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21 O genocídio da
juventude negra/preta
Dalila Brito Rita
Para construir a paz,
é preciso unir todas as vozes em
96 páginas
diálogo.
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UM NOVO PENSAR SOBRE AS
CULTURAS AFRICANAS EM DIÁSPORA
Diásporas africanas
e processos
sociorreligiosos
Fábio Baggio, Paolo Parise,
Wagner Lopes Sanchez (orgs.)
Compreender o fenômeno migratório atual
exige compreender também as diásporas
vividas pelos povos africanos, resultado do
processo de dominação sofrido pela África
por parte das potências ocidentais. A obra,
fruto do simpósio homônimo promovido
pela PUC-SP em 2016, lança um novo olhar
sobre esse processo e suas consequências,
em uma tentativa de contribuir para o
resgate da dignidade de povos que ainda hoje
buscam reconstruir seu caminho.
280 páginas
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Fraternidade
e superação
da violência
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portanto, essencial a busca das causas que ori- em que comportamentos, mídias, expressões
ginam a violência, em primeiro lugar as que se verbais, músicas etc. foram se tornando “nor-
ligam a situações estruturais de injustiça, de mais”, “comuns”. Essa cultura é produzida pe-
miséria, de exploração, nas quais é necessário los indivíduos, que, ao mesmo tempo, se tor-
intervir com o objetivo de superá-las (cf. nam vítimas do próprio sistema de violência.
Compêndio da Doutrina Social da Igreja). A violência cultural institui na sociedade
Já o lema “Vós sois todos irmãos” busca uma situação em que alguns atos violentos são
resgatar o sentido da fraternidade reconhecidos como legítimos ou
dos povos, pois somos todos ir- “O tema da naturais. Assim, a violência cultu-
mãos e irmãs, filhos e filhas de Campanha da ral não constitui a causa primeira
um mesmo Pai. Por isso, ilumi- Fraternidade da violência, mas é condição para
nados pelo evangelho do Reino,
2018 pretende que a sociedade tenha uma visão
somos chamados à não violência. míope dos atos violentos; em ou-
A CNBB convida todos os advertir que a tras palavras, uma consciência
homens e mulheres de boa von- violência nunca anestesiada, pois aquilo que de-
tade a percorrer o caminho da constitui uma veria ser considerado violento –
superação da violência, cres- resposta justa” porque é um mal em si – passa a
cente em todos os níveis. Para não ser assim considerado.
isso, é preciso olhar a realidade, iluminá-la A mídia é a grande colaboradora do pro-
com a luz da palavra de Deus e do magistério cesso de naturalização da violência, pois a
da Igreja e, por fim, agir sobre ela, transfor- polariza em alguns contextos específicos –
mando-a. por exemplo, o narcotráfico, os assassinatos e
as guerras –, como se ela só fosse possível
nesses “ambientes organizados”. Esquece-se
1. Olhar a realidade que a violência nasce no próprio ser humano,
A convivência pacífica e a sociabilidade quando este escolhe o caminho do ódio, do
violenta parecem disputar os mesmos espaços não perdão, da inveja, da soberba. Acrescido
no cotidiano. No Brasil, criou-se um discurso a isso, a sociedade aceita passivamente atitu-
conveniente, segundo o qual o povo brasileiro des de natureza violenta.
é pacífico; contudo, basta observar com caute- A cultura da violência é uma cultura ex-
la a sociedade para perceber como a violência cludente, pois a associa às classes sociais e
está presente no dia a dia das pessoas. raciais, criando, assim, estigmas sociais como
Tal violência, com o passar dos anos, foi “o povo daquele país não presta”, “aquele ra-
se tornando uma cultura institucionalizada e paz tem cara de bandido”, “aquela mulher
sistematizada, gerando assim os rostos nos merece apanhar”. Essas expressões, tornadas
quais se contempla o descaso com a pessoa corriqueiras, são um modo de descriminali-
humana e o quanto ela é tolhida em seus di- zar a cultura da violência. As estatísticas con-
reitos e dignidade. firmam isso quando apontam registros cres-
centes de xenofobia no Brasil, o grande nú-
nº- 319
cultura, parte-se de uma análise da realidade velam uma calamidade social. Raramente,
4
porém, o espectador ultrapassa o nível de
leve indignação diante dos dados. Isso que Mobilidade humana e
ocorre no plano individual se manifesta como
identidades religiosas
uma espécie de anestesia nos governos, que
não se sentem compelidos a elaborar políti- Fábio Baggio, Paolo Parise e Wagner
cas públicas capazes de reverter a tragédia Lopes Sanchez (coords.)
em andamento (cf. Texto-base da CF-2018).
A cultura se atualiza por meio de ações so-
ciais, ou seja, ocorre quando a sociedade vai
cristalizando alguns comportamentos, che-
gando a institucionalizá-los. Nesse sentido, a
Campanha da Fraternidade de 2018 não quer
somente identificar a cultura da violência, mas
sobretudo combatê-la. Para isso, é preciso en-
tender como essa cultura vai se sistematizando
na pessoa, na comunidade e na sociedade.
A sistematização da violência
A violência apresenta-se nas mais varia-
das formas: física, psicológica, institucional,
400 págs.
que contribuem para mais de 138 mil óbitos SAC: (11) 5087-3625
anualmente em nosso país, segundo dados de V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
2010 do Ministério da Saúde. Os homicídios
•
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Vida Pastoral
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de 259% num período de trinta anos. Segundo diferentes, mas é sabido também que as po-
o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 11% pulações mais vulneráveis é que são mais
dos assassinatos do mundo acontecem no Bra- vitimadas. Enquanto as classes de maior po-
sil, onde uma pessoa é morta a cada dez minu- der aquisitivo podem se proteger com uma
tos; 50.806 pessoas foram vítimas de homicí- série de artefatos que alimentam a “indústria
dios dolosos no país somente em 2013, ano da segurança” e dão uma falsa sensação de
que registrou 50.320 casos de estupro; o nú- proteção, os mais pobres estão expostos à
mero de presos no sistema peni- insegurança.
tenciário brasileiro cresceu “A Campanha O direito à proteção é para
5,37% entre 2012 e 2013, sobre- da Fraternidade todos, e se alguns estão tolhidos
carregando ainda mais o já desu- de 2018 não desse direito, isso se dá pelo fato
mano sistema penitenciário; e os de não haver políticas públicas
quer somente
custos da violência chegaram a que favoreçam a totalidade dos
258 bilhões de reais nesse mes- identificar cidadãos. Os impostos, que de-
mo período, correspondentes a a cultura da veriam servir ao bem comum,
quase 6% do PIB (soma de todas violência, mas são escoados por obra da cor-
as riquezas que o país produz em combatê-la” rupção, num país em que parece
um ano); nos últimos cinco anos, estar institucionalizada a fraude
as polícias brasileiras mataram 11.197 pessoas, contra o dinheiro público.
mas os policiais também foram vítimas: em A violência não é um fenômeno apenas
2013, 490 foram mortos, 75% dos quais fora cultural, mas, ao se instalar na sociedade, vai
de serviço.1 Dados do Índice de Vulnerabilida- se sistematizando. Tal sistema é bipartido e
de Juvenil à Violência e Desigualdade (IVJ polarizado: de um lado, estão os que querem
2014) apontam que, no Nordeste, um jovem a todo custo tirar vantagem; de outro, as víti-
negro corre cinco vezes mais o risco de ser mas da desigualdade. Por sua vez, as institui-
morto do que um jovem branco. Dos quase 30 ções precipuamente responsáveis por zelar
mil jovens assassinados em 2012, 76,5% eram pelos direitos elementares de segurança, jus-
negros ou pardos, ou seja, morreram 225% tiça e paz acabam se transformando em insti-
mais jovens negros do que brancos. De acordo tuições corrompidas, como é o caso do siste-
com o IVJ, no Brasil, esse índice é de 2,5, ou ma de justiça criminal brasileiro (formado
seja, são assassinados 2,5 vezes mais jovens ne- pelas polícias, pelo Ministério Público, pela
gros do que brancos. A evolução histórica da Justiça e pelo sistema prisional), que, muitas
mortalidade violenta no Brasil impressiona: se- vezes, não consegue responder adequada-
gundo o Mapa da Violência 2014 – Os Jovens mente às problemáticas contemporâneas.
do Brasil, entre os anos 1980 e 2012, morreram A sociedade ainda se pauta na reação, e não
no país 1.202.245 pessoas vítimas de homicí- na prevenção; na punição, e não na educação
dio, 1.041.335 pessoas vítimas de acidentes de para o senso de pertença. Com o passar do tem-
trânsito e 216.211 suicidaram-se. As três cau- po, os sistemas que deveriam ser um serviço à
sas somadas totalizam 2.459.791 vítimas (cf. seguridade social tornam-se instituições sobre
nº- 319
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população a particularizá-los e a focar especi-
ficamente neles, esquecendo-se de outros, Religião e linguagem
muito mais numerosos, que acontecem todos Abordagens teóricas
os dias. E, ainda, a mídia, ao apresentar situa- interdisciplinares
ções de modo teatral, desperta na população
Paulo Augusto de Souza Nogueira (org.)
um senso justiceiro, um desejo de fazer justi-
ça com as próprias mãos. Volta à cena o dese-
jo do mais alto grau de punição: a morte,
como se fosse a solução para erradicar todos
os tipos de violência.
O descarte do ser humano, seja ele víti-
ma ou autor do malfeito, não é o caminho.
Não se pode alimentar um sistema mani-
queísta que separa bons e maus, justos e in-
justos. É preciso voltar-se ao senso de alteri-
dade: o outro (alter) é meu irmão; se é meu
irmão, eu não o descarto quando erra, mas o
ajudo a se reeducar no caminho do bem.
É preciso passar de um sistema excluden-
te, elitista e descartável para uma sociedade
448 págs.
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Vida Pastoral
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– rosto dos que sofrem violência domés- 2. Iluminar a realidade
tica, tendo como principais vítimas as mu- A palavra de Deus e a superação
lheres, as crianças e os idosos; da violência
– rosto das vítimas da exploração sexual A Sagrada Escritura foi sendo inspirada
e do tráfico humano, sobretudo mulheres e ao longo dos séculos. É uma história de sal-
crianças; vação que passa pelas marcas da história da
– rosto dos trabalhadores rurais e dos humanidade, constituída de momentos de
povos tradicionais. Aumenta o conflito no fraternidade, de paz, de luta pela justiça,
campo; os trabalhadores rurais, na luta por mas também marcada pelo pecado da divi-
seus direitos, muitas vezes são assassinados são, da guerra, do abuso do poder.
e expulsos da terra. Os povos Muitas vezes os sentimentos
tradicionais, que estão na terra
“Por trás de cada
humanos são atribuídos a Deus,
desde muito antes da chegada vítima há um apresentando-o como vingati-
dos colonizadores, são tratados rosto, uma pessoa vo, violento e cheio de ira. Mui-
com estranhamento e com o com vontade, tos textos da Sagrada Escritura
endurecimento das leis de cria- carregam essa marca da proje-
liberdade e
ção de reservas; ção da violência humana em
– rosto das vítimas do nar- capacidade para Deus, caracterizando-o como
cotráfico. Cada vez mais cresce amar, que teve um Deus justiceiro.
o número de pessoas que per- os seus direitos A Revelação atingiu sua ple-
dem a vida por causa do narco- arrancados pela nitude no mistério da encarna-
tráfico. A vida é tirada não só ção de Jesus Cristo, que é por
violência”
pelo consumo dos entorpecen- excelência uma pessoa de paz,
tes, mas também pela violência do crime or- de não violência, de prática da fraternidade.
ganizado, gerador de um sistema injusto, que Jesus revela que Deus é Pai (Abbá) e os
prende crianças e jovens consumidores de homens e as mulheres são irmãos e irmãs.
drogas, mas raramente (ou nunca) pune A fraternidade anunciada por Jesus é com-
exemplarmente os grandes traficantes; posta de um caminho de misericórdia, que
– rosto das vítimas do trânsito. As pes- pede e oferece perdão; um caminho em
soas, tendo o direito de ir e vir, precisam que se assume a postura do samaritano, o
fazê-lo com segurança. Muitas são as víti- qual se inclina sobre a dor do que sofreu
mas do trânsito, seja pela irresponsabilida- violência, dele cuida e com ele supera o
de pessoal dos que ingerem álcool ou não sofrimento.
respeitam a sinalização, seja pela ausência Do Novo Testamento deriva uma conse-
dos poderes públicos na manutenção das quência prática: quem conhece Jesus promo-
rodovias. ve a paz, jamais estimula a violência. Quem,
Com esse elenco de rostos da violência, em Cristo, sabe que foi agraciado com a paz
não se fecha o assunto; ao contrário, com deve se tornar um reconciliador, um constru-
acurada reflexão, é possível perceber uma in- tor de paz.
nº- 319
finidade de pessoas e situações marcadas por Como lembra um antigo escrito cris-
essa realidade. tão: “Deus enviou-o (seu Filho) para nos
•
ano 59
Não basta identificar a violência como salvar, para persuadir, e não para violen-
cultura e como sistema e distinguir suas víti- tar, pois em Deus não há violência” (Car-
•
mas; é preciso iluminar essa realidade com o ta a Diogneto, VII, 4; cf. Texto-base da
Vida Pastoral
evangelho. CF-2018).
8
O magistério da Igreja e a superação
da violência Antropologia
A Igreja guarda o tesouro deixado por Religiões e valores cristãos
seu fundador, cabendo-lhe a missão do
anúncio do evangelho da paz e da superação Lino Rampazzo
da violência.
Quando estudamos a história da Igreja,
percebemos que nem sempre ela foi fiel à
sua missão; muitas vezes escolheu o cami-
nho do não diálogo, chegando a extremos
escandalosos.
A Igreja não esconde os erros da sua his-
tória, mas aprende com eles e busca cada dia
refazer a escolha do seguimento de Jesus. Ela
segue o seu Mestre – que não agiu com vio-
lência, mas morreu de morte violenta – e,
guiada pela sua presença ressuscitada e pelo
seu Espírito, por meio da comunhão e da
missão, busca oferecer a todos os povos um
caminho para vencer a violência.
Poder-se-ia aqui fazer memória de inúme-
264 págs.
ris, afirma que, em nosso tempo, não é racio- SAC: (11) 5087-3625
nal que a guerra seja usada como instrumen- V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
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9
“Com a paz, nada se perde. Tudo, com a ternidade eficazmente geradora de fraterni-
guerra, pode ser perdido” (n. 62). dade, porque o amor de Deus, quando é aco-
O Beato Paulo VI, em sua memorável Po- lhido, se transforma no mais admirável agen-
pulorum Progressio, reafirma a completa exclu- te de transformação da vida e das relações
são da violência do ideal de sociedade coeren- com o outro, abrindo os seres humanos à
te com a dignidade humana. São João Paulo II, solidariedade e à partilha ativa.
na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de
2002, recorda que “não há paz sem justiça, 3. Agir na realidade
nem justiça sem perdão”. A superação da violência não é uma teoria,
Na sua mensagem para o Dia Mundial da mas deve ser um caminho de ativa transfor-
Paz de 2007, Bento XVI recorda que a raiz da mação. Essa mudança passa pela pessoa, pela
ausência de paz está localizada comunidade e pela sociedade. A
“A Igreja guarda
no contexto da desigualdade so- conversão conjugada dessas três
cial: “Na raiz de não poucas ten- o tesouro realidades é uma trilha segura
sões que ameaçam a paz, estão deixado por para todo desejo de superação.
certamente as inúmeras injustas seu fundador,
desigualdades ainda tragicamen- cabendo-lhe Antropologia da mudança
te presentes no mundo. De entre As pessoas não estão inseri-
elas são, por um lado, particu-
a missão do das no mundo para viver isola-
larmente insidiosas as desigual- anúncio do damente, mas dependem do
dades no acesso a bens essen- evangelho “outro” para viver. Essa condi-
ciais, como a comida, a água, a da paz e da ção, que favorece a prática rela-
casa, a saúde; e, por outro cional, desafia a todos – como
superação
lado, as contínuas desigualdades sujeitos da própria história – a
entre homem e mulher no exer- da violência” cuidar do outro, ou seja, a fazer
cício dos direitos humanos fundamentais”. parte da história do outro.
Fica evidente aqui a necessidade de superar a A superação da violência passa pela con-
violência superando as desigualdades sociais. versão pessoal. É preciso assumir a espiritua-
Em tempos recentes, o papa Francisco lidade do seguimento de Jesus, o modelo de
recorda que a superação da violência passa pessoa que escolheu ser não violento. A con-
pela fraternidade, fundamento e caminho versão, compreendida na mudança de atitu-
para a paz. Surge espontaneamente a pergun- des e comportamentos, é a principal propos-
ta: Poderão um dia os homens e as mulheres ta que a liturgia quaresmal oferece.
deste mundo corresponder plenamente ao O mundo muda quando a pessoa muda.
anseio de fraternidade neles gravado por Para que isso aconteça, é preciso adotar uma
Deus Pai? Conseguirão, meramente com as postura correspondente à de Jesus, promo-
suas forças, vencer a indiferença, o egoísmo e vendo a cultura da paz, adotando mídias alter-
o ódio e aceitar as legítimas diferenças que nativas, que não tratam a violência com sensa-
caracterizam os irmãos e as irmãs? Parafra- cionalismo, participando dos conselhos pari-
nº- 319
seando as palavras do Senhor Jesus, podere- tários e de políticas públicas para a superação
mos sintetizar assim a resposta que ele nos da violência, valorizando a instituição familiar,
•
ano 59
dá: dado que há um só Pai, que é Deus, vós vivendo uma vida menos consumista, pedin-
sois todos irmãos (cf. Mt 23,8-9). A raiz da do e oferecendo perdão, adotando a cultura da
empatia. E recordando-se sempre de que o ou-
•
Deus. Trata-se, por conseguinte, de uma pa- tro não é apenas o outro: ele é irmão.
