por algumas vezes, o termo apareça associado com a ecologia humana e
com a etnoecologia1. Darrell Posey (1987a), um dos grandes nomes da etnobiologia,
entende-a como o estudo dos conhecimentos e conceitos desenvolvidos por qualquer
cultura sobre a biologia.
Há duas abordagens clássicas em etnobiologia, a cognitiva e a econômica, que não
são, necessariamente, excludentes. Todavia, a tabela 1 apresenta outras abordagens
que, ao longo do tempo, foram surgindo e que podem se relacionar direta ou indireta-
mente com as duas anteriores2. Por seu enfoque cognitivo, a etnobiologia ocupa-se de
conhecer o modo como as culturas percebem e conhecem o mundo biológico; por seu
enfoque econômico, considera o modo como estas convertem os recursos biológicos
em produtos úteis.

1 Este capítulo é uma versão revisada e atualizada da “Introdução” publicada na obra “Etnobio-
logia e Biodiversidade” (Albuquerque 2005).
*
Neste sentido, para aprofundamento do debate, ver Begossi (1993; 2004) e Alves et al. (2010).
No capítulo 3 deste livro, introduzimos uma discussão sobre as relações entre etnobiologia e
etnoecologia.
2 O leitor pode ampliar seus conhecimentos sobre algumas dessas abordagens consultando a
literatura disponível em língua portuguesa. Ver, por exemplo, Medeiros (2010) e Albuquerque
(2013). Para diferentes definições no campo de etnobiologia, ver o Dicionário Brasileiro de
Etnobiologia e Etnoecologia (Medeiros & Albuquerque 2012).

17
O QUE É ETNOBIOLOGIA?

As informações etnobiológicas foram durante muito tempo coletadas a partir de


estudos sobre como populações consideradas “primitivas” utilizavam seus recursos
vegetais e animais (Castetter 1944). Muito embora ainda insuficientemente conheci-
da pelos conservacionistas, ambientalistas, ecólogos, biólogos e outros pesquisadores
e apesar do reconhecimento que vem obtendo, em especial nos últimos dez anos, a
etnobiologia tem contribuído com informações para a conservação da biodiversidade
e o seu uso sustentável (cf. Toledo et al. 2003; Moller et al. 2004; Donovan & Puri
2004). Nos últimos anos, o número de publicações cresceu consideravelmente, evi-
denciando, assim, as implicações das pesquisas etnobiológicas na conservação dos
ecossistemas tropicais (ver Albuquerque et al. 2013).

Tabela 1. Algumas das diferentes abordagens na pesquisa etnobiológica. As definições apresentadas,


necessariamente, não representam consenso entre os especialistas.

Abordagem Definição
Etnobiologia evolutiva Estuda a história evolutiva dos padrões de comportamen-
to e conhecimento humano sobre a biota, considerando
aspectos históricos e contemporâneos que influenciam es-
ses padrões.
Etnobiologia ecológica Estuda as inter-relações entre pessoas e biota a partir dos
referencias teóricos e metodológicos da ecologia.
Etnobiologia histórica Estuda a inter-relação entre seres humanos e biota a par-
tir de evidências passadas preservadas em documentos
históricos.
Etnobiologia médica Estuda os sistemas médicos tradicionais a partir do uso,
manejo e conhecimento da biota nesses sistemas.
Etnobiologia quantitativa Envolve o uso de técnicas de estatística multivariada para
explorar diferentes aspectos das inter-relações entre pes-
soas e biota.
Etnobiologia preditiva Foca a elaboração de modelos quantitativos que permitam
predizer o comportamento dos sistemas formados pela
inter-relação entre pessoas e biota.
Etnobiologia urbana Estuda a relação entre pessoas e biota nos ecossistemas
urbanos.

Um dos objetivos da etnobiologia tem sido associar os conhecimentos das ciên-


cias naturais aos das humanas para registrar toda a amplitude de conhecimentos, de

18
Ulysses Paulino de Albuquerque & Angelo Giuseppe Chaves Alves

classificação e de uso dos recursos naturais oriundos das sociedades tradicionais (Po-
sey 1987b). Um dos campos da etnobiologia que mais tem concentrado trabalhos na
América Latina é o da etnobotânica, ao lado de outros que vêm crescendo em número
de publicações, como a etnozoologia e a etnoecologia (ver Albuquerque et. al. 2013).
Os etnobiólogos ocupam-se de entender o chamado conhecimento tradicional
ou conhecimento local. Na literatura também vamos encontrar as expressões “conhe-
cimento biológico tradicional” e “conhecimento ecológico tradicional”. Entendemos
conhecimento tradicional como experiências e saberes acumulados por um grupo
humano em relação aos recursos naturais. Esse conhecimento é dinâmico e mutá-
vel. O termo tradicional vem sendo muito discutido. McClatchey (2005) pondera que
os termos, embora usados com conotações positivas pelos etnobiólogos, são vagos e
muitas vezes equivocados. Para situar o leitor sobre o debate, transcrevemos algumas
considerações de Santos et al. (2005): “os termos ‘conhecimento local’, ‘conhecimento
indígena’, ‘conhecimento tradicional’ ou mesmo ‘etnociência’ têm surgido com frequ-
ência na última década, com o objetivo de chamar a atenção para a pluralidade de
sistemas de produção de saberes no mundo e para a sua importância nos processos de
desenvolvimento (...)”.
O adjetivo local, apesar de suas limitações, tem uma vantagem: serve para indicar
de onde estão falando e agindo as pessoas cujos saberes são retratados nas pesquisas;
serve para mostrar qual é o lugar, qual é o espaço e qual é o tempo nos quais essas
populações manifestam seus saberes, suas culturas e suas relações com o ambien-
te. Ninguém é onipresente. Todo mundo, seja pesquisador ou membro de população
tradicional, fala a partir de um ponto. Por outro lado, o termo tradição relaciona-se,
etimologicamente, com transição, indicando o seu potencial intrínseco para incorpo-
rar mudanças, inovações e experimentações realizadas por membros de populações
indígenas e/ou camponesas3.
Nas últimas décadas, intensificou-se a busca por alternativas para conter a de-
vastação dos recursos naturais, bem como o desenvolvimento de sistemas de manejo
sustentáveis para a manutenção da diversidade biológica. Formas de manejo sustentá-
vel dos ecossistemas têm sido propostas ao longo do tempo. No entanto, muitas delas
caracterizam-se pela desvinculação das populações humanas que vivem tradicional-
mente nos diversos ecossistemas. Várias pesquisas têm se dedicado a revelar o co-

3 Nós já tivemos a oportunidade de discutir a respeito do uso dos termos tradicional e local (Al-
ves & Albuquerque 2010) e, por isso, convidamos o leitor interessado a consultar esse material.

19
O QUE É ETNOBIOLOGIA?

nhecimento que populações4 tradicionais, especialmente as indígenas e camponesas,


possuem sobre o meio em que vivem (Toledo et al. 2003). Vamos aos exemplos.
Donovan & Puri (2004) fornecem um interessante exemplo de como o conhe-
cimento ecológico tradicional pode ser um guia para estudos de autoecologia com
espécies de interesse econômico. Eles compararam o conhecimento de um grupo de
pessoas, na Indonésia, que coletavam produtos de espécies de Aquilaria (Thymela-
ceae), com registros científicos. Espécies deste gênero fornecem uma resina (gaharu)
aromática de grande valor comercial. O conhecimento dos coletores apresentava mui-
tos pontos em comum com o conhecimento acadêmico, em especial sobre fisiologia,
ecologia e padrões de distribuição das espécies. A partir disso, os autores sugeriram
que o conhecimento tradicional pode ajudar a preencher as lacunas do conhecimento
acadêmico a respeito das plantas.
O conhecimento tradicional não se restringe aos organismos, mas inclui percep-
ções e explicações sobre a paisagem e a geomorfologia e sobre a relação entre os dife-
rentes seres vivos com o ambiente físico. Ao classificar as paisagens, por exemplo, as
pessoas podem fazer uso de vários critérios. Verlinden & Dayot (2005) constataram
que na Namíbia as pessoas demonstram um bom conhecimento das mudanças da
paisagem como resultado da interferência humana e de diferentes tipos de manejo.
Para eles, o conhecimento local dessas mudanças poderia ser facilmente traduzido
para os modelos ecológicos acadêmicos sobre mudanças vegetacionais.
O conhecimento sobre os solos é outro aspecto que tem sido observado em muitas
populações camponesas e indígenas. Neste sentido, Warren et al. (2003) mostraram, a
partir de uma pesquisa etnopedológica junto a um grupo de agricultores na Nigéria,
que a população local tinha uma visão ampla a respeito dos danos causados pela erosão,
ao contrário da população de técnicos, que apresentavam uma visão reducionista e pou-
co útil para a conservação do solo.
O saber das populações tradicionais foi por muito tempo subestimado pelos cien-
tistas, que negligenciavam outras formas ou sistemas de conhecimento. A valorização
do saber tradicional, por parte dos etnobiólogos e etnoecólogos, tem produzido alterna-
tivas para os paradigmas correntes, com efeitos benéficos para o conhecimento científi-
co-acadêmico (Posey 1987a). Pesquisas etnobotânicas, por exemplo, indicam que as di-

4 Preferimos suar aqui o termo populações tradicionais ao invés de comunidades tradicionais.


Na nossa visão, sendo a etnobiologia um campo próximo da Ecologia, é melhor atribuir ao
termo “comunidade” o sentido ecológico, em vez do sociológico. Assim, um grupo de pessoas
passa a ser encarado (ecologicamente) como “população”.

20
Ulysses Paulino de Albuquerque & Angelo Giuseppe Chaves Alves

ferentes formas de manipulação antropogênica dos recursos vegetais podem contribuir


para o aumento da diversidade genética. A propósito, este saber sobre os recursos bioló-
gicos tem despertado o interesse de indústrias farmacêuticas e de produtos naturais na
busca da biodiversidade para fins farmacêuticos, biotecnológicos e conservacionistas.
Por fim, a etnobiologia ocupa uma posição privilegiada devido ao seu potencial
de integrar conhecimentos locais e globais, conectar culturas tradicionais e enfoques
acadêmicos e relacionar aspectos biológicos e sociais da experiência humana no am-
biente.

Referências
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Albuquerque, U.P. (Ed.). 2013. Etnobiologia – bases ecológicas e evolutivas. Recife, Nupeea.
Albuquerque, U.P.; Silva, J.S.; Campos, J.L.A.; Sousa, R.S.; Silva, T.C. & Alves, R.R.N. 2013. The
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Alves, A.G.C. & Souto, F.J.B. 2010. Etnoecologia ou etnoecologias? Encarando a diversidade
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Begossi, A. 1993. Ecologia humana: um enfoque das relações homem-ambiente. Interciencia
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Begossi, A. (org.). 2004. Ecologia de pescadores da Mata Atlântica e da Amazônia. São Paulo,
Nupaub/Hucitec/Nepam.
Castetter, E.F. 1944. The domain of ethnobiology. American Naturalist 78: 158-170.
Donovan, D.G. & Puri, K.K. 2004. Learning from traditional knowledge of non-timber forest
products: Penan Benalui and the autoecology of Aquilaria in Indonesian Borneo. Ecology
and Society 9(3): 3.
McClatchey, W.C. 2005. Exorcing misleading terms from ethnobotany. Ethnobotany Research
& Applications 3: 1-4.
Medeiros, M.F.T. (org.). 2010. Aspectos históricos na pesquisa etnobiológica. Recife, Nupeea.
Medeiros, M.F.T. & Albuquerque, U.P. (Orgs.). 2012. Dicionário brasileiro de etnobiologia e
etnoecologia. Recife, Nupeea.

21
O QUE É ETNOBIOLOGIA?

Moller, H.; Berkes, E.; Lyver, P.O. & Kislalioglu, M. 2004. Combining science and traditional
ecological knowledge: monitoring populations for co-management. Ecology and Society 9
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Posey, D.A. 1987a. Etnobiologia: teoria e prática. Pp. 15-251. In: B. Ribeiro. (ed.). Suma etnoló-
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Posey, D.A. 1987b. Etnobiologia y ciencia “folk”: su importancia para la Amazonia. Hombre y
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Santos, B.S.; Meneses, M.P. & Nunes, J.A. 2005. Introdução: Para ampliar o canône da ciencia:
a diversidade epistemológica do mundo. Pp. 21-101. In: B.S. Santos (org.). Semear outras
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lização Brasileira.
Toledo, V.M; Ortiz-Espejel, B.; Cortés, L.; Moguel, P. & Ordoñez, M.J. 2003. The multiple use of
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Verlinden, A. & Dayot, B. 2005. A comparison between indigenous environmental knowledge
and a conventional vegetation analysis in north central Namibia. Journal of Arid Environ-
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Warren, A.; Osbahr, H.; Batterbury, H; Chappell, A. 2003. Indigenous views of soil erosion at
Fandou Béri, southwestern Niger. Geoderma 111 (3-4).

22
CAPÍTULO 2

HISTÓRIA DA ETNOBIOLOGIA
André Sobral & Ulysses Paulino de Albuquerque

Não é uma tarefa fácil descrever a história de uma disciplina científica, sobretu-
do quando se trata de uma disciplina complexa por natureza e que, ao longo de sua
história, recebeu (e ainda recebe) a influência de diferentes áreas do conhecimento.
A história da etnobiologia pode ser dividida nos períodos pré-clássico, clássico e pós-
-clássico, conforme proposto por Clément (1998). Aqui adotaremos essa classificação
pontuando para cada período os principais autores e acontecimentos que contribuí-
ram para a estruturação dessa nova disciplina científica.

Período pré-clássico

O período pré-clássico da etnobiologia foi caracterizado, no final do século XIX,


por estudos que tinham como objetivo compreender os conhecimentos de diferentes
povos e culturas sobre plantas e animais. Havia um grande interesse por parte dos es-
tudiosos europeus pelas utilidades econômicas dos recursos naturais utilizados pelos
nativos do Novo Mundo, isto é, as atenções estavam voltadas para a documentação do
uso de plantas e animais, sobretudo dos usos que pudessem se tornar rentáveis para os
colonizadores. Neste contexto, convém destacar os trabalhos realizados pelos naturalis-
tas europeus, pois apresentavam ricas descrições sobre o ambiente físico, a fauna e a flo-
ra encontrados nos novos continentes e a sua relação com os povos nativos (Kuri 2001).
Essa abordagem descritiva, embora tivesse como foco principal o interesse utili-
tarista pelos recursos naturais por parte dos países colonizadores, foi importante para
preparar o caminho para futuros estudos não só dos ambientes naturais, mas também
das diferentes culturas que viviam no Novo Mundo (Clément 1998).

23
HISTÓRIA DA ETNOBIOLOGIA

Também no período pré-clássico surgiram os primeiros estudos das disciplinas


que podem ser atualmente consideradas a base da etnobiologia: a etnobotânica e a
etnozoologia. Os estudos sobre as inter-relações entre recursos naturais, notadamente
plantas e as populações humanas, e o modo como estas entendiam os fenômenos bio-
lógicos ao seu redor começaram a se estruturar a partir dos trabalhos de Harshberger,
o qual apresentou a primeira definição para o termo etnobotânica, em 1896 (Clément
1998). É importante destacar que no período pré-clássico preponderou a atuação de
pesquisadores europeus e norte-americanos, em sua grande maioria antropólogos de
formação (Anderson 2011).
Assim como Clément (1998), outro autor, Eugene Hunn (2007), também fez um
esforço de caracterizar a evolução histórica da etnobiologia e, para isso, dividiu-a em
quatro fases. Para Hunn (2007), a primeira fase apresenta as mesmas características
do período pré-clássico descrito por Clément. Para ambos os autores, a fase pré-clássi-
ca da etnobiologia é marcada por uma abordagem descritiva de plantas e animais em
uma perspectiva essencialmente ética, isto é, marcada por uma interpretação acadê-
mica daqueles que estudam os comportamentos e a relação dos nativos com os recur-
sos naturais. Mais adiante veremos que a etnobiologia passou a valorizar e incorporar
a perspectiva êmica, ou seja, a visão de mundo dos próprios nativos.

Período clássico

O período clássico da etnobiologia teve seu início na primeira metade do século


XX. Para Clément (1998), este período é marcado pela busca do conhecimento in-
dígena como um meio para entender o modo como os seres humanos dão sentido
para seu ambiente. Neste aspecto, os estudos de Harold C. Conklin deram importan-
te contribuição ao desenvolvimento da etnobiologia e são considerados divisores de
águas na história da etnobiologia (Hunn 2007). O trabalho realizado por Conklin, em
1954, sobre a nomenclatura e a classificação botânica dos Hanunóo inaugurou a fase
dos estudos pautados em uma postura conscientemente comparativa e teórica, isto
é, passou-se de uma abordagem essencialmente descritiva para outra voltada para a
documentação meticulosa da perspectiva êmica ou indígena, com atenção cuidadosa
para os usos linguísticos locais (nomes, convenções descritivas etc.) (Hunn 2007).
Essa fase ficou conhecida como etnobiologia cognitiva.

24
André Sobral & Ulysses Paulino de Albuquerque

Em sua pesquisa, Conklin procurou compreender como ocorre o processo de


apropriação dos recursos naturais por parte do ser humano, o que implica compre-
ender não apenas como as pessoas se relacionam com os fatores biológicos (plantas
e animais), mas também como se relacionam de forma integral com todos os fatores
físicos (solo, água, relevo, clima etc.) e biológicos, bem como as percepções e os usos
que as diferentes culturas fazem destes recursos (Toledo & Alarcón-Cháires 2012).
Além de Conklin, Brent Berlin e Willian Balée também são considerados impor-
tantes colaboradores dessa fase da etnobiologia, marcada por uma grande influência
do enfoque cognitivo, com fortes ligações com a psicologia cognitiva e a linguística
(Hunn 2007; Albuquerque 2005).
Durante as décadas de 1970 e 1980, intensificaram-se os estudos com enfoque eco-
lógico, formando o que Hunn considerou como a terceira fase da etnobiologia. Este
período é marcado pelas contribuições do pesquisador mexicano Victor Toledo. A
abordagem proposta por Toledo e seus colaboradores apresentou-se como uma resposta
ao que consideravam como uma lacuna na etnobiologia praticada até então, ou seja,
uma resposta à falta de uma visão mais holística sobre o contexto ecológico mais amplo
em que se davam as inter-relações entre os sistemas de valores e crenças dos povos
tradicionais, o conhecimento que possuíam sobre os recursos naturais e as práticas
de manejo destes recursos (Hunn 2007). Para abordar essas inter-relações, Toledo
desenvolveu o modelo conhecido como kosmos-corpus-praxis ou matriz k-c-p (para sa-
ber mais sobre a matriz k-c-p, sugerimos a leitura de Toledo & Barrera-Bassols 2009).

Período pós-clássico

Para Clément (1998), a década de 1990 representou um período muito importante


para a etnobiologia, conhecido como período pós-clássico. Podemos destacar neste
momento a contribuição do antropólogo Darrell Posey que, por mais de uma década,
realizou estudos sobre o conhecimento ecológico tradicional dos índios Kayapó, no
Norte do Brasil, mais precisamente nos campos da etnoentomologia e etnoecologia.
Darrell Posey foi um dos fundadores da Sociedade Internacional de Etnobiologia,
criada em 1988. No mesmo ano, Posey organizou o primeiro Congresso Internacional
de Etnobiologia na cidade de Belém, no Pará, Brasil. Um dos principais produtos des-

25
HISTÓRIA DA ETNOBIOLOGIA

se encontro foi a elaboração da “Declaração de Belém”1, um documento que reconhe-


ce a importância dos povos indígenas e não indígenas tradicionais, bem como seus
conhecimentos e suas práticas de manejo para a conservação da diversidade biológica
e dos recursos naturais essenciais para a manutenção do bem-estar (ISE 2014). Outra
importante contribuição desta declaração é a delimitação do papel dos etnobiólogos
na conscientização dos povos nativos sobre seu próprio conhecimento e na divulga-
ção ou no retorno dos resultados de suas pesquisas na língua nativa (ISE 2014).
Como destacou Hunn (2007), talvez tão ou mais importante do que os estudos de
Posey foi a contribuição deste para que a etnobiologia passasse a considerar a impor-
tância da luta pela preservação dos conhecimentos dos povos indígenas e da defesa
dos direitos de propriedade deste conhecimento por parte dos índios2, assim como
de qualquer outra população tradicional não indígena. Essa postura de uma etnobio-
logia, mais atenta às necessidades das comunidades locais, marcou a quarta fase do
desenvolvimento da etnobiologia, segundo Hunn (2007).
Nesse processo histórico de consolidação da etnobiologia, é importante destacar-
mos o papel que a etnobotânica vem desempenhando ao longo dos últimos 20 anos.
Essa área de estudos, inserida no âmbito mais amplo da etnobiologia e que se ocupa
do estudo das inter-relações entre pessoas e recursos vegetais em determinado am-
biente, concentra, até hoje, grande parte das publicações e engloba diferentes aborda-
gens (Albuquerque et al. 2013). As diferentes abordagens variam desde as descritivas,
que têm o objetivo de registrar as relações das pessoas com as plantas por meio da des-
crição dos usos que se faz dos vegetais, até as abordagens quantitativas, que, ao incluir
ferramentas estatísticas frequentemente utilizadas na ecologia (Begossi 1996), permi-
tem testar hipóteses sobre os fatores que motivam as pessoas a utilizar determinada
planta e sobre os motivos dessas utilizações (Phillips & Gentry 1993). Outro aspecto
que devemos destacar é a importância da etnobotânica histórica, que introduz o es-
tudo das relações entre pessoas e vegetais em um contexto de mudanças na dinâmica
histórica, social e cultural de diferentes culturas ao longo do tempo (Medeiros 2009).
Atualmente abordagens ecológicas e evolutivas vêm sendo incorporadas em es-
tudos etnobiológicos com o objetivo de ampliar o conhecimento científico sobre as

1 Leia a Declaração de Belém no apêndice deste livro.


2 Para aprofundamento dessa discussão consulte: Anderson et al. (2011): Ethnobiology (New
Jersey, Wiley-Blacwell) e Albuquerque et al. (2014): Methods and techniques in ethnobio-
logy and ethnoecology (New York, Springer). Esta última obra conta com uma edição em
português publicada pela editora Nupeea em 2010.

26
André Sobral & Ulysses Paulino de Albuquerque

inter-relações entre pessoas e recursos naturais, considerando que essas interações


dinâmicas ocorrem em diferentes ecossistemas, estando, portanto, estabelecidas no
tempo e no espaço. A etnobiologia evolutiva considera que é necessário entender
quais fatores moldaram os comportamentos atuais das culturas e os conhecimentos
sobre plantas, animais e outros recursos biológicos (Albuquerque & Medeiros 2013;
Albuquerque 2013).

A quinta fase da etnobiologia

Além dos períodos da história da etnobiologia até aqui descritos, Wolverton


(2013) considera que estamos vivenciando uma fase contemporânea do desenvolvi-
mento histórico da etnobiologia, ou seja, a quinta fase. Este autor salienta o caráter
interdisciplinar da etnobiologia em relação a seus objetos de estudo e reafirma a rele-
vância da pesquisa etnobiológica no contexto das mudanças ambientais e culturais.
Uma das características marcantes dessa fase, e que representa um desafio para
os etnobiólogos contemporâneos, é a necessidade de ampliação das fronteiras dessa
disciplina, por meio da incorporação de estudiosos de outras áreas do conhecimento,
além da antropologia e da biologia - de onde vem a maioria dos etnobiólogos -, e do
maior diálogo com outras áreas de pesquisa aplicada, como gestão ambiental, biologia
da conservação, ética ambiental, entre outras (Wolverton 2013).
Na opinião de Wolverton (2013), a etnobiologia pode (e deve) configurar-se como
uma disciplina que ofereça um ambiente mais propício para permitir que a conser-
vação biocultural, a cogestão ambiental, a ética ambiental, o respeito aos direitos de
propriedade intelectual de povos indígenas e tradicionais e outros temas relevantes
que devem ser abordados para resolver problemas ambientais e culturais modernos,
em escala local, regional e global, possam encontrar-se e dialogar em uma perspectiva
interdisciplinar.

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28
CAPÍTULO 3

ETNOBIOLOGIA OU ETNOECOLOGIA?
Angelo Giuseppe Chaves Alves & Ulysses Paulino de Albuquerque

A etnobiologia é, intrinsecamente, um campo de conhecimento híbrido, o qual


se caracteriza, portanto, por interseções disciplinares, tanto internamente (dentro do
campo da etnobiologia), como externamente (com outras áreas de conhecimento). É
uma ciência que vem se consolidado, principalmente a partir da década de 1990, em
um contexto histórico diferente do que propiciou o surgimento das disciplinas clás-
sicas, como biologia, física, química, história e filosofia. Nesse contexto, nas últimas
duas ou três décadas, foi difícil criar ou mesmo definir uma disciplina nos moldes
mais rígidos das disciplinas antigas, a que chamamos de clássicas. O caráter híbrido
da etnobiologia está também presente nos campos que lhe são análogos ou associa-
dos, tais como a etnobotânica, a etnozoologia e a etnoecologia.
Nesse sentido, é de particular interesse a reflexão sobre as diferenças e similarida-
des entre etnoecologia e etnobiologia, especialmente quando se tenta delimitar qual
desses enfoques teria um escopo mais amplo, de modo a abranger dentro de si o outro.
A pergunta é: a etnoecologia é uma parte da etnobiologia ou vice-versa? Ou, ainda:
haveria outras formas não hierárquicas, menos rígidas e talvez mais úteis de encarar
as relações entre ambas?
Em uma das tentativas de representar hierarquicamente o recorte disciplinar nas
etnociências, o etnobotânico Gary Martin (1995) considerou que o termo etnoecolo-
gia abrange todos os estudos que descrevem as interações dos povos locais com o am-
biente, incluindo algumas “subdisciplinas”, entre elas a etnobiologia, a etnobotânica,
a etnoentomologia e a etnozoologia. No entanto, isso não parece factível, pois essas
são áreas muito dinâmicas atualmente, de modo que se torna inviável o estabeleci-
mento de uma relação hierárquica rígida, por inclusão, em que uma área de conheci-
mento fique inserida como simples ramo ou subárea de outra.

29
ETNOBIOLOGIA OU ETNOECOLOGIA?

A inclusão da etnoecologia como ramo ou subárea da etnobiologia também não se


justifica, tanto pelo mesmo motivo, como também porque há muitos estudos que abor-
dam os saberes locais ou tradicionais sobre elementos não bióticos dos ecossistemas,
como os solos, as rochas e o clima (e.g. Orlove et al. 2010). Esses estudos sobre fatores
abióticos dificilmente poderiam ser classificados como etnobiológicos, caracterizando-
-se, mais provavelmente, como pesquisas etnoecológicas. A questão é que há muitos
pontos de vista a respeito dessas interações, bem como a respeito do objetivo principal
dessas disciplinas. Para Albuquerque & Hurrell (2012), tanto a etnobiologia quanto a
etnoecologia são disciplinas que tratam da nossa relação com os seres vivos e demais
componentes da natureza, aproximando-se fortemente da ecologia. Por sua vez, Alves
et al. (2010), referindo-se mais especificamente à etnoecologia, seguem esta mesma di-
reção, ressaltando, ainda, que a associação desta com a ecologia agrega complexidade ao
quadro, principalmente quando se leva em consideração que a ecologia representa, de
acordo com Odum (1977), uma ponte entre as ciências naturais e sociais.
Em outra abordagem, de caráter histórico, não hierárquico, Eugene Hunn (2007)
propôs dividir o desenvolvimento da etnobiologia em quatro fases, das quais a ter-
ceira (evidenciada principalmente nas décadas de 1980 e 1990) corresponderia ao
surgimento da etnoecologia. Neste caso, a etnoecologia não estaria inserida (estatica-
mente) na etnobiologia, mas representaria uma das fases do desenvolvimento desta.
Por um lado, isso parece representar um equívoco histórico, uma vez que o termo
etnoecologia surgiu algumas décadas antes, no artigo de Harold Conklin (1954a).
Por outro, o fato de Conklin ter publicado esse artigo em meados da década de 1950,
como um extrato de sua tese (Conklin 1954b), a qual tratava sobre “a relação dos Ha-
nuoo com o mundo vegetal”, mostra claramente há existência de uma interface entre
os estudos sobre etnoecologia, etnobotânica e agricultura tropical.
Ainda quanto às representações hierárquicas, Clément (1998) ressaltou que a
etnobotânica e a etnozoologia, em seus primórdios (no século XIX), representavam
divisões da etnologia. O autor comentou também que, até aquele momento (final do
século XX), o termo “etnobotânica”, criado pelo biólogo J.W. Harshberger, permane-
cia sendo a designação mais estável e mais difundida entre as usadas para denominar
os campos de atividade dentro da etnologia. De fato, a etnobiologia e as chamadas et-
nociências possuem, em geral, um inegável vínculo histórico com as ciências sociais.
Por outro lado, o desenvolvimento recente de algumas áreas, tais como a etnobotâni-
ca e a etnozoologia, tem sido associado a um crescente emprego de teorias e métodos
oriundos da ecologia e da biologia.

30
Angelo Giuseppe Chaves Alves & Ulysses Paulino de Albuquerque

O ideal de uma ciência interdisciplinar totalmente simétrica ou equidistante, ba-


seada na contribuição equivalente de várias disciplinas preexistentes é praticamente
impossível de ser implantado na prática. Se isso acontecesse, o resultado seria uma
superciência, pretensamente neutra e universal. O que se observa concretamente, na
prática científica, inclusive na etnobiologia e na etnoecologia, são negociações (Fou-
rez 2001) em que algumas tendências tornam-se majoritárias, ao menos temporaria-
mente, em detrimento de outras.
A aparente tendência é que a etnobiologia e a etnoecologia continuem desen-
volvendo-se, mas não como linhas paralelas, e, sim, como áreas semelhantes que se
completam. Assim, em muitos grupos de pesquisa, diversos pesquisadores realizam
e publicam trabalhos de etnobiologia e de etnoecologia simultaneamente, não alter-
nadamente. Isso indica que o recorte disciplinar no campo da etnobiologia e da et-
noecologia é geralmente aproximado e pouco preciso e que a relação entre essas duas
áreas não deve ser representada como uma oposição binária. Em outras palavras,
etnobiologia e etnoecologia não são termos sinônimos, mas as eventuais diferenças
que podem existir entre elas (Toledo & Chaires 2012) não são suficientes para defini-
-las como campos mutuamente excludentes. Nem a etnobiologia nem a etnoecologia
desenvolveram-se isoladamente a ponto de caracterizar uma situação como a que
Latour (2000) chamou de “revolução copernicana”, baseando-se em uma metáfora
anteriormente usada pelo filósofo Imannuel Kant.
È possível concluirmos, então, que muitos aspectos teóricos e metodológicos ain-
da estão em jogo no processo de construção destes campos. O fato de ambas abor-
darem os saberes locais ou tradicionais, buscando desenvolver pesquisas científicas
a respeito, faz com que o processo histórico de construção da ciência, ao longo do
trabalho cotidiano dos etnocientistas, torne-se bastante complexo.
Por um lado, esse contexto de conexões entre saberes, caracterizado por uma ló-
gica difusa (fuzzy logic) pode gerar incompreensões, especialmente para os que se
iniciam nesses campos. Porém, por outro lado, constitui uma representação bastante
realista das interfaces de conhecimentos que ocorrem atualmente, tanto no mundo
acadêmico, como entre este e os outros setores da sociedade. Um caso exemplar, neste
sentido, é o do entomólogo e antropólogo estadunidense Darrell A. Posey, que tra-
balhou, a partir da década de 1970, entre os Kayapó, na Amazônia Brasileira, e que
se tornou um defensor dos direitos de propriedade intelectual das populações tradi-
cionais. Discorrendo sobre este último tema, Posey (2000) referiu-se à “etnobiologia
e etnoecologia no contexto das leis nacionais e acordos internacionais que afetam o

31
ETNOBIOLOGIA OU ETNOECOLOGIA?

conhecimento indígena e local os recursos tradicionais e os direitos de propriedade


intelectual”. O uso simultâneo dos dois termos, no título de uma publicação rele-
vante, permite entendermos que ambos estavam sendo considerados como enfoques
diferentes, porém muito próximos e eventualmente complementares. Um exemplo
similar observa-se da parte de Ghillean Prance (1995), o qual se refere a um manual
de métodos em etnobotânica (Martin 1995) que seria, na sua opinião, de interesse
de etnobiólogos e etnoecólogos. Tais exemplos indicam a tendência à utilização da
conjunção “e” como mais adequada do que o da conjunção “ou” nesse contexto inter-
disciplinar.
O Brasil tem se mostrado como um campo fértil para ambas as áreas. O primeiro
autor brasileiro a criar um arcabouço teórico original para a etnoecologia foi Mar-
ques (1995; 2001). Na sua etnoecologia abrangente, destaca-se o estudo das conexões
básicas, por meio das quais se daria a inserção humana nos ecossistemas: homem-
-mineral, homem-vegetal, homem-animal, homem-homem e homem-sobrenatural.
Outra característica dessa abordagem é a tentativa de equilíbrio ou de articulação
entre as dimensões êmica e ética.
Já, em relação à etnobiologia, mais especificamente, esta vem se desenvolvendo
no Brasil e em outros países da América Latina, o que se verifica pelo crescente núme-
ro de publicações acerca do tema (Albuquerque et al. 2013).
Concluímos, então, que, quando se trata de representar o recorte disciplinar no
campo das etnociências é mais produtivo conectar os diversos setores do saber do
que separá-los, de forma excludente.

Referências
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33
CAPÍTULO 4

ETNOBIOLOGIA URBANA1
Ana Haydée Ladio & Ulysses Paulino de Albuquerque

Um dos temas mais intrigantes em etnobiologia é o uso de recursos biológicos


em sistemas culturais urbanos. As cidades, como uma representação desses sistemas,
são aglomerações organizadas para a vida coletiva, nas quais uma parte significativa
da população vive de atividades não agrícolas (Derruau 1964). Essas concentrações
culturais podem ter densidades distintas, de 2.000 habitantes até dezenas de milhões
de habitantes. Geralmente, essas populações vivem em edificações coletivas altas e têm
modos de vida fundamentalmente vinculados a atividades dos setores secundário e
terciário (indústria, comércio e serviços). Apesar deste cenário, que parece distanciar
os seres humanos da natureza, nas cidades continua havendo relações de interdepen-
dência, formando um ecossistema de alta variabilidade socioambiental no qual o natu-
ral e o artificial se articulam e se interpenetram entre si (Duarte-Almada 2010).
Embora a lógica da globalização e do mercado capitalista esteja muito presente
e possa ter um efeito homogeneizante em termos culturais acerca da relação entre
ser humano e recursos biológicos, nas grandes cidades do mundo a multietnicidade
apresenta-se como característica peculiar, o que implica diferentes graus de hete-
rogeneidade (Quave et al. 2012). Devido a imigrações internas, em geral de áreas
rurais ou internacionais, existem distintos grupos sociais e coletividades que rece-
bem pessoas com uma bagagem sociocultural compartilhada, que, na maioria dos
casos possuem padrões de uso do ambiente e/ou dos recursos biológicos (naturais,
cultivados e comercializados) muito distintos uns dos outros (Duarte Almada 2010;
Ceuterick et al. 2008).

