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A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO SISTEMA DE SAÚDE: O

abuso médico e a violação aos direitos fundamentais

Ana Beatriz Torres Correa1


Rebeca Monteiro Duarte2
Emanuelly Keriny de Souza Santiago3
Orientadora: Prof. Ma. Helen Lopes Noronha4

RESUMO: Tendo em vista que o abuso médico contra a mulher permanece à margem da
legislação brasileira e incorre em uma grave violação aos direitos fundamentais à dignidade
humana e indispensáveis à existência da Constituição brasileira, é essencial trazê-lo para o
centro dos debates acadêmicos e jurídicos, a fim de fortalecer o combate a essa cruel
violência. Isso posto, este artigo tem por objetivo compreender a violação aos direitos
fundamentais no contexto do abuso médico-hospitalar à mulher. Para isso, escrutina a
relevância jurídica dos direitos fundamentais, verifica as questões sócio-histórico-culturais
relacionadas à violência contra a mulher e analisa a violência obstétrica e sexual no sistema
de saúde, a partir de consulta a livros doutrinários, artigos e periódicos de caráter científico
sobre o tema.

Palavras-chave: Abuso médico; Direitos Fundamentais; Violência contra a mulher.

1 Introdução

Os atos de violência contra a mulher ocorreram e foram naturalizados em


praticamente todo o desenvolvimento histórico dos mais diversos regimes
econômicos e políticos. Esses casos de violência ainda fazem parte da realidade
hodierna e atingem até mesmo ambientes que deveriam ser os mais seguros, a
exemplo das unidades hospitalares, prestadoras de serviços de saúde, nas quais vê-
se casos recorrentes de violência obstétrica e abuso sexual. A violência obstétrica é
todo ato realizado sem o consentimento da mulher, que desrespeite sua autonomia