10
Comunidades comprometidas Esperança, ou por pessoas de boa vontade
Cabe aqui fazer uma salutar memória da que fazem de suas aptidões profissionais uma
caminhada pastoral da Igreja no Brasil, a missão, acrescentando a “fé” e o “cuidado” no
qual, ao longo dos anos, motivada pelo espí- seu agir em relação ao outro.
rito da profecia e da luta pela fraternidade, Por fim, considerando a proposta da Pas-
por meio de suas pastorais sociais, tem dado toral do Menor, é possível recordar que nin-
passos gigantescos na superação da violência. guém nasce infrator. Cabe a todos a missão
As Diretrizes Gerais da Ação Evangeliza- de ir ao encontro do “outro”. Esse “outro” é o
dora da Igreja no Brasil 2015-2019 (DGAE) mesmo que o Evangelho de Mateus nos apre-
recordam: com as atitudes de alteridade e senta: “Estive preso e foste me visitar”.
gratuidade, expressões do amor, os discípu- No decorrer da história, várias iniciativas
los missionários promovem a justiça, a paz, a sociais da Igreja foram sendo assumidas pela
reconciliação e a fraternidade. Desse modo, sociedade e se tornaram políticas públicas.
oferecem à sociedade atual o testemunho do Portanto, o olhar social da Igreja exigiu posi-
perdão e da reconciliação (Lc 23,34), que de- cionamento do Estado em relação ao sofri-
vem ser incessantemente manifestados e mento humano por ele negligenciado.
transmitidos (Mt 18,21-22) em um contexto
de crescente violência. O caráter radical do Sociedade: a mudança de paradigma
amor de Deus atinge sua extrema manifesta- Pensar a superação da violência no inte-
ção no amor aos inimigos. A reconciliação rior do sistema capitalista, que mantém sua
supera toda divisão que nos afasta de Deus e centralidade no lucro econômico, e não no
nos separa uns dos outros (DGAE 12). ser humano, exige grande esforço na identifi-
– Destaca-se o trabalho da Pastoral da cação e compreensão das iniciativas que sina-
Mulher Marginalizada como uma luz para o lizam possibilidades de enfrentamento e su-
enfrentamento e a superação da violência peração da violência. Essas iniciativas, pensa-
contra a mulher. das e desenvolvidas em harmonia com a ma-
– Outras experiências de superação e, nutenção desse sistema, no qual o ser huma-
consequentemente, de humanização dos pro- no é apenas um objeto para o consumo, tor-
cessos sociais podem ser observadas na Pasto- nam-se “paliativos” para a cultura da não
ral da Saúde, da Pessoa Idosa, da Pessoa com violência (cf. Texto-base da CF-2018).
Deficiência, da Criança e da Sobriedade, em Portanto, enquanto uma mudança de pa-
que o “carisma” do cuidado se faz presente. radigmas não acontece, é preciso voltar-se
– O cuidado e a justiça iluminam os tra- para algumas iniciativas que favorecem a
balhos da Pastoral Carcerária, Indigenista, do construção de uma cultura da paz, mediante
Menor, da Mulher Marginalizada, da Terra e a consolidação de políticas públicas e a parti-
o Grito dos Excluídos, em que os embates cipação de conselhos paritários de direitos,
por políticas públicas de prevenção e supera- para o enfrentamento da violência que se de-
ção da violência são por elas assumidos. senvolve nos âmbitos de sua abrangência,
– Nas CEBs, na Pastoral Operária e no como é o caso da violência doméstica na so-
nº- 319
drogas nos centros de recuperação, como a autonomia, para mitigar a violência e o des-
Vida Pastoral
11
Sofre-se pela falta de lideranças com esta- Conclusão
tura, em diferentes níveis. Encontra-se, com A superação da violência começa pelo res-
maior facilidade, quem levanta a voz para a peito à dignidade da pessoa humana, defenden-
reclamação e a lamentação, ou mesmo para o do e promovendo a dignidade da vida humana
vandalismo. Há carência de pessoas que se em todas as etapas da existência, desde a fecun-
dediquem a uma atuação mais criativa, cora- dação até a morte natural, tratando o ser huma-
josamente inovadora e cidadã, especialmente no como fim, e não como meio. A proposta é a
no âmbito governamental, primeiro respon- superação da violência. Para concluir, bastam as
sável pelo bem comum. Os descompassos palavras do papa Francisco no encontro com os
produzidos por tantos desencontros e equí- presidentes Abbas (Palestina) e Peres (Israel) no
vocos nas escolhas das prioridades sociais – ano de 2014: “Ouvimos um chamado e deve-
por falta de competência humanística e de mos responder: o chamado a romper a espiral
ajustada visão antropológica de muitos pro- do ódio e da violência, a rompê-la com uma
fissionais da política –, ao lado da sede mes- única palavra: ‘irmão’. Mas, para dizer essa pala-
quinha de dinheiro, resultam na incapacida- vra, devemos todos levantar os olhos ao céu e
de de gerar redes de solidariedade. reconhecer-nos filhos de um único Pai”.
12
Rosto marcado de sangue:
a violência no Brasil à luz do conceito
arendtiano de banalidade do mal
César Thiago do Carmo Alves, fmi*
13
tenta sua família. Mora na comunidade do verdadeiras mestras em ressignificar a pró-
Fallet, em Santa Teresa, região central do Rio pria existência. Muitas vezes essa ressignifi-
de Janeiro. No dia 10 de junho de 2016, ela cação vem acompanhada da solidariedade
recebeu uma notícia terrível. Seu filho Carlos com outras mães que vivenciam o mesmo
Eduardo Nogueira da Silva, o Dudu, de 19 drama. Numa reportagem, quase oito meses
anos, havia sido assassinado com bala perdi- após o assassinato de Dudu, Sheila afirmou:
da enquanto tomava água de coco com um “Sinto a dor de cada mãe quando vejo seus
amigo. O tiro teria vindo da polícia, num su- filhos sendo mortos. E volto a sofrer tudo de
posto confronto entre policiais novo pela morte do meu filho.
e bandidos. Ao saber da notícia, “Sheila, pobre Essa dor nunca vai passar”
Sheila dirigiu-se ao local e, ao e negra, teve (“SINTO...”, 2017). A solidarie-
encontrar o filho sem vida no dificuldades dade é o princípio norteador
chão, passou o sangue dele no para a superação do isolamento
financeiras para
próprio rosto. Num depoimen- na dor da perda de alguém que
to ao jornal O Globo, disse: “Pus sepultar o filho, se ama. Essa solidariedade se
a mão no sangue que estava ao sangue de seu transforma, por vezes, em motor
lado do corpo e passei no rosto sangue” impulsionador para que se lute
mesmo. Porque ele é o meu em busca da justiça e da paz, so-
sangue, ele (o filho) era continuação do meu bretudo para as pessoas que, de alguma for-
viver” (GOULART, 2016). Dudu morava na ma, estão excluídas.
favela e era negro. Sheila, pobre e negra, teve O caso de Sheila é fonte inspiradora para
dificuldades financeiras para sepultar o filho, pensar o caminho da banalidade do mal e do
sangue de seu sangue. O seu desejo era en- sofrimento presente na sociedade brasileira.
contrar com o assassino de Dudu e dizer:
“Muito obrigada, você destruiu a minha vida” 2. A violência no Brasil à luz do
(NUNES, 2016). Essa fala vem acompanhada conceito arendtiano de banalidade
de forte desejo de justiça. O sangue no rosto do mal
de Sheila desenha o que há de mais forte e Hannah Arendt (1906-1975), judia ale-
profundo no coração de uma mãe: o amor mã, foi uma das maiores filósofas do século
incondicional pelo filho. A morte não é capaz XX, embora não gostasse de ser identificada
de distanciar o coração materno daquele que como tal. Sua atividade era pensar a teoria po-
se foi, muito pelo contrário: a memória de lítica. Num desses empreendimentos intelec-
que é do mesmo sangue, como expressou tuais, Arendt cobriu o julgamento do nazista
Sheila, faz que esse laço seja eterno. Eterni- Adolf Eichmann (1906-1962), em Jerusalém,
za-se no amor que não faz distinção entre para a revista The New Yorker. Essa cobertura
classe social e etnia. deu origem posteriormente ao livro Eichmann
Uma cena comoventemente forte. Prenhe em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do
de significados. Profundamente humana. mal. Nele, Arendt desenvolveu o conceito de
Dor, violência, mal, justiça e tantos outros banalidade do mal. Foi uma obra criticada, so-
nº- 319
elementos dela emergem. O sangue no rosto bretudo pela comunidade judaica. No livro,
e o olhar sofrido, mas altivo na foto, revelam ela mostra que a maldade se tornou corriquei-
•
ano 59
o drama vivenciado por tantas mulheres em ra na Alemanha nazista. O que Eichmann fazia
nosso país. A vida delas, por vezes, é destruí- nada mais era do que estar dentro de um siste-
da pela mesma violência que Sheila teve de
•
enfrentar. No entanto, mulheres como ela são do por Adolf Hitler (1889-1945).
14
A chamada Solução Final (ARENDT,
1999, p. 98-127), que consistia no assassina- Introdução à Teologia
to de todos os judeus, era naturalizada. Essa
Fundamental
naturalização da maldade é o que a filósofa
chama de banalidade do mal. Tudo o que J. B. Libanio, sj
Eichmann executou, não o fez sozinho. “Cer-
tamente ninguém afirmaria que Eichmann
estava sozinho no negócio ou que não admi-
tia obediência a nenhuma bandeira”
(ARENDT, 1999, p. 284). Os crimes por ele
realizados “só podem ser cometidos por uma
lei criminosa e num Estado criminoso”
(ARENDT, 1999, p. 284).
À luz desse conceito arendtiano é que se
propõe entender o sistema de violência ins-
taurado no Brasil e como a população, sobre-
tudo a pobre e negra, se torna vítima. Se na
Alemanha nazista os judeus eram os alvos do
sistema para que se pudesse purificar aquele
país, no Brasil quem está sob essa mira são os
pobres e negros. Curiosamente, num rápido
olhar, pode-se constatar o nível de violência a
224 págs.
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Vida Pastoral
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acusados havia sido julgado (ANISTIA IN- ruim”, o fato é que esse excedente não é equi-
TERNACIONAL, 2017, p. 84). librado. Em alguns lugares, muitas vezes, a
Além disso, segundo o Relatório de gestão: taxa de ocupação suplanta 150%.
supervisão do departamento de monitoramento e Em 1988, os representantes do povo bra-
fiscalização do sistema carcerário e do sistema sileiro reunidos em Assembleia Nacional
de execução de medidas socioeducativas – DMF, Constituinte, com o objetivo de instituir um
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Estado democrático, após longo período de
Brasil é o quarto maior sistema ditadura militar (1964-1985),
prisional em número de pes- “Se na Alemanha promulgaram a Constituição da
soas no mundo. Perde para os nazista os judeus República Federativa do Brasil
Estados Unidos (2.228.424), eram os alvos (cf. BRASIL, 1988, proêmio).
China (1.657.812) e Rússia Logo no início, no Título II, trata
(673.818). No Brasil, 27.950
do sistema para dos direitos e garantias funda-
pessoas estão encarceradas em que se pudesse mentais. Nesse título, o Capítulo
delegacias e 579.423 em esta- purificar aquele I dedica-se aos direitos e deveres
belecimentos penais. Sendo as- país, no Brasil individuais e coletivos. O artigo
sim, o número de pessoas pri- 5º desse capítulo é, por assim di-
quem está sob
vadas de liberdade ultrapassa a zer, o coração de toda a Consti-
marca de 600 mil. No entanto, essa mira são os tuição Federal de 1988 (CF/88).
existem 379.669 vagas no siste- pobres e negros” Nele se afirma no caput que “to-
ma penitenciário. Desse modo, dos são iguais perante a lei, sem
espaços concebidos para acomodar 10 estão distinção de qualquer natureza, garantindo-
acomodando 16 pessoas (cf. CNJ, 2017, p. -se aos brasileiros e aos estrangeiros residen-
24-25). Na nota de rodapé dessa última in- tes no país a inviolabilidade do direito à vida,
formação, o CNJ afirma que, por mais que à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
esse dado estatístico não pareça ser “tão priedade”. É interessante notar que a CF/88
16
possui alto grau de humanidade. Evidente-
mente, está marcada por toda uma história Compêndio de Ciência
que a precedeu, escrita com o sangue e a vida
da Religião
de inúmeras pessoas que lutaram para que se
pudesse chegar ao Estado democrático de di- João Décio Passos e Frank Usarski (orgs.)
reito. Contudo, uma pergunta neste ponto
emerge: se a CF/88 afirma os direitos funda-
mentais de toda pessoa humana, logo a lei
brasileira não é criminosa, à diferença do
caso mencionado por Arendt; em contrapar-
tida, existe alto índice de assassinatos de pes-
soas das periferias e favelas por parte das for-
ças auxiliares, como apontou o relatório glo-
bal da Anistia Internacional 2016/17, e o
Brasil é o quarto maior sistema penitenciário
do mundo, conforme o CNJ. O que ocorre
efetivamente em nosso país para que haja ta-
manho descompasso entre a legislação pro-
mulgada e a realidade vivenciada?
A chave hermenêutica para a leitura dessa
704 págs.
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17
Magna da República Federativa do Brasil di- gum modo, a consolidação do Estado demo-
reitos fundamentais assegurados a todas as crático de direito em favor da igualdade en-
pessoas, o inconsciente coletivo não vê pro- tre todas as pessoas.
blema em torturar aquele que foi apontado
como criminoso, ainda que por vezes seja 3. Um impacto da violência:
inocente. O sentimento de justiça está mistu- o sofrimento
rado com o ódio. Basta dizer que alguém é O sofrimento faz parte da trama do exis-
suspeito, para a mídia e determinados setores tir humano. É importante para o itinerário
da elite brasileira processarem e transitarem existencial aprender algo com ele. Contudo,
em julgado a sentença penal, condenando-o existem sofrimentos impostos que, de algu-
ao encarceramento ou até mesmo à morte. ma forma, geram revolta. Aquele gerado pela
Esse processo não se dá na esfe- violência conectada com a bana-
ra do Judiciário, mas sim na “Os jovens negros lidade do mal é um deles. Pes-
propaganda que cotidianamen- que moram soas são tachadas, como exem-
te se faz de certa parcela da po- nas periferias e plificamos no item anterior, e a
pulação, a mais vulnerável. No elas é destinada a violência. Se já
plano simbólico, é violado o in-
favelas são os não bastasse a violência que os
ciso LVII do artigo 5º da CF/88, mais afetados pobres e negros deste país são
que afirma que “ninguém será pela violência condenados cotidianamente a
processado nem sentenciado policial” sofrer devido à sua condição so-
senão pela autoridade compe- cial e/ou étnica, vem ainda o Es-
tente”. A mídia e a elite viraram o tribunal de tado, com sua força, reprimi-los.
condenação e absolvição. Muito ainda a sociedade brasileira tem de
Diante desse cenário que afeta majorita- aprender com as mulheres. Elas são sinais de
riamente a população jovem, negra e presi- superação e resiliência. Isso é notório no siste-
diária, urge reafirmar o Estado democrático ma prisional brasileiro. Ao percorrer os presí-
de direito. Além disso, faz-se necessário re- dios masculinos e femininos, uma constatação
pensar as políticas públicas no que tange à pode ser imediatamente feita: o índice de mu-
educação e à segurança, para que seja mini- lheres que vão aos presídios masculinos fazer
mizado, até a ponto de ser extinto, o incons- visitas é surpreendentemente mais elevado do
ciente coletivo da banalidade do mal. Uma que o dos homens que visitam os presídios fe-
vez que se injetem recursos econômicos, so- mininos. Essas mulheres que vão visitar são
bretudo no campo educacional, oferecendo mães, esposas, irmãs dos presidiários. Todas
a todos as mesmas possibilidades, sem dis- passam pela revista vexatória, mas mesmo as-
paridades nem privilégios de uns em detri- sim estão lá, em prontidão, para acompanhar
mento de outros, pode ser que diminua a o encarcerado.
desigualdade social e, por consequência, As lágrimas de uma mãe nesses lugares são
nova cultura de paz seja construída. En- comoventes e, ademais, provocam profunda
quanto isso está no campo das utopias, há conversão em quem as escuta com os ouvidos
nº- 319
que pensar em soluções um tanto quanto treinados para ser humanos. Mesmo diante do
imediatas para coibir as ações truculentas de crime, seja ele de maior ou menor grau, elas
•
ano 59
maldade por parte das forças auxiliares do dificilmente abandonam seus filhos na prisão.
Estado. Indubitavelmente, uma das ações é o Muitas, com pouca instrução sobre o processo
do filho, buscam de forma desesperada infor-
•
reitos humanos. Essas frentes ajudam, de al- mações. Correm atrás dos defensores públicos
18
ou de advogados particulares. São capazes de
vender tudo para poder aliviar a pena do filho Relíquia
ou da filha. Agentes da Pastoral Carcerária são O destino do corpo na tradição cristã
testemunhas desses gestos maternos.