1 Este capítulo é uma versão resumida do artigo publicado pelos autores na revista Ethnobiology and
Conservation (2014): The concept of hybridization and its contribution to urban ethnobiology.

35
ETNOBIOLOGIA URBANA

No processo de reprodução de modos de vida particulares, de acordo com o gru-


po, ocorre certa inércia cultural em relação ao uso de recursos tradicionais, enquanto
que, devido à pressão do mercado para a difusão de outros elementos, geram-se tam-
bém assimetrias de poder e de prestígio. Isso determina, de forma variável, a ma-
nutenção, o abandono e/ou a inovação de determinadas práticas ligadas ao uso de
plantas e de animais (Medeiros et al. 2012).

Uma definição de etnobiologia urbana

Podemos definir, de forma geral, a etnobiologia urbana como o estudo das inter-
-relações (sejam simbólicas, afetivas, emocionais ou materiais) que se estabelecem, de
forma individual e/ou coletiva, entre os habitantes das cidades e os recursos naturais
(animais e/ou plantas) aos quais estes têm acesso. Nessa inter-relação, é possível evi-
denciar componentes tangíveis (os recursos biológicos) e intangíveis (valores, nor-
mas e regras próprias de cada cosmovisão particular), que determinam o fluxo dessas
inter-relações na vida das pessoas e dos grupos, ou seja, sua entrada, sua saída, sua
exclusão e sua subordinação. A determinação das forças que explicam esse fluxo de
inter-relações é um dos maiores desafios da etnobiologia urbana.

Componentes e contextos

Os componentes tangíveis e intangíveis, que se articulam na relação entre so-


ciedade urbana e recursos biológicos, podem ser considerados tradicionais ou não
tradicionais, ainda que essa distinção seja complexa e, muitas vezes, transitória. Os
recursos tradicionais são os que sustentam modos de vida de longa data, colocan-
do em prática cosmovisões locais ou de sociedades imigrantes, fortalecendo, dessa
forma, sua identidade cultural. Por sua vez, os componentes não tradicionais são os
recursos de origem vegetal ou animal que não são próprios de uma cultura ou am-
biente; diferenciam-se dos considerados tradicionais porque sua inter-relação com os
integrantes de uma cultura é escassa ou de curta duração. Em geral, sabe-se que sua
utilização não foi gerada localmente nem surgiu por meio de transmissão cultural de
geração em geração ou por meio de práticas compartilhadas.

36
Ana Haydée Ladio & Ulysses Paulino de Albuquerque

Esses recursos chegam às populações por meio da introdução intencional ou não


de outras culturas ou tendências culturais ou da propiciação das alterações ecológico-
-ambientais dais paisagens de origem antropogênica ou não (Ladio & Molares 2014).
Assim, os recursos biológicos podem ser nativos ou exóticos em relação ao local sil-
vestre, chegando às pessoas por meio do contato com este (Ladio & Rapoport 1999),
do cultivo ou da criação (Hurrell et al. 2011), da comercialização formal ou informal
(Alves & Rosa 2012; Medeiros et al. 2012) ou de outras formas de intercâmbio social
(Balick et al. 2000; Ceuterick et al. 2008; Richeri et al. 2010).
Os diferentes estudos realizados até o momento pela etnobiologia urbana podem
ser separados de maneira ilustrativa em dois grupos, de acordo com seus contextos.
Por um lado, temos as relações que se manifestam, principalmente, dentro da residên-
cia, que se referem a estudos relacionados à dieta, à medicina caseira, à horticultura,
ao embelezamento dos lares com plantas e animais e que dependem de decisões fami-
liares e/ou individuais dentro da casa. Por outro lado, temos as relações que emergem
entre os habitantes e os recursos naturais do meio externo (no exterior do domicílio,
não residenciais), que dependem não somente de decisões familiares e/ou individuais,
mas também de outros atores, como funcionários de planejamento urbano e/ou de
reservas urbanas, comerciantes formais e informais, entre outros. Esse recorte artifi-
cial não implica que ambos os universos de estudo não interajam entre si, visto que o
que ocorre dentro do domicílio está intimamente ligado ao seu entorno e vice-versa.

Os locais urbanos

Tanto estudos etnozoológicos (Alves et al. 2010) quanto etnobotânicos (Medeiros


et al. 2012) têm mostrado que as cidades podem ser relíquias de tradições sobre o
uso de plantas e animais (de culturas imigrantes ou não) que convivem com recur-
sos cosmopolitas de uso difundido. Dentre os recursos biológicos mais estudados em
etnobiologia urbana, estão as plantas medicinais e comestíveis (Ceuterick et al. 2008;
Ladio & Rapoport 1999), a horticultura urbana (Hurrell et al. 2011) e as plantas e os
animais ornamentais (Alves et al. 2010, Larredo 2008). Todos esses usos parecem se
articular com a tendência cada vez maior de habitantes urbanos aderirem a filosofias
naturistas e/ou new age, que implicam uma maior presença de recursos de origem
natural na vida das pessoas. Além disso, muitos setores pobres das cidades, por razões
econômicas, não têm alternativa a não ser recorrer ao uso desse tipo de recursos.

37
ETNOBIOLOGIA URBANA

A paisagem urbana

É um fato notável que as cidades, com o crescimento urbano, sofrem sucessivas


transformações tanto em sua cobertura vegetal quanto em sua fauna silvestre (Van
Herzele & Wiedemann 2003; Ladio & Damascos 2000). Particularmente, a vegetação
nas cidades desempenha um papel estruturante, sendo a base sustentadora de
processos e de serviços ecológicos (Larredo 2008; Ladio & Damascos 2000). Contudo,
conforme o grau de urbanização, espaços como os terrenos baldios, as encostas
muito íngremes e os jardins com poucas intervenções, por exemplo, aparecem como
remanescentes da paisagem nativa em habitats fragmentados de tamanhos distintos,
oferecendo uma fonte de propágulos à vegetação local e sítios de refúgio e acolhimen-
to para animais (Ladio & Damascos 2000). Tais espaços também servem como sítios
de abastecimento de recursos biológicos para satisfazer às necessidades materiais e
simbólico-espirituais dos habitantes (Alves et al. 2010; Ladio & Rapoport 1999).
Os processos de humanização da paisagem nas cidades são um fato relevan-
te, mas pouco estudado. Os cidadãos, tanto voluntaria quanto involuntariamente,
podem ser os agentes causadores da inserção de espécies animais ou vegetais, que
podem ter um comportamento invasivo e produzir mudanças significativas nas di-
nâmicas do sistema socioambiental (Nuñez et al. 2005). De forma geral, notamos
uma evidente preferência por parte dos habitantes urbanos (observada em praças,
jardins, cercas vivas e arvoredos públicos) pelo uso ornamental de plantas que são
introduzidas e vão deslocando ou realocando as espécies nativas (Larredo 2008; Ló-
pez-Moreno 1991; Rovere et al. 2013).
Outro aspecto notável relativo a esse tema são as feiras urbanas ao ar livre (Al-
ves & Rosa 2012, Albuquerque et al. 2007) e a venda de animais e plantas em locais
mais formais, como herbanários e pet shops (Alves et al. 2010; Pochettino et al. 2008).
Entender e estudar esses setores de comercialização é fundamental para compreen-
dermos os modos urbanos de acesso aos recursos biológicos e, assim, exercermos um
papel significativo nos programas de conservação. De forma geral, nas cidades, que
estão cada vez maiores, observamos a tendência de geração de uma demanda cada vez
ampla de produtos biológicos que, normalmente, são provenientes de áreas naturais
ou silvestres (Cunningham 2001).
Nas cidades o acesso das pessoas aos recursos provenientes de ambientes na-
turais longínquos, além dos limites da urbanidade, muitas vezes é favorecido pelos
laços mantidos com áreas rurais e silvestres. Muitos habitantes urbanos, por exem-

38
Ana Haydée Ladio & Ulysses Paulino de Albuquerque

plo, possuem também uma residência rural. Dessa forma, o uso de plantas e animais
já não depende apenas das condições urbanas. Essa situação de “transcomunidade”
implica uma ampliação dos espaços sociais nos quais as pessoas agem favorecidas
principalmente pela maior mobilidade devido a um melhor acesso a meios de trans-
porte e de comunicação (Ladio & Molares 2014). Desse modo, vinculam-se os seg-
mentos rurais e urbanos de forma contínua e bidirecional, gerando a incorporação
de recursos em um novo contexto.

Conclusões: o processo de hibridização na


etnobiologia urbana

Segundo Garcia Canclini (2001), as cidades são enclaves híbridos. Por um pon-
to de vista etnobiológico, os processos de hibridização podem ser definidos como
aqueles que descrevem o realocamento de práticas e de recursos biológicos tradicio-
nais em função da modernidade e vice-versa. O conceito de processo de hibridização
implica uma reconversão cultural que se expressa em âmbitos distintos, em especial
no material, no econômico e no simbólico. A hibridização, como processo de inter-
secção e de transações, possui uma lógica de readaptação a novas circunstâncias, que,
de acordo com alguns estudos (Richeri et al. 2010, Medeiros et al. 2012), parece ser
inerente aos sistemas de conhecimento ecológico tradicional. Se essa capacidade de
readaptação for mantida nas cidades, estas podem ser sítios de resistência de saberes e
práticas, mantendo os conhecimentos tradicionais das próprias inovações que fomen-
tam o mercado ou sua entrada no circuito comercial. De acordo com Vandebroek &
Balick (2012), isso está alinhado a uma possível mudança de visão em relação ao pa-
radigma vigente que vincula equivocadamente a globalização à erosão cultural como
um padrão geral. A ideia ortodoxa de que a modernidade implica necessariamente o
desaparecimento de tradições pré-modernas deve ser tomada com cautela para cada
temática estudada nas cidades.
Visto que a característica mais significativa dos estudos etnobiológicos é seu forte
padrão de mudança temporal, em especial em sistemas dinâmicos como uma cidade,
a solução para as questões mencionadas consiste nos estudos realizados por meio de
projetos pre-post, de forma que possamos visualizar e documentar as entradas, as
reconversões e/ou as saídas dos usos de recursos biológicos na vida urbana. Apesar de

39
ETNOBIOLOGIA URBANA

serem estudos que demandam tempo e esforço, constituem o caminho para descobrir
o intrincado mundo etnobiológico dentro das cidades.

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Ana Haydée Ladio & Ulysses Paulino de Albuquerque

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41
CAPÍTULO 5

PALEOETNOBIOLOGIA
Steve Wolverton, Jonathon Dombrosky & Andrew Barker

A paleoetnobiologia é o estudo das interações humano-biota por meio da análise


de restos de fauna e flora em contextos arqueológicos e paleobiológicos. A pesquisa
paleoetnobiológica desempenha o importante papel de adicionar um registro empírico
de profundidade temporal na etnobiologia, a qual examina, por sua vez, as relações hu-
manos-ambiente dentro das culturas e compara essas interações interculturalmente.
As pesquisas paleoetnobiológicas estão centradas em duas questões principais: 1)
quais tipos de plantas e animais foram incorporados em dietas passadas por meio de
forrageio, pastoreio ou jardinagem? e 2) como eram os paleoambientes nos quais as
pessoas interagiram no passado? As duas questões estão interligadas entre si, assim
como restos arqueobotânicos e zooarqueológicos (sejam macroscópicos, microscópi-
cos ou moleculares), e referem-se a comportamentos passados de subsistência huma-
na e a paleoambientes nos quais a biota foi forrageada ou produzida (Figura 1).
As subáreas de paleoetnobiologia geralmente sobrepõem-se às da arqueologia
ambiental, da ecologia histórica e da paleobiologia. Uma distinção importante é que
os paleoetnobiólogos focalizam as interações humanos-biota no espaço e no tempo,
ao passo que a pesquisa arqueológica convencional enfatiza os comportamentos hu-
manos no passado e não as interações humanas.

Tipos de paleoetnobiologia

Neste capítulo, vamos organizar a paleoetnobiologia em três subcampos diferen-


tes: paleoetnobotânica, zooarqueologia e química arqueológica (Tabela 1). Os restos
e resíduos vegetais, animais e biomoleculares são identificados e analisados de
​​ dife-
rentes formas, pois cada tipo de resíduo animal, de planta ou molecular é preservado

43
PALEOETNOBIOLOGIA

e recuperado de formas distintas1. Embora as abordagens de pesquisa variem depen-


dendo do tipo de paleoetnobiologia, há preocupações comuns sobre a qualidade dos
dados, a tafonomia e a quantificação. Além disso, todas as três áreas de paleoetnobio-
logia são cada vez mais importantes na pesquisa ecológica aplicada, desde a biologia
da conservação até a restauração ecológica.

Tabela 1. Tipos de resíduos e restos paleoetnobiológicos.

Zooarqueologia Paleoetnobotânica Química arqueológica


Ossos Macrobotânicos DNA antigo
Dentes Madeira e carvão vegetal Ácidos graxos e lipídios
Chifre Sementes Alcalóides
Galhada Nozes Proteínas
Concha Fibras Isótopos estáveis
Arte rupestre Arte rupestre

Microbotânicos
Pólen
Fitólitos
Amidos

Qualidade dos dados

Todas as análises paleoetnobiológicas relacionam-se intimamente com as ques-


tões de pesquisa levantadas pelos pesquisadores. A população-alvo representa o que
o pesquisador procura entender sobre as interações passadas humano-ambiente (Ly-
man 2008). Se alguém, por exemplo, quiser entender as diferenças na paleobiogeo-
grafia da vegetação e da população animal local para avaliar mudanças em relação
à paisagem no passado, geralmente, em muitos casos, poderá precisar identificar as

1 Neste breve resumo, não descrevemos as diferentes abordagens para cada tipo de análise; em vez
disso, iremos nos concentrar em desafios gerais que são compartilhados entre eles. Para sínteses
recentes dos fundamentos da paleoetnobotânica, ver a pesquisa de Adams & Smith (2011) e
Pearsall & Hastorf (2011); para zooarqueologia ver Lyman (2005) e Stahl (2011). Para uma com-
pilação de artigos ecológicos importantes em zooarqueologia, ver Broughton & Cannon (2010).
Existem várias obras que introduzem o tema da química arqueológica de resíduos biomolecu-
lares. Um estudo recente a esse respeito é feito por Brown & Brown (2011). Ver Barbarena (2014)
para uma clara introdução acerca da análise de isótopos estáveis e​​ m arqueologia ambiental.

44
Steve Wolverton, Jonathon Dombrosky & Andrew Barker

espécies da fauna e flora, o que pode ser difícil de conseguir por meio de restos pa-
leoetnobiológicos, que podem não estar bem preservados. Diferentes espécies com
morfologia semelhante podem preferir habitats distintos, assim, a confiabilidade das
conclusões depende da confiança com que o analista pode fazer tais identificações.
O paleoetnobiólogo, no entanto, não trabalha diretamente com as populações-
-alvo; ao invés disso, trabalha com amostras recuperadas de contextos arqueológicos
ou paleobiológicos. Estes conjuntos de restos não são amostras aleatoriamente de-
senhadas de populações biológicas passadas, comunidades ecológicas ou comporta-
mentos humanos; são amostras fortuitas recuperadas durante as pesquisas de campo
e escavações. Assim, a validade da análise paleoetnobiológica depende da resposta a
duas questões importantes: 1) o quanto o analista confia nas identificações taxonô-
micas? e 2) o quão representativos das populações do passado, das comunidades e dos
comportamentos os restos parecem ser, dada a preservação, o tamanho da amostra e
o contexto de recuperação (mencionado novamente a seguir em “Tafonomia”)?
A identificação de restos arqueobotânicos, zooarqueológicos e de resíduos mo-
leculares segue os mesmos princípios básicos. Procedimentos perfeitos de identifi-
cação em cada uma das três áreas requerem uma coleção de referência ou banco de
dados de espécimes contemporâneos conhecidos ou historicamente documentados.
O paleoetnobotânico, por exemplo, terá vastas coleções de referência de amostras de
madeira, pólen, sementes, nozes, fitólitos e outros tipos de tecidos vegetais de espécies
que são comuns em sua região de estudo. O zooarqueólogo, por sua vez, organizará
uma coleção de referência de esqueletos de espécies em sua região de estudo. Muitos
paleoetnobiólogos contam com grandes coleções de história natural, em universida-
des e museus. Do mesmo modo, o químico arqueólogo depende de grandes bases de
dados que registram as estruturas moleculares de compostos conhecidos dos quais
derivam tecidos vegetais e animais, quer se trate de ácidos graxos, proteínas (Figura
2) ou outros tipos de resíduos. Um desafio constante na análise laboratorial é o grau
em que a estrutura molecular ou morfológica do tecido é conservada em termos de
biologia evolutiva (ou homologia) entre espécies semelhantes. Assim, uma área im-
portante para o crescimento em paleoetnobiologia, além da construção e manutenção
de coleções de referência, é a avaliação probabilística de caracteres morfológicos e
moleculares para determinar a existência ou não de espécies relacionadas ou gêneros
que podem ser identificados (Wolverton 2013).

45
PALEOETNOBIOLOGIA

Tafonomia

Tafonomia é o estudo da transição da matéria orgânica da biosfera (o mundo dos


vivos) para a litosfera (o mundo geológico). Pesquisas tafonômicas dentro da paleo-
etnobiologia foram desenvolvidas mais dentro da zooarqueologia, cujos estudos têm
sido feitos para determinar os processos e agentes que modificam restos de esque-
letos em vários cenários ao longo do tempo (Lyman 1994). Processos tafonômicos
que influenciam ossos incluem o intemperismo, o roer carnívoro, o processamento
do osso para que as pessoas obtenham seus nutrientes internos, a química do solo e
outros fatores que os modificam ou destroem. A maioria das pesquisas tafonômicas
na zooarqueologia concentra-se em restos de vertebrados, havendo, ainda, poucos
trabalhos sobre restos de invertebrados (Wolverton et al. 2010). Pesquisas tafonômi-
cas em paleoetnobotânica são consideravelmente menos sintéticas (em comparação
com a obra de Lyman 1994) e tendem a concentrar-se na tentativa de encontrar ma-
neiras de melhorar as análises para reconstruir paleoambientes e culturas do passado,
embora alguns estudos também foquem preservação, capacidade de identificação e
amostragem2.
Grande parte da pesquisa tafonômica em zooarqueologia e paleontologia preo-
cupa-se em registrar a história tafonômica dos restos em um contexto particular para
verificar se estes podem ou não servir como uma amostra adequada para responder
às questões de pesquisa específicas. Por exemplo, para determinar se os padrões de
abate do bisão das Grandes Planícies (Bison bison) mudaram ao longo do tempo, por
meio da interpretação das alterações observadas nas frequências de partes do esque-
leto como indicativo de comportamento de abate humano, o analista deve primeiro
certificar-se de que a preservação diferencial de outros processos não humanos não
influenciou as contagens (ver exemplos em Lyman, 1994). Pesquisas bastante limi-
tadas foram feitas na tafonomia de resíduos moleculares em química arqueológica, o
que continua a ser um caminho importante para futuras pesquisas (p.ex. os efeitos de
intemperismo, do cozinhar, da digestão ou de outros processos sobre a preservação
de biorresíduos).
Em resumo, há pelo menos duas perspectivas sobre o papel da tafonomia em pes-
quisas paleoetnobiológicas: 1) a de que a pesquisa tafonômica pode auxiliar o pesqui-

2 Ver a recente revisão de Collinson (2011). Para uma recente compilação de estudos paleobotâ-
nicos e tafonômicos, ver a edição especial em Palaios (Ferguson 2012)

46
Steve Wolverton, Jonathon Dombrosky & Andrew Barker

sador na remoção de vieses das amostras e 2) a de que os efeitos tafonômicos devem


ser considerados como hipóteses de trabalho para explicar os padrões observados em
dados paleoetnobiológicos. Dadas as contingências de amostragem paleoetnobiológi-
cas (p.ex. paleoetnobiólogos não planejam direta ou aleatoriamente criar amostras a
partir de populações-alvo de plantas e animais), a segunda perspectiva pode revelar-
-se a mais frutífera para pesquisas futuras.

Quantificação

A revolução quantitativa em arqueologia incorporada na nova arqueologia das


décadas de 1960 e 1970 levou a um aumento da aplicação de abordagens estatísticas
(p.ex. Binford 1964; Clarke 1968). No entanto, em relação a resíduos zooarqueológicos
Grayson (1979; 1984) mostrou que os dados quantitativos de taxonomia e abundância
de partes de esqueletos (contagens de espécimes de ossos, conchas, chifres e galhadas)
são, no máximo, escalas ordinais (ver resumo detalhado em Lyman 2008). A lógica
de Grayson estende-se para restos paleoetnobotânicos e afirma que as diferenças na
abundância de grãos de pólen em um estrato de um núcleo entre um táxon de planta
e outro podem sugerir que um tipo de planta era mais ou menos abundante que outro.
No entanto, a magnitude da diferença em abundância é desconhecida. Apesar de o
pólen de um grupo taxonômico ser duas vezes maior em comparação com outro, não
se deve concluir que o primeiro era duas vezes mais abundante que este último. Essa
lógica estende-se a muitos tipos de dados quantitativos paleoetnobiológicos (p.ex.
contagens de resíduos zooarqueológicos, arqueobotânicos e paleobotânicos, bem
como resíduos biomoleculares) e deriva de um problema fundamental com amostra-
gem paleoetnobiológica.
Abordagens de estatística inferencial são projetadas para serem aplicadas quan-
do o erro de amostragem é conhecido por ser gerado de forma aleatória, o que pode
ser controlado por meio de delineamento amostral ao desenhar os espécimes direta-
mente a partir da população-alvo de interesse (p.ex. um animal ou uma população
de plantas). No entanto, as populações paleoetnobiológicas nunca são amostradas
direta ou aleatoriamente e estão sujeitas a diversos fatores históricos tafonômicos.
Assim, abordagens estatísticas devem ser adotadas com cautela, fazendo o mínimo de
suposições possíveis. A abordagem conservadora consiste na utilização de métodos
estatísticos apenas descritivos; já uma abordagem mais liberal consiste na utilização

47
PALEOETNOBIOLOGIA

de testes inferenciais rigorosos e robustos, como as estatísticas não paramétricas. A


abordagem mais liberal é a utilização de testes paramétricos poderosos, os quais, se a
recomendação de Grayson for atendida, devem ser evitados.

Paleoetnobiologia aplicada

Dentro das últimas duas décadas, os paleoetnobiólogos contribuíram com bolsas


de estudos em biologia da conservação e ecologia da restauração. Neste período, con-
tribuições formais foram feitas em ambas as áreas ‒ zooarqueologia aplicada (p.ex.
Wolverton & Lyman 2012) e paleoetnobiologia (p.ex., Lepofsky et al. 2003) aplicada
‒, e o potencial de pesquisa de conservação por meio da análise de resíduos biomo-
leculares na química arqueológica (Barker 2011). A paleoetnobiologia contribui com
uma perspectiva de divulgação de pesquisas de conservação (ver Borgmann 2000),
perspectiva que muda a escala de compreensão. Por exemplo, a ciência da conser-
vação visa apoiar uma missão de sustentabilidade, o que implica o uso dos recursos
naturais hoje dentro de uma taxa que garanta às futuras gerações de pessoas a mesma
oportunidade. Sustentabilidade refere-se a uma consideração temporal da interação
humano-ambiente. No entanto, as pessoas contemporâneas vivem suas vidas diárias
em uma escala de tempo muito menor devido a atividades econômicas, sociais e polí-
ticas. A paleoetnobiologia fornece uma fonte de dados empíricos com os quais é pos-
sível estudar as interações humano-ambiente ao longo de maiores escalas temporais.

Conclusão

Os paleoetnobiólogos estão em uma posição única para tratar de questões de


sustentabilidade e melhorar a compreensão acerca dos impactos humanos sobre o
ambiente em amplas escalas temporais e biológicas. Tal perspectiva é cada vez mais
importante uma vez que os impactos humanos sobre o meio ambiente atingem níveis
sem precedentes. Não só podemos compreender melhor o passado com dados paleo-
etnobiológicos, mas, com a atenção contínua a questões relacionadas à qualidade de
dados, tafonomia e quantificação, podemos antecipar melhor os desafios futuros que
podem resultar dos comportamentos das sociedades modernas.

48
Steve Wolverton, Jonathon Dombrosky & Andrew Barker

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Figura 1. Apitos ósseos de aves de Ponsipa’akeri (LA 297) que ilustram a confluência de comporta-
mentos de subsistência e o meio ambiente passado a partir do qual esses espécimes foram forrageados.
Os apitos são fabricados a partir de ossos dos membros de grandes pássaros, provavelmente o peru
(Meleagris gallopavo), que podem ter sido caçados de populações selvagens ou criados em cativeiro.
Os perus foram caçados ou criados para alimentação, mas também forneceram penas. Apitos de ossos
podem ter sido usados para chamar perus.

50
Steve Wolverton, Jonathon Dombrosky & Andrew Barker

Figura 2. Nós analisamos as


​​ proteínasde ossos longos arqueológicos de cerca de 800 anos de idade
do complexo Goodman no sudoeste do Colorado, EUA, utilizando espectrometria de cromatografia
líquida de massa. Três amostras lagomorfas (acima) renderam hemoglobina, uma proteína do sangue
que foi identificada como sendo proveniente da lebre europeia, Lepus europaeus. A sequência de ami-
noácidos da hemoglobina está listada para cada uma das três amostras, com peptídeos identificados
destacados em cinza. A confusão taxonômica foi gerada por homologia das espécies e uma falta de
espécies de referência (p.ex. Lepus californicus) nas bases de dados normalmente disponíveis. Um
peptídeo (VNVEEVGGETLGR) foi recuperado em todas as três amostras e, portanto, pode ser um
candidato ideal para métodos direcionados mais sensíveis. A valina destacada em cinza (V) na tercei-
ra amostra foi quimicamente modificada (acetilação), presumivelmente por meio de intemperismo de
longo prazo e/ou extração e técnicas de processamento em laboratório, tornando a identificação mais
difícil. Esses dados ilustram vários dos desafios atuais na análise de proteínas arqueológicas.

51
PARTE 2:
A PERCEPÇÃO DA
NATUREZA
CAPÍTULO 6

O QUE É PERCEPÇÃO AMBIENTAL?


Taline Cristina da Silva & Ulysses Paulino de Albuquerque

Os seres humanos vêm, ao longo do tempo, construindo sua história biológica e


cultural com base em suas interações com outros seres vivos. Plantas e animais são
essenciais para o nosso dia a dia, motivo pelo qual estabelecemos vínculos cogni-
tivos, perceptivos, emocionais, econômicos e comportamentais com os elementos
naturais. No campo da etnobiologia, ao abordarmos o uso e o conhecimento dos
recursos naturais, faz-se necessário abordar também a percepção, porta pela qual
nossa individualidade tem acesso ao mundo externo.
Todavia, há inúmeras interpretações e conceitos sobre o fenômeno perceptivo,
uma vez que podemos estudar a percepção a partir de diferentes disciplinas (Bell
2001; Okamoto 2002). Portanto, para melhor elucidar o tema, esclareceremos algu-
mas questões conceituais relacionadas às pesquisas de percepção ambiental no âmbi-
to da etnobiologia, embora sem a pretensão de encerrar essas discussões conceituais.

O que é percepção?

Segundo o “Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa” (Ferreira 1988), percep-


ção significa “apreensão da realidade pelas pessoas, tendo como resultado: a percep-
ção das cores, sons, odores e sabores, se manifestando através de fenômenos químicos,
neurológicos, ao nível dos órgãos dos sentidos e do sistema nervoso central, e por di-
versos mecanismos psíquicos tendentes a adaptar esta reação aos objetos percebidos
no ambiente”.
Notamos que esta definição está relacionada aos aspectos fisiológicos do pro-
cesso perceptivo, que trataremos em outro capítulo. Entretanto, além desta, existem
inúmeras definições e desdobramentos para o termo percepção, sobretudo para a

55
O QUE É PERCEPÇÃO AMBIENTAL?

expressão “percepção ambiental”, que é amplamente empregada em investigações


nas áreas de educação ambiental e etnobiologia.
Para Tuan (1974), a percepção é uma resposta dos sentidos aos estímulos exter-
nos, na qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retroce-
dem para a sombra ou são bloqueados. Segundo este autor, muito do que é percebi-
do tem valor para o indivíduo, para a sua sobrevivência biológica e para propiciar
algumas satisfações que estão enraizadas em sua cultura. Já o conceito de Okamoto
(2002), considera a influência direta de fatores culturais nas percepções ambientais.
Dessa forma, consideramos ser mais adequada a utilização do termo represen-
tação como substituto de percepção, já que o conceito de representação leva em con-
sideração fatores psicológicos e culturais já citados aqui neste capítulo. A represen-
tação é a externalização do que o indivíduo percebe por vias fisiológicas e, como
exposto, é influenciada por aspectos psicológicos e culturais.
Com base nas linhas de pensamento apresentadas, acreditamos que o termo re-
presentação ambiental é o mais apropriado quando se pretende investigar percep-
ções de um determinado grupo social sobre elementos ambientais, pois ao acessar-
mos a fala, a escrita e/ou as ilustrações do indivíduo investigado sobre determinado
tema ambiental não estamos acessando o que de fato é percebido por este. Antes de
o indivíduo externalizar o que percebe, essa percepção passa por filtros fisiológicos,
psicológicos e culturais, fazendo com que o pesquisador tenha acesso apenas a uma
representação da realidade interna da mente do indivíduo em relação à realidade
externa (Figura 1).
Exemplificando, a fim de melhor explicar o papel desses filtros nos processos
perceptivos e na sua externalização, podemos citar o daltonismo1 (como um tipo
de filtro fisiológico). Um indivíduo com esse distúrbio pode externalizar para um
pesquisador que percebe uma floresta de coloração vermelha, pois sua percepção
passou por um filtro fisiológico que não o permite enxergar a cor verde. Logo, pesso-
as podem possuir limitações fisiológicas que as permitem ter percepções diferentes
das do senso comum.
Um exemplo de filtro cultural atuante no processo perceptivo seria o caso de
um membro de nosso grupo cultural apresentar um aparelho telefônico de última
geração para um grupo cultural que vive isolado. Provavelmente esse objeto vai ser

1 Perturbação da percepção visual em que o indivíduo tem dificuldade de distinguir a cor verde
da cor vermelha.

56
Taline Cristina da Silva & Ulysses Paulino de Albuquerque

percebido (tato, visão etc.) sem ter nenhum significado cultural imediato para essas
pessoas. Goldstein (2010) vai mais além sobre o papel dos filtros culturais nas per-
cepções ambientais, defendendo que se um elemento é percebido em determinada
cultura, mas não tem nenhum significado, esse pode receber atenção especial por
parte desse grupo cultural, na tentativa de atribuir significados, valores e utilidades
para esse elemento. Outro exemplo, ainda, são os alimentos que, para determina-
dos grupos culturais, são extremamente saborosos, enquanto que, para outros, cau-
sam repugnância. No entanto, acessar esse tipo de percepção é um tanto difícil, pois
percepções químicas como cheiro e sabor incluem dois processos simultâneos: um
biológico e outro cultural, relacionado à interpretação e avaliação das informações.
Por esses motivos, defendemos que as reais percepções da realidade são difíceis
de serem acessadas na pesquisa etnobiológica por meio de entrevistas e outras ferra-
mentas metodológicas, pois são abstratas e influenciadas por diversos fatores, como
idade, gênero, renda, fatores biológicos e evolutivos, entre outros que serão esclareci-
dos mais adiante nesta obra. Logo, a representação que o indivíduo expõe por meio
de sua fala, escrita e/ou ilustrações é a única maneira pela qual o pesquisador pode
acessar suas visões de mundo, suas sensações, seus valores e suas opiniões.
É importante destacar que as pesquisas a respeito das representações ambientais,
podem ser úteis para: verificar mudanças na paisagem e suas possíveis causas;
entender os critérios envolvidos na seleção e no uso de recursos naturais; elaborar
estratégias de conservação ambiental; realizar diagnósticos ambientais; desenvolver
projetos de educação ambiental que levem em consideração as visões sobre o
ambiente que têm os diferentes atores sociais, entre outras implicações.
Destacamos, ainda, a diferença conceitual entre percepção e conhecimento, já
que pontuamos que muitos trabalhos acessam questões cognitivas e utilizam o ter-
mo percepção como sinônimo de conhecimento. O dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa (Ferreira 1988) conceitua conhecimento como: “ato de conhecer/ ideia,
noção de alguma coisa”. Esse conceito é distinto dos de percepção recém apresen-
tados. Um exemplo prático dessa diferença é que o indivíduo pode perceber uma
planta do ponto de vista fisiológico, com todos os filtros atuantes, no entanto, não
conhecer sobre suas funções e outros aspectos.

57
O QUE É PERCEPÇÃO AMBIENTAL?

Figura 1. Figura esquemática do conceito de representação ambiental.

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58
CAPÍTULO 7

BASES BIOLÓGICAS E EVOLUTIVAS


DA PERCEPÇÃO HUMANA SOBRE O
AMBIENTE NATURAL
Washington Soares Ferreira Júnior, Taline Cristina da Silva &
Ulysses Paulino de Albuquerque

A compreensão dos fatores associados à percepção humana sobre o ambiente é


importante para o entendimento de como nos apropriamos de plantas e animais para
diferentes usos. Além disso, o conceito de percepção humana pode variar de acordo
com a perspectiva de diferentes autores, como visto no capítulo anterior. No entanto,
aqui iremos focar nas bases biológicas e evolutivas que podem explicar a nossa per-
cepção sobre o ambiente. Para isso, a percepção de propriedades organolépticas e a
percepção de paisagens serão utilizadas como exemplos para discutir, sob uma ótica
evolutiva, o quanto fatores biológicos e culturais têm exercido papel importante na
percepção humana sobre o ambiente.