e cause sofrimento físico ou emocional, durante a gestação, parto, nascimento ou

1
Graduada em Letras-Língua Portuguesa na Universidade do Estado do Pará. Graduanda do curso
de Direito do Centro Universitário FIBRA. E-mail: anabeatriztorres54@gmail.com.
2
Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário FIBRA. E-mail: rbeca6285@gmail.com.
3
Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário FIBRA. E-mail: manusantiagoo@hotmail.com.
4
Mestre em Gestão Organizacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Pós
Graduanda em Direito Público pela EBRADI /SP. Advogada 26.214 OAB/PA. Professora e
Pesquisadora de Direito Constitucional na Faculdade Integrada Brasil Amazônia – FIBRA. Advogada
autônoma da Lopes Noronha advocacia e consultoria jurídica. profahelonha@gmail.com.
pós-parto e o abuso sexual refere-se à violação sexual, em que não há o
consentimento válido da outra parte.
O aumento de casos de abusos contra as mulheres, durante o colapso do
sistema de saúde – no pico da pandemia do Coronavírus - expõe o quanto as
liberdade fundamentais foram violadas em um momento de vulnerabilidade das
vítimas, pois quando mais se fez necessário haver suporte médico, mais violências e
abusos ocorreram nas unidades hospitalares – é o que diz o Painel de dados da
Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que, em 2021, constatou 165 casos de
abuso sexual em hospitais, denunciados por mulheres. Em consonância, dados
obtidos pelo O GLOBO no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
mostram que houve, ao menos, 373 abusos sexuais dentro de unidades de saúde,
de 2020 a maio de 2021, denunciados e confirmados por mulheres - sem contar os
subnotificados.
Os dados sobre violência obstétrica não são tão abundantes e a pesquisa
mais recente que se tem sobre o assunto foi realizada em 2012, pela Fundação
Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), a qual revelou que a violência obstétrica atinge cerca de
45% das mulheres que utilizam o Sistema Único de Saúde (SUS) e 30% das que
usam a rede particular. A pesquisa ainda revela que essas vítimas perdem bebês e
ficam com lesões.
Nesse sentido, na legislação atual, percebe-se a ascensão do
reconhecimento da vulnerabilidade da condição da mulher, tornando-a objeto
material de dispositivos legais específicos. Em lei, considera-se violência contra a
mulher em razão da condição do sexo feminino quando o crime envolve violência
doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição da mulher.
Entretanto, embora haja essa crescente preocupação e mobilização legal
sobre a violência contra mulher, um assunto específico dentro dessa área ainda
permanece à margem das discussões acadêmicas e jurisdicionais: a violência
constantemente sofrida por elas dentro do sistema de saúde. Enquanto diversos
países já desenvolveram leis voltadas ao abuso médico contra a mulher,
estabelecendo tipificações e sanções, o Brasil ainda está iniciando esforços nesse
quesito. Há leis definindo os direitos das mulheres no sistema de saúde antes,
durante e após o parto. Porém, essas leis não definem sanções no caso de
descumprimento e, assim, retardam a coibição do abuso médico e a construção de
um sistema de saúde no qual há respeito às mulheres que se encontram em um
momento de hiper vulnerabilidade.
A violência nesse contexto de hiper vulnerabilidade é ainda mais difícil de
denunciar, gerando traumas silenciados e facilitando a continuidade desses crimes.
Desse modo, para um efetivo combate e prevenção ao tratamento desumano e
indigno dispensado às mulheres no contexto do abuso médico, é indispensável que
este tema seja cada vez mais debatido e levado ao centro de discussões jurídicas e,
neste estudo, isso será feito à luz da mais soberana das normas: a Constituição
Federal (CF/88). Levando em consideração que os direitos fundamentais do cidadão
são inerentes à proteção do princípio da dignidade humana e “garantem a
convivência pacífica, digna e igualitária” (BULOS, 2022, p. 529) sem qualquer tipo de
discriminação e que constituem um dos mais importantes pilares da CF/88,
decidimos fazer deles a perspectiva basilar de nosso tema.
Assim, o objetivo geral deste estudo é compreender a violação aos direitos
fundamentais no contexto do abuso médico-hospitalar à mulher, e os objetivos
específicos são: escrutinar a relevância jurídica dos direitos fundamentais, verificar
as questões sócio-histórico-culturais relacionadas à violência contra a mulher e
analisar a violência obstétrica e sexual no sistema de saúde.

2 Fundamentação teórica

2.1 Direitos Fundamentais

Segundo Silva (2014), não há propriamente uma inspiração específica para o


berço dos direitos fundamentais na transição da idade moderna para a idade
contemporânea. Houve lutas e reivindicações para conquistar os direitos
estabelecidos naquele período, as quais se uniram às condições materiais e
históricas e às subjetivas e ideais, propiciando o nascimento das declarações de
direitos.
Como condição material, Silva (2014) destaca uma sociedade tendente ao
crescimento comercial e cultural, progressista, que fazia cada vez mais exigências
vitais, enquanto era submetida a arbitrariedades e à opressão jurídica e econômica
de um regime monárquico absolutista, estagnador e atrofiado, provocando uma crise
muito grave, a qual dava a seguinte mensagem: era impossível ir adiante daquela
forma, as coisas mudariam à força, mas mudariam.
Como condição subjetiva, SIlva (2014) ressalta o pensamento cristão típico
do cristianismo primitivo, que pregava a igualdade, dignidade e libertação
necessárias ao homem, não o cristianismo vigente no século XVIII, que era favorável
e contribuía para a manutenção do status quo. Além disso, o jusnaturalismo e o
pensamento iluminista também foram grandes fontes de inspiração.
As declarações de direitos, que outrora possuíam a forma de declaração
solene, tornaram-se declarações constitucionais de direitos ao se integrarem às
constituições dos ordenamentos jurídicos nacionais, adquirindo o caráter de normas
jurídicas positivas, chamadas de direitos fundamentais, os quais conforme Silva
(2014), designam
aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma
convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. [...] se trata de
situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não
convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive. Direitos fundamentais do
homem significa direitos fundamentais da pessoa humana” (p. 180).