O sofrimento de uma mãe pelo filho en- Ario Borges Nunes Junior
carcerado constitui verdadeira escola de espe-
rança. Muitas delas são religiosas. Têm fé em
Deus. Acreditam que o divino não irá abando-
ná-las nesse calvário. As de confissão católica
associam o seu sofrimento ao da mãe de Jesus,
que viu o filho ser preso, acusado e condenado
à morte pelo império romano, motivado pelo
alto escalão da religião judaica da época. A es-
perança dessas mães remete à das mães que
perderam seus filhos vítimas da violência urba-
na. E quando a vida dos filhos é ceifada pelas
forças auxiliares do Estado, isto é, pela polícia,
tudo pelo que elas clamam é justiça. Assim
sendo, mais uma vez, a conexão com a mãe de
Jesus se faz presente de forma indireta. A justi-
156 págs.
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Vida Pastoral
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cia encarcerados. Tudo isso faz que o coração soas que, de alguma forma, são vítimas do sis-
de uma mãe se compadeça ainda mais. Dian- tema político-econômico e social.
te do sofrimento do filho, ela não fica alheia. Pensar, com foco na educação, propostas
Muito pelo contrário, faz-se presente. para a superação dessa conjuntura social se
A desigualdade social no contexto da bana- impõe quase como que um imperativo para
lização do mal se torna efetivamente algo a ser que se cumpra o postulado pela CF/88 no
combatido. Uma vez enfrentado esse problema, caput do seu artigo 5º. Desse modo, poder-
a tendência seria, paulatinamente, ir mudando -se-á vislumbrar, de forma efetiva, um Estado
o cenário de condenar as pessoas com base em democrático de direito onde a violência não
sua estratificação social e etnia. Assim, diminui- tenha tanto espaço e a paz seja soberana. Que
ria o fardo do sofrimento imposto a tantas pes- justiça e paz se abracem! (Sl 85,11)
Bibliografia
ANISTIA INTERNACIONAL. O estado dos direitos humanos no mundo: informe 2016/17. Disponível em:
<https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2017/02/AIR2017_ONLINE-v.3.pdf>. Acesso em: 19
ago. 2017.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Compa
nhia das Letras, 1999.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 19 ago. 2017.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório de gestão: supervisão do departamento de monitora-
mento e fiscalização do sistema carcerário e do sistema de execução de medidas socioeducativas –
DMF. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/04/23902dd211995b2b
cba8d4c3864c82e2.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2017.
GOULART, Gustavo. “Ele era a continuação do meu viver”, diz mãe de jovem morto no Querosene.
O Globo, Rio de Janeiro, 13 jun. 2016. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/ele-era-con-
tinuacao-do-meu-viver-diz-mae-de-jovem-morto-no-querosene-19495289#ixzz4qWgDgsmT>.
Acesso em: 19 ago. 2017.
NUNES, Marcos. “Destruiu minha vida”, diz mãe que passou sangue do filho morto no rosto. Extra,
Rio de Janeiro, 13 jun. 2016. Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/destruiu-
minha-vida-diz-mae-que-passou-sangue-do-filho-morto-no-rosto-19494521.html>. Acesso em:
18 ago. 2017.
“SINTO a dor de cada mãe quando vejo seus filhos sendo mortos”, diz catadora que perdeu o filho
para violência. O Globo, Rio de Janeiro, 2 fev. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/
rio/sinto-dor-de-cada-mae-quando-vejo-seus-filhos-sendo-mortos-diz-catadora-que-perdeu-filho-
para-violencia-20860154>. Acesso em: 18 ago. 2017.
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•
ano 59
20
O genocídio
da juventude
negra/preta
21
porquê dessa sua permanência nos tempos mídia como parte invisível da realidade, pon-
atuais, a qual não tem o condão de nos causarderação inquestionável sobretudo quando se
horror. Qual lacuna existe na estrutura do Es-
trata da opressão que essa juventude sofre
tado para levá-lo a não se interessar por esse
todos os dias.
assunto, que se traduz na morte da juventude Com efeito, segundo Bento e Beghin,
negra todos os dias, a cada 23 minutos? num texto para o boletim do Instituto de Pes-
A opressão dentro e fora das periferias equisa Econômica Aplicada (Ipea), como
favelas tem consequências físicas e mentais. “principais vítimas da violência urbana, alvos
Como nos atinge institucionalmente ao aden- prediletos dos homicidas e dos excessos poli-
trar a estrutura do Estado e incidir sobre o ciais, os jovens negros lideram o ranking dos
trabalho, a educação e a vida social? que vivem em famílias consideradas pobres e
dos que recebem os salários mais baixos do
1. O genocídio da juventude mercado” (2005, p. 194). Particularmente no
negra/preta
“A periferia e a quesito segurança, as pesquisa-
Em tempos de desestrutu- doras afirmam:
ração na esfera social, a ideia juventude negra
de Estado de direito traz-nos o são vistas pela Segundo estimativas da Disoc/
conforto de conceber algo que mídia como Ipea, a partir de dados do Depar-
nos parece pertencer. Por isso é parte invisível da tamento de Informática do Siste-
que certo espanto pode nos ma Único de Saúde (Datasus), em
realidade”
acometer ao pesquisarmos no 2000, a taxa de vítimas de homi-
Google a palavra “escravidão” e, no primeiro cídio de jovens negros era de 74,1 por 100
tópico de busca, constatarmos que a Wiki- mil habitantes, bastante superior à obser-
pédia a define como “prática social em que vada para os brancos da mesma idade, de
um ser humano assume direitos (grifo nosso) 41,8 por 100 mil habitantes. Numa equa-
de propriedade sobre outro designado por ção bem conhecida, a conjugação perversa
escravo”. de diversos fatores, tais como racismo,
A palavra “direito” perde sua transparên- pobreza, discriminação institucional e im-
cia também quando percebemos o grande punidade, contribui para a falência do sis-
problema que o passado legou como reflexo tema de segurança e justiça em relação à
para o presente. Ao tratarmos da juventude população negra. Essa relação não é fruto
negra, o direito será de quem? do acaso: distorções como a “presunção
Leituras densas e extensas não estão na de culpabilidade” em relação aos negros
moda, assim como não está a “arte do pen- resultam em ações que promovem a elimi-
sar”. Estudos sobre a população negra, que nação pura e simples dos suspeitos, vio-
representa hoje 54% da população brasileira, lando os direitos humanos e constitucio-
de acordo com o IBGE, dificilmente têm lu- nais desses jovens. Ações que de tão recor-
gar nas instituições de ensino, quanto mais rentes e banalizadas denunciam um pro-
na mesa do educando. cesso silencioso de eliminação desse gru-
nº- 319
periferia e a juventude negra são vistas pela tam que, no ano de 2015, “60,9 indivíduos
22
para cada grupo de 100 mil jovens, entre 15
e 29, foram mortos. Se considerarmos apenas Entre a Filosofia e a
a juventude masculina, esse indicador au-
Teologia
menta para 113,6”. O que isso significa é Os futuros contingentes
que, a cada 23 minutos, um jovem negro é e a predestinação divina
assassinado no Brasil. segundo Guilherme de
A professora Rosane Borges, num debate Ockham
promovido pela 2ª Jornada pela Democracia,
Carlos Eduardo de Oliveira
afirmou que “há toda uma discussão históri-
ca da própria polícia, que ela substitui o capi-
tão do mato. A nossa polícia tem uma con-
cepção entreguista. Percebe, entrega e de-
nuncia. Então a própria base de formação da
polícia é uma base de uma herança escravo-
crata. E a gente sabe quem era perseguido no
regime da escravidão” (SEGUNDA..., 2015).
O nome genocídio, como muito bem
descrito por Queiroz (2015), “surgiu da jun-
ção da palavra grega génos, que significa raça,
povo, tribo ou nação, e da palavra latina cae-
dere, que quer dizer destruição, aniquilamen-
to, ruína ou matança. Assim, genocídio quer
significar a destruição de uma raça”. O pouco
256 págs.
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Vida Pastoral
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não sendo aceito em determinados locais de uma política que tem que ter enfoque racial-
direito. Ainda de acordo com Pacheco -geracional” (SEGUNDA..., 2015).
(2016, p. 68): “Balas de PM e celas do Siste- Não seria necessário evocar exemplos
ma Penitenciário Brasileiro têm preferência reais para fundamentar essas constatações se
sim por cor de pele, condição social, territó- houvesse o mínimo discernimento coletivo
rio e faixa etária”. sobre tal realidade. Como este, porém, se en-
As Mães de Maio estão aí e, como elas, contra quase que ausente no cenário nacio-
não podemos silenciar. Ao que nos parece, a nal, cabe mencionar o caso recente do jovem
estrutura de Estado pouco se negro Rafael Braga Vieira, um
importa com a juventude negra “Não há como entre tantos outros jovens que
e pouco se importa com o in- falar em conhecem e temem o Estado e a
cremento da educação estatal
universalidade sociedade em que vivem.
para o reconhecimento dessa
mesma juventude, não obstante e igualdade Essa é a história de Rafael Braga
o avanço representado pela Lei de direitos se Vieira, jovem negro, pobre, se-
nº 10.639, de 9 de janeiro de a juventude miletrado, que naquela noite
2003, promulgada como aden- negra vem sendo fora preso por estar portando
do à Lei de Diretrizes e Bases da dois recipientes com produtos
Educação Nacional (LDB):
exterminada por
de limpeza. Ao ser levado, os
obra do próprio policiais alegaram que ele carre-
A Lei 10.639 proporciona Estado” gava material para a produção
conhecimento e contato de coquetel molotov, ignorando
com a cultura africana e afro-brasileira completamente o fato de que tal explo-
que até então estava oculta e silenciada. sivo só pode ser feito com garrafas de
No Brasil, ter essa vivência com as cultu- vidro, e os recipientes do Rafael eram de
ras africanas transformaria essa civiliza- plástico. Mas é mais do que isso. Rafael
ção, porque a história diz que negros e não estava na manifestação, não enten-
negras foram “conquistados” pelos “bran- dia nada de política, militâncias ou ato,
cos”, sendo que a colonização, civilização apenas trabalhava como caçador de reci-
cultural, política, tecnológica, econômica cláveis e fazendo pequenos bicos, entre
e religiosa vêm dos africanos e afro-brasi- eles limpeza. Ainda assim, Rafael fora
leiros (ROSA, 2015, p. 5). condenado a cinco anos de prisão em
regime fechado. Posteriormente, por
Não há como falar em universalidade e pressão de vários movimentos e coleti-
igualdade de direitos se a juventude negra vos e grupos de advogados que atuam
vem sendo exterminada por obra do próprio com direitos humanos, Rafael ganhou a
Estado. Nas palavras do então secretário na- oportunidade do semiaberto, podendo
cional da juventude, Gabriel Medina, em de- trabalhar e ir para casa usando a torno-
bate promovido pela 2ª Jornada pela Demo- zeleira eletrônica. Mas foi preso nova-
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cracia, “o que vem puxando o aumento dos mente, agora por policiais da Unidade
homicídios no país tem cor, tem geração – de Polícia Pacificadora local. Forjaram
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são jovens, na sua maioria –, e esse é o dado para ele um flagrante com drogas e o le-
que temos que trabalhar, inclusive para con- varam preso novamente, agora sob a
vencer a sociedade de que não se trata de
•
24
Aquilo que os meios de comunicação
omitem fica velado aos olhos do público, cor- O labirinto sagrado
roborando a versão dos que sabem a quem Ensaios sobre religião,
acusar, porque têm privilégios para isso. O psique e cultura
critério adotado pela sociedade para atribuir
Marcial Maçaneiro
veracidade às notícias é que estas sejam apre-
sentadas por formas e meios fidedignos, mas
nem sempre essa “roupagem” transmite uma
verdade de fato. De acordo com Rosane Bor-
ges, por ocasião do evento já citado:
se institucionalizam em fundamento e
anteparo para as regras, expressando-as,
O labirinto sagrado nos possibilita
mas também as legitimando, é só por
sondar o fascinante mundo da
meio deles, dos discursos, que se redefi- experiência religiosa. Nos oito
ne uma ortografia do visual (SEGUN- ensaios temáticos, ordenados
DA..., 2015). como coletânea, o autor tece
um diálogo entre subjetividade e
Acerca desse ponto, uma grande estudio- história, psique e cultura. Em suas
linhas conclusivas, elementos de
sa de Hannah Arendt faz importante ponde-
fenomenologia religiosa propiciam
ração: “O cultivo da humanidade é crucial o discernimento de novas
para o juízo reflexivo, pois o espectador que perspectivas da espiritualidade
julga precisa ser capaz de ‘pensar no lugar de cristã, aproximando Ciência da
todos os outros’” (ASSY, 2015, p. 182). Religião e Teologia Espiritual.
Imagens meramente ilustrativas.
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Vida Pastoral
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bretudo das favelas. Em certo trecho podemos dade de planejamento e de formulação de
ouvir: “[...] recebe o mérito a farda que pratica políticas públicas serão [sic] irremediavel-
o mal, me ver pobre, preso ou morto já é cul- mente comprometidas, e com ela a estabi-
tural”. Ou seja, na sociedade atual se encontra lidade política e econômica.
culturalmente introjetada essa lógica, que con-
tamina até as mais altas políticas de Estado. É Não nos causa horror existirem lacunas
o que se percebe quando se analisa o conteúdo não fechadas do passado que continuam in-
da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) fluindo tão decisivamente no tempo presen-
55, promulgada em dezembro de 2016. Con- te. Uma reportagem de 2016 espelha o ta-
forme a reflexão de Almeida (2016), manho da irresponsabilidade racista e a ex-
tensão profunda das chagas pretéritas até
A partir do momento em hoje não remediadas. A autora é
que a PEC 55 limita o finan- “É preciso Cecília Olliveira, e o título do
ciamento dos direitos so- mudar as regras texto não poderia exprimir de
ciais, temos, sim, uma pro- do jogo, que forma mais explícita as contra-
posta também racista. Se- dições da sociedade brasileira:
não se esgotam
gundo dados do IBGE, Ipea Turistas podem ser escravocratas
e do Relatório Anual das em soluções por um dia em fazenda “sem ra-
Desigualdades Raciais da meramente cismo”. Trata-se da Fazenda San-
UFRJ, a população negra, técnicas” ta Eufrásia, em Vassouras (RJ), a
em seu conjunto, é a que 111 quilômetros do centro do
mais depende de serviços públicos como Rio, cuja proprietária oferece um “atrativo
saúde e educação, bem como do sistema turístico” vestindo-se de sinhá e disponibili-
de seguridade social, que engloba previ- zando aos visitantes os serviços de mulheres
dência e assistência social. Ora, a PEC 55 vestidas de mucamas – embora garanta que
prevê um congelamento orçamentário de a atividade não guarda nenhuma relação
20 anos de duração, em que o orçamento com a prática do racismo.
de um ano para outro só poderia ser corri- Um passado escravocrata assombra o
gido pela inflação, independentemente de presente por meio de espectros racistas que,
eventual aumento do PIB ou das necessi- conscientemente ou não, buscam perpetuar
dades concretas da população. A capaci- e naturalizar esse tipo de opressão, tornan-
176 páginas
26
do-se o retrato acabado de uma catástrofe preocupação com a prática do racismo na
invisível e avessa às investidas da razão. atuação dos próprios profissionais da área:
A quem favorece os privilégios de um
Estado que insiste em permanecer no passa- Em 2016, a Comissão de Direitos Huma-
do? Segundo Schumaher (2017, p. 1), “sen- nos do Conselho Federal de Psicologia
do a branquitude uma zona de conforto, um (CFP) definiu o tema racismo como preo-
lugar constante de privilégio social, material cupação central para o ano de 2016, abor-
ou simbólico, que restringe o acesso do ou- dando temas como a violência simbólica,
tro, devemos ter sempre muito cuidado para física e policial contra os não brancos do
não cair na tentativa de uma isenção de cul- país. Mesmo com a Resolução nº 018/99
pabilidade a quem goza dos benefícios”. do CFP, que estabelece as normas de atua-
ção dos psicólogos em relação ao precon-
3. Consequências físicas e mentais ceito e à discriminação racial, os casos de
O racismo, seja ou não explícito, traz racismo na atuação da Psicologia ainda
consequências físicas e mentais à juventude persistem. A Psicologia entende que o ra-
negra. A revista Exame de setembro de 2014 cismo é promotor de transtorno mental e
traz a seguinte afirmação da socióloga Trenet- adoece (SEMANA..., 2016).
te Clark, da Universidade da Carolina do
Norte: “A discriminação explícita é uma fon- Finalizo ressaltando a importância dos
te frequente de problemas de saúde, embora nossos questionamentos e do cultivo do senti-
seja negligenciada, e tem efeitos comparáveis do de responsabilidade sobre o mundo e dan-
à morte de um ente querido ou à perda de do a conhecer uma fala da professora e filósofa
um trabalho”. Trata-se de comentário a um Angela Davis, que, no dia 21 de junho de
estudo realizado por pesquisadores america- 2017, no Oakland Book Festival, na mesa de
nos que concluiu que sofrer racismo com fre- debate “On Inequality”, afirmou: “Se as vidas
quência e em diversas situações torna as pes- negras realmente importassem, isso significa-
soas mais sujeitas a ansiedade, depressão e ria que todas as vidas importam! Isso seria a
problemas com drogas. Semelhante com- indicação de que todas as vidas importam”. O
preensão transparece na notícia veiculada que podemos pensar e deixar como reflexão é:
pelo Conselho Federal de Psicologia em mar- Se “todos somos iguais”, por que a juventude
ço de 2016, o qual, ademais, demonstra negra continua sendo exterminada?