Bases biológicas e evolutivas na percepção humana


envolvendo a seleção de recursos do ambiente

Em uma perspectiva etnobiológica, o estudo do uso de plantas medicinais por


diferentes culturas tem sido importante para compreender o papel da percepção na
interação do homem com os recursos do ambiente. Algumas evidências mostram que
a percepção humana sobre as propriedades organolépticas de plantas, como o gosto
e o cheiro, e sua influência na seleção de espécies para uso medicinal têm raízes an-
tigas em nossa história evolutiva (Johns 1990). No uso medicinal, a importância do

59
BASES BIOLÓGICAS E EVOLUTIVAS DA PERCEPÇÃO HUMANA SOBRE O AMBIENTE NATURAL

reconhecimento das propriedades organolépticas de plantas por nossa espécie coloca


a questão de como a percepção dessas propriedades evoluiu.
Os comportamentos de automedicação em chimpanzés no tratamento de para-
sitoses apresentam similaridades com os comportamentos dos seres humanos (Huff-
man 2001). Nestes, esse comportamento pode ter evoluído como uma consequência
do aprimoramento do sistema nervoso nos primeiros hominídeos (Fabrega 1997),
permitindo aos nossos ancestrais uma percepção mais aguçada dos recursos do am-
biente para selecionar recursos na alimentação com o propósito de aumentar os be-
nefícios nutricionais, evitando os efeitos de toxinas potenciais (Johns 1990). Isso se
reflete na percepção do gosto, uma vez que existem comportamentos inatos associa-
dos à nossa capacidade de identificar determinados sabores. Por exemplo, do ponto
de vista evolutivo, o gosto doce está associado ao reconhecimento de alimentos com
compostos que fornecem energia, por isso há um comportamento inato de aceitação
a esse gosto; já o gosto amargo tende a ser evitado uma vez que pode estar associado a
potenciais toxinas (Johns 1990).
No entanto, a nossa espécie também associou o gosto amargo a possíveis proprie-
dades medicinais das plantas. Por serem, muitas vezes, recursos tóxicos, houve um
aperfeiçoamento do processamento e do uso dessas plantas, como infusões e decoc-
ções, a fim de minimizar os efeitos nocivos. Desse modo, um aprimorado conheci-
mento sobre uso e processamento de plantas medicinais foi passado entre as gerações,
formando farmacopeias cada vez mais complexas. Além dos processos envolvidos
com a desintoxicação, fatores como o crescimento populacional, a mudança do estilo
de vida nômade para o sedentário e as injúrias causadas por ameaça de predadores
e atividades de caça podem ter contribuído para a elaboração de farmacopeias mais
complexas (Huffman 2001; Fabrega 1997).
Além disso, não podemos deixar de lado o papel da cultura na percepção hu-
mana dos recursos do ambiente, como já mencionado nesta obra. Particularmente,
assumimos que a cultura age atribuindo significados ao que percebemos pelos nossos
sentidos, de modo que algo mencionado como desagradável por uma cultura pode
ser agradável e desejado por outra. Assim, a cultura geralmente fornece o sentido e
contexto para a expressão de comportamentos inatos no contato de humanos com
diferentes gostos e cheiros (Shepard 2004), atuando como um filtro para as respostas
inatas. Por exemplo, plantas com sabor fortemente amargo são indicadas principal-
mente para o tratamento de doenças gastrointestinais pelos maias Tzeltal, do México,

60
Washington Soares Ferreira Júnior, Taline Cristina da Silva & Ulysses Paulino de Albuquerque

devido à sua ampla aceitação cultural (Brett 1998). Essa situação exemplifica a inter-
secção existente entre biologia e cultura envolvendo o uso de plantas medicinais.
Ademais, há certos alimentos que são extremamente saborosos para determina-
dos grupos culturais, enquanto que, para outros, podem causar repugnância. Nes-
se caso fica clara a atuação de filtros culturais no sentido perceptivo da gustação.
Percebemos, então, que as percepções químicas como cheiro e sabor incluem dois
processos simultâneos: um biológico e outro cultural, relacionado à interpretação e
avaliação das informações.

Pressões evolutivas e seu papel na percepção sobre a


paisagem

Ao observarmos os estudos sobre a percepção de paisagens, notamos que exis-


tem evidências indicando que seres humanos têm preferência por paisagens abertas
quando comparadas com paisagens fechadas, tais como ambientes de floresta. Por
exemplo, na Austrália, grupos americanos e australianos indicam a preferência por
paisagens com pouca cobertura vegetal em detrimento de áreas florestais (Kaplan &
Herbert 1987). Da mesma forma, nigerianos tendem a preferir paisagens de savana ao
invés de paisagens florestais (Falk & Balling 2010). Esses exemplos se assemelham à
preferência de crianças e adolescentes moradores de uma área próxima a fragmentos
de floresta atlântica no Nordeste do Brasil, que preferem imagens de áreas urbaniza-
das ao invés de áreas de florestas fechadas (Silva et al. 2010).
Esses achados podem ser compreendidos por uma perspectiva evolutiva. Na Áfri-
ca, há milhões de anos atrás, a seleção natural atuou para manter os primeiros homi-
nídeos em áreas de savana, o que os dotou da preferência por ambientes mais abertos
(Falk & Balling 2010). No caso, os nossos ancestrais não apresentavam habilidades
específicas para viver em florestas muito fechadas, as quais ofereciam um ambiente
com forte pressão seletiva devido à presença de predadores potenciais que só pode-
riam ser vistos com dificuldade.
Uma das correntes teóricas que procura explicar a nossa percepção sobre a paisa-
gem indica que os primeiros hominídeos responderam seletivamente a configurações
da savana como um local relativamente seguro e no qual havia comida disponível.
Isso significa que hoje nós preferimos ambientes abertos de forma inata (Hartmann &
Apaolaza-Ibáñez 2010). No entanto, a cultura pode ter exercido um papel importante

61
BASES BIOLÓGICAS E EVOLUTIVAS DA PERCEPÇÃO HUMANA SOBRE O AMBIENTE NATURAL

para o aprendizado humano sobre os diferentes tipos de ambientes. Dessa maneira, a


preferência por paisagens abertas não é simplesmente uma questão inata, sendo as ex-
periências culturais importantes nas percepções e preferências humanas (Hartmann
& Apaolaza-Ibáñez 2010).
Seguramente, ao considerarmos esta discussão, percebemos que a nossa relação
com a natureza é muito complexa e não pode ser reduzida a meras explicações sim-
plistas que desconsideram nossa história evolutiva e cultural. Assim, acreditamos que,
se os argumentos já citados a respeito das nossas preferências em relação à paisagem
estiverem corretos, pode existir uma aversão inata do ser humano a áreas de flores-
tas, o que pode, de alguma forma, justificar em parte o atual contexto de degradação
ambiental em que vivemos. Porém, essa afirmação ainda é especulativa e precisa ser
cientificamente testada.
Contudo, independentemente disso, como espécie cultural, podemos sem dúvida
superar as pressões que nos são impostas por nossa natureza biológica, ideia com a
qual algumas correntes teóricas concordam, contrapondo a noção de que nossa me-
mória ancestral age diretamente sobre nossas percepções a respeito das paisagens (ver
Hartmann & Apaolaza-Ibáñez 2010). Com isso, observamos que ainda existem inú-
meras perguntas a serem respondidas quanto à evolução da mente humana e suas
influências sobre nossas percepções da paisagem. O que torna um cenário de investi-
gação instigante para nós etnobiólogos, pois a compreensão dos fatores associados à
percepção humana sobre o ambiente é importante para entendermos como nos apro-
priamos dos diferentes recursos ambientais.

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63
CAPÍTULO 8

PERCEPÇÃO DE RISCO
Taline Cristina da Silva, Washington Soares Ferreira Júnior, Flávia Rosa Santoro,
Thiago Antônio de Sousa Araújo & Ulysses Paulino de Albuquerque

O risco pode ser entendido como a exposição de um indivíduo a circunstâncias


potencialmente desfavoráveis (Smith et al. 2000). Determinadas práticas culturais,
conflitos com outras culturas, variações ambientais (secas prolongadas, inundações) e
epidemias podem colocar-nos desafios em situações potencialmente desfavoráveis, ou
seja, em uma situação de risco. Portanto, torna-se importante sabermos as consequên-
cias futuras de determinados eventos que ocorrem atualmente ou que poderão ocorrer
no futuro (Sjöberg 2000).
A percepção de risco pode ser definida como o conjunto de julgamentos, senti-
mentos, atitudes e crenças de um indivíduo e de um grupo humano direcionado à
avaliação de risco (Pidgeon et al. 1992). A forma como percebemos e avaliamos os ris-
cos pode determinar as estratégias que seguiremos para o aproveitamento dos recur-
sos naturais, bem como outras decisões e julgamentos que podem afetar nossas vidas.
A percepção de risco pode ser avaliada por meio da incidência e da severidade dos
riscos (Smith et al. 2000). A incidência mensura o quanto determinado risco é men-
cionado por um grupo cultural; já a severidade mensura o quanto esse risco é perce-
bido como grave e capaz de afetar nossa qualidade de vida. Um risco pode apresentar
alta incidência, mas baixa severidade. Entretanto, os riscos altamente incidentes e
severos merecem atenção, normalmente porque podem ser úteis para a implantação
de políticas públicas.
Podemos investigar o modo como fatores sociais e culturais influenciam as per-
cepções de risco das pessoas em relação ao ambiente. Essa informação é chave por
dois motivos principais: 1) do ponto de vista teórico, permite uma maior compreen-
são dos fatores que podem levar a variações na percepção de risco envolvida nas in-
terações entre pessoas e ambiente, tanto entre indivíduos de um mesmo grupo, como

65
PERCEPÇÃO DE RISCO

entre diferentes grupos humanos; 2) em uma perspectiva prática, é importante para


entendermos as ações das pessoas frente ao risco (Peters & Slovic 1996), contribuindo
com a produção de estratégias e ações políticas que minimizem as possíveis ameaças
existentes nas interações entre as pessoas e o ambiente (Oltedal et al. 2004).
As práticas e crenças relacionadas aos cuidados à saúde, por exemplo, revelam
pontos essenciais sobre como as pessoas percebem as ameaças ambientais a que estão
susceptíveis. No entanto, as percepções sobre o que é uma condição saudável e o que
não é depende dos valores estabelecidos por uma cultura e, aparentemente, apresenta
uma imensa variedade intercultural (Douglas 1966).
Fatores socioeconômicos podem afetar as percepções de risco em relação à saúde
dentro de uma mesma cultura. Por exemplo, o estudo de Buster et al. (2012) consta-
tou que a percepção do risco de contrair e curar-se do câncer de pele pode ser muito
maior entre pessoas mais velhas, entre as mulheres, entre os que têm maior nível de
escolaridade e entre os de menor renda de um mesmo grupo cultural. Em relação ao
gênero, mulheres de comunidades rurais na Tanzânia apresentam uma maior per-
cepção de risco do que os homens em relação a doenças que acometem pessoas e que
ocorrem nas comunidades. Os homens, por sua vez, apresentam maior percepção de
risco para doenças ligadas ao gado (Quinn et al. 2003). Esses dados podem ser um
reflexo das diferenças de papel social entre homens e mulheres. Em muitos grupos
humanos, as mulheres cuidam da casa e dos filhos e detêm um maior conhecimento
sobre plantas medicinais, sendo responsáveis pelo tratamento de doenças na família.
Assim, espera-se uma maior percepção de risco sobre doenças para as mulheres. Ho-
mens, entretanto, exercem geralmente suas atividades no campo, por meio da agri-
cultura e pecuária. Neste caso, espera-se uma maior percepção de risco sobre doenças
ligadas ao gado.
Esses achados mostram que a compreensão da percepção de risco envolvendo
doenças abrange diferentes fatores. Se essa percepção de risco for uma força modula-
dora importante para determinar quais práticas os indivíduos e grupos adotarão em
determinada situação, é muito provável que o que hoje registramos nas práticas médi-
cas de diferentes culturas (como o uso de plantas e animais medicinais do ambiente)
resulte de um fenômeno muito mais complexo do que se imagina, o que também tem
consequências para as políticas públicas. Por exemplo, projetos de saúde pública tor-
nam-se um problema quando são realizados em comunidades locais sem considerar
as percepções de risco dos moradores em relação às doenças que os acometem. Sem o

66
Taline Cristina da Silva, Washington Soares Ferreira Júnior, Flávia Rosa Santoro,
Thiago Antônio de Sousa Araújo & Ulysses Paulino de Albuquerque

diálogo entre as partes interessadas, torna-se difícil identificar as fontes de risco que
podem ser alvo de políticas públicas para melhorar a qualidade de vida da população.
O acesso às percepções de risco também pode ser importante para a conservação
dos recursos naturais, à medida que acessamos as predisposições que temos para mu-
dar algumas situações, a partir do momento em que passamos a enxergar o problema
e dispomos a resolvê-lo (Sudimeier-Rieux et al. 2012). Desse modo, uma questão am-
biental percebida como de risco para determinado grupo social pode desencadear a
necessidade de solucioná-la.
É preciso ter em vista que as percepções de risco podem variar entre diferentes
culturas. Como exemplo, podemos apontar que foi detectada uma grande variação
entre as percepções de risco sobre enchentes de dois grupos étnicos distintos
residentes nas margens de um mesmo lago, em Benin, na África (Teka & Vogt 2010).
Nessa região, o grupo que tem a pesca como principal atividade econômica percebia
as enchentes de maneira positiva, pois, segundo as pessoas deste grupo, tal fenôme-
no ambiental aumentava a abundância de recursos pesqueiros. O outro grupo, que
possuía intensa atividade agrícola, considerava as enchentes como uma grande ame-
aça. Sendo assim, as percepções de risco podem ser maiores se as consequências de
determinado evento afetam a disponibilidade de recursos importantes para um dado
grupo, demonstrando a importância de aspectos utilitários na percepção.
Por último, destacamos que abordagens que visem acessar a percepção de ris-
co são valiosas para a elaboração de grandes projetos que vão causar modificações
ambientais (Meng et al. 2012). Normalmente esses projetos têm como base laudos
técnicos que não levam em consideração as percepções locais (Meng et al. 2012), des-
considerando que as populações residentes próximas a essas áreas podem dar infor-
mações mais detalhadas sobre os possíveis riscos sociais e ambientais trazidos com
esses empreendimentos, o que colaboraria para a formulação de projetos que levem
em consideração as demandas e percepções locais, aumentando a chance destes serem
bem sucedidos (Lykke 2000; Xu et al. 2006).

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Management 78(4):362-372.

68
CAPÍTULO 9

A RELAÇÃO ENTRE AS PERCEPÇÕES


E O APROVEITAMENTO DOS
RECURSOS NATURAIS
Taline Cristina da Silva, Letícia Zenobia de Oliveira Campos, Josivan Soares da
Silva, Rosemary da Silva Sousa & Ulysses Paulino de Albuquerque

O conceito de percepção ambiental é complexo e vem sendo tratado por diversas


disciplinas, como já visto nesta obra. Neste capítulo iremos destacar alguns fatores
que podem afetar as nossas percepções sobre determinados recursos naturais. Pre-
tendemos também evidenciar a atuação desses fatores como filtros preliminares com
relação ao que será externalizado (representação) a respeito de um determinado fenô-
meno ambiental e/ou recurso natural.

Fatores fisiológicos

As percepções fisiológicas, como olfato e tato, podem ser fruto de adaptações


biológicas e culturais e são fundamentais para o reconhecimento, por exemplo, de ca-
racterísticas nutricionais e toxicológicas dos recursos naturais. Desta forma, influen-
ciam nos processos seletivos de espécies que irão ser incluídas na alimentação e no
tratamento de doenças. Diversas culturas podem utilizar alimentos de sabor amargo
para a anulação de substâncias tóxicas e fortes ou como uma pista de possíveis pro-
priedades medicinais.
Portanto, esse filtro fisiológico pode ser influente na seleção de recursos naturais
em uma cultura. Alguns povos, por exemplo, têm preferência por espécies alimen-
tícias azedas e amargas, enquanto outros preferem espécies alimentícias com sabor
adocicado (Johns 1996). Da mesma forma, o sabor é um aspecto que influencia nas

69
A RELAÇÃO ENTRE AS PERCEPÇÕES E O APROVEITAMENTO DOS RECURSOS NATURAIS

representações das populações humanas sobre os recursos faunísticos e suas formas


de utilização, sendo considerada uma característica importante na seleção de espécies
que serão usadas para fins alimentícios (Koster et al. 2010).
A visão exerce forte influência na forma com que as pessoas utilizam os recur-
sos. Por exemplo, aves coloridas, por um lado, são usualmente selecionadas como
animais de estimação devido à sua beleza ou como adornos em cerimônias religiosas
em diversas regiões do mundo (Alves 2012). Por outro lado, cores vibrantes em outros
animais podem ser percebidas pelas pessoas como um indício de que tais espécies são
perigosas (Prokop & Fancovicova 2013).

Fatores socioeconômicos e culturais

Vários estudos indicam que diferenças intra e interculturais na percepção, como


a idade, a função social do indivíduo e o tempo de moradia pode influenciar nossas
percepções sobre a natureza. Este tema será retomado em outros capítulos do livro,
porém focando como esses fatores afetam propriamente o conhecimento das pessoas
sobre os recursos naturais. Com relação a idade, Silva et al. (2010) investigaram a per-
cepção de crianças e adolescentes sobre fragmentos de Floresta Atlântica, verificando
que crianças com idades entre 10 e 13 anos representaram ter ligações afetivas positivas
com a floresta, enquanto que adolescentes entre 14 e 18 anos representaram ter uma
relação mais utilitarista com esta. Possivelmente, uma explicação para isso seja o fato de
que, na infância, as crianças tendem a terem suas percepções voltadas para admiração e
contemplação da natureza e, na transição da adolescência para a fase adulta, essas per-
cepções sofrem modificações, dando lugar a uma leitura mais utilitarista da natureza,
considerando o que esta pode oferecer para possibilitar a sobrevivência material.
Comunidades que se estabeleceram há mais tempo em uma dada área tendem
a indicar de maneira mais detalhada suas mudanças. Já as que se estabeleceram há
menos tempo tendem a não perceber essas modificações (Silva et al. 2014). Outros
fatores podem estar associados às variações nas percepções sobre as mudanças no
ambiente, como os tipos de relações estabelecidas entre grupos culturais e o ambiente,
por exemplo: quanto mais dependem de recursos naturais, mais esses grupos podem
perceber as modificações do ambiente (ver Sieber et al. 2010; Campos et al. 2011).
Todavia, o que faz como que algumas culturas consigam perceber mudanças no
ambiente e outras não? O nosso sistema nervoso evoluiu de modo que vários filtros

70
Taline Cristina da Silva, Letícia Zenobia de Oliveira Campos, Josivan Soares da Silva,
Rosemary da Silva Sousa & Ulysses Paulino de Albuquerque

impedem que tomemos consciência de tudo que acontece ao nosso redor, mecanismo
que evite a sobrecarga de informações. Assim, ignoramos alguns tipos de informa-
ções. Há muitas pessoas que são hábeis em indicar mudanças na disponibilidade de
algum recurso biológico do qual faz uso, já outras pessoas, em outras regiões, pare-
cem não ter a mesma habilidade apesar de manter o mesmo tipo de relação com o
ambiente. Dessa forma, devem existir vários filtros e estímulos combinando-se entre
si para determinar o que vai acontecer em uma ou outra situação, o que, sem dúvida
alguma, pode ser um tema muito interessante de investigação.

Quadro 1. Estudo de caso: espécies-chave culturais.

Algumas espécies podem ser tão importantes para uma cultura, com um papel central
pronunciado, que são chamadas de espécies-chave culturais. Essas espécies são enten-
didas como um elemento do sistema cultural de reconhecida importância para a relação
e a adaptação de seus membros ao ambiente (Cristancho & Vining 2004), sendo es-
sencial para formação da identidade cultural (Garibaldi & Turner 2004). Porém, nem
toda espécie exerce esse papel nas culturas, motivo pelo qual vários autores propuseram
indicadores para identificá-las. Tais indicadores, no entanto, foram considerados inad-
equados, visto que nem toda espécie-chave cultural terá as mesmas características em
diferentes culturas (Platten & Henfrey 2009).
Um estudo desenvolvido na região do Araripe, Nordeste do Brasil, identificou duas es-
pécies-chave culturais: pequi (Cariocar coriaceum Wittm.) e babaçu (Atallea specio-
sa Mart. ex Spreng.) (ver Sousa 2014). Foi constatado que estas plantas são reconhecidas
por comunidades extrativistas como aquelas de maior influência cultural local. Existe
uma relação de dependência material e imaterial tão intensa que está arraigada ao modo
de vida local. Esta relação acontece, principalmente, devido à importância comercial
dos recursos provindos C. coriaceum e A. speciosa na região. Assim, é possível que a
prática social desenvolvida na cultura, neste caso, o extrativismo de recursos vegetais
para fins comerciais, possa estar determinando o seu papel como recurso-chave.
Reconhecer C. coriaceum e A. speciosa como espécies-chave culturais pode resultar
em benefícios para propósitos de conservação na região do Araripe. Sabendo que essas
plantas cumprem um papel fundamental no modo de vida das comunidades extrativis-
tas estudadas, elas podem ser usadas como espécies emblemáticas para integrar as di-
mensões ecológicas e sociais e, assim, serem elementos-chave na criação de estratégias
de conservação biocultural associada ao desenvolvimento sustentável local. Para isso,
é necessário aliar a manutenção das práticas culturais locais com a conservação das
espécies, contemplando, desta maneira, não apenas a dimensão ecológica, mas também
a sustentabilidade cultural.

71
A RELAÇÃO ENTRE AS PERCEPÇÕES E O APROVEITAMENTO DOS RECURSOS NATURAIS

Quanto ao papel da cultura, mais especificamente da religião nas percepções


e, consequentemente, no uso de recursos naturais, destacamos alguns exemplos re-
lacionados à fauna. As percepções negativas que as pessoas atribuem às serpentes,
principalmente os grupos culturais que têm influências judaico-cristã, aparente-
mente pode ter uma forte relação com a passagem bíblica de Adão e Eva no Jardim
do Éden, na qual o animal opõe-se ao aconselhamento divino (Alves et al. 2012).
Essa atribuição negativa relacionada às serpentes pode resultar em reações humanas
defensivas ou preventivas por meio do extermínio desses animais. Tal relação nega-
tiva parece ser tão forte em várias regiões do Brasil que se estende também aos an-
fisbenídeos, conhecidos popularmente como cobras-cegas, por apresentarem forma
corpórea similar ao de serpentes, influenciando, assim, ações contra os indivíduos
desse grupo (Fita et al. 2010).
Um caso interessante que pode reforçar essa percepção negativa das pessoas so-
bre as serpentes ocorre com o lagarto Salvator meriane (Duméril & Bibron 1839),
conhecido popularmente como tejú ou teiú. Informantes de uma comunidade rural
no interior do Ceará apontaram serpentes como item na dieta da espécie e muitas
vezes assimilam sua aparência com a de ofídeos, levando muitos a optarem por não
fazer uso alimentício deste animal, mesmo sendo este o lagarto mais apreciado por
comunidades tradicionais em várias regiões do Brasil (Alves et al. 2012).
Um exemplo oposto à atribuição negativa para algumas espécies de animais diz
respeito à ave Fluvicola nengeta (Linnaeus 1766), conhecida em muitas regiões do
Brasil como lavadeira. Acredita-se, popularmente, que a ave auxiliou Nossa Senhora a
lavar os pés de Jesus Cristo, crença que, consequentemente, confere uma maior prote-
ção a estes animais. A percepção do sagrado, como também a representação negativa
sobre algumas espécies de animais, tem se mostrado comum em diversas culturas,
influenciando as ações tomadas para com a natureza. Na Índia, é bastante notável a
atribuição divina a várias espécies de animais, sendo as relações estabelecidas entre
as pessoas e a fauna local mediadas por tais questões religiosas e socioculturais (An-
thwal et al. 2010).
Diante do exposto, podemos afirmar que as percepções humanas associadas ao
uso de recursos naturais precisam ser minuciosamente investigadas, pois os resulta-
dos provenientes destes trabalhos podem auxiliar na compreensão dos critérios de
seleção de determinados recursos naturais por diferentes grupos culturais, em detri-
mento de outros.

72
Taline Cristina da Silva, Letícia Zenobia de Oliveira Campos, Josivan Soares da Silva,
Rosemary da Silva Sousa & Ulysses Paulino de Albuquerque

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73
PARTE 3:
A CLASSIFICAÇÃO
DA NATUREZA
CA PÍT ULO 10

COMO E POR QUE AS PESSOAS


CLASSIFICAM OS RECURSOS NATURAIS?
Andrêsa Suana Argemiro Alves, Lucilene Lima dos Santos, Washington Soares
Ferreira Júnior & Ulysses Paulino de Albuquerque

Muitos cientistas estão motivados a entender como as pessoas classificam os re-


cursos naturais, sejam eles espécies ou paisagens. Esse interesse norteou linhas de
investigação em todo o mundo, e, sem dúvida alguma, encontramos essas investiga-
ções na história da etnobiologia como abordagens fundamentais em determinados
períodos. Esses cientistas concentraram seus esforços nas chamadas taxonomias folk
ou sistemas de classificação biológico tradicional. Esses sistemas representam um
conjunto de conceitos dos membros de uma sociedade sobre os seres vivos, os quais
propiciam o contato das pessoas com o ambiente em que vivem e refletem diretamen-
te no nível de conhecimento que as pessoas têm de tal ambiente (Bousquets 1990).
Os cientistas não estão completamente de acordo sobre as nossas motivações para
classificar a natureza. Desta forma, pode-se dizer que, atualmente, há duas correntes
teóricas sobre os sistemas de classificação folk: a utilitarista e a intelectualista ou cog-
nitivista. Para a primeira, os sistemas de classificação tradicional são norteados a par-
tir do caráter utilitário dos diversos componentes do mundo natural (ver Hunn 1992),
isto é, os recursos que apresentam valor para as pessoas são os alvos da classificação.
Um grande defensor dessa corrente de pensamento é o antropólogo Eugene Hunn,
professor da Universidade de Washington. Em contraponto a essa corrente, encon-
tra-se a intelectualista ou cognitivista. Esta sugere que os sistemas de classificação
biológica são regidos por princípios intelectuais, por meio dos quais as pessoas clas-
sificam os organismos para satisfazer a uma necessidade inata humana de organizar
o mundo à sua volta ou por razões meramente relativas à curiosidade. Essa corrente
tem Brent Berlin como seu principal defensor. Berlin acredita que existem similari-
dades nos sistemas de classificação folk e científico, uma vez que, para ele, o senso de

77
COMO E POR QUE AS PESSOAS CLASSIFICAM OS RECURSOS NATURAIS?

ordenação desenvolvido pelos seres humanos obedece a princípios cognitivos, refle-


tidos em padrões hierárquicos, sejam eles relativos a classificações pré-científicas ou
enquadrados nos sistemas de classificação científica. Neste capítulo, apresentaremos
os padrões classificatórios propostos por Berlin e as contribuições de seus trabalhos
para a compreensão da classificação folk.

Princípios de taxonomia folk segundo Brent Berlin

Brent Berlin propôs os princípios que regem a classificação biológica folk (Ber-
lin et al. 1973; Berlin 1992), que, para ele, compartilham um padrão classificatório
que pode ser resumido em nove princípios universais (Quadro 1). Esses princípios,
em geral, informam que nós, independentemente de onde estejamos e de qual grupo
cultural façamos parte, classificamos os seres vivos de forma hierárquica, de modo
semelhante à taxonomia científica. Nesse caso, os sistemas de classificação estão es-
truturados em níveis de inclusão nos quais os seres vivos são agrupados em categorias
(unidades taxonômicas) que estão hierarquicamente subordinadas umas às outras. Os
critérios para a classificação dos organismos estão baseados nos comportamentos e,
principalmente, nas características dos seres vivos que permitem as pessoas reconhe-
cerem, a partir de diferenças e semelhanças, os diversos organismos (Albuquerque
2005), bem como outros elementos do mundo natural.
Segundo os princípios de Berlin, os nomes dados às unidades de cada categoria
são exclusivos, ou seja, cada categoria recebe um nome único (níveis monomiais) ou é
nomeada com uma primeira palavra base acompanhada por uma segunda que diferen-
ciará os indivíduos incluídos imediatamente na categoria posterior (níveis binomiais).
Para demonstrar a lógica dessa ordenação, consideremos a planta maracujá, a qual será
incluída em uma categoria monomial. Para diferenciar os diversos tipos de maracujás,
faz-se necessário o uso de uma nova palavra que será incluída em uma nova categoria
subordinada à anterior, e.g., maracujá amarelo, maracujá do mato, maracujá açu etc.
Neste exemplo, fica clara a proximidade atribuída por Berlin entre os sistemas de classi-
ficação folk e científica, em que um taxa11 genérico é adicionado de um epíteto específi-
co para distinguir um organismo dos demais relacionados a ele.

1 Segundo o Código Internacional de Nomenclatura Botânica, entende-se como taxon (sing.)


ou taxa (pl.) qualquer unidade taxonômica de qualquer que seja a ordem hierárquica (reino,
classe, ordem, gênero, espécie etc.).

78
Andrêsa Suana Argemiro Alves, Lucilene Lima dos Santos, Washington Soares Ferreira Júnior & Ulysses Paulino de Albuquerque

Quadro 1. Princípios de classificação folk, segundo Brent Berlin. Tradução livre adaptada de Berlin
et al. (1973) e Berlin (1992).

1. Em todas as sociedades, os organismos do mundo natural podem ser distinguidos


entre si linguisticamente a partir de mecanismos de ordenação, ou seja, diferentes
graus de inclusão.
2. Os taxa envolvidos nos critérios de classificação folk são incluídos em categorias
definidas a partir de fatores linguísticos, não ultrapassando mais que cinco categorias.
Desta forma, à luz da ordenação sistemática, os sistemas de classificação folk assemel-
ham-se aos sistemas de classificação científica. As categorias de classificação etnobi-
ológicas são denominadas: iniciador único, forma de vida, gênero, espécie e variedade.
Além das categorias supracitadas, é possível, em alguns casos, a existência de uma
sexta categoria, denominada intermediária.
3. As categorias dos sistemas de classificação folk obedecem a uma ordenação hi-
erárquica em que os taxa inclusos em cada uma delas são mutuamente exclusivos, à
exceção do iniciador único (ver figura 1), composto por um único membro, por exem-
plo, e.g. planta.
4. Em todas as línguas, os sistemas de classificação obedecem aos graus de inclusão,
no entanto, alguns dos elementos ordenatórios podem não estar presentes, fazendo,
desta forma, com que a categoria de um nível inferior seja alocada no nível superior
imediato.
5. Taxa pertencentes à categoria iniciador único não são categorizados linguistica-
mente por uma única expressão habitual. Esta categoria abarca denominações como
planta e animal, sendo considerada o táxon mais inclusivo e, por isso, raramente é
nomeado.
6. A categoria forma de vida inclui poucos taxa, cuja nomeação se dá por expressões
linguísticas oriundas de lexemas primários, ou seja, são formados por uma única pala-
vra, e.g. árvore, erva, peixe, inseto etc.
7. A categoria gênero está geralmente incluída na categoria forma de vida. O número
de membros genéricos é maior que o encontrado nas demais categorias. Tamanha rel-
evância deve-se a características morfológicas e/ou à importância econômica. O gênero
ainda é considerado a categoria básica para os sistemas de classificação folk, pois apre-
senta maior saliência psicológica e figura entre os primeiros taxa aprendidos pelas
crianças.
8. Taxa pertencentes às categorias espécie e variedade são menos numerosos que taxa
genéricos, ocorrendo em pequenos conjuntos. Pode-se diferenciar taxa específicos de
taxa relativos à variedade por algumas poucas características, que são, em geral, ver-
balizadas.
9. Taxa intermediários ocorrem como membros da categoria intermediária e são
geralmente incluídos no nível genérico, sendo raros em taxonomias folk e também
raramente nomeados, levando Berlin et al. (1968) a se referir a tais membros como
“categorias escondidas”.

79
COMO E POR QUE AS PESSOAS CLASSIFICAM OS RECURSOS NATURAIS?

Figura 1. Esquema das cinco categorias taxonômicas em sistemas de classificação folk. Adaptado de
Berlin et al. (1973).

A partir dos trabalhos de Berlin, diversas pesquisas surgiram para investigar se


há, de fato, um padrão cognitivo que segue os princípios de Berlin na maneira como
nós identificamos, classificamos e nomeamos os organismos. A maior parte das pes-
quisas tem sido realizada para compreender como nós nomeamos os seres vivos. Com
base nisso, tem-se observado que possuímos um padrão de identificação e classifica-
ção que é semelhante ao proposto por Brent Berlin. Por exemplo, para os maias Itzaj
que vivem na aldeia de San José, Guatemala, o nome genérico esquilo (ku’uk) apre-
senta como específico o esquilo vermelho (chäk ku’uk) e como subespecíficos o es-
quilo vermelho fêmea (chäk ku’uk uch’upal) e o esquilo vermelho macho (chäk ku’uk
uxib’al) (Coley et al. 1997). Nesta estrutura de nomenclatura, os esquilos pertencem
a um grupo identificado por um genérico, sendo distinguidos entre si pelos epítetos,
sugerindo que as pessoas procuram classificar os organismos de forma hierárquica.
Essa forma de classificação aproxima-se da taxonomia científica, isto é, os seres vivos
são agrupados em categorias organizadas hierarquicamente, com base em caracterís-
ticas percebidas.
A classificação dos seres vivos por meio de diferenças em suas características
morfológicas tem sido observada em algumas pesquisas. Na região semiárida do Nor-
deste brasileiro, os caçadores definem um mamífero como “qualquer tipo de animal

80
Andrêsa Suana Argemiro Alves, Lucilene Lima dos Santos, Washington Soares Ferreira Júnior & Ulysses Paulino de Albuquerque

que tem o hábito de alimentar seus filhotes com leite” (Mourão et al., 2006:4). Este é
um critério de classificação baseado puramente em descritores biológicos, em que a
forma de vida do grupo é reconhecida pelas pessoas ao observar animais que sugam
ou que possuem glândulas mamárias. Outras pesquisas realizadas em diferentes am-
bientes têm encontrado critérios similares de classificação (ver Berlin 1992; Souza &
Begossi 2007).
Outro foco a que têm sido direcionadas as pesquisas busca verificar o papel da
categoria genérica como base ou núcleo de classificações folk. Segundo Brent Berlin
(1973; 1992), as categorias genéricas são as mais importantes em classificações folk
porque agrupam organismos por características que são facilmente visíveis (morfo-
logia, hábito), não exigindo uma observação muito detalhada para serem percebidas.
Neste caso, seria esperado que a categoria inicial para a classificação fosse a genérica.
Por exemplo, ao pedir às pessoas para classificar um conjunto de organismos, estas
indicariam primeiramente o nome genérico de cada organismo (aroeira, leão, taman-
duá etc.) e, a partir disso, organizariam os genéricos em categorias de níveis mais altos
(formas de vida e reino) e categorias de níveis mais baixos (específicos e variedades).
Além disso, é em categorias genéricas que as pessoas realizam um grande número
de generalizações, ou inferências indutivas, acerca das características dos seres vivos
(Coley et al. 1997). Por exemplo, ao observar as características de determinado nú-
mero de peixes, seres humanos podem fazer generalizações como “todos os peixes
possuem escamas” mesmo sem observar todos os peixes da região. Isso ocorre porque
categorias genéricas agrupam organismos que compartilham características aparen-
tes, o que facilita inferências indutivas.
Essas informações reforçam a ideia de que a categoria genérica é basal em classi-
ficações folk, uma vez que a partir dela são feitas inferências indutivas que são a base
do desenvolvimento dos sistemas de classificação, principalmente em sociedades tra-
dicionais (Coley et al. 1997). Ademais, as informações apresentadas destacam padrões
de nomenclatura relacionados a uma classificação hierárquica e ao critério baseado
em características morfológicas para a classificação dos seres vivos. Todavia, uma
análise mais cuidadosa não descarta a ideia de que talvez esses achados sejam meros
artefatos do procedimento de coleta ou da interpretação de dados que força a uma
adequação dos achados aos princípios formulados por Berlin. Muitas críticas têm sido
dirigidas ao universalismo dos princípios de Berlin, o que tem levado diferentes pes-
quisadores a formular visões alternativas para compreender as classificações folk.