Na Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, o gênero


“direitos e garantias fundamentais” é dividido em cinco espécies: Dos Direitos e
Deveres Direitos individuais e Coletivos (Capítulo I - art.5º, CF/88); Dos Direitos
Sociais (Capítulo II - arts. 6º a 11, CF/88); Da Nacionalidade (Capítulo III – arts.12 e
13,CF/88); Dos direitos Políticos (Capítulo IV – arts.14 a 16, CF/1998) e Dos
Partidos Políticos (Capítulo V – art.17,CF/1998). Entretanto, conforme Noronha
(2019)
Torna-se oportuno realçar que os direitos fundamentais não são apenas os
descritos no Título II da Constituição de 1988, já que existem outros direitos
como: o meio ambiente e a comunicação social (ambos previstos no Art.
225 CF/88) e ,os direitos que limitam o poder de tributar do Estado, contidos
nos artigos 150 e seguintes da Carta Magna, Título VI, que estão fora do
intervalo do art. 5º ao 17 da CF/88, bem como previstos fora do próprio
corpo da Constituição, conforme dispõe o art. 5º, §2º, CF (direitos previstos
no Pacto de São José da Costa Rica). Logo, os direitos fundamentais
previstos Constituição de 1988, são apenas um rol meramente
exemplificativo (numerus apertus). (59).

Em continuidade, na análise deste estudo, serão abordados alguns direitos


individuais, como a vida, a liberdade e a segurança pessoal, bem como o direito
social à saúde dispostos nos capítulos I e II do título II da Constituição brasileira,
respectivamente. Por isso, é importante expor a definição estabelecida para cada
uma dessas dimensões dos direitos fundamentais. Para Silva (2014), direitos
individuais - direitos fundamentais do homem-indivíduo
são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a
iniciativa e a independência aos indivíduos diante dos demais membros
da sociedade política e do próprio Estado. Por isso, a doutrina (francesa,
especialmente) costuma englobá-los na concepção de liberdade-autonomia.
(p. 193). (grifo do autor)

Quanto aos direitos sociais, o autor define como


prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente,
enunciadas em normas constitucionais [...] pressupostos de gozo dos
direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais
propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona
condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA,
2014, p. 288, 289). (grifo do autor)

É preciso pontuar que, para Bulos (2022), o princípio da dignidade da pessoa


humana é o valor constitucional supremo que agrega em volta de si a unanimidade
dos direitos fundamentais, sendo o carro-chefe de todos eles. Dessa forma, a
dignidade da pessoa humana seria o que fundamenta e norteia os direitos
fundamentais. Em acordo, Lafer (2004) diz que “A tutela constitucional dos direitos e
garantias fundamentais representa o reconhecimento jurídico do valor da pessoa
humana, que é um dos princípios fundamentais que a Constituição de 1988
proclama [...] toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem
a separação dos poderes determinada, não tem constituição” (p. 54, 55).
Nesse sentido, para Lanfer (2004) a interpretação de direitos deve partir da
ideia de que os direitos são os legitimadores do sistema e, por isso, o critério de
interpretação deve favorecer de forma ampla o conteúdo do direito contemplado. É o
que será feito na análise dos direitos fundamentais no contexto do abuso médico-
hospitalar contra a mulher.