ALMEIDA, Silva. “Se a PEC 55 limita direitos sociais, é uma proposta também racista”. CartaCapital, São
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nº- 319
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28
A condição das mulheres
na crise da civilização:
possíveis respostas de uma pedagogia
francisclariana
Marcus Vinicius de Souza Nunes, ofmCap*
29
compaixão. Como encarar esse fato, infeliz- apresenta nas questões de gênero, especial-
mente um entre tantos, sem simplesmente mente no caso-limite da violência contra a
demonizar os culpados e, assim, rechaçando- mulher. O que apresentaremos é uma pro-
-os, crer que tão hediondo crime não corres- posta bem determinada: cinco princípios de
ponde à crise que vivemos, mas constitui so- pedagogia espiritual que podem auxiliar-nos
mente uma exceção que deve ser legada à na acolhida das atuais questões de gênero –
esfera do absurdo? Não basta declará-lo ab- sobretudo no que tange à mulher e à sua con-
surdo e abandonar a questão. Faz-se necessá- dição – em nossa ação testemunhal na pasto-
rio enfrentá-la. ral. Ainda que seja universalmente pensado,
O âmbito da resposta não pode ficar res- o artigo dirige-se, de maneira particular, aos
trito aos necessários dispositivos jurídicos. agentes de pastoral homens, pelo simples mo-
Não estamos tratando apenas tivo de que nós, homens, deve-
de um fato criminal isolado. Ao “Não obstante os mos fazer um esforço para que
contrário, dados divulgados grandes avanços nossa prática pastoral e nossa
pelo Portal Brasil (DOIS..., do século XX, visão da condição da mulher
2017) indicam que dois em iniciamos o século não fiquem presas a um paradig-
cada três brasileiros já presen- ma de civilização em crise e ca-
ciaram atos de violência contra
XXI sem suficiente duco, mas se transformem, vin-
a mulher. Estamos falando de e verdadeiro culando-se a um paradigma plu-
uma profunda crise da civiliza- espaço de ral e acolhedor. Tais princípios
ção ocidental (MURARO; autodeterminação apresentaremos à luz de santa
BOFF, 2002) que tem seu pon-
para as mulheres” Clara de Assis e são Francisco de
to extremo na relação entre os Assis, o homem que queria que
gêneros e nos casos brutais de violência con- seus frades fossem como mães uns para os
tra a mulher em suas variadas formas. Uma outros (Regra para os Eremitérios, 1-2).
crise em que o “macho”, durante séculos in-
questionado em seu papel, precisa ser repen- 1. A crise e o cristianismo
sado e reconfigurado. Uma crise que faz a Comecemos fazendo um exercício de ho-
barbárie corriqueira. nestidade. Não obstante os grandes avanços
Onde há morte e demanda pela vida, do século XX, iniciamos o século XXI sem
nós, cristãos, somos convocados a dar uma suficiente e verdadeiro espaço de autodeter-
resposta evangélica. Uma vez que o paradig- minação para as mulheres. E isso em todos os
ma histórico-social em crise é também for- âmbitos da vida humana, incluindo o dia a
mado pelo cristianismo histórico ocidental, dia de nossa prática pastoral. Não pretende-
temos responsabilidade não apenas pela cri- mos entrar aqui em questões controversas,
se, mas maior responsabilidade pelos meios como seria aquela do sacerdócio feminino ou
de transformação do paradigma mediante a da presença das mulheres nos altíssimos âm-
vida evangélica. Somos responsáveis pela bitos de decisão da Igreja hierárquica. Trate-
mudança, somos os semeadores da metanoia. mos da mais “simples” questão da capacidade
nº- 319
O que propomos neste texto é delinear, o de ser uma presença testemunhal e pastoral
mais lúcida e claramente possível, uma (entre da acolhida e da escuta das mulheres em sua
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ano 59
tantas) resposta evangélica à barbárie, res- inteireza. Essa inteireza envolve, por exem-
posta que passa pelo enfrentamento pacífico plo, as novas linguagens nascentes. Não ape-
•
e testemunhal (querigmático e martirial) da nas novos meios, novas mídias, códigos re-
Vida Pastoral
crise do paradigma civilizacional, tal como se novados. Esses mesmos códigos têm sido a
30
linguagem que as jovens mulheres têm usado
para mostrar ao mundo quão aptas e dispos- A rota antiga dos
tas se sentem a assumir a luta por seus direi-
homens perversos
tos de maneira ordinariamente pacífica, mas,
se necessário, até no confronto direto com as René Girard
forças de coerção, como a polícia. É assim
que vemos jovens brasileiras em inúmeros
blogs e perfis na internet falando livremente
das mais diversas questões, desde maquia-
gem ao hediondo crime do estupro, das ten-
dências musicais aos preconceitos sofridos,
até a presença predominantemente feminina
e jovem nas ações políticas, como na greve de
estudantes secundaristas ocorrida em São
Paulo em 2015. As diversas mídias já divul-
gam o fato que temos percebido: lidamos
com uma geração em que o cosmopolitismo
é o habitual e a transparência, a palavra de
ordem. Somos convidados por tais fatos a
pensar “uma antropologia que seja capaz de
192 págs.
paulus.com.br
Vida Pastoral
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Como cristãos, devemos seriamente nos vitalidade para lançar fermento à massa, a
perguntar: “O que posso fazer à luz do evange- fim de que, por nossa presença e pela con-
lho?”. O cristianismo é religião de conversão. versão de nós mesmos, possamos apresen-
Não de uma conversão sociológica, de mudança tar sementes de esperança evangélica ao
de grupo de pertença. A conversão que é a base mundo, que se deixa tragar pelo turbilhão
de nossa fé constitui um percurso espiritual, da violência, da humilhação e do descaso.
uma transformação constante de nossa pessoa Seguem-se então o que chamaremos princí-
até que nos tornemos, pouco a pios pedagógicos de inspiração
pouco, mais parecidos com Jesus, “estamos hoje francisclariana.1
que se deixou comover pela mu- verdadeiramente 1º Princípio: promover uma
lher que, humilhada pelo mundo, num ponto de pastoral que acolha a mulher in-
lhe pediu a cura (Mt 9,18-26); de mutação da tegralmente, como sujeito psico-
Jesus, o amigo de Marta e Maria biológico-sexual e histórico-so-
(Lc 10,38-42); de Jesus, que esco-
humanidade em cial-espiritual. Pastoral e espiri-
lheu Maria de Magdala para ser a que o masculino tualidade não deveriam ser ape-
primeira testemunha da ressurrei- e o feminino nas temas “espirituais”, se se
ção (Jo 20,1-18). tomam um outro entende este “espiritual” de ma-
“Repensar” e “conversão” são neira abstrata, desencarnada,
sentido”
coisas que andam sempre juntas. como apenas um âmbito entre
Conversão, em chave neotestamentária, é meta- outros. A mulher (tal qual o “macho”) é uma
noia, ir além do estado presente de consciência, unidade de dimensões que não podem ser
mudança de mente. E é nessa perspectiva de desvinculadas umas das outras sem redun-
mudança de consciência que devemos agir, tor- dante prejuízo. Muitas vezes o agente de
nando-nos aptos a acolher os novos sistemas pastoral corre o risco de se tornar apenas
simbólicos que estão sendo gerados pelas mu- “pastor de almas”, mas as mulheres não são
lheres em suas situações concretas. Para isso, é almas. Não podemos desligar a identidade
importante deixar de sacralizar as categorias de gênero, a sexualidade, a história psíquica
pastorais historicamente produzidas pelo ho- e familiar das mulheres que encontramos na
mem na perspectiva do “macho” e, serena e se- pastoral e querer tratar apenas de sua vida
riamente, repensar o paradigma patriarcal (EV- espiritual.
DOKIMOV, 1986). Isso implica desenvolver Francisco, na I Admoestação, faz a se-
um trabalho pastoral em que as experiências guinte afirmação: “Eis que diariamente ele
do ser homem e do ser mulher sejam elabora- [Jesus] se humilha, como quando veio do
das em conjunto, num discurso cocriado, em trono real ao útero da Virgem” (Admoesta-
uma prática coparticipativa. Temos de reco- ções, ff, p. 96). Há que entender bem o sen-
nhecer que “estamos hoje verdadeiramente tido dessa afirmação. Numa época em que
num ponto de mutação da humanidade em as inúmeras heresias pessimistas em relação
que o masculino e o feminino tomam um outro ao corpo atacavam a noção de bondade in-
sentido” (MURARO; BOFF, 2002, p. 122). Um
nº- 319
sentido que produz vida é a única maneira de 1 Todas as citações dos textos de Francisco e Clara encon-
enfrentar a desrazão que produz morte. tram-se nas Fontes franciscanas e clarianas (Vozes, 2004).
•
32
trínseca da criação material – como os cáta-
ros, que afirmavam que tudo o que é mate- O sofrimento como
rial é demoníaco –, não era raro encontrar
redenção de si
uma concepção errada e pejorativa sobre a Doença e vida nas filosofias de
mulher, uma compreensão baseada no con- Nietzsche e Pascal
ceito da mulher como ente meramente bio-
Thiago Calçado
lógico e destinado a ser exclusivamente ins-
trumento de reprodução. Nessas heresias, a
união carnal e sexual em si era considerada
pecaminosa, e tal noção em nada contribuía
para a formação de um conceito positivo so-
bre as mulheres. Francisco, fiel à mais radi-
cal tradição evangélica da Igreja, falando da
encarnação de Jesus, usa uma linguagem
extremamente realista, que, além de enalte-
cer a grandeza de tal acontecimento, dignifi-
ca e louva, como um poeta, a beleza da se-
xualidade de quem o acolhe.
“No útero da Virgem”, ou seja, no símbo-
lo arquetípico do seu ser integralmente mu-
lher, em sua feminilidade. Aqui vale um prin-
cípio básico da teologia: o que não é assumi-
192 págs.
tece, uma mulher pelo estupro sofrido, por- SAC: (11) 5087-3625
que estaria com determinada roupa ou teria V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
tido uma conduta sexual “provocante”, é ex-
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paulus.com.br
Vida Pastoral
33
Expressão que podemos e devemos denun- cultura do respeito e do diálogo. Significa
ciar nos meios pastorais, como parte do pro- nos dispormos a dialogar honestamente com
cesso metanoico. os novos discursos produzidos pelos novos
A visão de Francisco não aceita essas es- sujeitos sociais.
púrias culpabilizações. Pode até parecer-nos Aqui, Clara de Assis é o grande modelo.
que a sua visão seja um tanto limitada. Mas, Primeiro porque rompeu as barreiras da re-
se acondicionarmos o dito no seu tempo, dução sexual infligida às mulheres: ou objeto
extrairmos o seu cerne e o apli- de prazer, ou meio de procria-
carmos hoje, perceberemos a “não podemos ção, ou virgem sem plena reali-
grandeza do princípio: “Todos dar curso a zação pessoal. Essas foram as
os irmãos, onde quer que este- uma pastoral opções que as mulheres tiveram
jam ou aonde quer que vão, por muito tempo. Clara, com
cuidem-se do mau olhar e da
que mutila, que sua mística de entrega a Jesus es-
frequentação das mulheres” desconsidera, poso, rompe com as determina-
(Regra não bulada, ff, p. 174). que despreza ções meramente biológicas e se-
Nada de pejorativo é atribuído ou minimiza xuais às quais se viu por muito
à mulher na visão de Francisco. tempo atrelada a virgindade
as expressões
São os frades que devem cuidar consagrada, que deixa de ser en-
de seus olhares, ou seja, de sua diversas da carada como renúncia para ser
conduta em relação às mulhe- sexualidade realização integral. Para Clara,
res, para não objetificá-las. feminina” quanto mais entrega, mais ela se
No que se refere à objetifi- realiza como cristã e como mu-
cação, um caso ocorrido no ano de 2016 é lher (1ª carta a Inês, ff, p. 1.703). O biologis-
ilustrativo. Meninas de um colégio particu- mo da condição da mulher, paralelo ao espi-
lar de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, ritualismo abstrato, imposto pelo modelo
que haviam recebido a recomendação de patriarcal, foi rompido por Clara quando
não usarem shorts nas dependências do co- chegou à compreensão de sua situação e fez
légio, fizeram protestos com o seguinte slo- decidida opção que rompia com o determi-
gan: “Vestida ou pelada, quero ser respeita- nismo. Só assim Clara se tornou apta para,
da” (KOSACHENCO, 2016). Ainda que o em segundo lugar, romper com as estruturas
dito possa parecer agressivo, mais agressiva sociais que produziam a opressão. Sem che-
é a cultura que lança sobre a mulher a culpa gar à dissidência, ela negou a oferta de pro-
pela objetificação do seu corpo ainda em priedades feita pelo papa Gregório IX e ins-
tenra idade. Como agentes de pastoral, de- tou-o a consentir que ela pudesse permane-
vemos colaborar na criação de uma cons- cer no “privilégio de pobreza” que escolhera
ciência metanoica que reconheça que “a cul- para si. Assim, transcendendo os modelos
pa não é delas”, mas de um paradigma de que lhe eram propostos, mostra que em
sociedade que definha entre a violência e os toda época há tempo para a mulher lutar
produtos erotizantes do consumo. por sua condição.
nº- 319
significa que devemos desenvolver a capaci- mulher mesma. Parece redundante obvieda-
dade de acolher toda a produção de discurso de, mas não é. Podemos correr o risco de
querer ser os autores da autonomia alheia.
•
condição. Significa que fomentaremos uma Temos de nos preparar para acolher as ex-
34
pressões dessa autodeterminação, sem nos e abstração do problema. Na pastoral não
fecharmos ao discurso feito pelos sujeitos trabalhamos com “a mulher”, e sim com
interessados em sua própria autonomia. mulheres concretas, em suas lutas, alegrias e
Como, por exemplo, lidamos com discur- necessidades. São mulheres concretas e sin-
sos como o das já mencionadas meninas de gulares que atuam na pastoral e se fazem
um colégio particular de Porto Alegre, as ouvir, mulheres singulares cujo discurso e
quais lutam conscientemente contra a sua autocompreensão acolhemos como a pala-
condição de jovens precocemente erotiza- vra mais acertada sobre a condição de ser
das que têm de se submeter a um padrão mulher. Esquecer isso é cair na abstração, é
de comportamento que não “provoque” a deixar de atentar que, como cristãos, somos
atenção masculina? Como incorporar na chamados a ajudar os humanos nos seus
prática pastoral discursos como o delas, problemas concretos na caminhada para o
que se dizem feministas e pregam a sorori- Reino definitivo.
dade, para escapar ao que consideram fra- A cordialidade e a atenção primária às
ternidade patriarcal? necessidades básicas são características que
Novamente uma resposta de Clara. As os francisclarianos herdam de Francisco de
suas cartas a Inês de Praga, nobre que aban- Assis. A nobreza e a cordialidade do trova-
donou sua condição para ingressar na or- dor com a perspicácia e o senso prático do
dem fundada por Clara, estão cheias da ex- comerciante geraram nele a disponibilidade
pressão de uma mulher que chegou ao cume atenciosa, a diligência carinhosa e o cuida-
da realização pessoal. Nelas se exprime uma do amoroso. Assim Francisco, “com essa
espiritualidade que foge às categorias antro- fina percepção, sentia o laço da fraternida-
pológicas centradas na experiência do “ma- de, e da sororidade que nos une a todos os
cho”. Por exemplo, na 4ª Carta consegue seres” (BOFF, 1999, p. 69). A cordialidade
unir, em uma única metáfora nupcial, a con- atenta às necessidades é chave elementar
dição sexual, a identidade de gênero e a rea- para oferecermos uma alternativa que re-
lização da vocação cristã. presente uma metanoia, uma mudança para
esta civilização, tal qual Francisco, que “é
Arrasta-me atrás de ti! Corramos no odor verdadeiramente alternativo por seu radical
dos bálsamos, ó esposo celeste! Vou correr modo de ser-cuidado com respeito, venera-
sem desfalecer, até me introduzires na tua ção, fraternura para com todas as coisas”
adega, até que tua esquerda esteja sob a (BOFF, 1999, p. 169).
minha cabeça, tua direita me abrace toda
feliz, e me dês o beijo mais feliz de tua Conclusão
boca (4ª Carta a Inês de Praga, ff, p. 1.711). Alguém poderá objetar que falta, de nossa
parte, a apresentação de elementos práticos
Se formos capazes de uma nova antro- para levar a cabo as ideias aqui desenvolvidas.
pologia, centrada na experiência da mulher, Reconhecemos a limitação, sem deixar de res-
poderemos acolher as novas metáforas que saltar que nosso intuito, ao apresentar os prin-
nº- 319
descrevem as novas realidades da vida das cípios citados, foi provocar a revisão da meta-
mulheres. noia que cada agente de pastoral vive ao aban-
•
ano 59
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evangélico à conversão e que, portanto, somos Duas pessoas que se complementaram, não
responsáveis por procurar uma renovação nos papéis que a sociedade lhes poderia ofe-
constante dos modos de nossa ação por meio recer, mas na certeza de que o esforço irma-
de princípios norteadores que nos possam nado pela mudança sempre chega a algum
melhor conduzir à vida evangélica. lugar. Eles são o grito da utopia evangélica
Em Francisco e Clara temos um exce- entre nós, a utopia que produz, a utopia do
lente modelo de como viver esse processo. Reino que queremos alcançar.
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TEIXEIRA, Celso Márcio (Coord.). Fontes franciscanas e clarianas. Apresentação de Sérgio Dal Moro.
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rio-conta-que-acordou-dopada-e-nua.html>. Acesso em: 17 jul. 2017.