81
COMO E POR QUE AS PESSOAS CLASSIFICAM OS RECURSOS NATURAIS?

Referências
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82
C A P Í T U LO 11

VISÕES ALTERNATIVAS SOBRE AS


CLASSIFICAÇÕES FOLK
Washington Soares Ferreira Júnior, Reinaldo Farias Paiva de Lucena
& Ulysses Paulino de Albuquerque

Como observado no capítulo anterior, Brent Berlin sugeriu princípios gerais e


universais de classificação e nomenclatura dos seres vivos, os quais têm sido assu-
midos por diferentes pesquisadores. No entanto, alguns cientistas vêm levantando
um conjunto de evidências que não corroboram com alguns dos princípios de Ber-
lin, sugerindo que as classificações apresentam características que podem variar em
diferentes culturas, sem seguir princípios universais. Assim, críticas aos princípios
universais de taxonomia folk têm surgido e mostram que diferentes culturas ou
sociedades utilizam diferentes esquemas cognitivos para classificar os seres vivos,
sem qualquer aderência ao plano idealizado por Berlin.
Pesquisadores estão propondo ideias concorrentes à universalidade dos princí-
pios, a fim de compreender melhor como diferentes grupos humanos classificam os
seres vivos. Assim, vamos discutir neste capítulo as principais críticas ao modelo de
classificação folk de Berlin, focando na proposta utilitarista de Eugene Hunn, expli-
cada no capítulo anterior.

Principais críticas ao modelo de classificação folk de Brent


Berlin

Nem sempre há semelhanças entre as taxonomias folk e científica.

Os cientistas têm verificado que os seres vivos agrupados em categorias folk pró-
ximas também são classificados como próximos pelo sistema de classificação cientí-

83
VISÕES ALTERNATIVAS SOBRE AS CLASSIFICAÇÕES FOLK

fica. Essa proximidade entre os dois sistemas pode ocorrer devido à semelhança nos
critérios de classificação utilizados, uma vez que um critério base de classificação nos
dois sistemas são as características biológicas dos seres vivos (morfologia, compor-
tamento, entre outros). Contudo, alguns trabalhos apresentam achados que vão de
encontro a essa ideia. Um estudo que investigou as percepções locais em Puget Sound,
Washington, observou que as pessoas agrupavam determinadas espécies marinhas
sem qualquer analogia com a taxonomia científica. Por exemplo, duas espécies de
peixes, pertencentes a distintas ordens de acordo com a taxonomia científica, foram
agrupadas em uma mesma categoria (Beaudreau et al. 2011). Há também casos em
que recursos identificados na taxonomia folk como distintos podem pertencer a uma
mesma espécie científica (Kakudidi 2004; Jinxiu et al. 2004). Por exemplo, em aldeias
da Província de Yunnan, na China, uma determinada espécie de planta foi identi-
ficada pelos moradores como dois tipos de recursos diferentes, com base nos usos
empregados da espécie na região (Jinxiu et al. 2004). Isso mostra que provavelmente
as pessoas classificam os seres vivos também por outros critérios.
Segundo o modelo berliniano, uma das características que as classificações folk
e científica compartilham é o agrupamento dos seres vivos em categorias hierarqui-
zadas (Atran 1998). Por exemplo, em cada nível de categorização (reino, forma de
vida, genérico e específico) há o agrupamento de organismos que compartilham certo
número de características, principalmente biológicas. Essa categorização pode ser ob-
servada em um estudo etnobiológico por meio das seguintes respostas: planta X tem
três tipos diferentes ou bicho Y tem três jeitos, e ambas as respostas refletem essa
estrutura (Mourão & Nordi 2002). No entanto, nem sempre essa estrutura pode ser
verificada. A classificação de peixes por pescadores artesanais do rio Mamanguape,
Paraíba, por exemplo, apresenta uma nomenclatura de vários genéricos em famílias,
como família dos bagres, família das sardinhas, em que os pescadores agrupam os
peixes devido à sua importância cultural e econômica (Mourão & Nordi 2002). Não
parece haver uma subcategorização hierarquizada da família dos bagres, a qual agru-
pa os bagres por meio de atributos biológicos comuns, uma vez que essa família é
constituída com base nos critérios cultural e econômico. Logo, se esses genéricos não
são formados por seres vivos que compartilham certos atributos biológicos, podemos
afirmar que a classificação folk nem sempre se assemelha à científica.

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Washington Soares Ferreira Júnior, Reinaldo Farias Paiva de Lucena & Ulysses Paulino de Albuquerque

Nem sempre atributos biológicos dos seres vivos são critérios locais de base para
a classificação folk.

As divergências encontradas entre os sistemas de classificação folk e científico,


observadas por alguns autores, leva-nos a investigar melhor quais outros critérios as
populações tradicionais levam em consideração para classificar os recursos naturais.
Em uma perspectiva utilitarista, um exemplo interessante é observado com os Maias
de Itzaj, os quais distinguem dois tipos de mogno, o mogno vermelho e o mogno
branco. Ao observar os dois tipos, não existem diferenças quanto à cor, uma vez que o
mogno branco é tão vermelho quanto o mogno vermelho. A distinção entre os mog-
nos se dá pela diferença da madeira produzida, uma vez que o vermelho produz uma
madeira que é mais apreciada pelas pessoas e o branco produz uma madeira pouco
preferida. Além disso, para os Maias, o vermelho está geralmente associado com
ventos que trazem chuva e bondade e o branco com ventos que trazem decepção 
(Atran 1998). Isso explica a distinção dos dois mognos e, além disso, mostra que nem
sempre a classificação está associada a características aparentes dos seres vivos (e.g.
cor das plantas), mas ao contexto cultural (Atran 1998). Em virtude de tal situação,
notamos que as pessoas seguem sua própria lógica classificatória, que, neste caso, vai
contra a lógica prevista por Berlin.

As classificações folk podem variar entre e dentro de um mesmo grupo humano.

Existe um conjunto de evidências que reforça que características socioculturais


podem exercer um importante papel para as classificações folk. A classificação lo-
cal de mamíferos em dois grupos culturais distintos, por exemplo, por um grupo
composto de americanos vivendo em regiões industrializadas e outro composto de
pessoas da região tradicional Itzaj-Maia, permite observar que, embora existam simi-
laridades entre as duas classificações, o que sugere aspectos universais da taxonomia
folk, houve distinções entre os dois grupos como uma maior diferenciação de organis-
mos na taxonomia dos Itzaj-Maia, indicando que as classificações podem variar entre
grupos humanos distintos (López et al. 1997).
Variações nas taxonomias folk podem ser observadas também dentro de um mes-
mo grupo humano. Taxonomias folk estão relacionadas às percepções locais sobre
os recursos biológicos do ambiente (Atran 1998). Neste sentido, as classificações dos
organismos biológicos podem diferir à medida que há diferenças na percepção das
pessoas acerca desses recursos, o que pode estar associado a diferentes fatores (Boster

85
VISÕES ALTERNATIVAS SOBRE AS CLASSIFICAÇÕES FOLK

1986; López et al. 1997). Por exemplo, a identificação e classificação da mandioca


(Manihot esculenta) pela tribo Aguaruna Jivaro, no Peru, difere a depender do gênero
dos integrantes, com base na divisão de trabalho (Boster 1986). Neste grupo, as mu-
lheres são as responsáveis por cuidar das plantações de mandioca, ou seja, por plantar,
coletar e selecionar novas variedades de mandioca. Os homens, por sua vez, são res-
ponsáveis por abrir áreas para plantação de novas mandiocas, mas não para plantar
ou manter as plantações. Isso pode ter levado as mulheres a fornecerem um maior
número de detalhes para identificar e classificar variedades e, inclusive, indicar um
maior número de variedades de mandioca que os homens, o que as torna especialis-
tas no assunto (Boster 1986). Esse exemplo mostra que fatores socioculturais podem
exercer papéis importantes para variações na classificação folk em um mesmo grupo.
As informações apresentadas neste tópico contrariam uma das principais ideias
de Berlin, segundo a qual a cultura geralmente está em segundo plano nas classi-
ficações folk, exercendo pouca influência na forma como as pessoas classificam os
organismos.

Proposta alternativa para classificação folk em etnobiologia

Diferentes autores têm proposto uma aproximação entre as abordagens universa-


lista e utilitarista em um mesmo modelo de classificação (Clément 1995; Atran 1998),
indicando a necessidade de identificar quais aspectos das classificações folk em di-
versas culturas são encontrados em todos os grupos humanos, sendo intrínseco às
categorizações humanas (características universais) e quais aspectos são inerentes e
importantes para uma dada cultura (características culturais que interferem na clas-
sificação) (López et al. 1997).
Uma das propostas foi apresentada por Scott Atran, o qual indicou que o genérico
exprime o caráter universalista da classificação folk, uma vez que todas as culturas
agrupam categorias de plantas e animais em genéricos, sendo um processo automáti-
co e inato no ser humano. Por exemplo, quando uma pessoa observa um organismo
que não conhece ou em relação ao qual não teve nenhuma experiência anterior, irá
associar ao genérico que esse organismo se assemelha, em um processo de associação
por analogia (Atran 1998). No entanto, o que faz um genérico ser diferenciado em
específicos e variedades depende da importância cultural deste. Neste caso, a cultura
pode exercer um papel importante na classificação folk para diferenciação de gené-

86
Washington Soares Ferreira Júnior, Reinaldo Farias Paiva de Lucena & Ulysses Paulino de Albuquerque

ricos. Os exemplos já apresentados sobre a identificação e classificação da mandioca


pelos Aguaruna (Boster 1986) e a diferenciação entre o mogno branco e o mogno
vermelho pelos Itzaj (Atran 1998) mostram que, se as espécies não apresentam um
papel importante no dia a dia das pessoas de uma região, não há necessidade de sub-
diferenciação, restringindo-as a genéricos, pois os possíveis critérios para subdiferen-
ciação, tais como características morfológicas, distinção utilitária, entre outros, não
se tornam aparentes para as pessoas.

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87
PARTE 4:
O APROVEITAMENTO
DA NATUREZA
C A P Í T U LO 12

PLANTAS MEDICINAIS
Thiago Antônio de Sousa Araújo, Joabe Gomes de Melo
& Ulysses Paulino de Albuquerque

Sem dúvida o tema plantas medicinais é um dos mais estudados e difundidos em


etnobiologia, o que pode ser explicado devido: ao interesse que gera em outras áreas
do conhecimento, como farmácia, botânica, agronomia, entre outras; a estar relacio-
nado a um assunto vital, que é a saúde; a ser relevante na prospecção de produtos que
visam à obtenção de novas drogas de interesse médico ou farmacêutico e a ser um
tipo de uso bem difundido e conhecido entre as comunidades locais e indígenas em
todo o mundo.
No estudo com plantas medicinais duas disciplinas destacam-se, a etnofarma-
cologia e a etnobotânica. A etnofarmacologia tem algumas vertentes de estudo, das
quais uma das principais é a que tem como objetivos a observação, identificação e
avaliação da atividade farmacológica de produtos utilizados nos tratamentos de do-
enças em sistemas médicos tradicionais, envolvendo também, por exemplo, o enten-
dimento da posologia e frequência de uso desses produtos e suas restrições de uso.
Esses produtos podem ser de origem vegetal, animal e mineral, sendo este o primeiro
ponto de diferenciação em relação à etnobotânica, a qual tem como foco de estudo a
inter-relação das pessoas apenas com as espécies vegetais, sem ter necessariamente o
objetivo de estudar recursos de uso medicinal.
A maior parte dos recursos biológicos empregados nos processos de cura nos
sistemas médicos tradicionais dos povos ao redor da terra é obtida a partir de vegetais
inteiros ou de suas partes. O conjunto de plantas medicinais que compõem o arsenal
médico de uma determinada cultura é o resultado de um longo processo de validação
cultural, o qual é sempre dinâmico. Independentemente da forma de validação dessas
plantas, os estudos têm revelado que diferentes culturas obtêm plantas para seus sis-
temas médicos de duas formas: 1) selecionando plantas que ocorrem naturalmente na

91
PLANTAS MEDICINAIS

vegetação adjacente ao local onde estão localizadas e são originárias de determinado


país ou continente (espécies nativas) e 2) selecionando espécies de outros países ou
continentes a partir de contato com outras culturas (espécies exóticas).
Há alguns autores que fazem deduções a partir da proporção entre espécies medi-
cinais nativas e exóticas usadas em uma determinada cultura. Quando há uma maior
proporção de exóticas em relação às nativas alguns autores creditam esse fato a um
processo de aculturação (ver Case et al. 2005; Quinlan & Quinlan 2007). Todavia
há outra ideia segundo a qual uma cultura em particular recorre a espécies exóticas
como estratégia para diversificar o arsenal terapêutico ou preencher lacunas terapêu-
ticas que não são tratadas por plantas da região. Essa hipótese vem sendo denominada
de hipótese da diversificação” (Albuquerque 2006; Alencar et al. 2010).
Em todo o mundo, diferentes culturas exploram a natureza para suprir as suas
necessidades médicas, no entanto, ainda não temos uma compreensão total das es-
tratégias de tais culturas para a apropriação da natureza. Durante muito tempo se
afirmou que as floresta primárias são uma fonte preciosa de novos medicamentos,
mas diferentes povos incorporam uma parcela expressiva de plantas de áreas antro-
pogênicas e de vegetação secundária em suas farmacopeias tradicionais. Isso revela
que tais áreas podem ser altamente relevantes como fonte de novos medicamentos.
Além disso, os diferentes ecossistemas parecem ter diferentes vocações do ponto de
vista farmacológico, devido às condições ecogeográficas (Albuquerque et al. 2012). Se
tal proposição, de fato, confirmar-se, poderá ser um argumento a favor da hipótese
da diversificação, explicando por que diferentes culturas introduzem plantas exóticas
em seus ambientes para uso em suas práticas médicas.
O desenvolvimento de um medicamento baseado em produtos biológicos pode
chegar a mais de US$ 1,0 bilhão. Contudo quando estudos etnodirecionados1, sejam
etnobotânicos ou etnofarmacológicos, são levados em consideração para a seleção e
escolha de tais materiais primas, estes custos podem ser reduzidos, uma vez que diver-
sos estudos mostram a eficiência da seleção etnodirigida em relação a outros métodos
de seleção de plantas para algumas atividades biológicas (Slish et al. 1999; Khafagi &
Dewedar 2000; Oliveira et al. 2011). A diminuição desses custos está relacionada ao
histórico de uso de espécies vegetais pelas comunidades tradicionais, as quais testam

1 Etnodirecionado, ou etnodirigido, significa pautado nas investigações etnobiológicas. Pode,


também, ser entendido como baseado nos usos tradicionais.

92
Thiago Antônio de Sousa Araújo, Joabe Gomes de Melo & Ulysses Paulino de Albuquerque

tais espécies conferindo a elas determinadas indicações terapêuticas, modos de uso e


demais informações que podem ser úteis na seleção e maior acurácia para a indústria.

Quadro 1. Angico: planta medicinal altamente versátil do semiárido brasileiro.

Na caatinga, no Nordeste do Brasil, normalmente as plantas medicinais apresentam


usos múltiplos. O angico, Anadenanthera colubrina (Vell.) Brenan, tem várias uti-
lizações, sendo por isso uma espécie de grande importância para as populações hu-
manas que vivem no semiárido. A sua madeira é utilizada como combustível, tanto
como lenha como na produção de carvão. Na construção é empregada na produção de
cercas. Contudo, dois usos são os mais conhecidos para esta espécie: o medicinal e o
tecnológico na produção de couro.
No caso do uso medicinal, várias partes podem ser utilizadas como cascas, folhas,
flores e frutos. Estas partes são preparadas principalmente por meio de infusão e de-
cocção para tratar especialmente problemas relacionados a transtornos do sistema
respiratório (asma, bronquite, coqueluche, expectorante e inflamação pulmonar), bem
como também lesões externas, atuando na cicatrização de ferimentos. Há relatos pop-
ulares de seu uso medicinal para tratar anemia, gripe, constipação, dor de estômago,
câncer, afinar o sangue, sopro, lesão, difteria, fissuras no pé e gastrite.
Talvez o angico seja uma das plantas mais conhecidas e utilizadas no tratamento da
pele de animais para posterior produção de couro. Os taninos, compostos químicos
abundantes nessa planta, são historicamente conhecidos por auxiliarem na transfor-
mação de pele animal em couro, por se ligarem a fibras de colágeno da pele animal
conferindo maior resistência, sendo a sua concentração nos tecidos vegetais um as-
pecto importante para que haja maior eficiência no processo.
Sem dúvida alguma, plantas que apresentam essa versatilidade de uso, em diferentes
categorias, merecem atenção especial em esforços de conservação.

A Organização Mundial de Saúde, em relatório publicado em 2011, estima que,


no mínimo, 25% de todos os medicamentos modernos são derivados, direta ou indi-
retamente, de plantas medicinais, principalmente por meio da aplicação de tecnolo-
gias modernas ao conhecimento tradicional. No caso de medicamentos antitumorais
e antimicrobianos, esta percentagem pode chegar a 60% (WHO 2011).
O mercado mundial de medicamentos derivados de plantas teve valor estimado
de US$ 18 bilhões, em 2005, e entre os anos de 2000 e 2006, 26 novos medicamen-
tos baseados em plantas foram aprovados e/ou lançados, como por exemplo o Taxol®
e o Taxotere®, derivados da espécie Taxus baccata, usados no tratamento de câncer
(Saklani & Kutty 2008) isso mostra o porquê do interesse da indústria farmacêutica

93
PLANTAS MEDICINAIS

neste tipo de matéria-prima. Segundo Newman & Cragg (2012), em 2010, os produtos
naturais foram responsáveis pela produção ou estavam envolvidos em cerca de 50%
das pequenas moléculas das novas substâncias ativas.
Um exemplo clássico de um fármaco sintético derivado de um produto natural é
a Aspirina®, provinda inicialmente do salgueiro (Salix alba L.), espécie que Hipócrates
(460 a.C.) já citava para aliviar a dor e reduzir as febres (Setty & Sigak 2005; Varghese
& Lockey 2008). A figura 1 apresenta um possível caminho para o desenvolvimento
de medicamentos partindo do conhecimento tradicional.

Figura 1. Cadeia de desenvolvimento de medicamentos com base no conhecimento tradicional.

No Brasil, cada vez mais aumenta o interesse tanto privado quanto público pelo
estudo das plantas medicinais. Produtos como o Acheflan®, um medicamento fitote-
rápico indicado no tratamento local de processos inflamatórios e dores musculares,
é produzido a partir de Cordia verbenacea DC., conhecida popularmente como erva
baleeira. Esse exemplo mostra que o conhecimento tradicional de povos do Brasil é
uma rica fonte de informação para a obtenção de novos medicamentos. Contudo, as-
pectos legais a respeito do retorno e da repartição de benefícios devem ser respeitados.
O uso de plantas medicinais baseado em conhecimento tradicional é de tamanha
importância que fez com o governo brasileiro implementasse em 2008 a Relação Na-
cional de plantas medicinais de interesse ao Sistema Único de Saúde (RENISUS). Nes-
ta lista constam 71 espécies medicinais que foram selecionadas a partir de espécies já
utilizadas nos serviços de saúde estaduais e municipais por comunidades tradicionais
e uso popular e/ou em estudos químicos e farmacológicos (Brasil 2012). Atualmente
12 fitoterápicos são oferecidos na rede pública de 14 estados brasileiros (Tabela 1).

94
Thiago Antônio de Sousa Araújo, Joabe Gomes de Melo & Ulysses Paulino de Albuquerque

Tabela 1. Relação de fitoterápicos ofertados no Sistema Único de Saúde (SUS). Adaptado de Brasil
(2012).

Nome popular Nome científico Indicação


Espinheira-santa Maytenus ilicifolia Auxilia no tratamento de gastrite e úlcera
Mart. ex Reissek duodenal e sintomas de dispepsias
Guaco Mikania glomerata Apresenta ação expectorante e
Spreng. broncodilatadora
Alcachofra Cynara scolymus L. Usada no tratamento dos sintomas
de dispepsia funcional (síndrome
do desconforto pós-prandial) e de
hipercolesterolemia leve a moderada e
apresenta ação colagoga e colerética
Aroeira Schinus Apresenta ação cicatrizante, anti-
terebenthifolius Raddi inflamatória e antisséptica tópica, para uso
ginecológico
Cáscara-sagrada Rhamnus purshiana Auxilia nos casos de obstipação intestinal
DC. eventual
Garra-do-diabo Harpagophytum Usada no tratamento da dor lombar baixa
procumbens DC. aguda, age como coadjuvante nos casos
de osteoartrite e apresenta ação anti-
inflamatória
Isoflavona-de- Glycine max (L.) Merr. Auxilia no alívio dos sintomas do
soja climatério
Unha-de-gato Uncaria tomentosa Auxilia nos casos de artrites e osteoartrite
(Willd. ex Roem. & e apresenta ação anti-inflamatória e
Schult.) DC. imunomoduladora

Hortelã Mentha piperita L. Usada no tratamento da síndrome do cólon


irritável e apresenta ação antiflatulenta e
antiespasmódica
Babosa Aloe vera (L.) Burm. f. Usada no tratamento tópico de
queimaduras de 1º e 2º graus e como
coadjuvante nos casos de psoríase vulgaris
Salgueiro Salix alba L. Usada no tratamento de dor lombar baixa
aguda e apresenta ação anti-inflamatória
Plantago Plantago ovata Forssk. Auxilia nos casos de obstipação intestinal
habitual e é usada no tratamento da
síndrome do cólon irritável

95
PLANTAS MEDICINAIS

No ano de 2014 houve um avanço ainda maior em termos da valorização do co-


nhecimento tradicional a respeito das plantas medicinais. Foi publicada a Resolução
nº 26, de 13 de maio de 2014, que dispõe sobre o registro de medicamentos fitoterápi-
cos e o registro e a notificação de produtos tradicionais fitoterápicos (BRASIL 2014).
Nesta resolução encontramos que
São considerados produtos tradicionais fitoterápicos os obtidos com emprego ex-
clusivo de matérias-primas ativas vegetais cuja segurança e efetividade sejam basea-
das em dados de uso seguro e efetivo publicados na literatura técnico-científica e que
sejam concebidos para serem utilizados sem a vigilância de um médico para fins de
diagnóstico, de prescrição ou de monitorização.
A segurança e efetividade destes produtos tradicionais fitoterápicos podem ser
comprovadas por meio do uso seguro e efetivo, desde que haja uma comprovação,
por meio de documentações técnico-científicas, de que tais produtos venham sendo
usados por um período mínimo de 30 anos por alguma comunidade tradicional. Esta
resolução fomenta ainda mais o reconhecimento de estudos etnodirigidos a respeito
do uso de plantas medicinais e a valorização do saber tradicional.
Com isso, vemos que a etnobiologia pode ser importante no estudo de plantas
medicinais e do modo como ela pode ajudar a desenvolver alguns setores da socieda-
de, como a indústria, a saúde pública e as comunidades locais. Além do mais, nota-
mos a crescente valorização e interesse dos setores públicos e privados nos trabalhos
desenvolvidos por profissionais dessas áreas, a fim de se certificarem quais as espécies
podem ser selecionadas para determinados processo de acordo com os objetivos de
cada um desses setores.
Alguns aspectos relacionados a estes estudos devem ser observados, como abor-
dagens etnobotânicas ou etnofamacológicas bem elaboradas, levando em consi-
deração aspectos metodológicos e análises de dados rigorosos, e adequados a cada
situação, como a correta identificação das espécies por profissionais capacitados, o
cumprimento da legislação vigente no país sobre o direito de propriedade intelectual
de informações oriundas do conhecimento tradicional e o uso e o manejo sustentável
de espécies medicinais (Ver, Oliveira et al. 2005).

96
Thiago Antônio de Sousa Araújo, Joabe Gomes de Melo & Ulysses Paulino de Albuquerque

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PLANTAS MEDICINAIS

WHO. 2011. The world medicines situation 2011. Traditional Medicines: Global Situation,
Issues And Challenges. 3rd Edition. Geneva.

98
C A P Í T U LO 13

PLANTAS ALIMENTÍCIAS
Viviany Teixeira do Nascimento, Letícia Zenóbia de Oliveira Campos
& Ulysses Paulino de Albuquerque

Plantas alimentícias são aquelas que possuem uma ou mais partes que podem ser
utilizadas na alimentação humana (Kinupp & Barros 2007). Todavia, embora as pes-
soas tenham à sua disposição uma ampla diversidade de espécies cujos frutos, folhas,
raízes, flores, caules ou sementes podem ser utilizados na diversificação alimentar, na
prática pouquíssimas espécies são consumidas pela população mundial.
As plantas alimentícias não convencionais estão incorporadas nas estratégias de
subsistência da maioria das populações rurais, sejam elas de pastores, agricultores,
lavradores ou caçadores-coletores (Bell 1995), e são geralmente usadas na comple-
mentação do modelo diário de consumo alimentar, que é normalmente baseado na
ingestão de produtos advindos da colheita, adquiridos no comércio local ou produzi-
dos a partir dos animais domésticos (Guinand & Lemessa 2001). Tais plantas alimen-
tícias são cruciais para a sobrevivência da população durante os tempos de escassez de
cultivos, sendo recolhidas principalmente por mulheres e crianças e utilizadas para
garantir a segurança alimentar da família, além de ter importância econômica (Gros-
skinsky & Gullick 2001).
A nossa espécie pode obter seus alimentos tanto de plantas cultivadas, algumas
provenientes de um processo contínuo de domesticação, quanto de populações natu-
rais ou silvestres. A expressão “planta silvestre” descreve as espécies que não passam
por manejo ou recebem qualquer atenção humana, todavia, costuma ser amplamente
utilizada para descrever aqueles recursos vegetais adquiridos para fins de consumo
humano em ambientes florestais (Guinand & Lemessa 2001). Para evitar qualquer
incompreensão sobre o grupo de plantas que trataremos neste capítulo, adotaremos a
expressão “plantas alimentícias não convencionais” para nos referirmos tanto às es-
pécies consideradas daninhas ou invasoras como às plantas silvestres, genericamente

99
PLANTAS ALIMENTÍCIAS

chamadas de “plantas do mato”, que representam um tipo de recurso genético com


usos alimentícios potenciais muitas vezes inexplorados (Kinupp & Barros 2007).
Os recursos alimentícios não convencionais advindos das florestas têm impor-
tante papel na segurança alimentar doméstica das populações humanas ao redor do
mundo, sendo três seus principais papéis: complementar, estacional e de redução de
riscos (Bruce 1996):
• Papel complementar: Os recursos que desempenham este papel ajudam na
complementação da dieta proveniente da produtividade agrícola, fornecen-
do nutrientes essenciais e contribuindo para a qualidade nutritiva global da
alimentação. O consumo dos alimentos florestais também pode diversificar
o cardápio diário e consequentemente aumentar a quantidade global dos ali-
mentos consumidos.
• Papel estacional: Neste caso as florestas cobrem as carências estacionais de
alimento porque são capazes de produzir alimentos mesmo nas estações mais
difíceis do ano, situação comum em regiões onde a produtividade depende
das estações do ano. Na Caatinga, por exemplo, esse papel pode ser atribu-
ído ao umbu (Spondias tuberosa L.) que frutifica no período seco graças à
presença de reservas de água em órgãos subterrâneos (Lins-Neto et al. 2012).
• Papel de redução de riscos: Aqui as áreas de vegetação representam uma fonte
reserva de alimentos durante o período seco ou em outros períodos de emer-
gência, quando a produtividade agrícola se reduz ao mínimo ou até mesmo
desaparece. Neste contexto, as raízes são mais importantes que os frutos por
possuírem maior quantidade de calorias e serem mais resistentes à seca. As
espécies florestais que se enquadram neste papel possuem características dife-
rentes daquelas exploradas em outros períodos, pois, apesar de possuírem con-
siderável teor energético, têm normalmente preparo difícil e são denominados
na literatura como alimentos de fome ou alimentos emergenciais.

Fatores que interferem na utilização e seleção de plantas


alimentícias não convencionais

As populações que utilizam as plantas alimentícias não convencionais utilizam


vários critérios para selecioná-las. Entre eles, podemos citar o custo-benefício entre
o tempo que se gasta para coletar e preparar determinado alimento e o seu valor

100
Viviany Teixeira do Nascimento, Letícia Zenóbia de Oliveira Campos & Ulysses Paulino de Albuquerque

energético. Levando em consideração esses fatores, sugere-se, a partir de estudos que


testaram a Teoria do Forrageamento Ótimo para analisar as práticas de seleção de um
recurso, que quanto maior o tempo desprendido para a coleta de um recurso, maior
será o seu valor energético (Ladio & Lozada 2003).
A disponibilidade e a abundância de uma espécie, bem como a sua proximidade
com os assentamentos humanos também podem afetar a sua seleção e o seu uso. Em
populações suburbanas de Bariloche, Argentina, o consumo de algumas plantas é
restrito a determinadas épocas do ano, devido à disponibilidade da parte consumida,
como é o caso dos frutos (Ladio & Rapoport 2002).
Em diferentes partes do mundo tem-se presenciado o declínio do conhecimento e
do consumo de plantas alimentícias não convencionais. Alguns fatores podem ser usa-
dos para explicar esse fenômeno, que ainda é pouco estudado. Na caatinga, por exem-
plo, o declínio do consumo de tais plantas pode estar relacionado ao estigma social
vinculado a certas espécies, onde consumi-las é considerado um símbolo de pobreza.
É o que acontece, por exemplo, com o coco catolé (Syagrus cearensis Noblick), uma
palmeira nativa encontrada no Nordeste do Brasil, cujo alto valor calórico dos frutos (≅
400 cal/100 g) é subutilizado pela maior parte das populações locais (Nascimento et al.
2011). Por outro lado, na região em questão, o hábito de comer certas espécies exóticas,
geralmente adquiridas no comércio local, representa modernidade e status social. A
substituição do hábito de coleta das plantas alimentícias não convencionais pelas exó-
ticas cultivadas tornou-se ainda mais forte com os incentivos governamentais que têm
subsidiado a aquisição de alimentos industrializados (Rapoport et al.1998).
Outra questão cultural que pode estar relacionada a não utilização de uma planta
como alimento são os tabus locais. Os tabus são costumes e crenças culturais que
fazem parte da vida cotidiana e determinam a forma como os diferentes recursos
naturais serão utilizados por nossa espécie. Esses tabus, de certa forma, podem atuar
regulando o acesso e o consumo desses recursos para determinados indivíduos de
uma mesma sociedade. Na Etiópia, muitos dos tabus alimentares são impostos por
costumes religiosos, que não permitem o consumo de plantas ou animais selvagens,
reduzindo, assim, a variedade de alimentos disponíveis para as pessoas em momentos
de estresse alimentar (Guinand & Lemessa 2001).
Além dos fatores culturais, outro fator que interfere no consumo desses recursos
é a dificuldade de acesso às áreas de vegetação em que as plantas estão disponíveis.
Em regiões semiáridas da África, por exemplo, a gestão das florestas por institui-
ções públicas tem, muitas vezes, reduzido o acesso das populações locais aos recursos

101
PLANTAS ALIMENTÍCIAS

alimentícios silvestres (FAO 2011). Independentemente de o controle territorial estar


nas mãos do governo ou de proprietários particulares, o acesso restrito aos recursos
alimentícios não convencionais tende a ter efeitos negativos na dieta,principalmente
na das populações mais vulneráveis (FAO 2011).

Estratégias para disseminação do conhecimento e


popularização do uso das plantas alimentícias não
convencionais

A solução para a modificação deste panorama de declínio do conhecimento e


sobretudo do uso de plantas alimentícias não convencionais não se resume a uma
simples medida. Uma das primeiras estratégias que deve ser adotada é o trabalho
continuado com a população local mais jovem, que, influenciados pela modernização
que os leva a buscar melhores condições de vida, têm apresentado um alto desinteres-
se em conhecer e usar essas espécies. Este trabalho pode envolver ações como a inclu-
são no currículo escolar de informações acerca das práticas e dos valores tradicionais
das populações locais, o que pode incentivar a valorização e o uso dessas espécies
(Reyes-García et al. 2010; Cruz-Garcia & Howard 2013). Neste contexto, a inclusão
de algumas espécies locais na alimentação diária escolar pode ajudar a romper tabus
existentes. Para tanto, é necessário incentivar os estudos sobre o valor nutricional.
Uma espécie que se encaixa bem nesta situação é Sideroxylon obtusifolium
(Roem.& Schult.), conhecida popularmente como quixaba ou quixabeira, cuja pol-
pa dos frutos possui cerca de 28 gramas de carboidratos e valor calórico superior a
200 calorias em 100gramas (Nascimento et al. 2011). A tabela abaixo mostra outras
espécies alimentícias não convencionais que podem ser introduzidas na alimentação
diária das comunidades:

102
Viviany Teixeira do Nascimento, Letícia Zenóbia de Oliveira Campos & Ulysses Paulino de Albuquerque

Tabela 1. Conteúdo nutricional das partes comestíveis de plantas alimentícias não convencionais
típicas da região da Caatinga no Nordeste do Brasil (Adaptado de Nascimento et al. 2011).