2.2 Violência contra a mulher

Segundo Ferreira (2019), a Organização Mundial da Saúde (OMS) define


violência como a “imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitável” e
Le Breton a define como ato de “infringir a dor para punir uma afronta, uma infração
ou impor uma ordem é, há muito tempo, um princípio de intimidação e de poder,
uma maneira de ter domínio sobre o outro na proporção de sua impotência para se
defender” (p. 199).
Salib apud Almeida (2014) afirma que “juridicamente, a violência é uma forma
de coação ou de constrangimento, posto em prática para vencer a capacidade de
resistência do outro como ato de força exercido contra coisa”. Dessa forma, é
possível ressaltar que a coação contra mulheres é algo que percorre a história
brasileira, pois, desde o período em que o Brasil era apenas uma colônia de
Portugal, as mulheres já eram coagidas, inclusive, não tinham seus direitos
assegurados e não possuíam capacidade civil para tomada de decisões.
A resistência de muitas mulheres desafiava os homens, já que estes exerciam
o poder central e, consequentemente, se viam ameaçados a dividir o poder que lhes
era atribuído. Logo, não se podia falar em estarrecimento de direitos, já que
mulheres não possuíam direitos e estavam subordinadas às vontades do pai e, após
se casar, do marido.
Ao observar esse contexto, é possível afirmar que a violência contra a mulher
no Brasil já nasce junto com o Estado e os fatos históricos denunciam isto. No direito
brasileiro, durante as Ordenações Filipinas (válida durante o período Brasil Colônia),
os homens traídos por suas respectivas companheiras poderiam matá-las, com a
justificativa da legítima defesa da honra. Somente em 24 de novembro de 2003, a
Lei n° 10.788 definiu a violência contra a mulher e impôs seus efeitos, assegurando,
desse modo, seus direitos à vida digna e respeitando o princípio basilar da
Constituição Federal de 1988: a dignidade da pessoa humana. Isso impactou a
sociedade, já que sanções específicas foram estabelecidas para este tipo de
violência, deixando de ser algo comum e se tornando uma temática abrangida de
modo especial pelo Estado.
Desse modo, é interessante para este estudo citar a ideia de Bobbio de que o
mal possui duas dimensões analíticas: ativo, que está associado à prepotência do
poder e o mal passivo, o qual se refere às pessoas que sofrem uma pena sem ter
culpa. Nesse sentido, é possível afirmar que a omissão do Estado, durante muito
tempo, em relação à violência contra a mulher, fez com que o problema persistisse
na sociedade, ou seja, o mal ativo beneficiado pela omissão, consequentemente,
gerou o mal passivo: a naturalização da violência contra a mulher, reflexo das
heranças sócio-histórico-culturais que, apesar dos avanços obtidos nessa matéria,
ainda influenciam na forma comportamental da sociedade.
Nesse sentido, percebe-se que a mulher atualmente tem seus direitos
fundamentados na Constituição e resguardos sobretudo pela legislação penal, tendo
mais amparo legal do que teve outrora. No entanto, ainda não se alcançou um nível
de igualdade material ideal entre os sexos e o feminino ainda sofre com a
vulnerabilidade herdada da construção social, sendo o alvo principal de crimes como
a violência sexual. Segundo o Fórum de Segurança Pública (2015), a cada dez
estupros, oito deles possuem vítimas mulheres.
Esse quadro denuncia o quanto a luta do combate à violência contra a mulher
precisa ser fortalecida. As mulheres são vítimas em todas as esferas, até mesmo
nas que deveriam assegurar sua proteção, saúde, bem-estar, como as unidades
médicas, as quais se revelaram como um espaço de violência, sobretudo durante o
pico da pandemia da Covid-19. como já foi mostrado nos dados anteriores.