A pobreza e a graça
Experiência de Deus em meio ao sofrimento em Simone Weil
Alexandre Andrade Martins
nº- 319
Este livro versa sobre como o malheur e a graça estão presentes na vida e no
pensamento de Simone Weil, a partir de cartas e opúsculos que escreveu, reunidos
no livro Attente de Dieu. O livro apresenta uma reflexão antropológica sobre a
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homiléticos
Roteiros
Também na internet:
vidapastoral.com.br
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Roteiros homiléticos
em 1º de janeiro por Júlio César. Assim, a festa mais, dando-lhes alimento e força de vida
de hoje coincide com o início do ano civil, atual- (Gn 1,28-30). A bênção de Deus é um augú-
mente celebrado como dia da paz mundial. rio de paz para a natureza e o ser humano.
Neste contexto, cabe bem a primeira leitura, Para quem se coloca diante dessa bênção,
que evoca a bênção do ano-novo israelita (Nm Deus deixa brilhar “a luz de sua face”, sua
6,27), reforçada pelo salmo responsorial. graciosa presença. Só Deus pode realmente
Aliás, o próprio nome que Jesus recebe sugere abençoar, benzer, “dizer bem”; os humanos
que ele é a bênção: yeshua, “o Senhor salva”. abençoam invocando o nome de Deus. Em
Maria deu Jesus à humanidade como um pre- continuidade com esse pensamento, o salmo
sente de Deus (cf. 4º domingo do Advento), e responsorial expressa um pedido de bênção
Deus faz “brilhar sua face” sobre o povo e so- (Sl 67[66],2-3.5-6.8).
bre a humanidade no nome de Jesus. (No dia
3 de janeiro há uma celebração própria do 2. Evangelho: Lc 2,16-21
Santíssimo Nome de Jesus.) O evangelho de hoje menciona dois te-
A solenidade de hoje foi posta sob o pa- mas: a adoração dos pastores junto ao presé-
trocínio de Maria, “Mãe de Deus”, lembrando pio de Belém e a circuncisão de Jesus no oita-
o título de Theotokos, “Genitora (Mãe) de vo dia, acompanhada da imposição de seu
Deus”, que lhe foi dado pelo Concílio de Éfe- nome. O primeiro tema já foi focalizado no
so em 431 d.C. Decerto Deus não tem mãe, evangelho da missa da aurora no Natal, e na
mas escolheu Maria como mãe para o Filho mesma linha podemos destacar, na festa da
que em tudo realiza a obra de Deus. Santifi- Mãe de Deus, que “Maria guardava todos estes
cou em Maria a maternidade quando o Filho fatos e meditava sobre eles no seu coração”.
assumiu a humanidade. A maternidade é, Nossa atenção, porém, vai para o segun-
como a humanidade, capax Dei, capaz de re- do tema, a circuncisão com a imposição do
ceber Deus. Deus é tão grande, que conhece nome, que se harmoniza com o da 2ª leitura.
também o mistério da maternidade, e por Jesus sujeita-se à antiga Lei (cf. 2ª leitura) e
dentro! Para captar isso, talvez tenhamos de recebe o nome dado pelo anjo, ou seja, por
modificar um pouco nosso conceito de Deus. Deus mesmo (Lc 1,31-33; Mt 1,21; cf. Hb
Deus não ama em geral, abstratamente, 1,4-5): “O Senhor salva”. Jesus é o Salvador
mas por meio de pessoas e comunidades con- enviado por Deus à humanidade.
cretas. Só aquilo que é concreto pode ser rea-
lidade. Assim como Maria foi, no seio do 3. II leitura: Gl 4,4-7
povo de Israel, o caminho concreto para o A 2ª leitura é tomada da carta de Paulo
Salvador, comunidades concretas serão por- aos Gálatas, a “carta” (no sentido de docu-
tadoras de Cristo, salvação de Deus para o mento) da liberdade cristã. Cristo veio para
mundo atual. Por isso, Maria é protótipo da nos tornar livres (Gl 5,1). “Nascido de mu-
Igreja e das comunidades eclesiais. lher, nascido sob a Lei” (Gl 4,4), viveu entre
nós sob o regime passageiro que vigorava no
II. Comentários aos textos Antigo Testamento. Vivendo conosco sob o
nº- 319
Deus abençoou os seres humanos e os ani- eram judeus de origem. Já não somos escra-
38
vos, diz Paulo, mas filhos; portanto, livres. O
Filho de Deus tornou-se nosso irmão, nele As ciências das religiões
temos o Espírito que, em nosso coração, ora:
“Abba, Pai” (4,6 – provavelmente uma alusão Giovanni Filoramo e Carlo Prandi
nicou ao povo. Seu Filho nasceu sob a Lei e SAC: (11) 5087-3625
foi circuncidado conforme a Lei. As estrutu- V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
ras políticas e sociais do povo, quando con-
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Roteiros homiléticos
mento para Deus se tornar presente em nossa mundo a Deus. A vida do povo, sua “lei”,
história. Deus mostrou isso em Jesus. E suas tradições, cultura e estruturas políticas e
quando as leis e estruturas são manipuladas sociais devem ser um caminho de Deus e
a ponto de se tornarem injustas, o Filho de para Deus, não um obstáculo. Por isso é pre-
Deus as assume para transformá-las no senti- ciso transformar a vida humana e as estrutu-
do do seu amor. Por isso, Jesus morreu por ras da sociedade quando não servem para
causa da Lei injustamente aplicada a ele. Deus e não condizem com a dignidade que
– Maria, “porta do céu”. Em Jesus, Deus Deus lhes conferiu pelo nascimento de Jesus
quis ter uma mãe. A inserção de Deus em nos- de mulher e sob a Lei.
sa história passa pela ternura materna. Sem – Jesus de Maria, bênção do povo. Para os
esta não se pode construir a história conforme cristãos, o novo ano litúrgico já começou no
o projeto de Deus. Assim, Deus, na “sua” his- 1o domingo do Advento, mas no dia 1o de ja-
tória salvífica, santificou uma dimensão espe- neiro os cristãos participam, como cidadãos,
cificamente feminina. Nas ladainhas, chama- do ano-novo civil com a festa de Maria, Mãe
mos Maria de “Porta do Céu”. Porta para nós do Deus Salvador, Jesus Cristo. Queremos
subirmos e para Deus descer. felicitar de modo especial a Mãe da família
Jesus nasceu de mulher e sob a Lei, de mãe dos cristãos – pois, ao visitarmos hoje a casa
humana e dentro de uma sociedade humana. de nossos amigos, não cumprimentamos pri-
Foi acolhido na sociedade judaica pela circunci- meiro a dona da casa?
são e pela imposição do nome, como teria acon- A Igreja marcar este dia com a festa de
tecido a qualquer indivíduo do sexo masculino Maria, Mãe de Deus, é um voto de paz e bên-
entre nós que tivesse nascido naquela sociedade. ção para o mundo! A bênção maior da parte
Maria é, portanto, mãe do verdadeiro homem e de Deus: o seu Filho, Jesus. Os nossos votos
judeu Jesus de Nazaré, mas nós a celebramos de paz e bênção devem ser a extensão da
hoje como Mãe de Deus. Esse título deve ser en- bênção que é Jesus e que Maria fez chegar até
tendido como “Genitora (é assim que o Concílio nós. Desejamos paz e bênção aos nossos ami-
de Éfeso a chama) do Filho de Deus”. Este Filho gos em Jesus. Então, nossos votos serão pro-
foi igual a nós em tudo, menos no pecado, e vi- fundamente cristãos, não apenas fórmula so-
veu e sofreu na carne de maneira verdadeira- cial. Desejaremos aos nossos semelhantes
mente humana (cf. Hb 4,15; 5,7-8). Duas déca- aquilo que veio até nós em Jesus: o amor de
das depois de Éfeso, o Concílio de Calcedônia o Deus na doação da vida para os irmãos. É
chamou “verdadeiramente Deus e verdadeira- isso que se deve desejar neste dia mundial da
mente homem”. É por ser mãe de Jesus huma- paz. Somente onde reinam os sentimentos de Je-
namente que Maria é chamada Mãe de Deus, sus pode existir a paz que vem de Deus.
pois a humanidade e a divindade em Jesus não
se podem separar. Dando Jesus ao mundo, Ma- Epifania do Senhor
ria faz Deus nascer no meio do povo. Ela é o 7 de janeiro
ponto de inserção de Deus na humanidade.
Toda mulher-mãe é ponto de inserção de vida Onde a estrela
nº- 319
40
do, representado pelos reis magos que vêm
adorar o menino Jesus em Belém. Ele é a luz A Verdade é sinfônica
que brilha não só para o povo oprimido de Aspectos do pluralismo cristão
Israel (como anuncia a 1ª leitura na noite de
Hans Urs von Balthasar
Natal), mas para todos os povos, segundo a
visão do profeta universalista que escreveu o
fim do livro de Isaías. Essa visão recebe um
sentido pleno quando os magos vindos do
Oriente procuram, nos arredores de Jerusa-
lém, o Messias que devia nascer da estirpe de
Davi (evangelho). A 2ª leitura, mediante o tex-
to de Ef 3,2-6, comenta esse fato como revela-
ção do mistério de Deus a Israel e aos pagãos.
Assim, a liturgia de hoje realça o sentido
universal da obra de Cristo. Mas não se trata
do universalismo abstrato, global e midiático
de nosso mundo contemporâneo. A inserção
de Jesus na humanidade, que contemplamos
no domingo passado (na festa da Mãe de
Deus), acontece num ponto bem concreto e
160 págs.
bíblicos
1. I leitura: Is 60,1-6
Como foi recordado na 1ª leitura da noite
nº- 319
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Vida Pastoral
41
Roteiros homiléticos
Judá, que acaba de voltar do exílio babilôni- No novo povo de Deus, não importa ser
co e está iniciando a reconstrução da cidade judeu ou gentio, importa a fé. O Evangelho
e do Templo (Is 60,1). Jerusalém, restaurada de Mateus termina na missão de evangelizar
depois do exílio babilônico, é vista como o “todas as nações” (28,18-20), e desde o início
centro para o qual convergem as caravanas os “magos” prefiguram essa missão universal.
do mundo inteiro. O profeta anuncia a ado- Os doutores de Jerusalém, ao contrário, sa-
ração universal em Jerusalém. Enquanto as biam, pelas Escrituras, onde devia nascer o
nações estão cobertas de nuvens escuras, a Messias – em Belém, a poucos quilômetros
luz do Senhor brilha sobre Jerusalém. Esque- de Jerusalém –, mas não tinham a estrela da
çam-se a fadiga e o desânimo, pois Deus está fé para os conduzir.
perto. As nações devolvem a Jerusalém seus
filhos e filhas que ainda vivem no estrangei- 3. II leitura: Ef 3,2-3a.5-6
ro, e estes oferecem suas riquezas ao Deus As promessas do Antigo Testamento diri-
que realmente salva seu povo. gem-se ao povo de Israel. Deus, porém, vê as
Quinhentos anos depois, os magos (sá- promessas feitas a Israel num horizonte bem
bios, astrólogos) vindos do Oriente darão um mais amplo. Seu plano é universal e inclui
sentido pleno e definitivo ao texto de Isaías: todos os povos, judeus e gentios. Os antigos
a eles o Cristo aparece como “luz” cheia do profetas já tinham certa visão disso, mas os
mistério de Deus. judeus do ambiente de Paulo apóstolo não
pareciam percebê-lo. Paulo mesmo havia
2. Evangelho: Mt 2,1-12 aprendido com surpresa a revelação do gran-
O evangelho narra a chegada dos magos de mistério: também os gentios são chama-
do Oriente que querem adorar o Messias re- dos à paz messiânica. Essa revelação, ele a
cém-nascido, cujo astro eles viram brilhar assume como sua missão pessoal, a fim de
sobre Jerusalém (cf. 1ª leitura). A chegada levar a boa-nova aos gentios.
dos magos e sua volta constituem a moldura
(inclusão) dessa narrativa, cujo centro é a es- III. Pistas para reflexão
tupefação de Herodes e de toda a cidade por A visão do Terceiro Isaías sobre a restau-
causa da notícia que os magos trazem. O ração do povo na luz de Deus que brilha so-
ponto alto é a busca, pelos escribas, de um bre a Cidade Santa realiza-se no povo funda-
texto que aponte para esse fato. O texto em do por Jesus Cristo. Este é o “mistério”, o
questão é Miqueias 5,1: “E tu, Belém, terra de projeto escondido de Deus, o evangelho que
Judá, de modo algum és a menor entre as Paulo levou a judeus e gentios.
principais cidades de Judá, porque de ti sairá Mateus, no evangelho, traduz a fé segun-
um chefe que vai ser o pastor de Israel, o do a qual Jesus é o Messias universal numa
meu povo”. Informado pelos escribas, Hero- narração que descreve a realização da profe-
des encaminha os magos a adorar o recém- cia: astrólogos do Oriente veem brilhar sobre
-nascido em Belém e informá-lo para que ele Belém, a cidade de Davi, a estrela do recém-
também vá (Belém fica a oito quilômetros de -nascido Messias, “rei dos judeus”. Querem
nº- 319
tar os meninos recém-nascidos da região, cerdotes, não enxerga a estrela que brilha tão
tema que será desenvolvido no próximo epi- perto; é obcecado por seu próprio brilho e
sódio de Mateus, igualmente construído em sede de poder. Os reis das nações pagãs che-
•
Vida Pastoral
torno de uma citação do Antigo Testamento. gam de longe para adorar o Menino, mas os
42
chefes de Jerusalém tramam sua morte. As
pessoas de boa vontade, aqueles que real- O Vaticano II e a política
mente buscam o Salvador, encontram-no em
Carlos Signorelli
Jesus, mas os que só gostam de seu próprio
poder têm medo de encontrá-lo.
Significativamente, o medo de Herodes,
o Grande, levá-lo-á a matar todos os meninos
de Belém. A estrela conduziu os magos a uma
criança pobre, que não tinha nada de sensa-
cional. Mas o rei Herodes, cioso de seu po-
der, pensa que Jesus será poderoso e, portan-
to, perigoso. Para eliminar esse “perigo”, o
rei, que tinha matado seus próprios filhos e
sua mulher Mariame, manda agora matar to-
dos os meninos de Belém.
Por que se matam ou se deixam morrer
crianças também hoje? Porque os poderosos
absolutizam seu poder e não querem dar
chances aos pequenos, nem sequer a de vi-
120 págs.
gãos extraídos, fetos usados para produzir cé- Vendas: (11) 3789-4000
lulas que devem rejuvenescer velhos ricaços… 0800-164011
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ano 59
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Roteiros homiléticos
Deus se manifestou numa criança? Por esqui- maritana, da pecadora, da adúltera… Será
sitice, para nos enganar? Nada disso. Salva- que para essas pessoas não brilha alguma es-
ção significa ser libertados dos poderes tirâ- trela em Belém?
nicos que nos escravizam para realizar a li- Será que, numa Igreja renovada, o meni-
berdade que nos permite amar. Pois para no Jesus poderá de novo brilhar para todos
amar é preciso ser livre, agir de graça, não os que vêm de longe, os afastados, como si-
por obrigação nem por cálculo. Por isso, a nal de salvação e libertação?
salvação que vem de Deus não se apresenta
como poder opressor, a exemplo do de Hero- O roteiro para a celebração do Batismo
des. Apresenta-se como antipoder, como do Senhor (no dia 8 de janeiro) encontra-
uma criança sem valor. -se no site da Vida Pastoral: vidapastoral.
O pequenino de Belém é venerado como com.br
rei, mas, no fim do evangelho, esse “Rei” (Mt
25,34) julgará o universo, identificando-se 2º Domingo do Tempo Comum
com os mais pequeninos: “O que fizestes a 14 de janeiro
um desses mais pequenos, que são meus ir-
mãos, a mim o fizestes” (25,40). Quanta lógi- Vocação: busca
ca em tudo isso!
Deus não precisa nos esmagar com seu
poder para se manifestar. Para ser universal,
e convite
prefere o pequeno, pois só quem vai até os I. Introdução geral
pequenos e os últimos é realmente universal. No Brasil, a festa do Batismo do Senhor,
Falta-nos a capacidade de reconhecer no frá- com a qual se dá o encerramento do tempo
gil, naquele que o mundo procura excluir, o do Natal, substitui o primeiro domingo do
absoluto de nossa vida – Deus. Eis a lição que tempo comum, de modo que este começa
os reis magos nos ensinam. com o segundo domingo. A espinha dorsal
O menino nascido em Belém atraiu os da liturgia da Palavra nos domingos do tem-
que viviam longe de Israel geograficamente. po comum é a leitura contínua do evangelho
Mas a atração exercida por Jesus envolve do ano (no caso, Marcos), e os textos evangé-
também os social e religiosamente afastados, licos são ilustrados, na 1ª leitura, por episó-
os pobres, os leprosos, os pecadores e peca- dios do Antigo Testamento. A 2ª leitura não
doras. Todos aqueles que, de alguma manei- se integra nesse sistema e recebe sua temáti-
ra, estão longe da religião estabelecida e aco- ca, de modo independente, da leitura semi-
modada recebem, em Jesus, um convite de contínua das cartas do Novo Testamento
Deus para se aproximar dele. (hoje, a questão da fornicação em Corinto).