Parte Proteína Lipídio Carboidrato VCT


Espécie analisada (g/100g) (g/100g) (g/100g) (kcal/100g)

Cereus jamacaru Fruto 1,8 1,98 9,76 64,06


Psidium schenckianum Fruto 1,64 1,36 26,60 125,20
Pilosocereus gounellei Fruto 2,65 3,16 15,83 102,36
Pilosocereus pachicladus Fruto 2,10 2,66 8,72 67,22
Pilosocereus pachicladus Miolo central 0,25 0,53 4,75 24,77
Sideroxylon obtusifolium Fruto 2,86 9,62 28,50 212,02
Syagrus cearensis Fruto 8,95 69,33 17,01 393,67
Tacinga inamoena Fruto 0,97 1,23 14,27 72,03
Ziziphus joazeiro Fruto 2,19 1,11 19,38 96,27
VCT: Valor Calórico Total.

A importância das espécies apresentadas nesta tabela para a alimentação das pes-
soas pode ser compreendida se levarmos em consideração, por exemplo,as necessida-
des proteicas diárias de um adolescente do sexo masculino, que é de 52 gramas por dia
(Giannini 2007). Diante disso, podemos inferir que o consumo diário de 100 gramas
dos frutos de Syagrus cearensis é suficiente para suprir 17,21% desta necessidade.
Para que os obstáculos impostos, sobretudo pelos fatores culturais, sejam supera-
dos e os alimentos não convencionais possam sair da marginalidade e contribuir para
a segurança alimentar das populações, sugerimos a criação de políticas de promoção
e utilização desses alimentos. Estas ações devem contar com a participação ativadas
populações locais a fim de melhorar seus meios de subsistência, reduzir a dependên-
cia de ajuda alimentar externa, garantir sua autossuficiência alimentar e o manejo
sustentável desses recursos naturais (Nyok et al. 2001).

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103
PLANTAS ALIMENTÍCIAS

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104
C A PÍ T U LO 14

RECURSOS MADEIREIROS
Marcelo Alves Ramos, Maria Clara Bezerra Tenório Cavalcanti
& Fábio José Vieira

Quando escutamos falar do corte da vegetação para aquisição de madeira, o que


pensamos? Geralmente associamos essa extração à prática de cortes rasos1, ou seja,
àquelas extrações que são realizadas em grande magnitude pelas indústrias madei-
reiras do planeta. Muitas vezes esquecemos que também existe um corte de madeira
realizado em pequena escala, praticado por populações humanas com finalidade de
suprir necessidades de subsistência. Essa é uma das formas de exploração mais co-
muns em florestas tropicais e, por ser realizada de forma contínua por muitos grupos
humanos, merece nossa atenção.
Na etnobiologia há uma escassez de estudos dedicados a investigar os usos do-
mésticos da madeira. Por que isso ocorre? Alguns autores sugerem que razões histó-
ricas podem explicar esse cenário, já que estudos etnobiológicos sempre estiveram
concentrados em pesquisas voltadas para os usos medicinais e alimentícios. O que
podemos dizer seguramente é que há muitos aspectos ainda vagos, como por exem-
plo: o que um etnobiólogo deve considerar como um uso madeireiro? Para tentar
esclarecer esta questão, vamos considerar o exemplo apresentado no quadro 1.

1 O corte raso corresponde à derrubada geral da vegetação lenhosa. Existe também a prática de
corte seletivo, que envolve a coleta de alvos específicos, quando há o reconhecimento de espé-
cies com qualidade superior.

105
RECURSOS MADEIREIROS

Quadro 1. Exemplo ilustrando um dos problemas conceituais sobre o que deve ser considerado um
uso madeireiro em pesquisas etnobiológicas (ver Ramos 2011; Ramos et al. 2014).

Em algumas comunidades rurais do Nordeste do Brasil, as populações humanas conhe-


cem e utilizam um grande número de produtos madeireiros. Considerando apenas os
telhados das residências, já é possível identificarmos diferentes estruturas: ripas, caibros,
linhas e esteio.

Os moradores reconhecem que cada uma dessas estruturas exerce um papel específico
na sustentação do telhado e que, por isso, são necessárias diferentes espécies florestais
para sua construção. Em outras palavras, cada estrutura requer uma madeira com ca-
racterísticas próprias, como densidade, diâmetro e forma. No entanto, nas pesquisas et-
nobiológicas essa distinção nem sempre é feita. No caso dos telhados das residências, por
exemplo, vários trabalhos consideram toda a estrutura como um único uso madeireiro,
sem distinguir suas partes e especificidades.
É importante, pelo menos para alguns fatores, estabelecermos um caminho uniformi-
zado para as pesquisas etnobiológicas acerca dos recursos madeireiros. Se não fizermos
isso, ficará mais difícil comparar dados obtidos em diferentes estudos, bem como identi-
ficar padrões. Aqui, consideramos que a classificação dos usos madeireiros deve diferen-
ciar cada parte que compõe uma estrutura de madeira, uma vez que diferentes espécies
podem ser empregadas em cada uma dessas partes, mesmo que em uma única estrutura
(p.ex. o telhado de uma casa; uma mesa). Em outras palavras, para cada tipo de uso da
madeira podem existir diferentes dinâmicas e padrões de coleta. Portanto, estes usos
contribuem com diferentes impactos sobre as áreas florestais acessadas.

Os seres humanos têm uma tendência natural a classificar as coisas ao seu redor.
Na etnobiologia também costumamos classificar os usos individuais, citados pelos
informantes, em categorias de uso (e.g. alimento, medicina, veterinária, combustível).
Para produtos florestais madeireiros empregados na subsistência humana, identifi-

106
Marcelo Alves Ramos, Maria Clara Bezerra Tenório Cavalcanti & Fábio José Vieira

camos quatro categorias principais: combustível, construção, mágico-religioso e tec-


nologia (ver Ramos et al. 2014). Tais categorias foram identificadas a partir de uma
análise dos estudos etnobiológicos sobre os usos madeireiros. Contudo, é possível o
surgimento de novas categorias, mas é preciso desenvolver mais pesquisas para regis-
trar novos usos e indicar suas respectivas categorias utilitárias.

Onde os estudos com recursos madeireiros estão


concentrados?
Na região tropical está concentrada a maioria das pesquisas etnobiológicas que abor-
dam o uso de recursos madeireiros para a subsistência humana. Por isso, o que sabemos
sobre esse assunto é construído principalmente por informações adquiridas em popula-
ções humanas dessa região. Há alguns países dos continentes africano, asiático e latino-
-americano que ainda hoje usam intensamente a lenha coletada nas florestas. Em geral,
essas nações possuem economias em desenvolvimento (emergentes) ou subdesenvolvi-
das, com Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) apresentando valores de médios
a baixos. Fora da região dos trópicos, o uso doméstico da madeira como combustível é
menos intenso.
Isso se dá devido à existência de uma relação direta entre a pobreza e a dependên-
cia de recursos florestais. Em relação à exploração de produtos madeireiros, essa rela-
ção se estreita ainda mais, pois uma grande quantidade de madeira é requisitada para
fornecer componentes essenciais para ao cotidiano das famílias, como o combustível
para cozinhar alimentos e aquecer a casa.
Adicionalmente, é na região tropical onde está a maior parte das formações flo-
restais mundiais. Com isso, as populações humanas dessa região ainda podem dispor
de recursos madeireiros para coleta, ao invés de precisar adquiri-los no comércio.

De que forma as comunidades utilizam os recursos


madeireiros?
Os recursos madeireiros são empregados para diversos fins pelas comunidades
locais. Os usos mais comuns são a sua destinação para queima como combustível
(lenha ou carvão), para construção de estruturas que delimitam espaços (telhados,
paredes, cercas) e para confecção de artefatos usados nas atividades diárias das pesso-
as (como ferramentas de trabalho, armadilhas para caça, recipientes para alimentação

107
RECURSOS MADEIREIROS

e reserva de água) que designamos como tecnologia. Há ainda o uso de madeira para
confecção de artefatos relacionados a práticas mágico-religiosas, apesar de este regis-
tro ser menos frequente na literatura científica.
Algumas pesquisas têm demonstrado que o uso como combustível é um dos mais
representativos em termos de quantidade de madeira consumida. Ele está geralmente
associado a populações humanas de baixo poder aquisitivo, pois a lenha configura-se
como uma alternativa à utilização de combustíveis derivados de petróleo, como o gás
de cozinha, o qual possui um custo mais elevado de aquisição. Dentre as finalidades
que a lenha possui, estão o aquecimento das residências, o cozimento de alimentos e a
iluminação dos ambientes. A madeira também pode ser aproveitada como combustí-
vel em atividades diferentes do uso doméstico, como é o caso de populações humanas
que fabricam peças de cerâmica a partir do barro e precisam utilizar esse combustível
para queimar as peças produzidas e finalizar o processo.
Com relação à madeira destinada à construção, esta tem sido coletada nas flores-
tas para suprir necessidades relacionadas a edificações domésticas e/ou rurais, como
é o caso da construção de casas (paredes, telhados, portas e janelas) e da delimitação
de terrenos (estacas e cercas). As categorias de combustível e construção possuem a
peculiaridade de não exigirem grande manipulação da matéria-prima (madeira). Por
sua vez, a categoria chamada aqui de tecnologia envolve usos que requerem um traba-
lho artesanal na estrutura da madeira e, por isso, esse uso tem sido abandonado com
mais facilidade, pois requer maior trabalho e especialistas locais para sua confecção.
Esta categoria abrange itens muito diversos; os usos variam desde utensílios de cozi-
nha (colheres de pau) a meios de transporte (carroças).
Observamos, ainda, que existem usos da madeira destinados a suprir necessida-
des religiosas. No Nordeste do Brasil, por exemplo, muitas comunidades humanas
montam fogueiras com madeira da vegetação natural para homenagear três santos
católicos em festejos anuais no mês de junho: Antônio, João Batista e Pedro (Almeida
et al. 2008). É um costume fortemente arraigado ao catolicismo popular da região e
que promove a extração de uma grande quantidade de madeira.

Quais fatores influenciam a seleção dos recursos florestais


madeireiros?
Por que algumas espécies lenhosas são utilizadas como combustível e outras não?
Ou, então, por que a madeira de algumas espécies pode ser usada para construir casas

108
Marcelo Alves Ramos, Maria Clara Bezerra Tenório Cavalcanti & Fábio José Vieira

ou cercas, enquanto outras não são indicadas? Isso ocorre porque nós, seres humanos,
reconhecemos e selecionamos as espécies com características mais adequadas para
cada propósito. As percepções sobre quais plantas são melhores para um determi-
nado fim podem variar entre os grupos humanos. Alguns fatores ambientais (dispo-
nibilidade das plantas na floresta, facilidade de acessar o recurso), as características
inerentes à espécie (qualidade da madeira, diâmetro, forma) e a formação cultural
do indivíduo exercem forte influência sobre este processo seletivo (ver Almeida et al.
2008; Medeiros et al. 2011; Ramos et al. 2008).
Para cada categoria de uso da madeira, existem algumas estratégias de seleção das
espécies que costumam ser observadas mais frequentemente; isso é tratado na etnobio-
logia como padrões de seleção. Devemos ter em mente, contudo, que existem exceções
aos padrões gerais observados. Neste tópico, abordaremos apenas os padrões mais rela-
tados na literatura para cada categoria de uso madeireiro citado neste capítulo.

Combustível

É comum encontrarmos algumas comunidades locais que selecionam as espécies


lenhosas de acordo com o seu potencial calorífico (ver Quadro 2). Nesta categoria
de uso, geralmente são coletados galhos e troncos secos das plantas para serem
empregados como lenha, pois a madeira verde não é considerada adequada nesse
uso, já que possui maior quantidade de água nos seus tecidos vegetais. A categoria
combustível é responsável por um elevado consumo de material vegetal, tendo em
vista que a demanda pelo recurso é diária entre as populações que dele fazem uso.
Outro uso combustível da madeira é o carvão, cujo emprego é bem mais danoso que o
da lenha, pois, para sua produção é necessário utilizar indivíduos arbóreos de grande
diâmetro e a madeira não precisa estar seca para ser coletada.

109
RECURSOS MADEIREIROS

Quadro 2. Relação do conhecimento tradicional e científico sobre plantas empregadas como com-
bustível em Sikkim, Índia (ver Chettri & Sharma 2009)

Comparando conhecimento tradicional com o conhecimento científico


A crescente população de Sikkim, na Índia, depende dos recursos madeireiros
das florestas para garantir sua sobrevivência. No entanto, como em outras regiões do
Himalaia, a demanda por esses recursos aumentou as pressões de extração sobre as flo-
restas, o que poderia causar implicações negativas para a subsistência das famílias. As-
sim, para garantir o manejo adequado das plantas mais importantes para a população,
fez-se necessário conhecer a qualidade das espécies e relacionar estas informações às
preferências identificadas na comunidade. Neste sentido, foi realizado um estudo nessa
região para analisar as propriedades químicas das espécies lenhosas, relacionadas à sua
qualidade como combustível e forragem, bem como para acessar o conhecimento da
população sobre as espécies preferidas para estas finalidades.
Foram selecionadas 16 espécies lenhosas como potenciais combustíveis para serem
utilizados na pesquisa. Após a aplicação de uma metodologia participativa com os in-
formantes, foram identificadas as espécies preferidas para uso combustível e o motivo
de tal preferência. Paralelamente, para cada uma das 16 espécies foi calculado o Índice
de Valor Combustível (IVC), o qual mede o potencial combustível da planta de acordo
com seu valor calorífico, sua umidade, seu teor de cinzas produzidas, sua densidade da
madeira e com a taxa entre a biomassa e as cinzas produzidas.
Chettri & Sharma (2009) verificaram que as espécies mais apreciadas como com-
bustível pela população possuíam fogo quente, chamas duradouras, apresentavam
madeira pesada, com pouco teor de água e pouca produção de cinzas. Estes atributos
da madeira, que determinam a preferência das pessoas, correspondem às mesmas
propriedades que foram analisadas por meio do IVC. Apesar de Quercus lineata ter
sido considerada a espécie mais preferida localmente, Rhododendron arboreum foi
considerada como uma espécie ideal para ser consumida como combustível, pois de-
teve os maiores valores de IVC e ainda é considerada como a sexta espécie no ranking
de preferência. Por fim, os autores concluem que a combinação entre o conhecimento
popular e o científico pode fornecer uma base para a conservação in situ e para o cultivo
de espécies com bons potenciais combustíveis, garantindo às comunidades a utilização
futura das espécies preferidas.

Construção

Nesta categoria a frequência de coleta é menor, pois geralmente a madeira utiliza-


da tende a durar por um longo período de tempo, sem precisar de reposição constante
(Medeiros et al. 2011; 2012). Por isso, o volume total de madeira utilizada nestes casos

110
Marcelo Alves Ramos, Maria Clara Bezerra Tenório Cavalcanti & Fábio José Vieira

é menor que para emprego como combustível. Esse uso geralmente requer o emprego
de plantas que não possuem muitos substitutos na floresta, ou seja, são requeridas
características específicas de determinada madeira, motivo pelo qual a pressão de
coleta não está igualmente distribuída entre as demais espécies. Outro aspecto des-
ta categoria é que requer, principalmente, a coleta de madeira verde para confecção
das estruturas, já que a madeira seca se deteriora mais rapidamente. Esse padrão de
seleção pode ocasionar um impacto maior sobre as populações vegetais das espécies
utilizadas, visto que os coletores têm de eliminar o indivíduo vivo para retirar o ma-
terial necessário para o uso.

Tecnologia

A coleta de madeira florestal para fornecer matéria-prima nesta categoria tem


sido reduzida em algumas regiões, devido à substituição desta por produtos indus-
trializados, produzidos a partir de madeira obtida em florestas plantadas e outros
materiais, como o plástico, o gesso, a borracha, o metal etc. No entanto, não pode-
mos esquecer que alguns usos dessa categoria permanecem gerando coleta constan-
te, como ocorre em comunidades produtoras de artesanato, que fornecem elementos
para suprir a demanda de um grande mercado comercial. Um ponto positivo é que
nesta categoria os utensílios produzidos apresentam durabilidade, não precisando ser
frequentemente repostos como ocorre no uso de lenha e carvão. Entretanto, é uma
atividade que requer critérios de seleção específicos. Por exemplo, no caso de fer-
ramentas de trabalhos (cabo de enxada, machado ou martelo), as pessoas tendem a
escolher as madeiras denominadas popularmente de leves e “frias”, ou seja, que não
produzam calor com o contato prolongado; já para produção de utensílios domésticos
(colheres de pau, mesas, pilão), as pessoal tendem a escolher espécies de baixa densi-
dade e que são reconhecidas pela população como “madeiras moles ou fofas”, pois isso
facilita o trabalho artesanal que é preciso ser feito na estrutura da madeira (Medeiros
et al. 2012; Ramos 2011).

Mágico-religioso

Sinalizar um padrão de uso da madeira para fins mágico-religiosos ainda não


é possível, já que esse tema não é tão explorado. Como já exposto anteriormente, no
mês de junho algumas comunidades rurais e urbanas do Nordeste do Brasil con-
feccionam fogueiras em frente às suas residências para homenagear santos católicos.

111
RECURSOS MADEIREIROS

Essa tradição é tão marcante que mesmo em regiões onde há proibição de corte de
espécies nativas os moradores passam a utilizar madeiras provenientes de espécies
exóticas ou de espécies nativas pioneiras, abundantes em áreas perturbadas, mas não
costumam abandonar a prática (Almeida et al. 2008). Talvez isso sinalize um padrão
de uso: não são requisitadas madeiras com características específicas, já que o propó-
sito é homenagear os santos e participar da tradição local. Na África do Sul também
existem artefatos mágico-religiosos confeccionados a partir da madeira, chamados
localmente de igoqo, krall e ubuhlanti e presentes nas residências de distintas classes
sociais, inclusive estes artefatos ocorrem com maior frequência entre as pessoas mais
ricas, denotando que o fator cultural pode ser decisivo para essa exploração madei-
reira (Cocks et al. 2006).

Implicações socioambientais dos usos madeireiros

Apesar da importância evidente de minimizarmos os impactos provenientes da


utilização não sustentável das espécies lenhosas e, consequentemente, da necessidade
de conservá-las, devemos lembrar que diversas famílias dependem desses recursos.
Muitas comunidades locais de baixa renda têm como única fonte de subsistência os
produtos florestais.
Já existem trabalhos que propõem estratégias mais participativas para garantir a
proteção dos recursos. Exemplos disso são a adoção de diâmetro mínimo do tronco
para extração da madeira, estimulando, assim, sua regeneração; a criação de progra-
mas de florestas energéticas, promovendo a coparticipação da população local para
aliar as preferências locais pelas espécies ao potencial regenerativo das plantas; e, por
fim, o uso mais racional, sem prejuízo às necessidades básicas das famílias.
Muitas comunidades residem em áreas de proteção, nas quais existem restrições ao
uso dos recursos madeireiros, o que pode ter implicações positivas e negativas para a
conservação da biodiversidade. Por um lado, devido à imposição de restrições associada
a pouca fiscalização, as populações locais podem burlar as normas e efetuar uma extra-
ção não sustentável, principalmente porque as necessidades locais não são consideradas
no estabelecimento destes critérios de coleta. Por outro, as normatizações podem pro-
mover um uso que possa atender às demandas locais de consumo e conservar o recurso
por meio de manejo adequado. Contudo, ressaltamos que, em áreas regidas por planos
de manejo, são necessárias revisões periódicas das regras estabelecidas, já que as neces-
sidades e a cultura das pessoas estão em constante mudança.

112
Marcelo Alves Ramos, Maria Clara Bezerra Tenório Cavalcanti & Fábio José Vieira

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113
CA PÍ T ULO 15

RECURSOS ANIMAIS
Rômulo Romeu Nóbrega Alves

A terra é habitada por humanos e uma enorme variedade de outros animais,


resultando em uma série de interações que se estabeleceram ao longo da história
compartilhada por estes seres vivos (Alves et al. 2010; Alves 2012). Parte importante
dessas interações está relacionada ao valor utilitário da fauna, que representa uma
fonte de produtos essenciais para a sobrevivência dos humanos desde sua origem. Os
produtos derivados de animais são aproveitados de diversas formas, incluindo o uso
como alimento, vestimenta, ferramentas, peças artesanais, entretenimento (contem-
plação em zoológicos, aquários, oceanários e safáris), animais de estimação e, ainda,
para fins medicinais e mágico-religiosos. Adicionalmente, a fauna serve de inspiração
para mitos, lendas e contos em diversas sociedades. A fauna também tem sido empre-
gada na geração de energia (animais de tração), no combate às drogas, em atividades
bélicas e esportivas (Figura 1).
Uma mesma espécie pode ter múltiplos usos, fornecendo diferentes produtos que
servem a propósitos diversos, o que potencializa ainda mais a relevância de determi-
nados animais para os seres humanos. Claramente, um dos usos mais fundamentais
da fauna é o aproveitamento de seus produtos para atender às necessidades nutricio-
nais (Reitz & Wing 2008). Pesquisas arqueológicas evidenciam que os seres humanos
têm consumido uma grande variedade de animais ao longo dos séculos (Emery 2007),
salientando o papel da fauna como a principal fonte de proteína em muitas culturas
humanas (Gross 1975). A busca por esses recursos refletiu no desenvolvimento de
uma série de técnicas e estratégias que caracterizam duas das atividades mais antigas
da humanidade, a caça e a pesca (Alves 2012). A primeira predomina em áreas conti-
nentais, e a segunda em áreas costeiras, onde, respectivamente, vertebrados terrestres
e recursos pesqueiros destacam-se entre os animais diretamente úteis aos humanos.
Em geral, os principais grupos animais envolvidos em atividades de caça são, em or-

115
RECURSOS ANIMAIS

dem de preferência, mamíferos, aves, e répteis (Alves et al. 2009; Robinson & Redford
1991), e na pesca, recursos como peixes e invertebrados (e.g. crustáceos, moluscos e
equinodermos) são mais comumente explorados em áreas costeiras, embora répteis e
mamíferos aquáticos também sejam explorados.
A fauna também apresenta um papel relevante para a saúde humana. Neste con-
texto, tem sido usada como fonte de remédios, tanto em sistemas médicos tradicionais
como na indústria farmacêutica. No primeiro caso, animais inteiros ou suas partes
constituem, juntamente com as plantas, os principais ingredientes para elaboração de
remédios tradicionais. Essa prática, utilizada há milênios, persiste até os dias atuais
e constitui uma das alternativas terapêuticas praticadas em todo mundo, em áreas
urbanas e rurais (Alves & Rosa 2013). Já no segundo caso, estudos recentes têm de-
monstrado que produtos de origem animal são recursos altamente promissores na
busca de novos fármacos de interesse médico ou farmacêutico (Alves & Albuquerque
2013). Além do seu uso na medicina tradicional ou como fonte de drogas farmacêuti-
cas, animais são essenciais em pesquisas cujos resultados têm implicações diretas ou
indiretas sobre a saúde humana (Chorilli et al. 2009). A descoberta de medicamentos,
o sucesso de desenvolvimento de transplantes de órgãos e diversas técnicas cirúrgicas
e praticamente todos os protocolos de pesquisas sobre segurança, toxicidade, eficácia
e controle de qualidade de novos fármacos passam pelo uso de animais de laboratório
(Fagundes & Taha 2004).

Figura 1. Representação dos principais uso da fauna para humanidade.

116
Rômulo Romeu Nóbrega Alves

Entre as formas de interação entre as pessoas e a fauna, que envolvem o uso de


animais vivos, a criação de animais de estimação é uma das mais disseminadas. Essa
prática envolve milhões de pessoas que interagem com uma variedade de táxons,
domésticos e silvestres (Alves 2012; Alves et al. 2013). Embora exista uma predomi-
nância de mamíferos (principalmente cães e gatos) e pássaros, outros animais, como
répteis, anfíbios e alguns grupos de invertebrados também vêm se tornando animais
domésticos cada vez mais comuns (Alves 2012).
Além do importante papel da fauna, de uma perspectiva utilitária e econômica,
animais têm desempenhado um papel em práticas culturais em todas as partes do mun-
do (Shepard 1996). A importância cultural dos animais reflete-se na arte, na literatura,
no simbolismo, na mitologia, na religião, entre outros importantes aspectos culturais da
humanidade (Alves 2012; Kalof & Resl 2007; Kothari 2007). Como ressalta Klingender
(1971), em todos os períodos da história da humanidade, animais têm sido utilizados
pelo ser humano na arte e na literatura para simbolizar suas crenças religiosas, sociais e
políticas, e os artistas têm encontrado inspiração constante na graça e beleza das formas
animais. Muitas espécies foram e continuam sendo associados a práticas religiosas; ani-
mais são considerados sagrados, deuses zoomórficos ou antropozoomórficos continu-
am sendo adorados, animais são envolvidos em rituais religiosos e produtos de animais
mortos são utilizados para ornamentar altares e templos religiosos em diferentes países
do mundo (Alves et al. 2012).
Há, ainda, diversas outras formas de uso da fauna pelos humanos, incluindo pro-
dutos usados como acessórios pessoais, decoração e ferramentas. Partes como chifres,
ossos, marfim e peles têm sido utilizados por seres humanos como ornamentos e ma-
teriais decorativos (Pedersen 2004). Os primeiros seres humanos já caçavam animais,
para comer a sua carne e aproveitar outros produtos como peles, ossos e dentes como
material de construção, ornamentos ou armas (Pedersen 2004). Animais marinhos
também fornecem uma série de produtos usados e comercializados como curiosida-
des, souvenirs, itens decorativos, artesanato e joias (Dias et al. 2011).
A influência dos animais na vida humana é marcante, e nossa cultura é ricamente
permeada por componentes zoológicos (Bryant 1979). Como resultado, interações va-
riadas foram estabelecidas entre humanos e outros animais no transcorrer da histó-
ria, tendo obviamente implicações para ambos. Lamentavelmente, nos últimos anos,
a exploração da fauna por meio da caça e da pesca tem se intensificado cada vez mais,
refletindo em sérias ameaças sobre as populações de muitas espécies exploradas. Não
obstante, há ainda exemplos de comunidades humanas que têm utilizado os recursos

117
RECURSOS ANIMAIS

animais de uma forma sustentável (Alves 2012). Assim, faz-se cada vez mais necessá-
rio compreender o contexto multidimensional (fatores biológicos, socioeconômicos,
políticos e institucionais) que envolve as interações entre humanos e animais, um
panorama que revela que a relevância de estudos etnozoológicos diante do desafio de
buscar formas de exploração que minimizem o impacto sobre as espécies animais,
uma necessidade cada vez mais evidente no contexto da conservação animal e da
própria sobrevivência humana.

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119
CA PÍT ULO 16

FUNGOS
Washington Soares Ferreira Júnior & Ulysses Paulino de Albuquerque

Os fungos têm exercido um papel muito importante ao longo da nossa história,


sendo aproveitados de diferentes formas, seja na nossa nutrição, na medicina ou na
religião. Apesar da importância dos fungos para várias culturas humanas, podemos
reconhecer sociedades tanto micófilas quanto micófobas. Sociedades ou grupos mi-
cofílicos reconhecem e empregam distintas espécies de fungos para diversos usos,
como alimento, medicamento e na religião. Por sua vez, sociedades ou grupos mico-
fóbicos reconhecem e identificam fungos, mas não os utilizam por medo, geralmente
por associá-los a situações de perigo (Lincoff 2010). Para essas sociedades, os fungos
são vistos como catalisadores de informação negativa, provocadores até de náuseas e
angústia (Mapes et al. 2002).
Várias sociedades atuais podem ser reconhecidas como micofílicas ou micofóbi-
cas. Há grupos humanos na Europa Continental que são reconhecidos como mico-
fílicos, e, em países de língua inglesa e asiáticos, há muitos grupos micofóbicos (Lin-
coff 2010). Esta distribuição entre as sociedades micofílicas e micofóbicas pode ser
influenciada por eventos históricos de migração humana. Por exemplo, nos Estados
Unidos, em que a maior parte da população é micofóbica, comunidades de imigran-
tes europeus são considerados micofílicos. Nos países que abrigam colônias inglesas,
como na Índia, existe uma tendência para manter o padrão micofóbico, seguindo as
características do país colonizador (Lincoff 2010). Isso reflete como a cultura pode
fortemente modular a nossa relação com os fungos.

Fungos e suas utilidades


Os fungos são extensivamente usados pela atribuição de propriedades medici-
nais e mágico-religiosas. Muitas sociedades ao redor do mundo usam fungos por suas

121
FUNGOS

propriedades alucinógenas, criando uma cultura a respeito de algumas espécies em


particular. A ingestão de fungos alucinógenos leva a alterações na percepção do indi-
víduo, tais como mudanças na visão e audição, as quais são interpretadas por diversas
culturas como um contato com o mundo espiritual (Schultes & Hofmann 1993). Ao
observar esse fenômeno em diferentes culturas, Robert Wasson cunhou o termo en-
teógeno para designar os recursos ou as substâncias que permitem uma conexão das
pessoas com os deuses (Wasson et al. 1992). Nas culturas enteógenas, os fungos fun-
cionam como mediadores entre o mundo espiritual e o mundo dos homens.
Do ponto de vista farmacológico, o efeito alucinógeno dos fungos pode ser atri-
buído a substâncias químicas com propriedades psicoativas que atuam no sistema
nervoso central. Algumas dessas substâncias têm sido isoladas em laboratório, como
a psilocina e a psilocibina, as quais são responsáveis pela atividade psicoativa de fun-
gos do gênero Psilocybe (Gartz et al. 1994). Os compostos muscimol e ácido ibotênico
têm sido isolados do fungo Amanita muscaria (L.) Lam., sendo destacados como cau-
sadores do efeito alucinógeno em pessoas que ingerem o cogumelo (Satora et al. 2005).
Na medicina tradicional, os fungos são empregados para o tratamento de vá-
rias enfermidades em culturas micofílicas ao redor do mundo (Akpaja et al. 2005).
Por exemplo, fungos do gênero Cordyceps têm sido utilizados ao longo da história
da medicina tradicional chinesa no tratamento de doenças respiratórias, renais,
cardiovasculares, do fígado e de desordens imunes (Holliday & Cleaver 2008; Khan
et al. 2010). Para a biomedicina, substâncias com propriedades terapêuticas vêm sen-
do descobertas. Os fungos têm uma importante história como antibióticos desde a
descoberta da penicilina, em 1927, e, além disso, possuem compostos que apresentam
propriedades mutagênicas e um conjunto de substâncias identificadas que têm exer-
cido atividade antitumoral observada em laboratório (Wainwright 2008; Aly et al.
2011).
O uso alimentício também se destaca em relação aos fungos. Historicamente,
os fungos vêm sendo utilizados como comestíveis na China, na Itália, no México,
na Turquia e no centro e sul africanos (Boa 2004). Cerca de 1.000 espécies têm sido
reportadas como comestíveis e são consumidas e comercializadas em países de todos
os continentes do planeta (Boa 2004). O uso de cogumelos por pessoas da língua
Nini, em uma comunidade rural no sul da Nigéria, por exemplo, é principalmente
alimentício, uma vez que cerca de 90% das pessoas consumiam fungos como alimen-
to, enquanto 21,6% usavam para propostas medicinais (Akpaja et al. 2005). Boa parte
dessas pessoas consomem fungos como alimento com base nos seguintes critérios:

122
Washington Soares Ferreira Júnior & Ulysses Paulino de Albuquerque

gosto, utilidade como substituto da carne e qualidades nutricionais. Do ponto de vis-


ta nutricional, fungos são importantes à saúde porque apresentam proteínas em sua
composição e por serem ricos em vitaminas e minerais (Lincoff 2010). Essa impor-
tância nutricional pode ser um fator necessário para entender a associação entre o uso
alimentício e o medicinal, empregados em diversas sociedades.
Devido ao destaque medicinal, alimentício e mágico-religioso na história de di-
ferentes sociedades, além da importância no desenvolvimento da biomedicina, os
fungos são peças fundamentais em estudos etnobiológicos que buscam compreender
como se dá a relação entre pessoas e organismos do ambiente, tanto no passado como
no presente.

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124
PARTE 5:
O MANEJO E A
DOMESTICAÇÃO DA
NATUREZA
C A P Í T U LO 17

DOMESTICAÇÃO DE PLANTAS
Ernani Machado de Freitas Lins Neto, José Ribamar Sousa Júnior, Alejandro Casas
& Ulysses Paulino de Albuquerque

O verbo domesticar etimologicamente significa trazer para dentro de casa (do-


mus, em latim, significa casa) ou construir a casa, a qual representa um ambiente
em que se pode exercer a dominação das plantas ou animais (inclusive micro-orga-
nismos) por parte das pessoas. Esta ideia nos conduz a identificar a domesticação
como o processo por meio do qual as plantas e os animais são moldados para serem
incorporados à casa (enfoque darwiniano da domesticação), assim como no processo
de dar forma à casa (domesticação da paisagem, dos ecossistemas etc.).
A domesticação de plantas e animais por parte do ser humano, não só como for-
ma de controlar a natureza e direcioná-la para necessidades específicas, mas também
por uma a perspectiva sociocultural, indica claramente o quanto evoluímos. A or-
ganização estrutural e tecnológica que a sociedade humana apresenta hoje deve-se,
em parte, a um processo coevolutivo. O surgimento da agricultura, por exemplo, foi
gradual e decisivo para a formação da sociedade que conhecemos hoje (Childe 1952;
Braidwood 1960; Harlan 1975). Há milhares de anos atrás as sociedades de caçadores-
-coletores já desenvolviam práticas agrícolas (Harlan 1975). Hoje, encontramo-nos
em um estado tecnológico avançado, que é, direta e indiretamente, fruto do início e
do desenvolvimento da agricultura.
Estudar a interação entre pessoas e plantas permite o aprofundamento na com-
preensão de uma das mais estreitas relações dos seres humanos com os recursos natu-
rais, bem na compreensão de um dos principais fenômenos responsáveis pelo desen-
volvimento da sociedade humana. Neste capítulo, serão expostas as principais teorias
e conceitos sobre a domesticação das plantas.