2.3 Sexual e Obstétrico

Como ficou evidente, ao longo da história, as mulheres vêm sofrendo


violência de diversas formas, dentre elas, cabe destacar a violência obstétrica e
sexual. O conceito de violência obstétrica (VO) surgiu através do movimento de
humanização do parto e foi criado pelo presidente da sociedade obstétrica e
ginecológica da Venezuela, Dr. Rogélio Peres D’Gregório, em 2010. Tal termo é
utilizado para descrever e agrupar abusos sofridos pela mulher no seu ciclo
gravídico-puerperal, através da violação de seu corpo e de sua autonomia, pelos
agentes de saúde. Trata-se de uma violência de gênero, institucional, tendo em vista
o tratamento desumanizado e negligente, o qual fere a dignidade sexual e
reprodutiva da mulher.
Paralelamente à VO, é indispensável estabelecer um parâmetro do que vem a
ser violência sexual dentro do contexto médico-hospitalar: dentre outras coisas,
estupro, toques vaginais não permitidos e desnecessários, exposição da mulher a
múltiplos profissionais sem o seu consentimento e falas pejorativas sobre a vida
sexual da paciente.
Há casos, como o que nos aprofundaremos mais a frente, nos quais esses
dois tipos de violência ocorrem concomitantemente e a parturiente, sofre violência
sexual enquanto se prepara para receber o bebê. Diversas vezes, esse tipo de
violência pode vitimar a mãe, o bebê ou até mesmo os dois. Segundo Gonçalves,
Cruz e Narchi (2013) “nenhuma das situações médicas que expõe os homens a
risco de morte se compara em questão de amplitude com a mortalidade materna,
cuja causa, em 70% dos casos no Brasil, está diretamente associada à questões
obstétricas”. Portanto, é irremediável concluir que um número enorme de mulheres
possui seus direitos violados antes, durante e após o parto, sendo vítimas de
violência sexual, de manobras, cortes e toques desnecessários e evitáveis e
sofrendo traumas profundos em um dos ambientes nos quais sua saúde física e
mental mais deveria estar segura: o hospital.
Tanto a violência obstétrica quanto a violência sexual, estão diretamente
ligadas à violência de gênero. Tendo em vista que, desde os primórdios a relação
entre homens e mulheres na sociedade não foi igualitária. A igualdade formal já está
estabelecida em normas do ordenamento jurídico brasileiro, mas ainda há um longo
caminho a percorrer, para se alcançar a igualdade material.

3 Metodologia

Este estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa fundamentada em pesquisa


bibliográfica extraída de doutrinas e periódicos de caráter científico, bem como em
dados, retirados do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e da Fundação Oswaldo
Cruz (FIOCRUZ). Além disso, utilizou-se da reportagem de um caso real extraída do
portal de notícias G1, envolvendo estupro de mulher em trabalho de parto, ocorrido
em julho de 2022.