Quem seriam esses “longínquos” hoje? O A leitura evangélica está em continuidade
povinho que fica no fundo da igreja ou que com a do Batismo do Senhor. Narra a voca-
não vai à igreja porque não tem roupa decen- ção dos primeiros discípulos de Jesus. Ora,
te. Graças a Deus estão surgindo, nos barra- como o evangelho do ano, Marcos, é mais
nº- 319
cos das favelas, capelas bem semelhantes ao breve que os outros, a liturgia de hoje abre
lugar onde Jesus nasceu e onde a roupa não espaço para o Evangelho de João (normal-
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ano 59
causa problema. Há também os que se afasta- mente lido só na Quaresma e no tempo pas-
ram porque seu casamento despencou (mui- cal). De acordo com o Quarto Evangelho,
tas vezes se pode até questionar se ele foi João Batista encaminha dois de seus discípu-
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Vida Pastoral
realmente válido). Jesus se aproximou da sa- los para Jesus, apontando-o como o Cordeiro
44
de Deus. E quando vão em busca de Jesus,
este lhes responde com o misterioso: “Vinde A catequese do Vaticano
e vede”. A liturgia combina com esse texto a
II aos nossos dias
vocação de Samuel, na 1ª leitura. As duas vo-
cações, porém, são diferentes. No caso de Sa- Luiz Alves de Lima
muel, trata-se da vocação específica do profeta;
no episódio dos discípulos de Jesus, trata-se da
vocação de discípulos para integrar a comuni-
dade dos seguidores. São chamados, antes de
tudo, a “vir” até Jesus para “ver” e a “permane-
cer/morar” com ele. Daí se inicia um processo
de “vocação em cadeia”. Os que foram encami-
nhados pelo Batista até Jesus chamam outros
(“André… foi encontrar seu irmão…”). Nessa
dinâmica global da vocação cristã se situam as
vocações específicas, como a de Simão, que, ao
aderir a Cristo, é transformado em pedra de
arrimo da comunidade cristã.
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Roteiros homiléticos
em Jo 3,22-30). À busca desses discípulos nhor, que logo transforma seu nome em Ce-
corresponde um convite de Jesus para que fas (rocha, “Pedro”), dando-lhe nova identi-
venham ver e permaneçam com ele (Jo dade. Na continuação do episódio (1,45),
1,35-39). E a partir daí segue uma reação encontramos nova “reação em cadeia”. Como
em cadeia (1,41.45). o Batista apresentou seus discípulos a Jesus,
Temos aqui a apresentação tipicamente em seguida os discípulos procuraram outros
joanina da busca do Salvador. Nos outros candidatos. Estes traços da narrativa podem
evangelhos, Jesus se apresenta anunciando a aludir à Igreja das origens, consciente de que
irrupção do reino de Deus. Em João, ele é a o “movimento de Jesus” teve suas origens no
resposta de Deus à busca do ser humano, as- “movimento do Batista” e de que, nas gera-
sim como o Antigo Testamento diz que a Sa- ções futuras, os fiéis já não seriam chamados
bedoria se deixa encontrar pelos que a bus- por Jesus mesmo, mas por seus irmãos na fé.
cam (cf. Sb 6,14). Devemos buscar o encon-
tro com Deus no momento oportuno, en- 3. II leitura: 1Cor 6,13c-15a.17-20
quanto se deixa encontrar (Is 55,6). “Vinde Como foi dito na introdução, a temática da
ver…” é a resposta misteriosa de Jesus à bus- 2ª leitura não é estabelecida em função das
ca dos discípulos que o Batista encaminhou duas outras leituras. Paulo trata da mentalida-
para ele, apontando-o como o “Cordeiro de de da comunidade de Corinto, influenciada
Deus”. Descobrimos, portanto, atrás da cena por certo libertinismo. Liberdade, sim, liberti-
narrada no evangelho (Jo 1,35-39), toda uma nagem, não, é o teor de sua reação. “Tudo é
meditação sobre o encontro com Deus em Je- permitido”, dizem certos cristãos de Corinto, e
sus Cristo, revelação de Deus que supera a Paulo responde: “Mas nem tudo faz bem”
Sabedoria do Antigo Testamento. (6,12). Quem se torna escravo de uma criatura
Pelo testemunho do Batista, os que busca- comete idolatria: assim se dá com quem se vi-
vam o Deus da salvação o vislumbraram no cia nos prazeres do corpo. O ser humano não
Cordeiro de Deus, o Homem das Dores. Que- é feito para o corpo, mas o corpo para o ser
rem saber onde é sua morada (o leitor já sabe humano, e este para Deus: seu corpo é habita-
que sua morada é no Pai; cf. Jo 14,1-6). Jesus ção, templo de Deus, e serve para glorificá-lo.
convida a “vir e ver”. “Vir” significa o passo da A oposição de Paulo à libertinagem sexual
fé (cf. 6,35.37.44.45.65; também 3,20-21 não se deve ao desprezo do corpo, mas à esti-
etc.). “Ver” é termo polivalente, que, no seu ma que ele lhe dedica. O corpo não fica alheio
sentido mais tipicamente joanino, significa a ao enlevo do espírito, antes o sustenta e dele
visão da fé (cf. sobretudo Jo 9). Finalmente, os participa; por isso, qualquer ligação vulgar
discípulos “permanecem/demoram-se” com avilta a pessoa toda. O ser humano todo, tam-
ele (“permanecer” ou “morar” expressa, mui- bém o corpo, é habitáculo do Espírito Santo.
tas vezes, a união vital permanente com Jesus; A pessoa deve ser governada para este fim do
cf. Jo 15,1ss). Os que foram à procura do mis- ser humano integral, membro de Cristo, e não
tério do Salvador e Revelador acabaram sendo ser subordinada às finalidades particulares do
convidados e iniciados por ele. corpo. Absolutizar os prazeres corporais é ido-
nº- 319
Um encontro como este transborda. Leva latria, e esta é uma mensagem que precisa ser
a contagiar os outros que estão na mesma destacada no contexto de nossa “civilização”.
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ano 59
tramos!”). Simão se deixa conduzir até o Se- os discípulos do Batista que surgiram os pri-
46
meiros seguidores de Jesus. O próprio Batista
incentivou dois de seus discípulos a seguir Paulo de Tarso na
Jesus, “o Cordeiro que tira o pecado do mun-
filosofia política atual e
do”. Enquanto se põem a segui-lo, procuran-
do seu paradeiro, Jesus mesmo lhes dirige a outros ensaios
palavra: “Que procurais?” – “Mestre, onde
Enrique Dussel
moras?”, respondem. E Jesus convida: “Vinde
e vede”. Descobrir o Mestre e poder ficar com
ele os empolga tanto, que um dos dois, An-
dré, logo vai chamar seu irmão Pedro para
entrar nessa companhia também. E no dia
seguinte Filipe (o outro dos dois?) chama Na-
tanael a integrar o grupo. A 1ª leitura aproxi-
ma desse relato o que ocorreu, mil anos an-
tes, ao jovem Samuel, “coroinha” do sacerdo-
te Eli no templo de Silo. Deus o estava cha-
mando, mas ele pensava que fosse o sacerdo-
te. Só na terceira vez o sacerdote lhe ensinou
que quem chamava era Deus mesmo. Então
respondeu: “Fala, Senhor, teu servo escuta”.
“Vocação” é um diálogo entre Deus e a
gente – geralmente por meio de algum inter-
240 págs.
tos que Deus nos deu. De nossa parte, haja SAC: (11) 5087-3625
disposição positiva. Importa estar atentos. V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
Os discípulos estavam à procura. Quem não
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Roteiros homiléticos
articulações bem diferentes, revelando a dis- gundo o livro de Jonas. Deus quer a conver-
tinção entre o antigo e o novo. Na 1ª leitura, são de todos, não só do povo de Israel. Por
de Jonas, trata-se de pregação ameaçadora, isso, Jonas deve pregar a conversão em Ní-
•
Vida Pastoral
dirigida à “grande cidade” de Nínive, capital nive, capital do império dos gentios (a Assí-
48
ria). E acontece o que um judeu piedoso
não podia imaginar: a cidade se converte em Como estrelas no céu
consequência da pregação do profeta fujão. Desafios da Pastoral da Educação
Deus chama à conversão, e quem aceita o
chamado é salvo. Marcos Sandrini
O salmo responsorial (Sl 25[24],4ab-
-5ab.6-7bc.8-9) sublinha a importância da
conversão: Deus guia ao bom caminho os pe-
cadores.
2. Evangelho: Mc 1,14-20
Devidamente introduzido pela aclamação,
o evangelho narra o início da pregação de Je-
sus como anúncio da chegada do reino de
Deus e exortação à correspondente conversão.
O Evangelho de Marcos é o evangelho da “ir-
rupção do reino de Deus”. Como Jonas, na 1ª
leitura, Jesus aparece como profeta apocalípti-
co, mas, em vez de uma catástrofe, anuncia a
boa-nova da chegada do Reino e pede conver-
são e fé. E isso com a “autoridade” do Reino
160 págs.
o teu reino, seja feita a tua vontade”. Onde SAC: (11) 5087-3625
reinam o amor e a justiça, conforme a von-
V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
tade de Deus, acontece o reino de Deus. Na
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Roteiros homiléticos
vontade e a cumpre até o fim, até a morte, vida é realidade provisória, que perde sua
ele realiza e traz presente esse reino em sua importância diante do definitivo que se
própria pessoa. Ele é o reino de Deus que se aproxima depressa (Paulo, como os primei-
torna presente. Todo o Evangelho de Mar- ros cristãos em geral, acreditava que Cristo
cos desenvolve essa verdade. voltaria em breve). Na continuação do tex-
No início, o significado de Jesus e de sua to, Paulo mostra o valor de seu celibato
pregação está envolto no mistério, mas, aos como plena disponibilidade para as coisas
poucos, há de revelar-se a quem acreditar na de Cristo – uma espécie de antecipação da
boa-nova, sobretudo quando esta se tornar parúsia (7,32).
cruz e ressurreição. Casamento, prazer, posse, como tam-
Por isso, enquanto, na história de Jonas, bém o contrário de tudo isso, são o revesti-
a aceitação da mensagem faz Deus desistir mento provisório da vida, o “esquema”
do castigo anunciado, em Mc 1 a proclama- (como diz o texto grego) que desaparecerá.
ção da boa-nova exige fé e participação ativa Já temos em nós o germe de uma realidade
no Reino que a partir de agora abre espaço. nova, e esta é que importa. Assim, Paulo
A aceitação da pregação de Jesus faz o ser evoca a dialética entre o provisório e o defi-
humano participar do Reino que ele traz nitivo, o necessário e o significativo, o ur-
presente. Essa adesão ativa é exemplificada gente e o importante. Mas essa dialética
no chamamento dos primeiros seguidores. deve ser formulada novamente em cada ge-
Imediatamente depois de ter evocado a pri- ração e cada pessoa. Nossa maneira de arti-
meira pregação de Jesus, Marcos narra a vo- culá-la não precisa ser, necessariamente, a
cação dos primeiros discípulos, vocação que mesma de Paulo, que pensa na vinda próxi-
os transforma, pois faz dos pescadores de ma do Cristo glorioso. Podemos repartir
peixe “pescadores de homens”. Eles são uma com ele um sadio “relativismo escatológico”
espécie de parábola viva: sua profissão é (“Quid hoc ad aeternitatem?”), porém a ma-
símbolo da realidade do Reino à qual eles neira de relativizar o provisório pode ser di-
estão sendo convidados. E eles abandonam ferente da sua. Relativizar significa “tornar
o que eram e o que tinham – até mesmo o relativo”, “pôr em relação”. O cuidado de
pai no barco… viver bem o casamento ou qualquer outra
realidade humana – o trabalho, o bem-estar
3. II leitura: 1Cor 7,29-31 etc. – deve ser posto em relação com o reino
Em 1Cor 7, Paulo responde a perguntas de Deus e sua justiça.
com relação ao casamento. As respostas,
cheias de bom senso e sem desprezo algum III. Pistas para reflexão
da sexualidade (cf. comentário do domingo O evangelho contém os temas do anún-
passado), revelam um tom de “reserva esca- cio do Reino, da conversão e do seguimen-
tológica”, ou seja: tudo isso não é o mais to. Como o tema da conversão será apro-
importante para quem vive na expectativa fundado na Quaresma, podemos orientar a
da parúsia. Porque “o tempo é breve” reflexão para o tema do seguimento dos
nº- 319
50
continuar dentro do projeto de sua família
ou dispor-se a um serviço mais amplo, lá O gênero
onde a solidariedade o exige. Foi um dilema Uma norma política e cultural mundial
semelhante que Jesus fez surgir para seus
Marguerite A. Peeters
primeiros discípulos (evangelho). Ele anda-
va anunciando o reinado do Pai celeste, en-
quanto eles estavam trabalhando na empre-
sa de pesca do pai terrestre. Jesus os convi-
dou a deixar o barco e o pai e a tornarem-se
pescadores de gente. O reino de Deus preci-
sa de colaboradores que abandonem tudo,
para que cativem a massa humana que ne-
cessita do carinho de Deus.
Esse carinho de Deus é aceito na conver-
são e na fé: conversão para sair de uma ati-
tude não sincronizada com seu amor, e fé
como confiança no cumprimento de sua
promessa. Deus quer proporcionar ao mun-
do seu carinho, sua graça. Não quer a morte
do pecador, e sim que ele se converta e viva.
144 págs.
51
Roteiros homiléticos
“reserva escatológica” (cf. domingo passado), co, para falar do poder profético, e sim do po-
52
der escatológico do “filho de homem” descrito mas para a libertar mais ainda. É claro, está
no livro de Daniel! Ao ler Mc 1,21-28, tem-se falando do celibato assumido, não do celi-
a impressão de que o povo viu em Jesus um bato “levado de carona”, como é, muitas ve-
profeta, o que é confirmado pelas opiniões po- zes, o de parte de nosso clero; porque, se
pulares citadas em Mc 6,15 e 8,28. Mas a pre- não é assumido interiormente, desvia mais
sença da “autoridade” nele esconde algo que o da causa do Senhor do que as preocupações
povo não consegue entender: “Que é isso?” matrimoniais. Bem entendido, porém, o ce-
(1,27). Ao percorrermos o Evangelho de Mar- libato, além de proporcionar liberdade para
cos, descobrimos que a identidade que Jesus Deus aos que o assumem, constitui um lem-
atribui a si mesmo é a do Filho do homem, o brete para os casados, a fim de que, no meio
enviado escatológico de Deus, prefigurado em de suas preocupações, conservem a reserva
Dn 7,13-14. A este pertence a exousía, a “auto- escatológica, que os faz ver melhor o senti-
ridade” (Dn 7,14). Quem percebe, mesmo, a do último de tudo quanto fazem.
identidade de Jesus é o demônio por ele ex-
pulso (Mc 1,24): o demônio reconhece aquele III. Pistas para reflexão
que põe em perigo o seu domínio! Jesus é o profeta do reino de Deus. Mas
No Evangelho de Marcos paira um misté- que é um profeta? Conforme a 1ª leitura, o
rio sobre a figura de Jesus: o “segredo messiâ- profeta é mediador e porta-voz de Deus. Moi-
nico”. Aos demônios (1,25.34; 3,12), aos mi- sés lembra aos israelitas que, quando da mani-
raculados (1,44; 5,43; 7,34; 8,26), aos discí- festação de Deus no monte Sinai (Ex 19), tive-
pulos (8,30; 9,9), Jesus lhes proíbe publicar ram tanto medo, que Deus precisou estabele-
o exercício da “autoridade” que presencia- cer um intermediário para falar com eles. Esse
ram. Se Jesus ensina com autoridade e poder intermediário foi Moisés, o primeiro “profeta
efetivo, que confirmam sua palavra profética, bíblico”. E ele ensina que sempre haverá pro-
devemos enxergar nele o “Filho do homem”, fetas em Israel para serem mediadores e porta-
que vem com os plenos poderes de Deus. -vozes de Deus, de modo que os israelitas já
não precisam recorrer aos adivinhos cananeus,
3. II leitura: 1Cor 7,32-35 que consultam as divindades mediante sortilé-
No espírito da “reserva escatológica” gios, búzios, necromantes (que evocam espíri-
que vimos domingo passado, dando impor- tos) etc. O profeta é aquele que fala com a au-
tância não tanto ao estado de vida, mas an- toridade de Deus, pelo qual é enviado. Muitas
tes à diligência escatológica com a qual é vezes, sua palavra é corroborada por Deus por
assumido, Paulo explica que o estado celi- meio de sinais milagrosos.
batário lhe permite uma dedicação mais in- No evangelho, Jesus é apresentado como
tensa àquilo que se relaciona, de modo ime- porta-voz de Deus e de seu reino. Deus mos-
diato, com o Reino escatológico. Não con- tra que está com ele. Dá-lhe “poder-autorida-
dena, porém, as “mediações do Reino”, en- de” para fazer sinais. Na sinagoga de Cafar-
tre as quais o casamento, para o qual Jesus naum, Jesus expulsa um demônio, e o povo
mesmo deu instruções (1Cor 7,10). O celi- reconhece: “Um ensinamento novo, dado
nº- 319
nhor nos encontre ocupados com sua causa, mostrar a autoridade do profeta, mas não
Paulo aconselha o estado de vida que deixa são propriamente sua missão. Servem para
nosso espírito mais livre para pensar nisso. mostrar que Deus está com ele, mas sua ta-
•
Vida Pastoral
Conselho não para truncar nossa liberdade, refa não é fazer coisas espantosas. Sua tarefa
53
Roteiros homiléticos
em sinais e obras, que o poder de Deus su- dade de fazer tudo o que têm direito de
pera o mal: no empenho pela justiça e no fazer. Paulo não concorda: nem sempre
•
ano 59
alívio do sofrimento, no saneamento da so- devo fazer uso de meu direito. A caridade,
ciedade e na cura do meio ambiente adoen- a paciência para com o menos forte, com o
inseguro na fé, valem mais que meu direi-
•
54
II. Comentários aos textos No início de seu ministério, Jesus assume
bíblicos o sofrimento, curando-o. Mostra os sinais da
aproximação de Deus ao sofredor. Sinais fei-
1. I leitura: Jó 7,1-4.6-7 tos com a “autoridade” que já comentamos
Jó foi fortemente provado por Deus. Per- no domingo passado. Ao sair do ofício sina-
deu tudo, até a saúde. Seus amigos não o con- gogal, naquele dia de sábado, Jesus se dirige
seguem consolar (Jó 2,11). Jó contempla sua à casa de Pedro. Lá, ergue da febre a sogra do
vida com amargura e só consegue pedir que a apóstolo. E ela se põe a servir, demonstrando
aflição não seja demais e Deus lhe dê um pou- assim sua transformação. Depois, ao anoite-
co de sossego. A vida é um “serviço de merce- cer, quando termina o repouso sabático, as
nário”, diz. Como os boias-frias, ele sempre pessoas trazem a Jesus os seus enfermos. Je-
leva a pior. Desperta cansado e, deitado, não sus acolhe a multidão em busca de cura:
consegue descansar, por causa das feridas. novo sinal de sua misteriosa “autoridade”. Os
Que Deus lhe dê um pouco de sossego… endemoninhados, os maus espíritos reconhe-
Procurando uma resposta para o mistério cem seu adversário, mas ele lhes proíbe pro-
do sofrimento, os amigos de Jó dizem que os palar o que sabem (cf. domingo passado). E
justos são recompensados e os ímpios, casti- quando, depois, Jesus se retira para se encon-
gados. Mas Jó protesta: ele não é um ímpio. A trar com o Pai e os discípulos o vêm buscar
teoria da prosperidade dos justos, a “teologia para reassumir sua atividade em Cafarnaum,
da retribuição”, não se verifica na realidade ele revela que a vontade de seu Pai o empurra
(21,5-6). Menos ainda o convence o pedante para outros lugares. Ele está inteiramente a
discurso de Eliú, tratando de mostrar o cará- serviço do anúncio do Reino, com a “autori-
ter pedagógico do sofrimento (cap. 32-37). dade” que o Pai lhe outorgou.