127
DOMESTICAÇÃO DE PLANTAS

Explicações para o surgimento da agricultura

A agricultura surgiu entre 9.000 e 11.000 anos atrás, em diferentes lugares do


mundo e de forma independente. Essa afirmação pode ser encontrada na maioria dos
textos que abordam a domesticação, levando-nos a uma questão intrigante: como é
possível um fenômeno tão complexo surgir independentemente, de maneira seme-
lhante e em um mesmo período de tempo em vários lugares do mundo? Essa é uma
das questões que mais mobilizaram esforços de pesquisas sobre a domesticação das
plantas. Estudos apontam que o mais provável é que a agricultura tenha surgido no
final do Pleistoceno, período caracterizado por mudanças climáticas, que, segundo a
maioria dos estudos, conforme Piperno (2011), reúne características ambientais que
parecem estar associadas à mudança da condição de caçador-coletor para a condi-
ção de desenvolvimento da agricultura. Dentre as alterações ambientais ocorridas,
destacam-se a estabilidade dos padrões climáticos, variável de maior importância, o
início do aquecimento global, o surgimento de ambientes mais úmidos, bem como o
aumento nos níveis de CO2 (Piperno 2011).
Diferentes hipóteses foram sugeridas para explicar o surgimento da agricultura e
a domesticação das plantas. Destas tentativas de explicação destaca-se a luta por ali-
mento, cujo proponente foi Brian Hayden’s (1998). Segundo este autor, a domesticação
iniciou-se não por uma causa externa, como o contexto ambiental, mas por uma causa
interna, cuja força motriz é dada por motivações sociais e suas relações de poder. Outras
hipóteses consideram aspectos ambientais como fator preponderante para o surgimen-
to da domesticação das plantas e animais. É o caso da teoria do Oásis, criada por Childe
(1952), a qual propõe que após a glaciação algumas regiões africanas e asiáticas passa-
ram por secas prolongadas, forçando grupos humanos a fixarem-se em regiões com
oferta de água. Assim foi possível a domesticação das plantas e animais que se encon-
trava nesses vales irrigados. O tamanho populacional foi outra variável considerada nas
tentativas de explicar o surgimento da agricultura. Segundo Cohen (1977), o aumento
populacional gerou uma pressão sobre a oferta de alimento, que culminou inevitavel-
mente no surgimento de práticas agrícolas.
Essas são apenas algumas das ideias propostas para o surgimento da agricultura.
Na verdade ao se considerar a natureza complexa desse fenômeno parece ser mais
plausível aceitarmos a ideia inicialmente sugerida por Harlan (1975), de que, diante
dos distintos contextos ambientais e sociais, várias poderiam ser as explicações para
o surgimento da agricultura.

128
Ernani Machado de Freitas Lins Neto, José Ribamar Sousa Júnior, Alejandro Casas & Ulysses Paulino de Albuquerque

Atualmente é possível reconstruir a história proposta pelos teóricos da origem


da agricultura. Blancas et al. (2013) propõem que, devido ao fato de as motivações
de manejar e domesticar plantas serem conhecidas atualmente, é possível estudar os
fatores que influenciaram e influenciam as decisões humanas. Os autores estudaram
como se constroem as decisões de manejar e domesticar plantas e como diferentes
fatores ecológicos, socioculturais, econômicos e tecnológicos contribuem de modo
importante para essas decisões.

Centros de domesticação

A domesticação ocorreu independentemente em várias regiões do mundo. Após


anos de estudo e coleta de material vegetal, Nikolai Vavilov propôs o conceito de cen-
tros de origem e diversidade, baseando-se na maior variabilidade genética e presença
de parentes silvestres de determinadas espécies vegetais encontradas em certos lu-
gares quando comparadas as demais regiões no mundo (Vavilov 1951; 1992). Assim,
surgiram os oito centros de domesticação propostos por Vavilov. São eles: centro
chinês (aveia e soja); centro indiano (algodão, arroz e cana-de-açúcar); centro asiáti-
co central (lentilha, pêssego e trigo) e menor (alfafa e cevada); centro mediterrâneo
(couve e alface); centro etiópia (cevada e linho); centro américa central (feijão, milho e
abóbora) e centro américa do sul (batata, mandioca, amendoim e tomate). Em alguns
casos, determinada espécie vegetal é referida como originária de mais de um centro,
isso se deve a algumas dúvidas que ainda persistem em relação às suas origens.
Dando especial atenção aos centros de origem e diversidade nas américas, atual-
mente são consideradas quatro regiões (Smith 2011), ao invés de duas, como proposto
por Vavilov: oeste da América do Norte, Mesoamérica, região andina e terras baixas
tropicais da américa do sul, tendo como principais exemplos de plantas domesticadas
nessas áreas o girassol (Helianthus annuus L.), milho (Zea maiz L.), feijão (Phaseolus
vulgaris L.), batata (Solanum tuberosum L.) dentre outras (Smith 2011).
Os debates com relação aos centros de origem e de domesticação das espécies
ainda são fortemente mantidos devido ao surgimento constante de novos achados,
teorias explicativas mais robustas, novos métodos de análise etc. Afirmar que uma
determinada espécie originou-se em um lugar específico, mas foi domesticado em ou-
tro, por exemplo, implica mais aspectos que os meramente geográficos de ocorrência
de uma espécie. A complexidade do fenômeno da domesticação das plantas está em

129
DOMESTICAÇÃO DE PLANTAS

todas as possibilidades de dinâmica espaço-temporal mantida por grupos humanos.


Assim, para entendermos essa coevolução, devemos concentrar nossa atenção no pro-
cesso de seleção e manejo das plantas pelas pessoas.

Influências de forças seletivas e manejo sobre a


domesticação

Charles Darwin foi um dos primeiros naturalistas a creditar a ação humana como
promotora de alteração ou variação nas plantas. Darwin expôs esta observação nos
capítulos iniciais da sua famosa obra “A origem das espécies” e, posteriormente, apro-
fundou a discussão em “Variação de animais e plantas sob domesticação”. O autor
denominou seleção artificial a força seletiva exercida pelas pessoas sobre os organis-
mos de interesse. Esse conceito foi posteriormente estendido para desenvolver a ideia
de seleção natural. Com o passar dos anos e em decorrência dos avanços científicos
e tecnológicos, passou-se a conceituar domesticação das plantas como um processo
mediante o qual os seres humanos determinam modificações na estrutura genética
de populações vegetais por favorecerem a frequência de genótipos que representem
vantagens para sua subsistência e para o desenvolvimento de sua vida social e cultu-
ral (Lira & Casas 1998). Este processo está diretamente vinculado às necessidades de
sobrevivência dos grupos humanos, isto é, o critério de seleção das plantas baseia-se
na sua importância cultural como recurso.
A seleção artificial pode ocorrer por duas principais formas, definidas por Da-
rwin (1868): a inconsciente, quando atua preservando na espécie alvo da domestica-
ção as características que são desejadas pelas pessoas, e a metódica, a qual determina
características divergentes dentro de uma mesma espécie (Heiser 1988). Ambas as
formas de seleção, inconsciente e metódica, determinam divergências; a diferença
está na velocidade da geração dessas divergências, que é maior na seleção metódica.
Esta seleção está fortemente associada com o fato de que grupos humanos deliberada-
mente selecionam indivíduos com as características de interesse a serem mantidas na
população, aumentando intencionalmente a frequência de determinados fenótipos.
Além disso, a seleção metódica é acompanhada de técnicas de manejo reprodutivo
que permitem aumentar a probabilidade de que um cruzamento determine uma pro-
gênie com fenótipo desejável.

130
Ernani Machado de Freitas Lins Neto, José Ribamar Sousa Júnior, Alejandro Casas & Ulysses Paulino de Albuquerque

Dentre os modelos de domesticação que dão especial ênfase aos aspectos cultu-
rais da domesticação das plantas, destacam-se os modelos mesoamericanos, os quais
se concentram no entendimento dos estádios iniciais desta complexa relação entre
pessoas e plantas. A Mesoamérica, que compreende da região Sudeste do México até
o Noroeste da Costa Rica (Casas et al. 1997), é um dos principais centros de origem da
agricultura no novo mundo. Nessa região culturas pré-históricas manipularam uma
vasta gama de plantas (Harlan 1975; Piperno & Pearson 1998).
Tais estudos desenvolvidos na Mesoamérica identificaram a existência de três ní-
veis de manejo das populações vegetais por comunidades tradicionais: coleta, manejo
in situ e cultivo. Segundo González-Insuasti & Caballero (2007), considerando os níveis
apresentados anteriormente, o manejo in situ ainda pode ser dividido em manejo in
situ não seletivo e manejo in situ seletivo. Ainda segundo os autores, no primeiro caso a
seleção é direcionada para o aumento e a manutenção da disponibilidade de fenótipos
desejáveis em uma população, podendo levar à diminuição de fenótipos não desejáveis.
Já no segundo caso, não somente se verifica a promoção do aumento e a manutenção da
disponibilidade do recurso desejado, mas também se eleva a qualidade da característica
desejada, pois a atenção é direcionada aos fenótipos selecionados. Em resumo, Gonzá-
lez-Insuasti & Caballero (2007) chegaram à conclusão de que poderiam distribuir as
plantas em função de uma escala ascendente de manejo, seguindo um gradiente de in-
tensidade de manipulação disposto da seguinte forma: coleta das estruturas de interes-
se; manejo incipiente não seletivo; manejo incipiente seletivo; plantas ocasionalmente
cultivadas ex situ e plantas permanentemente cultivadas. Os autores ainda chamaram a
atenção para o fato de que a intensidade não só depende das práticas de manejo já des-
critas, mas também do número de pessoas envolvidas nesta atividade. Posteriormen-
te, Blancas et al. (2010; 2013) verificaram que a intensidade de manejo é uma resposta
ao nível de risco e à incerteza da disponibilidade dos recursos. Este risco ou incerteza
relacionam-se, por um lado, ao nível de importância cultural ou econômica do recurso,
assim como, por outro lado, à escassez de um recurso.
As formas de manejo incipiente, seletiva e não seletiva, ainda podem ser classifica-
das de acordo com a atenção direta ao recurso, sendo distinguidas em tolerância, pro-
teção e promoção (Caballero 1990; Salinas et al. 1993; Casas et al. 1997). Os indivíduos
que apresentam características desejáveis para as culturas mantenedoras destes recur-
sos podem ser tolerados em áreas de outros cultivos; promovidos onde as pessoas atuam
na distribuição e dispersão dessas espécies por via vegetativa ou sexual e protegidos,
principalmente de competidores, dentro do ambiente criado pelo homem (Salinas et al.

131
DOMESTICAÇÃO DE PLANTAS

1993; Casas et al. 1997). Além das formas de manejo descritas anteriormente, devemos
considerar também a coleta sistemática como uma forma de manejo, a qual muito em-
bora não possua uma força evolutiva e de manejo comparada as demais, a coleta seletiva
de fenótipos particulares, a rotação de áreas para coleta e as restrições à exploração
do recurso entre as mais importantes consequências dessa prática, pois são atividades
humanas que podem interferir no processo de domesticação em estágio incipiente que
uma determinada espécie possa estar submetida (Casas et al. 2007; González-Insuasti
& Caballero 2007).
Esse modelo vem sendo aplicado em outras regiões da América Latina, a exem-
plo, no Peru (Piperno 2011) e no Brasil (Lins Neto et al. 2010). No Brasil, estudos
aplicaram esses modelos mesoamericanos para duas fruteiras. Na Região Nordeste,
estudou-se a relação entre pessoas e Spondias tuberosa Arruda (umbu), espécie nativa
da caatinga. Segundo os autores, a partir dos resultados encontrados para S. tuberosa,
pode-se inferir que os indivíduos dessa espécie na localidade estudada estão sob o
processo de domesticação incipiente devido às formas de manejo empregadas e que a
diversidade morfológica dos frutos e a genética das populações estudadas é mantida
(Lins Neto et al. 2013). Ainda na região nordeste, outra espécie que vem merecendo
atenção quanto ao seu manejo por populações humanas é o pequi (Caryocar coria-
ceum Wittm), o qual será tratado em detalhes no quadro 1. Na Região Sul do país,
um estudo acerca do uso e manejo da Acca sellowiana (goiabinha-serrana) verificou
que o padrão de conhecimento tradicional associado às práticas locais de manejo são
cruciais para o desenvolvimento de programas de melhoramento genético, bem como
para a conservação desta espécie (Santos et al. 2009).

132
Ernani Machado de Freitas Lins Neto, José Ribamar Sousa Júnior, Alejandro Casas & Ulysses Paulino de Albuquerque

Quadro 1. O manejo do pequi na Chapada do Araripe, Nordeste do Brasil.

O pequi (Caryocar coriaceum Wittm) é uma das espécies vegetais mais extraídas por
populações locais da região da Chapada do Araripe, Nordeste do Brasil. Essa espécie
é manejada de forma e intensidade diferentes em toda a região. A coleta do fruto é
a principal forma de manejo, sobretudo no interior da Floresta Nacional do Araripe
(FLONA), mas outras formas de manejo, tais como a semeadura e a proteção de indi-
víduos podem ser observadas em regiões do entorno da floresta, onde a intensidade
destes manejos é maior. A forte extração de pequi pode ser creditada à sua importância
alimentícia e econômica. Um estudo etnobotânico realizado na região demonstrou
que o uso alimentício e para fins comerciais do óleo extraído do fruto foram os mais
citados pelos informantes locais (Sousa Júnior et al. 2013). No período da safra, as
pessoas costumam formar acampamentos próximos à floresta, facilitando a coleta e
servindo inclusive como local de produção do óleo e da tradicional festa do pequi, que
ocorre ao fim da safra. O tamanho e sabor do fruto são as principais características
observadas pela população local para a distinção entre as populações de pequizeiro
do interior e do entorno da Floresta. Neste contexto, um estudo realizado na FLONA
apontou para uma divergência morfológica em frutos de populações de C. coriace-
um em três áreas distintas da região, sendo uma delas uma área da comunidade de
coletores. Nesta foi observado que frutos foram estatisticamente diferentes daqueles
do interior da floresta para as seguintes variáveis: comprimento da semente, peso da
semente seca e espessura da polpa. Isso provavelmente pode ser devido ao fato de a
área da comunidade ter maior diversidade de formas de manejo. Nessa área (comuni-
dade) os frutos de pequizeiros são considerados como melhores porque são protegidos.
A coleta de frutos, por outro lado, é mais intensa no interior da floresta e isso pode
estar relacionado à abundância de C. coriaceum nessa área em comparação com as
áreas adjacentes à floresta. Portanto, o pequi é considerado uma espécie de grande
importância alimentícia, econômica e cultural para as pessoas da região do Araripe.

Perspectiva

Como destacado ao longo do texto, a variável cultural assume papel central nos
estudos de domesticação. Além desse forte aspecto a ser considerado nos estudos de
domesticação, Blancas et al. (2013) e Larson et al. (2014) destacam que os estudiosos
desse processo deparam-se com três grandes desafios: o preenchimento das lacunas
nos mapas geográficos e genômicos no tocante à relação dos espécimes domestica-
dos com os seus parentes silvestres; o contexto ambiental e ecológico da origem das
práticas agrícolas, a exemplo dos processos de mudanças globais na temperatura; e,

133
DOMESTICAÇÃO DE PLANTAS

uma das principais questões anteriormente evocadas no texto, o porquê de os caça-


dores-coletores terem tornado-se agricultores e criadores? Fica evidente que estudos
de domesticação relevam-se complexos e, assim sendo, requerem o engajamento de
distintas disciplinas a fim de conjuntamente aclarar questões relacionadas à origem e
ao desenvolvimento do processo de coevolução entre pessoas e plantas.

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135
CA PÍ T ULO 18

DOMESTICAÇÃO ANIMAL
Rômulo Romeu Nóbrega Alves

O ser humano tem exercido, ao longo da história, um papel dominante sobre outras
espécies biológicas, muitas das quais são fundamentais para o suprimento de recursos
necessários à sua sobrevivência. Tal dominação culminou em um dos grandes marcos
no desenvolvimento da civilização humana, que foi a domesticação de animais e plan-
tas. Esse é um processo que tem origens remotas e que consiste na seleção e manutenção
de certos seres vivos para suprir necessidades humanas. No caso da fauna, como res-
salta Clutton-Brock (2007), a domesticação pode ser definida como a manutenção de
animais em cativeiro por comunidades humanas que exercem total controle sobre sua
reprodução, sua organização territorial e seu suprimento alimentar.
Por uma perspectiva histórica, a domesticação dos recursos biológicos marcou
uma modificação importante no estilo de vida dos seres humanos, permitindo que
estes deixassem uma vida nômade (como era comum nos primórdios da evolução
humana) e se tornassem sedentários, fixando-se em determinados territórios, onde
plantavam vegetais e mantinham animais domesticados. Essa situação possibilitou
uma dependência cada vez menor de atividades como a coleta, a caça e a pesca. Em re-
sumo, a domesticação permitiu que os humanos deixassem de ser coletores-caçadores
para serem agricultores e pastores, um marco que transformou profundamente a his-
tória da humanidade. Diamond (2002) aponta que as civilizações que domesticaram
animais (e plantas) consequentemente tiveram mais poder em mãos e foram capazes
de disseminar suas culturas e linguagens.
É notório que as sociedades humanas sempre mantiveram estreitas interações de
dependência ou codependência com os recursos faunísticos. Animais sempre desem-
penharam e continuam desempenhando um papel importante na vida das pessoas,
sendo naturalmente esperado que muitas espécies fossem domesticadas por civiliza-
ções humanas de todo o mundo, dependendo de quais animais havia em suas regiões

137
DOMESTICAÇÃO ANIMAL

e quais produtos poderiam fornecer. Neste âmbito, a domesticação de animais surge


para atender às necessidades humanas, implicando a seleção e manutenção de es-
pécies consideradas úteis, sobretudo para fornecimento de carne. Conforme aponta
Kisling (2001), a domesticação foi um processo biológico de longo prazo, que exigiu
a manutenção de animais silvestres durante muitas gerações e foi atingido somente
após mudanças significativas nos atributos comportamentais, físicos e genéticos das
espécies em cativeiro. Estas alterações não poderiam ter sido previstas, levando-nos a
concluir que a domesticação não foi pré-determinada.
Embora a motivação principal para a domesticação de muitas espécies tenha sido
o seu potencial para fornecimento de produtos usados na alimentação humana (Dia-
mond 2002; Muller 2002; Russell 2002), a domesticação do primeiro animal não foi
associada a este propósito. Acredita-se que o primeiro animal domesticado foi o lobo
(Canis lupus), na região do Oriente Médio, há cerca de 14.000 anos, originando os
cães (Canis lupus familiaris -uma subespécie do lobo) (Muller 2002). Esses animais
mostravam-se úteis como guardas e no auxílio aos humanos durante suas atividades
de caça (Muller 2002), uma situação comum até os dias atuais (Koster 2008). Mais tar-
de, foram domesticados mamíferos, como vacas, ovelhas, cabras e porcos, visando ao
provimento de carne e leite, e aves, que, além de sua carne, forneciam ovos. Ovelhas e
cabras foram domesticadas no Oriente Médio entre 7.000 e 9.000 anos atrás. Bovinos
foram domesticados há cerca de 8.000 anos na região que atualmente corresponde ao
Iraque e, independentemente, há cerca de 7.000 anos, no Paquistão. Os porcos foram
domesticados no Oriente há cerca de 9.000 anos, e os cavalos no sul da Rússia há cerca
de 5.000 anos (Allaby 2010).
Em relação às aves, os gansos parecem ter sido as primeiras aves a serem domes-
ticadas, embora seja possível que os patos tenham sido domesticados no mesmo perí-
odo. Os romanos estavam familiarizados com as galinhas de Angola, e os habitantes
originais da América do Norte mantiveram perus domesticados e também podem
ter domesticado coelhos, para fins alimentares. Animais de tração, outra importante
categoria de animais domesticados, também foram domesticados há milhares de anos
(embora mais recentemente que os animais que forneciam carne e leite). Burros e
camelos foram provavelmente os primeiros animais de carga, com cavalos sendo uti-
lizados para esse fim um pouco mais tarde. As mulas têm sido igualmente criadas por
milhares de anos. Lhamas são animais de carga desde os tempos remotos da região
andina da América do Sul (Barsa 1969).

138
Rômulo Romeu Nóbrega Alves

Percebemos, portanto, que, historicamente, as motivações humanas que levaram


à domesticação dos animais são variadas. Caçadores-coletores já utilizaram cães do-
mesticados para auxílio nas suas atividades e, mais tarde, a criação de vertebrados
permitiu o enriquecimento da dieta das primeiras sociedades humanas com fontes
regulares de carne, leite e ovos, assim como forneceu peles para proteção contra o frio
(Alves & Souto 2010). Além disso, o gado lhes oferecia esterco para fertilizar as cultu-
ras agrícolas, e, posteriormente, alguns animais domésticos passaram a ser utilizados
como meio de transporte e como fontes de energia muscular para a tração de arados
e carroças, multiplicando, assim, a capacidade produtiva e a mobilidade espacial dos
seres humanos (Ribeiro 1998).
Atualmente, os animais domésticos permanecem sendo fundamentais para a nos-
sa espécie, proporcionando nutrição, renda, transporte, companhia e entretenimento
(Scanes 2003). Os alimentos derivados de animais domesticados (carnes, leite e ovos)
contribuem significativamente como fonte de proteínas, suprindo necessidades nutri-
cionais e satisfazendo o paladar de muitas populações humanas (Givens et al. 2004).
Não surpreendentemente, atualmente, a produção de carne de animais domésticos re-
presenta uma das principais atividades econômicas mundiais (FAO 2013). A indústria
que envolve de animais domésticos usados como pets também movimenta cifras milio-
nárias (Brady & Palamari 2007). Outros animais domésticos também têm exercido im-
portantes papéis em atividades humanas, como guerras, resgate em desastres, combate
a drogas, esporte, entre outras (Tabela 1). Também têm tido um papel relevante na área
de medicina e farmacologia, sobretudo no tocante ao uso de animais em pesquisas e
testes de novos medicamentos para posterior uso em humanos (Alves 2012).

Tabela 1. Motivações/usos associadas à domesticação animal e principais grupos de animais domés-


ticos envolvidos.

Motivações associadas à domesticação Principais grupos ou animal


animal envolvido
Alimentação Bovideos, Suidae, aves e Leporidae

Animais de estimação Cães, gatos, aves, Leporidae, roedores

Fabricação de sapatos, cintos, carteiras, bolsas, Bovideos, Suidae, Lhamas


malas, pastas, casacos, chapéus, entre outros. 
Tração animal e transporte Bovideos, Camelidae, Equidae e
Lhamas

139
DOMESTICAÇÃO ANIMAL

Auxílio em atividade de caça e de pastoreio, Cães


guia para deficiente visuais

Atividades bélicas e combate a drogas e ao Equidae e cães


crime

Tratamento de doenças por meio do contato Equidae, cães e gatos


com animais domésticos
Uso em pesquisas científicas Cães, gatos e roedores


A domesticação animal e seus profundos impactos nas sociedades humanas, pre-
téritas e atuais, têm atraído a atenção de vários pesquisadores, sendo um tema estu-
dado de vários pontos de vista. Obviamente, animais domésticos são alvos de estudos
de zoologia e de disciplinas diretamente associadas, como a zootecnia e a medicina
veterinária, estas com suas origens fortemente relacionadas à fauna doméstica (Dunlop
& Williams 1996; Fernández 1978). A zootecnia é uma disciplina aplicada que busca de-
senvolver e aprimorar as potencialidades dos animais domésticos e domesticáveis, com
a finalidade de incrementar sua produção como fonte alimentar e outras finalidades. Já
a medicina veterinária tem atenção focada na saúde animal, com animais domésticos
sendo um dos principais alvos. Outra disciplina que tem especial interesse na domes-
ticação é a arqueologia, que tem concentrado atenção na datação dos processos que
levaram à domesticação e na compreensão de como ela ocorreu (Digard 1994). Relações
entre pessoas e animais domésticos também têm sido estudadas por disciplinas como a
psicologia (e.g. Wilson 1991) e sociologia (e.g. Sanders & Arluke 1993).
Fica evidente, portanto, que a domesticação da fauna e seus diferentes aspectos
têm sido estudados por diferentes disciplinas acadêmicas, dado o papel relevante que
os animais domésticos exercem nas sociedades humanas. Neste contexto, a etnobio-
logia e, particularmente, a etnozoologia, por estudar as interações entre animais e
humanos, podem dar uma contribuição relevante à compreensão deste importante
tema. Relações entre humanos e animais domésticos ocorrem em todas as sociedades
humanas, em maior ou menor escala, e envolvem aspectos históricos, sociais, cultu-
rais, econômicos, psicológicos e sociológicos, que podem ser estudados por meio de
pesquisas etnozoológicas.

140
Rômulo Romeu Nóbrega Alves

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141
CA PÍ T ULO 19

O EXTRATIVISMO DE RECURSOS VEGETAIS


Juliana Loureiro de Almeida Campos, Ivanilda Soares Feitosa, Julio Marcelino
Monteiro, Gilney Charll dos Santos & Ulysses Paulino de Albuquerque

Nós temos utilizado as plantas durante milhares de anos para nosso sustento e
autonomia. Ao longo de nossa história evolutiva, empregamos esses recursos para
suprir as nossas demandas mais diversas. Dentre os diversos produtos que coletamos
da natureza, podemos identificar os produtos florestais não madeireiros (PFNM), ca-
racterizados como todos os recursos advindos da floresta, exceto a madeira. A coleta
desse tipo de recurso tem sido apresentada como uma alternativa aos modos insus-
tentáveis de extração dos recursos naturais, por aparentemente causar baixo impacto
para as comunidades vegetais e, ao mesmo tempo, integrar a conservação da biodiver-
sidade ao desenvolvimento de populações locais (Soldati & Albuquerque 2010), uma
vez que o retorno econômico é capaz de despertar nestas a necessidade de conserva-
ção das formações florestais (Ndangalasia et al. 2007).
No entanto, por ser muito favorável, o retorno econômico pode desencadear uma
ação contrária, incentivando a coleta desordenada do recurso para que se obtenha maior
renda decorrente de sua venda. Como exemplo disso, temos a extração da fava-d’anta,
por meio da qual as famílias rurais sobrevivem com uma baixa renda oriunda da explo-
ração da vegetação nativa (Barbosa Paula et al. 2007). A fava-d’anta é uma espécie na-
tiva do Brasil, onde as várias espécies do gênero Dimorphandra Schoot fazem parte do
mercado mundial de produtos farmacêuticos. Os extratores exploram a fava-d’anta pelo
baixo custo com que são repassadas para o elo seguinte da cadeia produtiva da espécie,
ficando, assim, com as indústrias a maior porcentagem de lucro presente na cadeia.
Quando a coleta de PFNM’s é feita de forma intensa e/ou desordenada, a estrutura e
dinâmica populacional das espécies submetidas ao extrativismo podem ser afetadas da
mesma forma. A consequência mais direta da extração de PFNM’s é a alteração das ta-
xas de sobrevivência, crescimento e reprodução de indivíduos coletados. Alterações nes-

143
O EXTRATIVISMO DE RECURSOS VEGETAIS

sas taxas podem afetar a fisiologia e os processos vitais dos indivíduos, mudar padrões
genéticos e demográficos de populações e alterar processos em nível de comunidades
e ecossistemas (Ticktin 2004). No entanto, o impacto da exploração para os indivíduos
depende da parte que é explorada e do seu potencial de regeneração. Por exemplo, uma
mesma espécie pode ser extraída com o objetivo de utilizar a madeira como combustí-
vel (lenha) e para a construção de casas e os frutos para a alimentação. Assim, é possível
que o extrativismo tenha consequências mais severas para uma espécie que possui múl-
tiplos usos, quando comparada a outra que é extraída para um único fim.

O extrativismo em ação

A coleta de frutos para alimentação é uma prática comum realizada por comu-
nidades locais ou tradicionais em todo o mundo. Quando feita de forma não susten-
tável, a extração de frutos pode levar à diminuição do processo de dispersão, afetan-
do, assim, o recrutamento da espécie e a sua manutenção nos estoques naturais. Um
exemplo que também pode ser agressivo e, dessa forma, comprometedor à perpetu-
ação dos indivíduos no ambiente, é a coleta de cascas do caule para fins medicinais,
que, dependendo da forma de coleta e da quantidade coletada, pode levar o indivíduo
à morte. De acordo com a natureza e/ou a intensidade da coleta, pode haver um ane-
lamento do caule, interrompendo o fluxo floemático (Figura 1).

Figura 1. Indivíduos da espécie Stryphnodendron rotundifolium Mart. (barbatimão) submetidos à


extração da casca do caule na região da Chapada do Araripe, Ceará. Fotos: Ivanilda Feitosa.

144
Juliana Loureiro de Almeida Campos, Ivanilda Soares Feitosa, Julio Marcelino Monteiro,
Gilney Charll dos Santos & Ulysses Paulino de Albuquerque

No caso da retirada de folhas, algumas vezes pode ocorrer o aumento na taxa de


produção destas após a extração (Oyama & Mendoza 1990). No entanto, após longo
tempo de extração foliar, a alocação de recursos na planta pode ser alterada, levando à
diminuição do número de estruturas reprodutivas (Endress et al. 2004). Sendo assim,
o que define a intensidade do extrativismo? Provavelmente, a demanda do recurso
irá definir com que intensidade esse recurso será extraído. Se a extração for realizada
para uso doméstico, o impacto dessa ação será menor, pois o recurso será extraído, a
princípio, em menor quantidade.

Quadro 1. A dispersão e o extrativismo do pequi na Chapada do Araripe, Nordeste do Brasil

Na Chapada do Araripe, Nordeste do Brasil, o pequi (Caryocar coriaceum Wittm.),


espécie de porte arbóreo com síndrome de dispersão zoocórica, sofre intensa pres-
são extrativista na coleta de seus frutos, por seu valor alimentício e medicinal. Tais
frutos são drupas, de polpa branco-amarelada, com até quatro sementes volumosas,
protegidas por um endocarpo lenhoso e finos espinhos. Geralmente, são coletados
quando caem ao chão, pois, dessa forma, estão prontos para o consumo de sua polpa e
para o comércio. Entretanto, alguns extrativistas não esperam a queda desse recurso,
coletando-os diretamente das árvores. Perante este cenário, Santos (2012) analisou
o estabelecimento e a remoção natural de frutos dessa espécie na Floresta Nacional
do Araripe (FLONA), em uma unidade de conservação de uso sustentável inserida na
Chapada do Araripe, sul do Estado do Ceará. O estudo mostrou que: 1) plântulas não
foram encontradas antes ou depois de um evento de safra; 2) apenas dois indivíduos
jovens tiveram seus caules quebrados, como resultado da ação extrativista, sendo que
essa danificação não foi suficiente para promover a morte dos indivíduos; 3) 29,6% dos
frutos foram removidos de suas origens; 4) 14,97% dos frutos removidos foram enter-
rados por besouros, conhecidos no Brasil por rola-bosta (Coleoptera-Scarabaeidae).
Diante do que encontrou, Santos (2012) chegou às seguintes conclusões: 1) a ausência
de plântulas pode ser um reflexo da intensa prática extrativista, haja vista que os fru-
tos deixados para a fauna dispersora pode não estar sendo suficiente para garantir o
estabelecimento da população explorada; 2) os extrativistas conhecem bem os indiví-
duos jovens da espécie e preocupam-se com o seu desenvolvimento, procurando não
os danificar durante os eventos de coleta; e 3) enterrando os frutos, o besouro rola-
-bosta livra-os da ação de predadores como fungos, insetos e vertebrados, podendo,
dessa forma, contribuir para o estabelecimento de C. coriaceum. Entretanto, para o
autor, afirmar que essa problemática ocorre realmente devido ao extrativismo exige
desenhos experimentais rigorosos, uma vez que outros fatores podem contribuir, ne-
gativamente, para o estabelecimento de árvores frutíferas nas florestas tropicais, como
a ocorrência de fogo (natural ou intencional), a fragmentação dos habitats e a caça aos
dispersores.

145
O EXTRATIVISMO DE RECURSOS VEGETAIS

Para a sustentabilidade de um recurso ocorrer, a coleta deve ser feita consideran-


do-se a capacidade de regeneração de cada espécie. No caso em que o recurso coletado
é a casca do caule, pode-se retirar tiras em lados opostos do tronco, abaixo do nível do
primeiro ramo (Cunningham & Mbenkum 1993). Para as espécies que têm os frutos
como alvo de exploração, a coleta pode ser limitada pela quantidade mínima permiti-
da para a sua dispersão (Peters 1994). Todavia, essas alternativas mais generalizantes
podem não ser suficientes. Por isso, o mais correto a fazer, e também mais adequado,
seria investir em estudos a respeito dos impactos ecológicos e sociais do extrativis-
mo, como foi realizado por Baldauf et al. (2014) com a espécie Himatanthus drasticus
(Mart.) Plumel, conhecida popularmente como janaguba. Na Chapada do Araripe,
indivíduos dessa espécie têm a casca extraída para remoção do látex, o qual possui
propriedades medicinais. Os pesquisadores avaliaram o impacto de diferentes níveis
de extração da casca (controle, 50% e 100% de extração) sobre a fenologia reprodutiva
da espécie durante dois anos e verificaram que a floração e a frutificação foram me-
nores em indivíduos que não tiveram a casca extraída (tratamento controle) e maio-
res em indivíduos que tiveram 100% da casca retirada. Provavelmente, a extração da
casca do caule pode ter contribuído para o aumento de fotossintatos imprescindíveis
para a produção de flores e frutos nessa espécie (Baldauf et al. 2014), justificando, des-
se modo, o resultado observado. Todavia, não foi estudado se o extrativismo afetou
qualitativamente a produção das flores e frutos. Já Borges Filho & Felfili (2003) veri-
ficaram que o recrutamento da espécie Stryphnodendron adstringens (Mart.) Coville
(que também sofre extração da casca do caule para fins medicinais) estava abaixo
do esperado em unidades de conservação do Distrito Federal. Assim esses estudos
evidenciam que a resposta das plantas ao extrativismo pode ser diversa, por isso há
a necessidade de estudos para cada planta explorada a partir dos estoques naturais.
Se a extração de produtos florestais for realizada para fins comerciais, a quanti-
dade extraída será maior e provavelmente as consequências da extração serão mais
drásticas. Todavia, não podemos afirmar que o fato de a planta ser utilizada apenas
domesticamente não implica consequências negativas para sua população, pois a in-
tensidade do extrativismo de determinado recurso vegetal também depende do valor
desse recurso para as pessoas que o extraem e de fatores sociais que modulam a rela-
ção entre elas e o recurso.
As pessoas que vivem exclusivamente da coleta de plantas estão cada vez mais
ameaçadas pela perda da biodiversidade. Todavia, há quem argumente o contrário:
a diversidade está ameaçada pelo extrativismo que essas pessoas fazem dos recursos

146
Juliana Loureiro de Almeida Campos, Ivanilda Soares Feitosa, Julio Marcelino Monteiro,
Gilney Charll dos Santos & Ulysses Paulino de Albuquerque

naturais em diferentes escalas. Ambas as posições são equivocadas porque essa rela-
ção não pode ser vista dicotomicamente, assim como a sua solução não reside em des-
favorecer um lado para favorecer outro. Ao longo do tempo, os profissionais da área
de conservação chegaram à conclusão de que a conservação dos recursos naturais
requer a participação ativa e o envolvimento de todos os atores sociais relacionados ao
problema: biólogos da conservação, cientistas das humanidades e das sociais, gestores
do ambiente e comunidades locais ou tradicionais.
Diante dessa problemática, buscamos alternativas que possam ser mantenedoras
tanto da subsistência das populações tradicionais quanto da diversidade vegetal. A
coleta de PFNM tem sido identificada como alternativa para equilibrar a conservação
da biodiversidade com a geração de renda das comunidades. No entanto, a sustenta-
bilidade de um recurso alia aspectos ecológicos e econômicos, tornando difícil o equi-
líbrio entre as variáveis dessa relação (Guimire et al. 2004). Dessa forma, o envolvi-
mento da comunidade local na elaboração e manutenção de práticas sustentáveis para
a coleta de PFNM é de suma importância, pois, sem o seu envolvimento, as chances
de sucesso são muito pequenas. Cunningham & Mbenkum (1993) relataram que na
região de Camarões, na África, foi desenvolvido um plano de diretrizes para a coleta
de casca sustentável da espécie Prunus africana (Hook. f.) Kalkman. Contudo, apesar
dos esforços na manutenção dessa prática, em muitos casos essas diretrizes não são
seguidas e a coleta não é sustentável.
Com base no exposto e considerando o forte impacto causado pela extração des-
sas espécies, ações mitigadoras podem ser sugeridas e ajustadas a cada caso: cultivo
de espécies; seleção de substitutos mais resistentes ao extrativismo que contenham
características ou quantidades similares de compostos bioativos (quando for o caso
de plantas medicinais); adoção de estudos sobre os processos de regeneração de partes
retiradas de espécies úteis; e estudos acerca do impacto do extrativismo sobre a estru-
tura e a dinâmica populacional das espécies extraídas (Monteiro et al. 2011). A par-
tir desses estudos, propostas de coletas sustentáveis, tanto para consumo domiciliar
como para comércio local, podem facilitar a implementação de manejos adequados e
diminuir os processos de extinção local. Além disso, recomenda-se que as ações con-
servacionistas sejam adequadas à realidade local, incorporando o conhecimento das
populações extrativistas na elaboração de estratégias de conservação, uma vez que
boa parte das ações conservacionistas pode ter efeito contrário se não forem realiza-
das junto a essas populações.

147
O EXTRATIVISMO DE RECURSOS VEGETAIS

Referências
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Ticktin, T. 2004. The ecological implications of harvesting non-timber forest products. Journal
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148
PARTE 6:
FATORES QUE
AFETAM O
CONHECIMENTO
BIOLÓGICO
TRADICIONAL
CAPÍTULO 20

A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO
LOCAL OU TRADICIONAL E O USO DOS
RECURSOS NATURAIS
Gustavo Taboada Soldati

Diversas disciplinas têm como objetivo compreender o comportamento huma-


no e os fatores que o influenciam. Muitos caminhos teóricos valorizam as esferas
genética, individual e ambiental, e pouca atenção é destinada a processos de inte-
ração social, como a transmissão do conhecimento. Vamos partir de uma proposta
ecológico-evolutiva para apresentar os aspectos associados à transmissão cultural que
influenciam o conhecimento e uso dos recursos naturais, assumindo que estes pro-
cessos são em essência uma representação do comportamento humano.

Formas de aquisição do conhecimento e evolução cultural

Imaginemos um sistema cultural composto por um conjunto de indivíduos, com


ou sem relações de parentesco, também conhecidos como pares sociais. Cada qual
armazena um conjunto de informações (traços) que determina o seu comportamen-
to. Essas informações podem ter três origens diferentes; podem ser oriundas da base
genética, da produção individual do conhecimento e da transmissão cultural (Laland
2004; Soldati 2013a), sendo este último processo sinônimo de “aprendizagem social”
(ver Heyes 1994). No primeiro caso, o conteúdo presente em nossos genes produz ou
predispõe a certos tipos comportamentais. A produção individual ocorre quando um
indivíduo, por meio de experimentações individuais, produz um novo conhecimento,
uma inovação. Apesar de ser um processo custoso, pois demanda tempo e energia,

151
A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO LOCAL OU TRADICIONAL E O USO DOS RECURSOS NATURAIS

muitos pesquisadores assumem que esta nova informação é sempre adaptada, pois foi
concebida em sintonia com as atuais condições ambientais e sociais.
De outra forma, a transmissão cultural, é definida como o “processo no qual conhe-
cimentos, crenças, habilidades, práticas, normas, valores, e outras formas de informações
não genéticas são passadas de indivíduo para indivíduo através de mecanismos de apren-
dizado social, como imitação e ensino” (Mesoudi 2013: 131). O processo de transmissão
envolve quatro elementos: a) uma informação, conteúdo que será transferido; b) um
modelo, aquele quem inicialmente porta a informação; c) um aprendiz, indivíduo que
receberá o traço; e d) um contexto ambiental e social no qual o processo se realiza. A
transmissão de conhecimento não ocorre de uma geração para outra de forma imediata,
mas de indivíduo para indivíduo, pois, apesar de ocorrer em um contexto que congrega
muitas pessoas, o indivíduo é sempre o agente social da aquisição ou fonte do conheci-
mento. Portanto, faz pouco sentido continuarmos baseando-nos na máxima comum na
literatura, segundo a qual “o conhecimento tradicional é transmitido de geração para
geração”, pois existem muitos canais de transferência de informações.
Do ponto de vista evolutivo, copiar uma informação de outra pessoa (dos pa-
res) é um processo altamente vantajoso. Para compreendermos o porquê, é necessá-
rio termos em mente que os comportamentos humanos têm duas naturezas: ou são
baseados nas informações genéticas (genes) ou nas informações culturais (traços).
A transmissão de informações genéticas ocorre exclusivamente de pais para filhos.
Portanto, para que um gene vantajoso se fixe em uma população, são necessárias
muitas gerações, o que implica muito tempo. A transmissão cultural permite que uma
pessoa adquira informações durante toda a sua vida e de muitos modelos além dos
pais, como primos, tios, especialistas, televisão, rádio. Como resultado, as adaptações
culturais ocorrem em taxas muito mais rápidas e de maneira flexível, acelerando a
evolução humana para além das adaptações genéticas. Além disso, copiar dos pares
é, em determinadas situações, vantajoso porque permite a aquisição de informações
aparentemente proveitosas, livrando o indivíduo da produção individual do conheci-
mento, processo alternativo altamente custoso (Laland 2004; Mesoudi 2011).
Apesar dos benefícios evolutivos, copiar aleatoriamente não provê nenhuma
vantagem, porque adquirir conhecimento sem nenhum direcionamento não garan-
te que a informação incorporada será de fato proveitosa (Rogers 1988). Para que a
transmissão cultural se justifique evolutivamente, ou seja, aumente o valor adap-
tativo da população, é necessário que este processo sofra algum direcionamento,
ou melhor, sofra alguma seleção. Como estamos tratando de informações culturais,

152
Gustavo Taboada Soldati

referimo-nos a uma seleção cultural, definida como “qualquer condição na qual um


traço cultural tem maior probabilidade de ser adquirido e transferido em relação a
outros traços alternativos” (Mesoudi 2011: 64). Por exemplo, informações novas em
um sistema cultural, também conhecidas como inovações, são mais propensas a se-
rem transferidas entre os membros do grupo (Rogers 1998). Um bom exemplo deste
processo de seleção cultural é oferecido pela psicologia evolutiva. A mente humana
foi modulada em situações críticas, de limitações alimentícias, modificações na dieta
e novas estruturas sociais, nas quais a transmissão cultural foi de extrema impor-
tância para a sobrevivência de nossa espécie (Nairne et al. 2007). Como resultado
desse processo seletivo, os seres humanos apresentam adaptações estruturais que
permitem detectar algumas características (pistas) no comportamento dos pares que
indicam quais informações são mais proveitosas.
Portanto, a cópia de conhecimento não é aleatória, mas segue algumas tendên-
cias, a que chamamos vieses. São justamente a estes vieses, bases da seleção cultural,
que queremos chamar a atenção como mecanismos que influenciam o processo de
aprendizado do conhecimento local. Este processo muda a frequência das informa-
ções em um grupo e promove, portanto, a evolução cultural.

A transmissão cultural é afetada por diferentes tendências

Há várias tendências (os vieses) associadas à transmissão cultural, mas aqui aten-
taremos para três: 1) viés de conteúdo; 2) viés de prestígio e 3) viés de custo-benefício.
No primeiro caso, uma informação torna-se mais propensa a ser difundida pelo tipo
de conteúdo, ou seja, por características próprias da informação, como atratividade
e memorabilidade, isto é, o conhecimento pode ter uma natureza objetiva e concreta
ou uma determinada informação pode ser mais subjetiva e abstrata, o que determina
a sua transmissão. Por exemplo, o nome de recursos naturais, como o nome das plan-
tas, é uma informação objetiva e concreta. Conseguimos concretamente distinguir
que alecrim é diferente de manjericão. Este tipo de conhecimento, segundo Aunger
(2000), é apreendido normalmente durante a infância (Aunger 2000). Contudo, as
formas de uso e coleta, são habilidades de natureza tácita e que demandam experi-
mentação para sua aquisição. São, desta forma, menos concretas e mais subjetivas.
Assim, são adquiridas apenas em idades mais avançadas, por meio de outros modelos,
como especialistas locais (Aunger 2000). Outro tipo de viés de conteúdo está associa-

153
A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO LOCAL OU TRADICIONAL E O USO DOS RECURSOS NATURAIS

do à importância adaptativa da informação. Nairne et al. (2007) concluíram que a


mente humana está enviesada para armazenar e recordar informações mais valiosas
para a sobrevivência individual e chamaram esta tendência de viés adaptativo. Neste
caso, a adaptabilidade do conhecimento o torna mais propenso a ser transmitido.
Mantendo o exemplo já apresentado, espera-se que as indicações terapêuticas e as
formas de preparo de um recurso medicinal sejam mais facilmente armazenadas e
acessadas que, por exemplo, o modelo de aprendizado (ver Soldati 2013b).
A segunda tendência apresentada anteriormente, viés de prestígio, parte da com-
preensão de que a mente humana também foi moldada para avaliar os possíveis mo-
delos disponíveis e copiar aqueles de maior sucesso, otimizando a aquisição de infor-
mações adaptativas (Henrich & Gil-White 2001). Uma das características utilizadas
pelo aprendiz neste processo é o prestígio social do modelo a ser copiado. Henrich
& Gil-White (2001) verificaram que, em relação ao aprendizado sobre pesca e plan-
tas medicinais, as pessoas tendem a aprender dos pares reconhecidos como os mais
conhecedores ou com maior prestígio. Contudo, este viés pode também permitir a
transmissão de informações irrelevantes, também conhecidas como má-adaptações,
porque, mesmo um especialista local, não necessariamente porta informações evolu-
tivamente proveitosas (Wood et al. 2102).
O último viés que desejamos discutir, o viés de custo-benefício, analisa o pro-
cesso de aprendizado a partir de uma lógica energética. Ao aprender, um indivíduo
gasta (investe) energia, reconhecendo e acessando o modelo. Entretanto, as informa-
ções oferecidas pelos modelos disponíveis ao aprendiz não são de igual qualidade,
variam em relação ao retorno energético que elas garantem ao seu portador. Por
exemplo, conhecer uma planta medicinal X pode garantir a cura instantânea de uma
enfermidade, já o conhecimento sobre uma planta Y, que leve também à cura, pode
demandar um tempo maior de tratamento. Há, portanto, uma relação de custo-be-
nefício no aprendizado, balanceamento que influencia o processo de transmissão do
conhecimento.
Em uma situação prática, as crianças aprendem essencialmente dos pais porque,
segundo Heinrich & Broesh (2011), estes são os modelos mais próximos, de mais fácil
acesso. Assim, o aprendizado parental é, para as crianças, o menos custoso. Durante
a fase adulta, o retorno do aprendizado é garantido pela qualidade da informação
adquirida de outros modelos, sobretudo especialistas, mesmo sendo alto o custo de
buscá-lo. Por isso, os adultos aprendem essencialmente de pares não parentais. Em
relação à caça de animais, as crianças aprendem as habilidades necessárias para con-

154
Gustavo Taboada Soldati

seguir este recurso natural na medida em que apresentam uma estrutura física que
permite a sua execução e, principalmente, à medida que o retorno das atividades de
caça garante o investimento no aprendizado de habilidades complexas e, por vezes,
perigosas (Walker et al. 2002). Neste sentido, há uma relação ecológico-evolutiva que
determina os modelos de aprendizado e, consequentemente, o conhecimento adqui-
rido, bem como a fase de vida na qual este processo ocorre.

Referências
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Heinrich, J. & Broesh, J. 2011. On the nature of cultural transmission networks: evidence from
Fijian villages for adaptive learning biases. Philosophical Transactions of the Royal Society
B: Biological Sciences 366: 1139 - 1148
Henrich, J. & Gil-White, F. J. 2001. The evolution of prestige: freely conferred deference as a me-
chanism for enhancing the benefits of cultural transmission. Evolution and Human Beha-
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Heyes, C. M. 1994. Social learning in animals: categories and mechanisms. Biological Review
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Laland, K. N. 2004. Social learning strategies. Learning & Behavior 32: 4-14.
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the Ache of Eastern Paraguay. Journal of Human Evolution 42: 639–657.

155
A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO LOCAL OU TRADICIONAL E O USO DOS RECURSOS NATURAIS

Wood, L. A.; Kendal, R. L. & Flynn, E. G. Context-dependent model-based biases in cultural


transmission: children’s imitation is affected by model age over model knowledge state. Evo-
lution and Human Behavior 33: 387–394.

156
CAPÍTULO 21

CONHECIMENTO E USO DE PLANTAS EM


CONTEXTOS DE MIGRAÇÃO
Patrícia Muniz de Medeiros, Diego Batista de Oliveira Abreu
& Ulysses Paulino de Albuquerque

Quando as pessoas migram, deparam-se com um novo cenário. A depender dos


locais de origem e das distâncias percorridas, fortes diferenças culturais, políticas,
econômicas, geográficas e ambientais podem ser encontradas. Essas diferenças cos-
tumam influenciar a forma como os povos migrantes relacionam-se com outros mi-
grantes, com os povos nativos e com o ambiente. Este capítulo focará a influência
da migração sobre o conhecimento e uso de plantas, elementos-chave da cultura de
várias sociedades. Enfatizaremos as plantas medicinais, já que este recurso é o mais
estudado em contextos de migração.

Entre o conhecer e o usar: migrantes e plantas

Em termos quantitativos, podemos perguntar: quando um grupo de pessoas mi-


gra, seu conhecimento sobre plantas aumenta, diminui ou mantém-se o mesmo que
antes do evento de migração? Se voltarmos o nosso olhar apenas para a geração que
migrou, é de se esperar que o conhecimento aumente ou, pelo menos, mantenha-se
(estamos, nesse caso, excluindo a possibilidade do esquecimento). Novas experiências
e trocas podem e costumam ampliar o repertório de plantas úteis conhecidas pela
geração de migrantes.
Contudo, essa amplificação no conhecimento pode não ser mantida com o passar
das gerações, porque algumas plantas do local de origem dos migrantes não estão
disponíveis no novo ambiente e não são facilmente adquiridas neste (Volpato et al.

157
CONHECIMENTO E USO DE PLANTAS EM CONTEXTOS DE MIGRAÇÃO

2009; Medeiros et al. 2012). Desta forma, parte do corpo de conhecimentos, outrora
postos em prática, transforma-se em conhecimento de estoque (conhecimento que
existe, mas não é praticado). O grande problema do conhecimento de estoque é que,
por não ser praticado, é possível que não persista nas próximas gerações (Albuquer-
que 2006) (Figura 1). Para plantas que não são mais usadas, é bastante comum que
haja bloqueios nas vias de transmissão de conhecimento simplesmente porque não há
necessidade ou oportunidade de se ensinar algo que não faz parte da realidade atu-
al. Grande parte dos eventos de transmissão de conhecimento vertical (de pais para
filhos) se dá com a prática, com a observação da coleta, do manejo ou do preparo de
recursos vegetais. Assim, no contexto de migrações, fica clara a necessidade de estu-
darmos não apenas o conhecimento de povos migrantes, mas também o que estes de
fato estão pondo em prática, ou seja, o uso.

Figura 1. Esquema hipotético que enfatiza a fragilidade do conhecimento de estoque entre povos mi-
grantes. As figuras pretas representam o conhecimento posto em prática (conhecimento de massa) e
as brancas representam o conhecimento de estoque. Os círculos representam plantas úteis já emprega-
das antes da migração, e os quadrados, as que passaram a ser empregadas após a migração. O terceiro
cenário é o do repertório de plantas úteis para as próximas gerações (filhos de migrantes e subsequen-
tes). Plantas do local de origem que porventura não podem ser adquiridas no novo ambiente podem
passar para o conhecimento de estoque e, nas próximas gerações, desaparecer do sistema médico.

Mudemos agora a natureza da nossa pergunta: quando um grupo de pessoas mi-


gra, quais plantas são por eles utilizadas? Ao saltar do quantitativo para o qualitati-
vo e do conhecimento para o uso, podemos observar fenômenos não abarcados pela
pergunta anterior. Muitos estudos etnobotânicos têm classificado as plantas usadas
pelos migrantes em 1) plantas que eles já usavam antes da migração e 2) plantas que
eles passaram a utilizar após a migração. Outro arranjo classificativo pode ser: 1)
plantas encontradas (ou obtidas) no local de origem e 2) plantas encontradas (ou ob-

158
Patrícia Muniz de Medeiros, Diego Batista de Oliveira Abreu & Ulysses Paulino de Albuquerque

tidas) apenas no novo ambiente (Pieroni et al., 2005; Volpato et al., 2009; Medeiros et
al. 2012). Notemos que as duas classificações são diferentes, pois é possível que uma
planta ocorra no local de origem do migrante, mas só tenha passado a ser utilizada
por ele após a migração. Imaginemos que uma planta X ocorre naturalmente no local
de origem e no novo ambiente do migrante. É possível que o migrante não conhecesse
o uso da planta antes de deixar o local de origem e, só ao chegar ao novo ambiente e
receber informações das pessoas desse novo local, ele passasse a utilizá-la.

Migração e uso de plantas medicinais

Um trabalho desenvolvido por nosso grupo de pesquisa (Medeiros et al. 2012)


analisou várias investigações relacionadas à etnobotânica de povos migrantes e suge-
riu dois perfis de estratégias de uso de plantas medicinais: 1) estratégias de aquisição
da flora do local de origem e 2) estratégias de adaptação à nova flora. Entre as estra-
tégias do primeiro grupo estão a aquisição de material advindo do local de origem
(compra em mercados, aquisição direta com amigos ou familiares, importação etc.)
e o cultivo e o uso de plantas que ocorrem de forma espontânea nos dois ambientes.
A estratégia central do segundo grupo é basicamente a de substituição de plantas ou-
trora utilizadas por plantas do novo ambiente. O repertório de plantas usadas por um
povo migrante pode, portanto, ser reflexo de várias estratégias conjuntas.
Nós observamos que cada estratégia pode ganhar ou perder força de acordo com
as características do local de migração. Por exemplo, quando há fortes barreiras sani-
tárias em um país, é possível que estratégias de importação de plantas percam força.
Se os dois ambientes (local de origem e novo local) são geograficamente próximos,
é razoável inferir que as mesmas plantas continuarão a ser utilizadas, seja por tam-
bém ocorrerem na vegetação do novo local ou pela aquisição proveniente do contato
contínuo dos migrantes com o seu local de origem. A migração para um local com
grande distância geográfica em relação ao lugar de origem, mas com característi-
cas ambientais similares, pode propiciar o fortalecimento das estratégias de cultivo.
Ainda, o contato dos migrantes com povos nativos pode incentivar as substituições
(Lacuna-Richman 2006). Assim, observamos que as plantas que serão utilizadas pelos
migrantes dependem de todos esses fatores e que os contextos culturais, políticos,
geográficos e ambientais não podem ser desconsiderados.

159
CONHECIMENTO E USO DE PLANTAS EM CONTEXTOS DE MIGRAÇÃO

Medicina tradicional x medicina oficial em contextos de


migração

Após a migração, não apenas a quantidade e o repertório de plantas medicinais


podem mudar, como também todo um sistema médico (ou pelo menos parte dele).
Muitos estudos têm evidenciado que após a migração para grandes centros urbanos,
é comum a adesão desses povos aos padrões de consumo globais, o que inclui o
sistema oficial de saúde. Assim, é possível que haja o abandono de práticas médicas
tradicionais ou a emergência de sistemas plurais, ou híbridos, em que a medicina
tradicional e a medicina oficial coexistem. No estudo com migrantes guatemalte-
cas (Nesheim et al. 2006), muitos entrevistados afirmaram usar plantas quando os
comprimidos falhavam ou vice-versa. Waldstein (2006), em estudo com migrantes
mexicanos nos Estados Unidos, também notou essa coexistência entre o sistema mé-
dico oficial e o tradicional.
No entanto, a mudança de sistemas médicos por povos migrantes não se dá ape-
nas no sentido da adoção da medicina oficial. A via contrária, embora muito pouco
estudada, também acontece. Esforços recentes do nosso grupo de pesquisa estão dire-
cionados para o contexto do Vale do Capão, em Palmeiras, Brasil. O local tem sido a
escolha de migrantes de diversas partes do mundo, em busca de melhor qualidade de
vida. Muitos deles advêm de áreas urbanas e passaram a utilizar plantas medicinais
de forma expressiva apenas após a migração para o Vale. Observações preliminares
deste fenômeno indicam que o processo de reestruturação do conhecimento tradi-
cional nesse local costuma começar pelo uso de um kit de plantas medicinais, com-
posto por espécies exóticas de ampla distribuição e popularidade, e que, conforme o
migrante interage com os moradores antigos, passa a acrescentar espécies nativas ao
seu repertório.

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160
Patrícia Muniz de Medeiros, Diego Batista de Oliveira Abreu & Ulysses Paulino de Albuquerque

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161
CAPÍTULO 22

GÊNERO E IDADE
Wendy Torres-Avilez, André Luiz Borba do Nascimento, Leticia Zenobia de Oliveira
Campos, Flávia dos Santos Silva & Ulysses Paulino de Albuquerque

O conhecimento biológico/ecológico tradicional (CBT) sobre os recursos natu-


rais é dinâmico, produto da inovação e experimentação que os diferentes grupos hu-
manos têm realizado ao longo de sua história evolutiva. Todavia, esse conhecimento
pode sofrer variações que são reflexos de características intrínsecas à nossa espécie.
Os etnobiológos e etnoecólogos têm se dedicado a compreender como a idade e o
gênero, por exemplo, podem explicar variações no CBT.

Gênero

As mulheres têm sido descritas como detentoras de maior conhecimento que os


homens em relação a alguns recursos naturais, como no caso das plantas medicinais
e alimentícias. Contudo, é preciso considerar que essas análises partem do princí-
pio de que o gênero reflete diferenças na produção do conhecimento. Na verdade,
no melhor de nosso conhecimento, nenhum estudo testou essa alegação. Ao que se
sugere, as diferenças reportadas parecem ser frutos de uma variável relacionada, a
ocupação ou o papel social.
Assim, as diferenças encontradas muitas vezes podem ser explicadas por causa
do papel que homens e mulheres exercem em uma dada cultura. Por exemplo, os
homens geralmente são encarregados de prover o sustento da família e costumam
demonstrar maior conhecimento sobre recursos madeireiros para uso combustível,
plantas empregadas como artesanatos e caça de animais silvestres que as mulheres,
salvo nas ocasiões em que a divisão de trabalho altera essa lógica. Em Nanga Juoi,
Indonésia, as mulheres tendem a conhecer mais sobre áreas de vegetação secundária

163
GÊNERO E IDADE

por serem estas mais próximas de suas residências, enquanto que os homens conhe-
cem mais sobre espécies de vegetação primária, locais que visitam com mais frequ-
ência para obter recursos para o sustento da família (Caniago et al. 1998). Nas vilas
de Upper Kullu, na Índia, por outro lado, as mulheres detêm um maior conhecimen-
to prático sobre a floresta que os homens, pois eles não são responsáveis pela busca
de produtos nas florestas (Bingeman 2003). Outra situação interessante é o caso das
mulheres de algumas comunidades africanas que coletam lenha (Biran et al. 2004),
diferentemente do que acontece em comunidades rurais brasileiras em que normal-
mente os homens são os coletores (Ramos et al. 2008).
Dessa forma, observamos que não há uma tendência geral. Por isso, tentar enten-
der essas diferenças sem isolar a variável que realmente é preditora do conhecimen-
to enviesa as nossas interpretações. Normalmente, encontramos na literatura que as
mulheres conhecem com maior riqueza as plantas medicinais e alimentícias que os
homens, muito embora em comunidades caiçaras do Brasil o conhecimento tenda a
ser homogeneamente distribuído entre os gêneros (Hanazaki et al. 2000). Já na região
do Chaco, na Argentina, e na região da Salamanca, na Espanha, são os homens que
conhecem o maior número de plantas alimentícias nativas (Arias-Toledo et al. 2007;
González et al. 2011). Essas diferenças podem ser expressas não só pelo número de
espécies conhecidas ou pela diversidade de doenças, mas também pelos chamados sa-
beres compartilhados. Voeks & Nyawa (2001), em Brunei, na ilha de Bornéu, consta-
taram que as mulheres são detentoras do saber relacionado ao tratamento de doenças
espirituais, enquanto os homens detêm o conhecimento sobre as doenças orgânicas.

Idade

No caso da idade, diversos estudos sugerem uma relação positiva entre o número
de recursos conhecidos (riqueza de espécies, por exemplo) e a idade daqueles que os
conhecem. Muitos cientistas têm assumido que as pessoas mais velhas, por possuí-
rem mais tempo interagindo com as pessoas e com os recursos naturais, apresentam
mais conhecimento que os jovens. Contudo, isso não é um padrão, uma vez que há
evidências de que pessoas acima de determinada idade (60 anos) apresentam uma
redução na riqueza de espécies conhecidas, talvez como consequência da perda de
memória com o avanço da idade (ver Almeida et al. 2012). Às vezes, a idade pode ex-
plicar o conhecimento em uma determinada categoria delimitada pelo pesquisador

164
Wendy Torres-Avilez, André Luiz Borba do Nascimento, Leticia Zenobia de Oliveira Campos,
Flávia dos Santos Silva & Ulysses Paulino de Albuquerque

em seu estudo, como plantas medicinais, mas isso não explica qualquer variação do
conhecimento em outras categorias (ver Hanazaki et al. 2000).
Equivocadamente, há pesquisadores que assumem que as diferenças detectadas
entre classes de idade podem ser fruto de processos de erosão de conhecimento. Po-
rém, a maioria desses estudos é baseado no número total de espécies reportadas em
cada idade. Além disso, o conhecimento não é analisado ao longo do tempo, não sen-
do, assim, possível retratar a situação real da dinâmica do conhecimento da popula-
ção estudada. É importante considerarmos que o conhecimento do uso dos recursos
é parte de um sistema socioecológico que é fortemente influenciado pelo ambiente,
o qual oferece possibilidades de escolhas para a população humana (Ferreira Junior
et al. 2013). Por exemplo, o conhecimento em cada faixa etária pode ser produto das
mudanças ocorridas na paisagem e na abundância dos recursos usados. Desta forma,
os mais velhos podem ter como referencial a existência de determinados recursos que
já não estão mais disponíveis para os mais jovens, por consequência de alterações
ambientais. Os jovens, por sua vez, têm como referência o ambiente recente, fator que
pode gerar transformação no conhecimento dentro da comunidade, já que a dispo-
nibilidade e a diversidade do recurso atual são distintas daquelas das gerações ante-
riores. Esta situação movimenta os referenciais dinâmicos, conceito primeiramente
utilizado por Pauly (1995) para entender a dinâmica de uso dos recursos pesqueiros.
Pauly (1995) observou que cada geração de pescadores percebe uma abundância di-
ferente dos estoques de peixes existentes, pois tem por referencial a disponibilidade
de peixes existente no início de suas carreiras, quantidade que pode ter se alterado ao
longo do tempo devido a acontecimentos naturais e/ou antropogênicos. O estudo de
Hanazaki et al. (2013) trouxe essa ideia para o âmbito da etnobotânica, mostrando
que isso pode vir a acontecer em estudos que investigam diferenças no conhecimento
de plantas por populações humanas em diferentes faixas etárias.
Contudo, existem outros fatores que podem influenciar a diferença do conhe-
cimento pela idade: o tempo que as pessoas interagem com o recurso (histórico de
exploração do recurso) e a memória, considerando que esta variável afeta o armaze-
namento de informações com o avançar da idade. Além disso, pessoas com idades
diferentes podem vir a acumular informações que sejam relevantes para o contexto
em que estão vivendo naquele momento.
Assim, variações no conhecimento biológico tradicional, como fruto da idade e
do gênero, devem ser compreendidas em contextos mais amplos, atentando para o
fato de outras variáveis também poderem estar associadas às primeiras.

165
GÊNERO E IDADE

Quadro 1. As diferenças quantitativas e qualitativas no conhecimento sobre plantas medicinais entre


pessoas de gênero e idade diferentes.

O conhecimento sobre plantas medicinais adquiridos por moradores de diferentes


faixas etárias e gêneros inseridos em uma área de caatinga, pode variar na quanti-
dade de plantas conhecidas e/ou na qualidade de informações. Os pesquisadores do
Laboratório de Etnobiologia Aplicada e Teórica (LEA), da Universidade Federal Rural
de Pernambuco, verificaram isto em um estudo realizado em uma comunidade rural
na região do semiárido no Nordeste do Brasil. A partir de uma análise da dinâmica
do conhecimento de pessoas acima de 18 anos, observaram que havia uma relação
positiva no número de plantas medicinais citadas e a idade dos informantes. Para sab-
er como essa variação se comporta ao longo das diferentes idades, eles compararam
classes de idades com intervalos de dez anos, variando entre 18 anos e 90 anos (18-26,
29-38, 39-48, 49-58, 59-68, 69-78, 79-90). Por meio de testes estatísticos, verificaram
que, em termos de diversidade de plantas e usos medicinais, as pessoas pertencentes
à classe mais jovem conheceram significativamente menos que as das classes posteri-
ores, exceto para a classe de 29-38 anos e a de 79-90 anos, possivelmente pelo fato de
pessoas mais velhas serem mais suscetíveis ao esquecimento. O conhecimento entre
os homens e as mulheres também foi avaliado, mas não foram observadas diferenças
significativas quanto ao número de usos e plantas, contudo, perceberam que havia
diferenças quanto às espécies que conheciam. Os homens, por exemplo, citaram 11
(10%) espécies que não foram citadas pelas mulheres, que, por sua vez, citaram 27
espécies (24%) exclusivas. Segundo o estudo, a similaridade no conhecimento pode
ser influenciada pelo papel que cada um desempenhava na comunidade. Por fim, ao
avaliarem os dados relacionando o conhecimento entre pessoas de diferentes idades e
gênero, observaram que os homens apresentaram um conhecimento mais uniforme
entre as diferentes classes etárias, não apresentando diferenças quantitativas entre
eles, enquanto entre as mulheres houve diferenças em todas as classes, com exceção
da última. Com esse estudo os pesquisadores demonstraram que a variável gênero
ou idade pode influenciar o conhecimento em termos de quantidade e tipo de infor-
mações fornecidas. Dessa forma, apontaram a necessidade de avaliar por meio de
diferentes perspectivas a distribuição do conhecimento, a fim de identificar padrões
que regulam a relação entre pessoas e plantas (Silva et al. 2011).

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Flávia dos Santos Silva & Ulysses Paulino de Albuquerque

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167
CAPÍTULO 23

ETNIA, RENDA E ESCOLARIDADE


Patrícia Muniz de Medeiros, Juliana Loureiro de Almeida
& Ulysses Paulino de Albuquerque

Etnia
A etnia pode não só influenciar o conhecimento e uso dos recursos naturais, mas
também a forma como estes são percebidos. Por exemplo, três grupos culturais distin-
tos que vivem nas Ilhas Manu, na Papua Nova Guiné, relacionam-se aparentemente de
forma diferente com os recursos naturais (Case et al. 2005). Os Usiai são os que mais
conhecem e usam os recursos vegetais da região, provavelmente pelo fato de viverem
no interior da ilha e estarem, desta forma, mais próximos dos recursos. Porém, quando
ocorre casamento entre um Usiai e um membro de um grupo distinto, o conhecimento
botânico diminui, sendo maior quando os dois membros do casal são Usiai.
Com a globalização e a modernização, muitos grupos étnicos têm entrado em
contato uns com os outros, o que acaba gerando troca de ideias e de informações cul-
turais. Deste modo, o contato pode alterar os padrões de conhecimento desses grupos,
como é esperado na maioria das vezes. Todavia, há situações em que isso não ocorre.
Sérvios e albaneses que estão em contato há 300 anos mantêm o conhecimento sobre
os recursos vegetais separado e não compartilhado, apesar do contato (Pieroni et al.
2011). Outro exemplo do não compartilhamento de conhecimento foi observado por
Huai et al. (2011), no Sudoeste da China. Os autores verificaram que o tamanho dos
quintais e o número de espécies existentes neles foram significativamente diferentes
entre oito grupos étnicos, mesmo estes habitando vilas próximas umas das outras.
Assim, podemos dizer que cada cultura pode desenvolver modos distintos de usar
os recursos naturais existentes ao seu redor, com o objetivo de satisfazer às suas neces-
sidades variadas. Grupos indígenas da Amazônia Brasileira conhecem maior número
de espécies de palmeiras que ribeirinhos e seringueiros que moram no mesmo local

169
ETNIA, RENDA E ESCOLARIDADE

(Campos & Ehringhaus, 2013). Isso pode estar relacionado ao longo tempo de existên-
cia dos primeiros no local, que possibilitou maior acúmulo de conhecimento.