Os amigos de Jó não resolvem nada. Vendem No fim de seu ministério, Jesus assumirá
conselhos, mas não se compadecem. Suas o sofrimento, sofrendo-o. Aí, sua compaixão
palavras são pimenta na ferida. se torna realmente universal. Supera de longe
Por outro lado, mesmo amaldiçoando o aquilo que aparece no livro de Jó. Se este nos
próprio nascimento, Jó não amaldiçoa Deus; ao mostra que Deus está presente onde o ser hu-
contrário, reconhece e louva sua sabedoria e mano sofre (e isso já é grande consolação),
suas obras na criação: o abismo de seu sofri- Jesus nos mostra que Deus conhece o sofri-
mento pessoal não lhe fecha os olhos para a mento do ser humano por experiência.
grandeza de Deus! E é exatamente por este lado Assim como o livro de Jó, Jesus não apre-
que entrará sossego na sua existência. Pois Deus senta uma explicação teórica do sofrimento.
se revelará a ele, tornar-se-á presente em seu Neste sentido, concorda com os filósofos
sofrimento – ao contrário de seus amigos sabi- existencialistas: sofrer faz parte da “condição
chões –, e essa experiência do mistério de Deus humana”. Não há explicação, mas, sim, solu-
fará Jó entrar em si, no silêncio (42,1-6). ção: Jesus assume o sofrimento. No livro de
Jó, Deus se digna olhar para o ser humano
2. Evangelho: Mc 1,29-39 que sofre. Em Jesus Cristo, ele participa de
nº- 319
com seus gestos e ações que falam de Deus. cial. 1Cor 8-10 é uma unidade que trata da
55
Roteiros homiléticos
questão sobre se o cristão pode sempre fazer mos com prazer de algumas coisas aparente-
as coisas que, em si, não são um mal. Trata-se mente cabíveis; e a própria gratuidade será a
das carnes que sobravam dos banquetes ofe- nossa recompensa, pois “tudo é graça”.
recidos pela cidade em honra das divindades
locais. Essas carnes eram, depois da festa, III. Pistas para reflexão
vendidas no mercado por “preço de banana”. As leituras de hoje estão interligadas por
O cristão, dizem os “esclarecidos”, pode um fio quase imperceptível: enquanto Jó se
comprá-las e comê-las sem problema, já que enche de sofrimento até o anoitecer (1ª leitu-
não acredita nos ídolos. Paulo, porém, pensa ra), Jesus cura o sofrimento até o anoitecer
diferente: a norma não é a liberdade, mas a (evangelho). O conjunto do evangelho mos-
caridade (cf. Gálatas 5,13: usemos da “liber- tra Jesus empenhando-se, sem se poupar,
dade para nos tornar escravos de nossos ir- para curar os enfermos de Cafarnaum. E, no
mãos”). Se o uso de nossa liberdade causa a dia seguinte, o poder de Deus que ele sente
queda do “fraco na fé”, que tem ainda resquí- em si o impele para outros lugares, sem se
cios de sua tradição pagã, devemos conside- deixar “privatizar” pelo povo de Cafarnaum.
rar a sensibilidade de nosso irmão. A paixão de Jesus é deixar efluir de si o poder
Paulo não concorda com a pretensa liber- benfazejo de Deus. Ele assume, sem limites,
dade dos coríntios para fazerem tudo que o sofrimento do povo. Ele sabe que isso é sua
têm direito de fazer. Existe o aspecto objeti- missão: “Foi para isso que eu vim”. Não pode
vo (carne é carne e ídolos não existem) e o recusar a Deus esse serviço.
aspecto subjetivo (alguém menos instruído na Nosso povo, muitas vezes, vê nas doen-
fé talvez coma as carnes idolátricas num espí- ças e no sofrimento um castigo de Deus. Mas
rito de superstição; 8,7). Portanto, diz Paulo, quando o próprio Enviado de Deus se esgota
nem sempre devo fazer uso de meu direito. E para aliviar as dores do povo, como essas
alega seu próprio exemplo: ele teria o direito doenças poderiam ser um castigo divino?
de receber gratificação por seu apostolado, Não serão sinal de outra coisa? Há muito so-
mas, como tal gratificação poderia ser mal in- frimento que não é castigo, mas, simples-
terpretada, prefere ganhar seu pão trabalhan- mente, condição humana, condição da cria-
do. A gratificação de seu apostolado consiste tura, além de ocasião para Deus manifestar
no prazer de pregar o evangelho de graça. seu amor. O evangelista João dirá que a
Paulo teria os mesmos direitos dos outros doença do cego não vem de pecado algum,
apóstolos: levar consigo uma mulher cristã mas é oportunidade para Deus manifestar sua
(9,5), ser dispensado de trabalho manual glória (Jo 9,3; cf. 11,4).
(9,6), receber salário pelo trabalho evangéli- Por mais que o ser humano consiga domi-
co (9,14; cf. a “palavra do Senhor” a este res- nar os problemas de saúde, não consegue ex-
peito, Mt 10,10). Entretanto, prefere anun- cluir o sofrimento, pois este tem outra fonte.
ciar o evangelho de graça, para que ninguém Mas é verdade que o egoísmo aumenta o sofri-
suspeite de motivos ambíguos. Ora, essa ati- mento. O fato de Jesus apaixonadamente se
tude não é inspirada apenas por prudência, entregar à cura de todos os males, também em
nº- 319
mas por paixão pelo evangelho: “Ai de mim outras cidades, é uma manifestação do Espírito
se eu não pregar o evangelho… Qual é meu de Deus que está sobre ele e que renova o
•
ano 59
afeto por nosso irmão fraco na fé, desistire- 53,4 acerca do Servo sofredor: “Ele assumiu
56
nossas dores e carregou nossas enfermidades” não poderia tocar no doente de pele. Ele não
(Mt 8,17). E, se pelo pecado do mundo, as do- depende da Lei para realizar o bem da pessoa.
res se transformam num mal que oprime a Por autoridade própria, reintegra o ser huma-
alma, logo à frente Jesus se revelará como no que a letra da Lei marginalizava.
aquele que perdoa o pecado (cf. Mc 2,1-12). Este tema convida a uma catequese sobre
Também se hoje acontecem curas e ou- a reintegração dos que são marginalizados.
tros sinais do amor apaixonado de Deus que Para que nós, como membros de Cristo, pos-
se manifesta em Jesus Cristo, é preciso que samos realmente vencer a marginalização, será
reconheçamos nisso os sinais do Reino que preciso agir com uma autoridade que esteja
Jesus vem trazer. Não enganemos as pessoas acima das convenções constrangedoras do sis-
com falsas promessas de prosperidade, que tema em que vivemos. Precisamos encarnar de
até causam nos sofredores um complexo de modo operante essa compaixão reintegradora,
culpa (“Que fiz de errado? Por que mereci neutralizando os mecanismos de marginaliza-
isso?”). Mas, em meio ao mistério da dor, de- ção e exclusão com a força divina da verdadei-
diquemo-nos a dar sinais do amor de Jesus e ra solidariedade, baseada no amor.
de seu Pai. A 2ª leitura continua o tema de domingo
passado, sobre as carnes oferecidas aos ídolos.
6º Domingo do Tempo Comum Paulo se apresenta a si mesmo como exemplo,
11 de fevereiro pois o pregador deve ser a ilustração daquilo
que prega. O apóstolo quer agradar a todos,
aqui uma indicação velada da personalidade banhar-se no rio Jordão, um riacho, em com-
de Jesus. Autoridade e compaixão, duas quali- paração com os rios da capital de sua terra,
•
ano 59
dades dificilmente compatíveis no ser huma- Damasco. Mas, aconselhado pelos servos, o
no, são as feições divinas que se deixam entre- homem banha-se, assim mesmo, no rio Jor-
ver no agir de Jesus. E revela-se sua superiori- dão e fica curado: “Sua carne tornou-se se-
•
Vida Pastoral
57
Roteiros homiléticos
Em Israel, a lepra causava exclusão da co- mento humano). Mas o homem não é capaz
munidade e suspeita de algum pecado. Em de silenciar o fato. Quem conseguiria escon-
contraste com isso, o salmo responsorial (Sl der tanta felicidade? Ele, até então marginali-
32[31],1-2.5.11) canta a alegria de ser per- zado, encontrou a reintegração e aproveitou-
doado e readmitido. -a para contar o que lhe acontecera. Mais:
Jesus foi ocupar o lugar do doente de pele,
2. Evangelho: Mc 1,40-45 nos “lugares desertos” (1,45).
O canto de aclamação ao evangelho fala Este episódio faz pressentir a crescente e
de Deus que visita o seu povo (Lc 7,16). É mortal oposição das autoridades religiosas:
isso que acontece quando Jesus vai aos luga- Jesus sabe o que é o bem do ser humano me-
res ermos, onde encontra um doente de pele lhor do que a Lei segundo a interpretação dos
bem diferente do da 1ª leitura, Naamã, que escribas. Por autoridade própria, reintegra a
procurou Eliseu com pompa e vaidade. No pessoa que a letra da Lei marginalizava. Res-
evangelho, Jesus mesmo vai até o lugar onde taura a comunhão com o excomungado, pas-
o doente vive excluído, marginalizado. No sando para trás os que tinham o monopólio
exercício da “autoridade” divina sobre as for- da reintegração. Aceitar este Jesus significa
ças do mal e, ao mesmo tempo, levado por aceitar alguém que supera as mais altas auto-
uma compaixão humana que não deixa de ridades religiosas. Nesse sentido, a cura da
ser divina, Jesus quebra o tabu da lepra, toca doença de pele funciona como um sinal: sig-
o doente e faz desaparecer a enfermidade. Na nifica que, de fato, Jesus está acima das pres-
opinião do povo, a doença designada como crições legais e pode prescindir delas.
lepra devia ser obra de algum espírito muito
ruim. Jesus quebra esse tabu. O doente reco- 3. II leitura: 1Cor 10,31-11,1
nhece em Jesus misteriosa “autoridade”, seu Ao fim da discussão sobre a carne consa-
poder sobre os espíritos maus. “Se quiseres, grada aos ídolos (1Cor 8-10; cf. domingos an-
tens o poder de me purificar” (Mc 6,40). Jesus teriores), Paulo tira as conclusões práticas.
não pensa nas severas restrições da Lei, só Comprar carne desses banquetes no mercado,
sente compaixão, aquela qualidade divina sem ninguém o saber, pode parecer sem im-
que ele encarna. Apesar da proibição da Lei, portância (10,25). Se, porém, alguém o sabe e
toca no doente de pele, dizendo: “Eu quero, sê se escandaliza, então não se deve comer dessa
purificado”. E a cura sucede. Jesus dá um si- carne, por amor ao fraco na fé (10,28-29),
nal do Reino. Se ele cura pelo “poder-autori- pois não seria possível comê-la agradecendo a
dade” do Filho do homem, não é preciso pri- Deus (10,30). Daí a atitude geral: fazer tudo
meiro consultar os guardiões da Lei. Basta de sorte que seja um agradecimento a Deus, o
que, depois de receber o benefício de Deus, o que acontece quando é para o bem dos outros.
doente ofereça o sacrifício de agradecimento, Por fim, Paulo atreve-se a apresentar-se como
conforme o rito costumeiro. exemplo, sendo Cristo o exemplo dele (cf.
Como aos exorcizados, Jesus proíbe ao 1Cor 11,1; Fl 3,17).
curado publicar o que sua “autoridade” ope-
nº- 319
dade. Jesus lhe proíbe publicar o ocorrido, ção socioeconômica: a lei do mercado, da
porque a publicidade desvia a percepção da competitividade. Quem não consegue com-
verdadeira personalidade de Jesus (que não petir deve desaparecer, quem não consegue
•
Vida Pastoral
apenas cura, mas também assume o sofri- consumir deve sumir. Escondemos favelas
58
por trás de placas publicitárias. Que os feios, seada no “poder-autoridade” que Jesus detém
os deficientes, os idosos, os doentes de aids como enviado de Deus: “Se quiseres, tens o
não poluam os nossos cartões-postais! poder de me purificar” (Mc 1,40). Jesus passa
Em tempos idos, a exclusão muitas vezes por cima das prescrições levíticas, toca no
provinha da impotência diante da enfermida- doente de pele e “purifica-o” por sua palavra,
de ou, também, da superstição. Em Israel, os em virtude da autoridade que lhe é conferida
chamados leprosos eram excluídos e margi- como “Filho do homem” (= “executivo” de
nalizados, como ilustra abundantemente a Deus, cf. Mc 2,10.28).
legislação de Lv 13-14. Enquanto não se ti- Há quem pense que os mecanismos au-
vesse constatado a cura, por complicado ri- torreguladores do mercado são o fim da his-
tual, o doente de pele era considerado impu- tória, a realização completa da racionalidade
ro, intocável. Jesus, porém, toca no homem humana. E os que são (e sempre serão) ex-
doente e o cura. Sinal do reino de Deus. Jesus cluídos por esse processo, onde ficam? Não
torna o mundo mais conforme ao sonho divi- será tal raciocínio o de um varejista que se
no, pois Deus não deseja sofrimento nem dis- imagina o criador do universo? A liturgia de
criminação. O Antigo Testamento pode não hoje nos mostra outro caminho, o de Jesus:
ter encontrado outra solução para esses solidarizar-se com os marginalizados, os ex-
doentes contagiosos que a marginalização, cluídos, tocar naqueles que a “lei” proíbe to-
mas Jesus mostra que novo tempo começou. car, para reintegrá-los, obrigando a sociedade
Começou, mas não terminou. Reintegrar a se abrir e a criar estruturas mais acolhedo-
os marginalizados não foi uma fase passagei- ras, mais messiânicas.
ra no projeto de Deus, como os presentinhos
dos políticos nas vésperas das eleições. O 1º Domingo da Quaresma
plano messiânico continua por meio do povo 18 de fevereiro
messiânico. Devemos continuar inventando
soluções para toda e qualquer marginaliza-
ção, pois somos todos irmãos e irmãs. A restauração da
Seremos impotentes para excluir a exclu-
são, como os antigos israelitas em relação à humanidade em
doença de pele? Que fazer com os criminosos
perigosos, viciados no crime? O fato de ter de
marginalizar alguém é reconhecimento da
Cristo e o batismo
inadequação de nossa sociedade. Toda forma I. Introdução geral
de marginalização é denúncia contra nossa Estamos iniciando a Quaresma, tempo de
sociedade e, ao mesmo tempo, um desafio. conversão em vista da celebração do mistério
Muito mais ainda em se tratando de pessoas pascal. Tempo de volta ao nosso “primeiro
inocentes. A marginalização é sinal de que não amor”, nosso projeto de vida assumido dian-
está acontecendo o que Deus deseja. Aonde te de Deus e Jesus Cristo. As leituras deste
existe marginalização, o reino de Deus ainda domingo ensinam-nos a acreditar na possibi-
nº- 319
não chegou, pelo menos não completamente. lidade da renovação de nossa vida cristã.