Tempo de moradia

Outra variável que possui grande influência sobre o conhecimento e uso dos re-
cursos naturais é o tempo de moradia. Estudos mostram que pessoas que residem há
mais tempo em um determinado local possuem maior conhecimento a respeito dos
recursos naturais quando comparadas àquelas que residem há menos tempo. O espe-
rado é que o conhecimento seja construído por meio de interações entre as pessoas
e os recursos locais, aumentando de acordo com o tempo de contato. Geralmente,
moradores mais antigos possuem maior conhecimento sobre a biodiversidade local,
enquanto novos moradores trazem o conhecimento dos seus lugares de origem, o
que leva, com o passar do tempo, a uma mistura de conhecimentos. Moradores que
residem há mais de 30 anos em uma área costeira da ilha de Florianópolis, em Santa
Catarina, Brasil, conhecem maior número de plantas nativas que aqueles que moram
há menos tempo no mesmo local e que, em sua maioria, vieram de áreas urbanas
(Gandolfo & Hanazaki 2014).
O tempo de moradia não influencia só o conhecimento sobre os recursos natu-
rais, mas também a sua utilização. Pessoas que residem há mais tempo no local nor-
malmente extraem maior quantidade de recursos que moradores mais recentes, inde-
pendentemente do grupo de origem destes últimos. Isso foi observado por Gavin &
Anderson (2012), que procuraram verificar quais variáveis socioeconômicas influen-
ciavam mais fortemente a utilização de recursos florestais na Amazônia Peruana.

Renda

A renda é uma das variáveis socioeconômicas com maior poder explicativo sobre
o conhecimento e/ou uso de recursos naturais (Godoy et al. 1995; Medeiros et al.
2011). Em geral, famílias com menor renda são mais dependentes dos recursos natu-
rais para sua subsistência, especialmente dos recursos nativos. Essa dependência não
significa apenas um uso mais acentuado desses recursos, já que um maior uso e uma
maior convivência com estes, geralmente, levam a um maior conhecimento.

170
Patrícia Muniz de Medeiros, Juliana Loureiro de Almeida & Ulysses Paulino de Albuquerque

O que estamos sugerindo, então, é que a renda interfere, em um primeiro mo-


mento, na necessidade de utilização de determinado recurso. Se essa necessidade per-
siste, é provável que a família mantenha o seu corpo de conhecimentos sobre plantas,
animais ou minerais voltados para o fim em questão. No entanto, se um incremento
na renda reduz a zero a dependência de um dado recurso por parte dessa família, é
possível que a não utilização venha a refletir no conhecimento, que não mais será
transmitido devido à irrelevância imediata de se manter essa informação. Assim, tra-
taremos aqui muitas vezes da influência da renda no uso de recursos, mas tendo em
mente os desdobramentos dessa relação para o conhecimento.
Sendo os recursos nativos “bens gratuitos”, ou pelo menos bens (na maioria dos
casos) não contabilizados pela lógica econômica, qual a sua relação com a renda das
famílias? A resposta para essa pergunta reside no fato de que os efeitos da renda não
devem ser entendidos apenas quanto ao que se ganha, mas, sim, quanto ao que se dei-
xa de gastar. Deste modo, utilizar “bens gratuitos” interfere na renda final da família
no sentido de evitar gastos com bens alternativos (como medicamentos alopáticos,
gás de cozinha, material de alvenaria para a construção de casas etc.). Assim, um in-
cremento na renda pode permitir o investimento em bens alternativos sem que haja a
diminuição do excedente para a aquisição de outros produtos.
A maior parte das investigações sobre a influência da renda no conhecimento e uso
de recursos naturais inclui, exclusivamente ou complementarmente, as plantas (ver Go-
doy et al. 1995; Lacuna-Richman 2002; Gavin & Anderson 2007; Medeiros et al. 2011)
Portanto, surge a questão: que tipos de usos de plantas sofrem maior influência da renda
familiar ou renda familiar per capita? A literatura tem evidenciado que os usos mais
dependentes de flutuações na renda são aqueles que podem ser substituídos por bens
alternativos. Os usos medicinais e madeireiros já foram apontados como dependentes
da renda.
Estudos com plantas medicinais geralmente usam o conhecimento como variável
a ser relacionada à renda. Muitos deles encontraram uma relação inversa entre as
variáveis, de maneira que quanto maior a renda menor o conhecimento sobre plan-
tas medicinais (mensurado por meio do número de plantas conhecidas). No entan-
to, a renda nem sempre está inversamente relacionada ao conhecimento e/ou uso de
plantas medicinais. Um estudo desenvolvido por Almeida et al. (2010), por exemplo,
observou que o número de plantas conhecidas pelos moradores de duas comunidades
no semiárido nordestino aumentou em função da renda. Investigações também têm
apontado uma tendência das classes médias e altas e de países desenvolvidos a utilizar

171
ETNIA, RENDA E ESCOLARIDADE

plantas medicinais em substituição a alopáticos, como forma de retorno ao natural


(Elvin-Lewis 2001; FAO 2005). Essa tendência costuma ser acompanhada pela busca
por alimentação orgânica e melhor qualidade de vida.
Os usos madeireiros são talvez os que mais sofrem os efeitos da renda. Um es-
tudo desenvolvido por nosso grupo de pesquisa observou o efeito de vários fatores
socioeconômicos nos volumes de madeira e no número de espécies madeireiras usa-
das em uma comunidade urbano-rural residente em uma área de Floresta Atlântica
pernambucana (Medeiros et al. 2011). Os resultados mostraram que apenas a renda
explica 23% da variação no volume de madeira usado no local e 22,3% da variação
no número de espécies utilizadas, valores bastante elevados se comparados a outros
estudos com este enfoque. Observou-se no estudo de Medeiros et al. (2011) que a
renda interfere de maneira mais forte no consumo geral de madeira que no consumo
de cada categoria de uso isoladamente (combustível, construção e tecnologia). Uma
hipótese para explicar esse resultado é que pessoas de pouca renda podem optar por
caminhos distintos para economizar dinheiro: algumas podem optar por diminuir o
consumo de gás e aumentar o consumo de lenha; outras podem preferir não comprar
material de construção e utilizar madeira para essa função e outras podem adotar
todas essas estratégias.
Em várias comunidades rurais de áreas de caatinga e floresta atlântica do Nordeste
do Brasil há um padrão bastante interessante de uso conjunto de lenha e gás de cozinha.
Nota-se que, apesar do grande consumo de lenha nessas regiões, a maioria das casas
possui fogão a gás. Neste caso, a renda interfere na proporção uso de lenha/uso de gás
de cozinha. É comum nas casas de menor renda que o fogão a gás só seja usado durante
a noite, para esquentar água ou alimentos de rápida cocção, enquanto que os alimentos
que requerem maior tempo de cocção são deixados para o fogão a gás.
Em relação aos recursos vegetais alimentícios, mais do que aumentar ou dimi-
nuir o consumo total, muitas vezes a renda interfere em quais desses recursos se-
rão consumidos. Estudos realizados no semiárido brasileiro identificaram que, em
momentos de seca prolongada, famílias de menor renda precisavam contar com ali-
mentos emergenciais da flora nativa para sua subsistência, tendo em vista a impos-
sibilidade de comprar alimentos, aliada aos efeitos danosos da seca prolongada sob a
agricultura familiar.
A ausência de relação entre renda e conhecimento e/ou uso de recursos em estu-
dos etnobiológicos também pode se dar por outros motivos. Alguns trabalhos discu-
tem sobre a dificuldade de se adquirir dados verossímeis a respeito da renda familiar,

172
Patrícia Muniz de Medeiros, Juliana Loureiro de Almeida & Ulysses Paulino de Albuquerque

uma vez que as pessoas muitas vezes não se sentem confortáveis em revelar sua real
renda, seja pelo baixo valor, seja pela apreensão de perder auxílios governamentais
caso sua real renda venha à tona. Assim, dados imprecisos de renda podem enviesar
todas as análises relativas aos seus efeitos.

Escolaridade
A natureza da relação entre escolaridade e conhecimento e/ou uso de recursos
naturais ainda permanece obscura na literatura etnobiológica. Isso porque muitas
vezes não é a escolaridade em si o fator pwrincipal, mas as variáveis a ela relacionadas,
como a renda e a ocupação. Pessoas com maior renda frequentemente têm maior grau
de instrução que pessoas de menor renda. Deste modo, esperaríamos uma relação
inversa entre escolaridade e conhecimento e/ou uso de recursos.
Alguns estudos também sugerem que a escolaridade interfere na natureza da
ocupação que será desempenhada pelas pessoas e esta, por sua vez, interfere no co-
nhecimento e uso de recursos naturais. Em áreas rurais e urbano-rurais, pessoas com
maior escolaridade tenderiam a possuir empregos desvinculados da atividade agríco-
la e florestal. Pessoas que trabalham no campo, por sua vez, teriam maior familiarida-
de com os recursos naturais, o que explicaria seu maior conhecimento e/ou uso. Estas
afirmações, no entanto, precisam ser testadas de forma apropriada.
Entre os estudos que encontraram relação entre escolaridade e conhecimento e/
ou uso de recursos naturais, podemos citar uma investigação do nosso grupo de pes-
quisa (Medeiros et al. 2011), que encontrou uma relação inversa, significativa, porém
fraca, entre escolaridade e uso de lenha. Nesse caso, observamos que na comunidade
estudada, localizada na zona da mata de Pernambuco, as pessoas mais instruídas tra-
balhavam no setor de comércio ou serviços e, por isso, não tinham contato frequente
com o trabalho no campo. Por outro lado, os moradores com menos estudos cos-
tumavam trabalhar na colheita e no plantio de cana-de-açúcar, o que lhes conferia
contato frequente com as áreas próximas às florestas e com as próprias florestas.

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ETNIA, RENDA E ESCOLARIDADE

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174
CAPÍTULO 24

URBANIZAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS


Washington Soares Ferreira Júnior, Flávia Rosa Santoro
& Ulysses Paulino de Albuquerque

Em uma perspectiva global, é notável que a urbanização é um processo em cons-


tante e acelerado crescimento, de forma que os limites entre centros urbanos e co-
munidades anteriormente isoladas tornam-se cada vez mais sutis. Como resultado,
essa proximidade tem levado a uma hibridização dos conhecimentos e das práticas de
comunidades locais com aqueles relacionados à modernidade e às novas tecnologias.
Na etnobiologia, muitos pesquisadores têm visado compreender como a urba-
nização e o acesso a determinados serviços pode afetar o conhecimento biológico
tradicional. A maioria das evidências disponíveis são resultados de estudos que se
debruçaram sobre sistemas médicos tradicionais que envolvem principalmente o co-
nhecimento e uso de recursos naturais para o tratamento de doenças. Alguns desses
estudos mostram que a urbanização tem efeito negativo sobre o conhecimento médi-
co local (Vandebroek et al. 2004; Reyes-García et al. 2013a).
No presente capítulo, vamos tratar do impacto da urbanização sobre o conheci-
mento local, utilizando como exemplo os sistemas médicos locais. Focar nos sistemas
médicos é interessante porque o conhecimento de um grupo humano sobre o uso
medicinal de recursos do ambiente é um processo dinâmico, durante o qual podem
ocorrer tanto aquisições (adição de conhecimento) como perdas (erosão do conheci-
mento) ao longo do tempo. Desta forma, é necessário ter em vista a dinamicidade e
flexibilidade própria dos sistemas médicos locais e a sua capacidade de auto-organi-
zação frente aos eventos a que são expostos, como, por exemplo, a aproximação com
a biomedicina e o acesso a serviços públicos de saúde.

175
URBANIZAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

Mecanismos associados à urbanização que afetam o


conhecimento médico local

Os estudos que têm abordado as consequências dos processos de urbanização sobre


comunidades locais baseiam-se principalmente na alteração do conhecimento médico
detido por populações locais. Entre os principais fatores investigados como importantes
modificadores do conhecimento está o acesso a serviços públicos de saúde associado à
inserção da biomedicina nas farmacopeias tradicionais. Alguns trabalhos já mostraram
que quanto maior a facilidade de acesso a serviços públicos maior a utilização de fár-
macos industriais por um grupo humano e menor o conhecimento sobre a medicina
local (uso de plantas e animais) (Nolan & Robbins 1999; Vandebroek et al. 2004). Isso
evidencia que o acesso a serviços públicos de saúde afeta negativamente o conhecimen-
to medicinal local. Por outro lado, outros autores sugerem que a urbanização não ne-
cessariamente interfere no uso de recursos naturais, podendo, inclusive, incrementar o
conhecimento do grupo humano (Greene 1998; Amorozo 2002; Medeiros et al. 2013) ou
mesmo não exercer influência alguma (Perry & Gesler 2000).

A urbanização afeta negativamente o conhecimento local.

Algumas evidências que apontam perda de conhecimento em sistemas médicos


devido à urbanização fundamentam-se na observação de que há maior uso da bio-
medicina por grupos humanos que têm um maior acesso a serviços públicos de saúde
(Vandebroek et al. 2004). Um dos processos que podem explicar essa tendência é que
comunidades próximas a áreas urbanas possuem acesso restrito às florestas, o que torna
a busca por recursos ambientais mais custosa e o uso da biomedicina mais conveniente.
Outro mecanismo que pode estar relacionado à perda do conhecimento é o afas-
tamento das gerações mais jovens das atividades locais devido ao crescente interesse
em atividades vinculadas aos centros urbanos. Por exemplo, um estudo em cinco al-
deias da Tailândia mostrou que o processo de urbanização e desenvolvimento local
tem levado os jovens a abandonarem as práticas ligadas à agricultura e buscarem em-
pregos nas fábricas das cidades (Inta et al. 2013). Este mesmo estudo mostra que as
pessoas mais jovens possuem menor conhecimento sobre plantas medicinais que as
pessoas mais velhas. Neste caso, a perda de conhecimento sobre plantas medicinais
ao longo do tempo pode estar associada a uma adaptação das comunidades locais às
novas condições sociais, econômicas e ambientais relacionadas ao crescente processo

176
Washington Soares Ferreira Júnior, Flávia Rosa Santoro & Ulysses Paulino de Albuquerque

de urbanização, como a disponibilidade de atividades econômicas mais rentáveis e


a constante degradação ambiental (Reyes-García et al. 2013a). Sob estas novas con-
dições, pode ser menos vantajoso armazenar conhecimento sobre o uso de plantas
medicinais que utilizar outros recursos.

Processos de urbanização não afetam negativamente o conhecimento local.

Apesar dessa tendência já apresentada, há ainda outros pontos de vista a serem


considerados. A apropriação de novos conhecimentos não necessariamente leva ao
abandono de conhecimentos tradicionais, podendo haver uma coexistência do sistema
médico local com a biomedicina, promovendo o que Greene (1998) chama de interme-
dicalidade. Um exemplo disso é observado na região urbana de Lagos, na Nigéria, em
que o grupo humano estudado se organiza de forma que os recursos naturais se mos-
tram essenciais para medidas de primeiros socorros, enquanto que a medicina moderna
participa como último recurso, mostrando que o sistema de cuidados à saúde é, de certa
forma, flexível. Outro exemplo interessante ocorre nos índios Fulni-ô, no Nordeste do
Brasil, os quais utilizam fármacos industriais em conjunto com recursos naturais para
a promoção da saúde no seu sistema médico (Soldati & Albuquerque 2012).
Ainda nessa perspectiva, podemos associar a urbanização com o aumento do
acesso a novas informações sobre plantas medicinais. Desta forma, a urbanização
pode também promover o crescimento do conhecimento medicinal sobre plantas.
Há casos em que pessoas que detêm um grande conhecimento sobre o sistema local,
como o uso de plantas da região, também apresentam grande conhecimento sobre ou-
tros sistemas, como ferramentas da agricultura moderna (Reyes-García et al. 2013b).
Assim, o conhecimento local e aquele produto da urbanização mostram que não são
mutuamente excludentes, evidenciando uma flexibilidade na escolha de estratégias
em um grupo humano. Os mercados públicos, localizados em centros urbanos, são
outro exemplo em que ocorre a comercialização de uma grande variedade de pro-
dutos (plantas e animais) para o uso medicinal (Monteiro et al. 2010). Além disso,
há uma intensa troca de informações em mercados, indicando uma mistura de dife-
rentes tradições envolvendo o uso de recursos para o tratamento de doenças. Nesse
caso, mercados podem ser considerados como espaços que representam a diversidade
de conhecimento e práticas de uma região relacionadas ao uso de recursos naturais
(Albuquerque et al. 2007).

177
URBANIZAÇÃO E SERVIÇOS PÚBLICOS

Por fim, sob outra perspectiva, há também a possibilidade de que populações locais
neguem ou negligenciem os conhecimentos provindos da biomedicina. Em uma comu-
nidade periurbana na Amazônia brasileira, os habitantes preferem utilizar os recursos
naturais disponíveis em detrimento de remédios indicados em postos de saúde, devido
ao menor custo e por atribuírem maior eficácia aos primeiros. Além disso, a falta de fa-
miliaridade com os médicos de postos de saúde também pode fazer com que as pessoas
não recorram aos sistemas públicos de saúde (Perry & Gesler 2000).
Parece razoável associar um baixo conhecimento sobre recursos naturais em
uma comunidade à proximidade com centros urbanos, uma vez que a urbanização
disponibiliza uma série de alternativas à subsistência humana que poderia acarretar
o abandono de práticas tradicionais. Como foi também demonstrado, nem sempre é
observada uma relação negativa entre urbanização e conhecimento já que o uso de
plantas pode ser mantido ao longo do tempo por ser menos dispendioso sob um ponto
de vista econômico, por exemplo, ou percebido com uma maior eficácia por um dado
grupo humano. Para uma melhor avaliação do impacto da urbanização no conheci-
mento, seriam necessários estudos que investigassem a dinâmica do conhecimento de
uma mesma comunidade ao longo do tempo, à medida que o processo de urbaniza-
ção se tornasse mais evidente. Considerando que a dinâmica de conhecimento pode
modificar-se em períodos curtos e que o crescimento das cidades tem tomado pro-
porções cada vez maiores nos últimos anos, tais estudos se mostram bastante viáveis
na pesquisa etnobiológica.

Referências
Albuquerque, U.P.; Monteiro, J.M.; Ramos, M.A. & Amorim, E.L.C. 2007. Medicinal and magic
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Aguaruna Lands, Peru. American Ethnologist 25(4): 634–658.
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used by Yan in Thailand. Journal of Ethnopharmacology 149: 344-351.
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Washington Soares Ferreira Júnior, Flávia Rosa Santoro & Ulysses Paulino de Albuquerque

Monteiro, J.M.; Araújo, E.L.; Amorim, E.L.C. & Albuquerque, U.P. 2010. Local markets and
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Fulni-ô indians (Northeastern Brazil). Evidence-Based Complementary and Alternative
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Vandebroek, I.; Calewaert, J.; De Jonckheere, S.; Sanca, S.; Semo, L.; Van Damme, P.; Van Puyvel-
de, L. & De Kimpe, P. 2004. Use of medicinal plants and pharmaceuticals by indigenous com-
munities in the Bolivian Andes and Amazon. Bulletin of the World Health Organization
82: 243–250.

179
CAPÍTULO 25

STATUS SOCIAL E CONHECIMENTO


ECOLÓGICO TRADICIONAL
Victoria Reyes-García & Sandrine Gallois

Os cientistas desenvolveram diferentes modelos para explicar os mecanismos


que levam à transmissão de conhecimento ecológico tradicional (Cavalli-Sforza et al.
2005; Cavalia-Sforza & Feldman 1981; Feldman & Laland 1996; Henrich & McElrea-
th 2003). Outras pesquisas sugerem que a imitação de traços culturais1 é necessária,
mas não suficiente para a transmissão cultural (Boyd & Richerson 1985; Roger, 1988).
Para responder ao questionamento de como ocorre a transmissão cultural, antropólo-
gos desenvolveram a hipótese de que as pessoas não imitam comportamentos de ou-
tras de forma aleatória; em vez disso, a transmissão dos traços culturais é enviesada2
(Boyd & Richerson 1985; Henrich & McElreath 2003; Laland 2004).
Boyd & Richerson (1985) propõem três categorias de vieses que podem influen-
ciar a transmissão de traços culturais. Os vieses diretos favorecem a aquisição de um
determinado traço cultural ao invés de outro, pelo fato de ele ser naturalmente me-
lhor ou mais atrativo. Os vieses dependentes de frequência favorecem a aquisição de
uma variante de um traço em detrimento de outra por causa da distribuição deste
traço na população, isto é, é uma tendência que leva a copiar a variante mais frequente
(Henrich & Boyd 1998). Os vieses indiretos favorecem o uso de outra informação a
respeito do modelo, tal como status ou prestígio, para determinar de quem copiar.

1 Traço cultural pode ser entendido como um hábito ou determinada informação que faz parte
de uma cultura. A definição e os limites de um traço podem variar de pesquisador para pes-
quisador. Pode ser exemplo de um traço cultural o uso da planta X para tratar a doença Y (nota
do editor).
2 Tradução correta, para este contexto, da palavra “bias/biases”. Outras traduções, mas não tão
precisas, seriam “direcionada/direções, influenciada/influências” (nota do editor).

181
STATUS SOCIAL E CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL

Henrich e Gil-White (2001) discutem as causas e consequências da transmissão


de conhecimento cultural que segue as tendências relacionadas ao status social ou
prestígio de quem se copia. Eles notam que:

A seleção natural favoreceu aprendizes sociais3 que podiam ava-


liar modelos em potencial e copiar os mais bem sucedidos entre
eles. De forma a melhorar a fidelidade e abrangência de tal cópia
influenciada pela importância, os aprendizes sociais, posterior-
mente evoluíram disposições para estabelecer uma boa relação
com os seus modelos escolhidos, de modo a ganhar proximidade
e interação prolongada com estes modelos. Uma vez comuns, es-
tas disposições criaram, ao nível do grupo, distribuições de reve-
rências que novos ingressantes podem explorar adaptativamente
para decidir quem irão começar a copiar (Henrich & Gil-White
2001:165).

A transmissão baseada no prestígio permite aos novos aprendizes determinar


com precisão quais os indivíduos de uma comunidade que são suscetíveis a ter infor-
mações acima da média sobre um domínio particular de conhecimento. Devido ao
fato de os aprendizes precisarem estar próximos ou interagir diretamente com os mo-
delos que querem imitar, eles prestam deferência, transmitindo, assim, prestígio, para
obter tal proximidade. A deferência pode incluir bens ou tolerância em obrigações
sociais e talvez seja um requisito necessário para a transmissão de conhecimento es-
pecializado, como Barth (1990) sugere para o Sudeste Asiático. O novato ou aprendiz
pode ter de se envolver em um longo processo de aprendizagem, que pode durar anos
e implicar vários episódios de rituais, nos quais tanto a sua perseverança física quanto
psicológica ao longo do tempo moldariam sua aprendizagem. Isso ocorre porque as
pessoas só irão proporcionar esses benefícios para os modelos quando a sua informa-
ção valer o custo de fornecer o benefício; a quantidade de deferência que um indiví-
duo recebe torna-se um bom indicador de suas habilidades em um domínio. Os novos
ingressantes e indivíduos inexperientes podem evitar os custos de avaliar todos os
modelos em potencial e, ao invés disso, determinar os indivíduos que recebem maior

3 Toda aquele que aprende em uma cultura (nota do editor).

182
Victoria Reyes-García & Sandrine Gallois

deferência e tentar aprender com eles. Se este modelo for verdadeiro, então deve haver
uma relação entre o prestígio de uma pessoa ou a deferência conferida livremente a
ela por indivíduos de um grupo e o seu conhecimento (Henrich & Gil-White 2009).
Tal intuição encontra apoio em nossa pesquisa atual, na qual encontramos que a
avaliação por pares dos conhecimentos e das competências de um informante em um
dado domínio de conhecimento ecológico tradicional está correlacionada com as me-
didas padrão4 de conhecimento ecológico tradicional (Reyes-García et al. em revisão).
Especificamente, os dados recolhidos entre três sociedades de caçador-coletores (os
Punan, em Bornéo; os Baka, na Bacia do Congo e os Tsimané, na Amazônia), rela-
cionados a três domínios de conhecimento (plantas medicinais, caça e conhecimento
agrícola), mostram que as medidas de conhecimentos e competências estão associa-
das com uma avaliação do conhecimento da pessoa fornecida por outros membros da
comunidade. Curiosamente, entre os três domínios do conhecimento e entre as três
sociedades estudadas, a associação da pontuação média parece ser mais fraca com
as nossas medidas de conhecimento teórico ou a habilidade das pessoas de nomear e
reconhecer elementos do seu habitat natural que com nossas medidas de habilidades
ou de habilidades autodeclaradas de colocar tal conhecimento em prática. Isso pode
ser devido ao fato de que as habilidades são mais claramente explicitadas que os co-
nhecimentos teóricos (Reyes-García et al. 2007), tornando mais fácil a avaliação do
desempenho de uma pessoa (habilidades) que de seu conhecimento teórico.
Uma consideração importante em relação a esses resultados diz respeito à forma
como o status social é avaliado. Na pesquisa que acabamos de descrever, considera-
mos o status de uma pessoa apenas em relação a um domínio específico de conhe-
cimento, o que não é necessariamente um bom estimador para o prestígio global de
uma pessoa. Além disso, pesquisas anteriores sugerem que essas descobertas não ne-
cessariamente se sustentam quando se utiliza uma medida mais abrangente de status
social. Assim, com base na mesma concepção teórica de que conhecimento e prestígio
estariam associados, Reyes-García et al. (2008) utilizaram dados coletados entre ho-
mens Tsimané adultos (>16 anos; n=288) para testar se o prestígio está associado po-
sitivamente com o conhecimento tradicional. Neste caso, os pesquisadores mediram
o prestígio pedindo a todos os Tsimané adultos de uma aldeia para listar o nome de

4 As autoras provavelmente referem-se às formas que os diferentes cientistas usam para medir
o conhecimento de determinado grupo humano sobre os recursos naturais, como as usuais
técnicas quantitativas (ver Albuquerque et al., 2014: Methods and techniques in ethnobio-
logy and ethnoecology. New York, Springer) (nota do editor).

183
STATUS SOCIAL E CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL

todos os membros considerados importantes da aldeia e, então, contaram o número


de indicações que cada pessoa recebeu. Em tal pesquisa, o estimador do conhecimen-
to tradicional foi o conhecimento e uso de plantas medicinais. Os pesquisadores des-
cobriram fracas evidências de que o prestígio estava associado com o conhecimento
de plantas medicinais. Em vez disso, o prestígio foi associado positivamente a outros
atributos, como a participação em organizações comunitárias.
Isso nos leva, novamente, a uma consideração interessante a respeito da diferen-
ciação entre as formas de status social, já que é possível que formas diferentes de status
social tenham associações distintas com o conhecimento ecológico tradicional. Hen-
rich e Gil-White (2001) mencionam especificamente que em seu modelo o prestígio
refere-se à deferência apreciada pelos indivíduos em um grupo, conferida livremen-
te, diferenciada da dominância obtida por meio de coerção. Eles reconhecem que os
dois conceitos são separáveis psicologicamente, mas muitas vezes correlacionados no
mundo real. Em tal contexto, a falta de associação entre a medida geral de prestígio
e o conhecimento de plantas medicinais poderia ser explicada porque a medida de
prestígio usada captura liderança política ao invés de deferência gerada pela detenção
do conhecimento ecológico tradicional.
Finalmente, ao examinar as associações entre status social e conhecimento eco-
lógico tradicional, vale a pena considerarmos que nem todos os elementos do conhe-
cimento ecológico tradicional em um grupo são igualmente compartilhados. Assim,
enquanto que em cada sociedade algum conhecimento ecológico é amplamente com-
partilhado, outras partes de tal conhecimento são conhecidas apenas por especialistas
(ou seja, curandeiros tradicionais), que têm essa condição precisamente por deter esse
conhecimento especializado. O exemplo dos Tsimané ilustra como as mudanças nas
sociedades indígenas contemporâneas podem afetar a associação entre status social
e conhecimento tradicional. Na atualidade, entre os Tsimané não há xamãs, figuras
que concentram o conhecimento especializado em plantas medicinais. Os Tsimané
desfrutam cada vez mais do fácil acesso à medicina ocidental, fazendo com que o
conhecimento de plantas medicinais seja menos importante na sociedade Tsimané
contemporânea. Em suma, é possível que as hipóteses sobre a associação entre conhe-
cimento e prestígio sejam apenas aplicáveis a sociedades igualitárias onde não há uma
nítida divisão de trabalho e instituições desenhadas para transmitir conhecimento.
Além disso, é possível que tal associação desapareça quando as sociedades crescem
em complexidade social e tornam-se menos autárquicas.

184
Victoria Reyes-García & Sandrine Gallois

Referências
Barth, F. 1990. The guru and the conjurer: transactions in knowledge and the shaping of culture
in southeast Asia and Melanesia. Man (N.S.) (25): 640-653.
Boyd, R. & Richerson, P. 1985. Culture and the Evolutionary Process. Chicago, University of
Chicago Press.
Cavalli-Sforza, L.L. & Feldman, M. 1981. Cultural transmission and evolution: a quantitative
approach. Princeton, Princeton University Press.
Cavalli-Sforza, L.L.; Feldman, M.; Chen, K. & Dornbusch, S. 2005. Theory and observation in
cultural transmission. Science 218: 19-27.
Feldman, M. & Laland, K. 1996. Gene-Cclture coevolutionary theory. Trends in Ecology &
Evolution 11: 453-457.
Henrich, J. & Boyd, R. 1998. The evolution of conformist transmission and the emergence of
between-group differences. Evolution & Human Behavior 19: 215-241.
Henrich, J. & Gil-White, F. 2001. The evolution of prestige. Freely conferred deference as a me-
chanism for enhancing the benefits of cultural transmission. Evolution & Human Behavior
22: 165-196.
Henrich, J. & McElreath, R. 2003. The evolution of cultural evolution. Evolutionary Anthro-
pology 12: 123-135.
Laland, K. 2004. Social learning strategies. Learning and Behavior 32: 4-14.
Reyes-Garcia, V.; Vadez, V.; Huanca, T.; Leonard, W.R. & McDade, T. 2007. Economic deve-
lopment and local ecological knowledge: a deadlock? Quantitative research from a native
Amazonian society. Human Ecology 35: 371-377.
Reyes-Garcia, V.; Molina, J.L.; Broesch, J.; Calvet, L.; Huanca, T.; Leonard, W.R.; McDade, T.W.;
Saus, J. & Tanner, S. 2008. Do the aged and knowledgeable men enjoy more prestige? A test
of predictions from the prestige-bias model of cultural transmission. Evolution and Human
Behavior 29:275-281.
Reyes-García, V.; Diaz-Reviriego, I.; Duda, R.; Fernandez-Llamazares ,A.; Gallois, S.; Gueze, M.;
Nanitupulu, T.; Pyhala, A. (under review). Peer evaluation: a reliable measure of traditional
ecological knowledge. Field methods.
Rogers, A. 1988. Does biology constrain culture? American Anthropologist 90: 819-830.

185
APÊNDICE I:

DECLARAÇÃO DE BELÉM

“Como etnobiólogos, nós estamos preocupados com o seguinte: 


considerando-se que as florestas tropicais e outros ecossistemas frágeis estão 
desaparecendo, muitas espécies animais e vegetais se encontram em perigo de
extinção e as culturas indígenas de todo o planeta estão sendo desmembradas e
destruídas; e entendendo-se que as condições econômicas, agrícolas e de saúde
das populações dependem destes recursos, as populações nativas têm sido os
fornecedores de 99% dos recursos genéticos do mundo, existe uma inseparável
ligação entre diversidade cultural e diversidade biológica, nós, membros da So-
ciedade Internacional de Etnobiologia, exigimos que sejam tomadas as seguintes
providências:
1. daqui para a frente, uma considerável e substancial proporção de ajuda para
o desenvolvimento deve ser direcionada para os esforços objetivando um in-
ventário etnobiológico, conservação e programas de manejo;
2. mecanismos devem ser estabelecidos para que os especialistas indígenas se-
jam reconhecidos como autoridades competentes e sejam consultados em
todos os programas que afetem os índios, assim como seus recursos e seu
meio ambiente;
3. que os direitos humanos inalienáveis sejam reconhecidos e garantidos, in-
cluindo a identidade cultural e lingüística;
4. sejam desenvolvidos procedimentos para compensar as populações nativas
pela utilização de seus conhecimentos e de seus recursos biológicos;
5. sejam implementados programas educacionais para alertar a comunidade
global do valor do conhecimento etnobiológico para o bem estar dos seres
humanos;
6. todos os programas médicos devem incluir o reconhecimento e o respeito
pelos curadores tradicionais e a incorporar práticas tradicionais de saúde
que elevem o status de saúde destas populações;

187
7. os etnobiólogos devem colocar à disposição os resultados de suas pesquisas
para as populações nativas com quem eles trabalharam, especialmente a di-
vulgação na língua nativa;
8. deve ser promovida troca de informações entre os indígenas e os camponeses
com respeito à conservação, ao manejo e à utilização dos recursos”.

188
APÊNDICE II:

PRINCIPAIS REVISTAS CIENTÍFICAS QUE


PUBLICAM TRABALHOS EM ETNOBIOLOGIA

Acta Botanica Brasilica


Anais da Academia Brasileira de Ciências
Biotemas
Economic Botany
Etnobiología
Etnoecológica
Ethnobiology and Conservation
Ethnobiology Letters
Ethnobotany Research and Applications
Evidence-Based Complementary and Alternative Medicine
Human Ecology
Journal of Alternative and Complementary Medicine
Journal of Arid Environments
Journal of Ethnopharmacology
Journal of Ethnobiology
Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine
Journal of Environmental Management
Plos One
Revista Brasileira de Plantas Medicinais
Revista Brasileira de Farmacognosia
Rodriguesia

189
OUTRAS OBRAS DE INTERESSE

ETNOBIOLOGIA
BASES ECOLÓGICAS E EVOLUTIVAS
Ulysses Paulino de Albuquerque (org)

ISBN 978-85-63756-21-3
166 páginas
1ª edição - 2013

COMUNICAÇÃO E CIÊNCIA:
INICIAÇÃO À CIÊNCIA, REDAÇÃO CIENTÍFICA E
ORATÓRIA CIENTÍFICA
Ulysses Paulino de Albuquerque

ISBN 978-85-63756-22-0
208 páginas
1ª edição - 2014

Acesse nossa livraria: www.nupeea.com

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