E aonde chega o reino de Deus, a marginaliza- A liturgia de hoje se inspira na catequese
•
ano 59
ção já não deve existir. Por isso, Jesus reintegra batismal. Nos primórdios da Igreja, a Qua-
os marginalizados, como é o caso do doente resma era preparação para o batismo, admi-
do evangelho de hoje, dos pecadores, publica- nistrado na noite pascal. O batismo era visto
•
Vida Pastoral
nos, prostitutas… Essa reintegração está ba- como participação na reconciliação operada
59
Roteiros homiléticos
pelo sacrifício de Cristo por nós (cf. Rm 3,21- ção, melhor que a anterior, pois acompanha-
26; 5,1-11; 6,3 etc.). No mesmo espírito, a da de um pacto de proteção. O arco-íris que,
liturgia renovada do Concílio Vaticano II in- no fim do temporal, espontaneamente nos
siste em que, na noite pascal, sejam batizados alegra é o sinal natural dessa aliança.
alguns novos fiéis, de preferência adultos, e O salmo responsorial (Sl 25[24],4bc-
todos os fiéis façam a renovação de seu com- -5ab.6-7bc.8-9) lembra a fidelidade de Deus
promisso batismal. Essa insistência na reno- ao seu amor. O íntimo ser de Deus é, ao mes-
vação da vida batismal faz sentido, pois, en- mo tempo, bondade e justiça: “Ele reconduz
quanto não tivermos passado pela última ao bom caminho os pecadores, aos humildes
prova, estamos sujeitos à desistência. Como à conduz até o fim, em seu amor”. Por essa ra-
humanidade toda, no tempo de Noé, tam- zão, todos os batizados renovam, na celebra-
bém a cada um, batizado ou não, Deus dá ção da Páscoa, seu compromisso batismal.
novas chances: eis o tempo da conversão.
A liturgia de hoje é animada por um espí- 2. II leitura: 1Pd 3,18-22
rito de confiança. Ora, confiança significa en- A segunda leitura faz parte da catequese
trega: corresponder ao amor de Deus por batismal que caracteriza a 1ª carta de Pedro. O
uma vida santa (oração do dia). É claro, de- batismo supõe a transmissão do credo. Assim,
vemos sempre viver em harmonia com Deus, 1Pd 3,18-4,6 contém os elementos do primiti-
correspondendo ao seu amor. Na instabilida- vo credo: Cristo morreu e desceu aos infernos
de da vida, porém, as forças do mal nos apa- (3,18-19), ressuscitou (3,18.21), foi exaltado
nham desprevenidos. Mas a Quaresma é um ao lado de Deus (3,22), julgará vivos e mortos
“tempo forte”, em que convém pôr à prova o (4,5). Tendo ele trilhado nosso caminho até a
nosso amor, esforçando-nos mais intensa- morte, nós podemos seguir seu caminho para
mente por uma vida santa. a vida (3,18). O batismo, que lembra o dilúvio
no sentido contrário (salvação em vez de des-
II. Comentários aos textos truição), purifica a consciência e nos orienta
bíblicos para onde Cristo nos precedeu.
Jesus, porém, não vai sozinho. Leva-nos
1. I leitura: Gn 9,8-15 consigo. Ele é como a arca que salvou Noé e os
As águas do dilúvio representavam, para seus das águas do dilúvio. Com ele somos
os antigos, um desencadeamento das forças imersos no batismo e saímos dele renovados,
do mal. Mas quem tem a última palavra é o numa nova e eterna aliança. Ao fim da Qua-
amor divino. Deus não quer destruir o ser resma, serão batizados os novos candidatos à
humano, impõe limites ao dilúvio e já não fé. Na “releitura” do dilúvio feita pela 1ª carta
voltará a destruir a terra. O dilúvio é o sím- de Pedro, a imagem da arca está num contexto
bolo do juízo de Deus sobre este mundo, que lembra os principais pontos do credo: a
mas, acima de tudo, está a sua misericórdia, morte de Cristo e sua descida aos infernos
simbolizada pelo arco-íris. No fim do dilú- (para estender a força salvadora até os justos
vio, Deus faz uma aliança com Noé e sua des- do passado); sua ressurreição e exaltação
nº- 319
cendência, a humanidade inteira: apesar da (onde ele permanece como Senhor da história
presença do mal, ele não voltará a destruir a futura, até o fim). Batismo é transmissão da fé.
•
ano 59
no um lugar para morar. Faz uma nova cria- foi investido por Deus com o título de “Filho
60
amado” e com seu beneplácito, que é, na rea- notícia? Exatamente por isso. Pois, como
lidade, a missão de realizar no mundo aquilo mostram os noticiários da TV, estamos muito
que faz a alegria de Deus: a salvação de todos mais sintonizados com notícias ruins do que
os seus filhos. Assim, a missão de Jesus co- com notícia boa. Conversão não é a mesma
meça com a vitória sobre o mal, o qual se coisa que penitência, como às vezes se traduz
opõe à vontade de seu Pai. em Mc 1,15, sem razão. Conversão significa
O mal tem muitas faces e, além disso, dar nova postura à nossa vida e nosso cora-
uma coerência interior que faz pensar numa ção, “deixar para lá” a imagem de um Deus
figura pessoal, embora não visível no mun- ameaçador para nos voltarmos a ele e a seu
do material. Essa figura chama-se “satanás”, reinado com um coração alegre e confiante.
o adversário, ou “diabo”, destruidor, pre-
sente desde o início da humanidade. Impe- III. Pistas para reflexão
lido pelo Espírito de Deus, Jesus enfrenta no Celebramos o 1º domingo da Quaresma.
deserto as forças do mal – satanás e os ani- Muitos jovens não sabem o que é a Quares-
mais selvagens –, mas vence, e os anjos do ma. Nem sequer sabem de onde vem o carna-
Altíssimo o servem. A “provação” de Jesus val, antiga festa do fim do inverno (no hemis-
no deserto, depois de seu batismo por João, fério norte) que, na cristandade, se tornou a
prepara o anúncio do Reino. Aproxima-se a despedida da fartura antes de iniciar o jejum
grande virada do tempo: Jesus anuncia a da Quaresma.
boa-nova do Reino. Deus oferece novas A Quaresma (do latim quadragesima) sig-
chances. Incansavelmente deseja que o ser nifica um tempo de 40 dias vivido na proxi-
humano, embora seja pecador, viva (cf. Ez midade do Senhor, na entrega a Deus. Depois
18,23). Sua oferta tem pleno sucesso com de ser batizado por João Batista no rio Jor-
Jesus de Nazaré. Este é verdadeiramente seu dão, Jesus se retirou ao deserto de Judá e je-
Filho (Mc 1,11). Vitória escondida, como juou durante 40 dias, preparando-se para
convém na primeira parte de Marcos, tempo anunciar o reino de Deus. Vivia no meio das
do “segredo messiânico”. feras, mas os anjos de Deus cuidavam dele.
Nos seus 40 dias de deserto, Jesus resu- Preparando-se desse modo, Jesus assemelha-
me a caminhada do povo de Israel e antecipa -se a Moisés, que jejuou durante 40 dias no
também seu próprio caminho de servo do monte Horeb (Ex 24,18; 34,28; Dt 9,11 etc.),
Senhor. A tentação no deserto transforma-se e a Elias, que caminhou 40 dias, alimentado
em situação paradisíaca: Jesus é o novo Adão, pelos corvos, até chegar a essa montanha
vencedor da serpente. Seu chamado à con- (1Rs 19,8). O povo de Israel peregrinou du-
versão é um chamado à fé e à confiança. Nas rante 40 anos pelo deserto (Dt 2,7), alimen-
próximas semanas o acompanharemos em tado pelo Senhor.
sua subida a Jerusalém, obediente ao Pai. Na Quaresma, deixamos para trás as
Será a verdadeira prova, na doação até a mor- preocupações mundanas e priorizamos as de
te, morte de cruz. E, “por isso, Deus o exal- Deus. Vivemos numa atitude de volta para
tou”… (cf. Fl 2,9). Deus, de conversão. Isso não consiste neces-
nº- 319
Assim preparado, Jesus inicia o anúncio sariamente em abster-se de pão, mas sobretu-
do reino de Deus e pede conversão e fé no do em repartir o pão com o faminto e viver
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ano 59
evangelho, o euangélion, a alegre notícia (cf. todas as demais formas de justiça. Tal é o ver-
3º domingo do tempo comum). Que ele dadeiro jejum (Is 58,6-8).
exorte a acreditar na novidade, a gente enten- A Igreja, desde seus inícios, viu nos 40
•
Vida Pastoral
de. Mas por que conversão, se se trata de boa dias de preparação de Jesus uma imagem da
61
preparação dos candidatos ao batismo. As- amizade enganadora: o livro de Jó; Como
sim como Jesus, depois desses 40 dias, se en- ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de
tregou à missão recebida de Deus, os catecú- Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler
menos eram, depois de 40 dias de prepara- o livro de Zacarias; Como ler o livro das
ção, incorporados a Cristo pelo batismo, para Lamentações; A arte de viver e ser feliz;
participar da vida nova. O batismo era cele- Deus se revela em gestos de solidariedade;
brado na noite da Páscoa, noite da ressurrei- A origem do sofrimento do pobre. E-mail:
ção. E toda a comunidade vivia na austerida- luizalexandrerossi@yahoo.com.br
de material e na riqueza espiritual, preparan-
do-se para celebrar a ressurreição.
A meta da Quaresma é a Páscoa, o batis- I. Introdução geral
mo, a regeneração para uma vida nova. Para A obediência é uma das maiores virtudes
os que ainda não foram batizados – os cate- do discípulo de Jesus. No entanto, geralmen-
cúmenos –, isso se dá no sacramento do ba- te queremos seguir Jesus de longe. Usufruin-
tismo na noite pascal; para os já batizados, na do, é verdade, de sua presença, mas a uma
conversão que sempre é necessária na vida distância considerável e confortável para não
cristã. Daí o sentido da renovação do com- ouvir a sua voz de Mestre. Escutar e, ato con-
promisso batismal e do sacramento da recon- tínuo, praticar tudo quanto o Mestre falou é
ciliação nesse período. sinal de compromisso e de maturidade. Ou-
Conversão e renovação, se preciso tam- vir a voz de Deus é primordial e, por que não
bém arrependimento por nossas infidelidades, dizer, o primeiro aprendizado para também
mas o tom principal é a alegria pela boa-nova aprendermos a ouvir uns aos outros.
e por Deus que, em Cristo, renova nossa vida.
II. Comentários aos textos
2º Domingo da Quaresma bíblicos
25 de fevereiro
Theological Seminary (Califórnia, EUA). É ficação que é a vida. Abraão caminha como
professor no programa de Mestrado e se visse o invisível e, por isso, seus passos
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ano 59
PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a cessariamente, o Deus da vida, e não da mor-
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te. O sacrifício de Isaac, seu filho, correspon- cotidiano com a voz do nosso Mestre.
deria à anulação de projeto de vida de Deus. Jesus sobe a montanha para viver uma
A vocação de Abraão é ser um construtor de experiência inusitada. Lá ele, diante dos
vida, não um artífice da morte. Sacrifícios olhos estarrecidos dos três discípulos, se
humanos, tanto ontem como hoje, são inad- transfigura. Suas vestes são mudadas e pas-
missíveis, e, consequentemente, o texto pare- sam a se parecer com aquelas dos mártires
ce reagir ao culto dos reis ao deus Moloc ou a (cf. Ap 3,15.18). No entanto, para além da
outras divindades que podem ter incluído sa- transfiguração, aparecem também Elias e
crifícios humanos não só em Israel e Judá, Moisés. A presença deles vem confirmar o ca-
mas também em seus arredores. minho de Jesus na direção do conflito final. A
presença deles indica que a sua missão não é
2. Evangelho: Mc 9,2-10 marcada pela neutralidade. De forma contrá-
Na transfiguração relatada no Evangelho ria a essa percepção, a vida de Jesus transcor-
de Marcos, a passagem-chave é a exortação re num caminho marcado pelo conflito e, no
dirigida aos três discípulos: Pedro, Tiago e conflito, assume uma posição de solidarieda-
João. Uma expressão/exortação que do pas- de a favor das vítimas que o conduzirá inevi-
sado reverbera com força, atravessando tem- tavelmente à morte.
po e espaço e nos alcançando com igual in- Todavia, a missão de Jesus não era a mes-
tensidade: “Escutai-o”. Na Quaresma se faz ma de Pedro. Quantas e quantas vezes nossas
necessário abrir os ouvidos para escutar com visões e interesses se distanciam do projeto de
verdadeira atenção. Não se fazem discípulos Jesus? Pedro, diante de uma experiência fan-
que fecham os ouvidos às palavras de seu tástica, pensa que o alto da montanha é o me-
mestre. Todo discípulo é, primeiramente, de lhor lugar para permanecer. Sente o desejo de
fato e de verdade, um ouvinte. fazer tendas, estabelecer-se ali mesmo e viven-
Todavia, é necessário também ouvir os ou- ciar a vida cristã como se fosse um eterno reti-
tros. Não vivemos isolados em ilhas. Somos ro, longe do barulho das pessoas, das cidades
seres relacionais e, do ponto de vista cristão, e vilas. Um ambiente ideal para viver de con-
vivemos em comunidades. Tudo leva a consi- templação. Pedro, porém, ouvia tão somente a
derar o outro como alguém que possibilita o própria voz. Tinha um projeto pessoal que se
diálogo: falamos e ouvimos a fim de construir distanciava muitissimamente do projeto de Je-
verdadeira humanidade. Às vezes fica a im- sus. Quando ouvimos a própria voz, deixamos
pressão de que temos grande facilidade de ou- de ouvir a voz de Deus. Nesse sentido, os ruí-
vir os meios de comunicação, discursos os dos que nos atrapalham não são somente ex-
mais diversos, até mesmo alguma música. Po- ternos, mas também internos.
rém, não temos a mesma facilidade para escu- Descer a montanha será, para os discí-
tar alguém. Uma multidão de sons pode po- pulos, muito mais difícil do que subi-la.
voar nosso interior, desde que não sobre espa- Eles se acostumariam facilmente com a zona
ço para os sons de irmãos e de irmãs. Transfor- de conforto proporcionada pela experiência
mamo-nos em consumidores de ruídos e, ne- religiosa e da experiência ficariam reféns.
nº- 319
sos próprios contextos é o maior dos nossos dade conflituosa. Mas se fazia necessário
desafios. Acolher a palavra de Jesus requer descer a montanha. É justamente em meio
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tempo e qualidade de tempo. Caso contrário, ao povo que se vive e se faz missão. Jesus
Vida Pastoral
corremos o risco de confundir os ruídos do bem sabia que a boa notícia não poderia fi-
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car escondida. Descer a montanha traz o impedir Deus de manifestar seu amor para
sentido de fazer o caminho para dentro da com a humanidade. Cristo, morto e ressus-
realidade. Toda a mensagem de Jesus nasce citado, é o grande artífice do projeto divino.
da realidade política, social, econômica e re- Por meio dele, e somente por ele, a comuni-
ligiosa. Ele jamais nega a realidade, pois dade pode se aproximar do amor de Deus.
vive para transformá-la. Nesse caso, o coti- Em Romanos, a vitória pertence a Deus.
diano é o espaço privilegiado da atuação de A pessoa justificada por ele possui a certe-
Jesus. Ele pode até mesmo, por breves mo- za da vitória. Em Cristo, somos mais do
mentos, subir montanhas. Mas suas raízes e que vencedores. A base fundamental de
missão se encontram no meio do povo. toda a vida reside naquilo que aconteceu
Pedro, como porta-voz de seus companhei- em Jesus. Por causa dele, e somente por
ros, é apresentado como carente de inteligên- causa dele, é que podemos caminhar em
cia. Ele traz no coração o desejo de reter perma- direção ao amanhã.
nentemente a revelação da glória celeste. Pode-
-se dizer que esse desejo, na perspectiva huma- III. Pistas para reflexão
na, é compreensível, mas se contrapõe ao cha- – De consumidores de ruídos, precisa-
mado dos discípulos ao seguimento de Jesus mos nos transformar em facilitadores de diá-
pelo caminho da cruz. Eles experimentam uma logos. O ruído provoca atritos e acaba por
antecipação da bem-aventurança celestial e por construir muros entre as pessoas. E o diálogo
isso dizem: “É bom estarmos aqui”. Pedro pen- é um exímio instrumento para criar pontes
sava segundo a perspectiva do triunfo. Imagi- entre as pessoas. Somente por meio do diálo-
nava um Cristo vitorioso para vitoriosos. A ló- go, ou seja, da arte de falar e reconhecer esse
gica da vitória impedia Pedro de se ver adequa- mesmo direito ao nosso interlocutor, é que
damente e, por isso, sua proposta parecia que- podemos conhecer novos mundos que estão
rer desviar Jesus de seu trajeto de solidariedade além de nós mesmos.
com as vítimas da história. Jesus, por sua vez, – A vida cristã acontece na história, em
constrói seu itinerário pessoal e teológico com meio aos conflitos nela gerados, e não no
base na solidariedade com os pequeninos, mes- alto das montanhas. Jesus deixou bem cla-
mo que para isso seja necessário ser vítima do ro que o local preferencial para o exercício
império romano, como tantos outros do seu da vida cristã é justamente entre as pes-
povo já haviam sido. soas. A vida cristã não pode ser vista, nem
muito menos ser compreendida, como fa-
3. II leitura: Rm 8,31b-34 tor de alienação. A história é o palco onde
Quem poderia impedir a chegada do vivemos intensamente a vida de Cristo a
projeto de Deus? Não existe nada que possa fim de transformá-la.
O futuro da fé
Harvey Cox
nº- 319
Que configuração a fé cristã deverá assumir no século XXI? Em meio ao ritmo acelerado
das mudanças globais e diante de um aparente ressurgimento do fundamentalismo, o
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cristianismo ainda poderá sobreviver como uma fé viva e fecunda? Com seu estilo rico e
ano 59
acuidade acadêmica, Cox explora essas e outras questões num livro que é, ao mesmo tempo,
296 páginas
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