4 Análise e discussões dos resultados

Em julho de 2022, Giovanni Quintella Bezerra foi filmado enquanto estuprava


uma mulher em trabalho de parto. O médico aplicava anestesia em excesso e
violava as vítimas, na presença de outros membros da equipe médica na sala.
Depois do flagrante, outras três mulheres apareceram na delegacia para denunciar o
anestesista e outros 40 partos nos quais Giovanni trabalhou passaram a ser
averiguados pela Polícia Civil, a fim de saber se havia mais vítimas. A mãe de outra
paciente relatou em matéria para o G1 que quando a filha voltou da mesa de
cirurgia, ainda desacordada, “ela veio suja. Percebi sobre o rosto e sobre o pescoço
dela algumas casquinhas secas, brancas. Eu não sabia o que era. Achava que era
algum medicamento que tinha entornado”.
Dentre os delitos cometidos por Giovanni, destacamos dois: estupro de
vulnerável e violência obstétrica, consumada quando do afastamento do bebê em
relação à mãe, o afastamento do acompanhante (que deveria estar com a
parturiente durante todo o período de assistência no parto, visto que esse é um
direito da dela). Além disso, o excesso de anestesia também caracteriza uma
violência obstétrica.
Esse caso foi escolhido por ser uma perfeita exemplificação da violência
contra mulher no sistema de saúde, na qual há violência obstétrica e sexual
ocorrendo paralelamente. É a partir desse caso que observaremos a violação dos
direitos fundamentais da mulher no abuso médico.
Dentre os direitos fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, limitar-
nos-emos a discutir os da vítima - objetos jurídicos tutelados por normas
constitucionais - que Giovanni violou e que são os de comum violação em casos de
violência contra mulher no sistema saúde, a saber: direito à vida, à liberdade, à
segurança e à saúde pública.
No caput do artigo 5º, o legislador assegurou o direito à vida, que, por sua
vez, de acordo com Silva (2014), “constitui a fonte primária de todos os outros bens
jurídicos” (p. 200) e no seu conteúdo se envolve o direito à integridade físico-
corporal e à dignidade da pessoa humana - por esta razão, quando se fala em vida,
entende-se direito à vida humana digna. Agredir alguém é uma forma de agredir a
vida, pois a vida se realiza no corpo humano. Por isso, a integridade física é um
“bem vital e revela um direito fundamental do indivíduo” (p. 201). Desse modo, em
casos como o de Giovanni Bezerra, ao violar a integridade físico-corporal e a
dignidade da mulher, o abusador também profana seu direito à vida digna.
Prosseguindo, a CF/88 assegura várias espécies de liberdade (de
pensamento, expressão coletiva, ação profissional…), porém, o que nos interessa
neste estudo é a definição contida dentro da liberdade da pessoa física: “é a
possibilidade jurídica que se reconhece a todas as pessoas de serem senhoras de
sua própria vontade…” (BURDEAU, 1972, p. 111 apud SILVA, 2014, p. 239), Silva
(2014) segue reiterando a ideia de liberdade como poder de autodeterminação, para
que a pessoa escolha por si. No caso usado de exemplo neste artigo, Giovanni deu
doses excessivas de anestesia à vítima, deixando-a completamente desorientada,
sem a capacidade sequer de reivindicar seus direitos como parturiente. A vítima
perdeu completamente sua capacidade de autodeterminação, bem com a de
resistência, ficando absolutamente sem autonomia sobre o próprio corpo em uma
situação na qual isso não era necessário. O abusador tomou medidas violadoras
apenas para viabilizar seu crime fim.
A doutrina francesa constitui a segurança individual como uma das três
prerrogativas dessa liberdade a qual nos referimos anteriormente. Ademais, embora
a doutrina majoritária fale de direito à segurança, Silva (2014) enxerga a segurança
individual - instituída no caput do artigo 5º - não como um direito em si, mas como
uma garantia individual que assegura o efetivo gozo de um direito individual
fundamental. Nas palavras do autor:
não impede que seja ele considerado um conjunto de garantias, natureza
que, aliás, se acha ínsita no termo segurança. Efetivamente esse conjunto
de direitos aparelha situações, proibições, limitações e procedimentos
destinados a assegurar o exercício e o gozo de algum direito individual
fundamental (intimidade, liberdade pessoal ou a incolumidade física ou
moral). (p. 440).

A segurança e a liberdade, asseguradas no caput do artigo 5º, juridicamente


garantem à mulher que suas escolhas e desejos sejam respeitados, na medida do
possível e do lícito, como expressão de sua liberdade e que o sistema de saúde seja
para ela um ambiente seguro, no qual prevaleça a inviolabilidade de seus direitos e
a obediência aos deveres médicos, a fim de que ela receba o tratamento mais
eficiente e digno possível. No caso em questão, a segurança pessoal da vítima foi
totalmente esvaziada, ficando à mercê do mais degradante tipo de situação.
Até aqui falou-se apenas de direitos individuais, mas agora nos voltaremos
para um importante direito social, a saúde. Na CF/88, a saúde é estabelecida no
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança,…” (grifo do autor) e no artigo 196, no
qual o legislador reitera a saúde como um direito de todos.

Dessa forma, num país em que 45% das mulheres que usam o SUS sofrem
violência obstétrica, é preciso lembrar que é dever do Estado dar “um tratamento
condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de
sua situação econômica.” (SILVA, 2014, p. 311). Esses dispositivos asseguram às
mulheres o direito a um padrão de saúde que lhes garanta assistência qualificada,
digna e respeitosa, livre de qualquer forma de violência dentro do sistema de saúde.

Desse modo, a violência contra mulher no sistema de saúde, mais


especificamente em casos de abuso médico, é uma enorme profanidade contra os
direitos fundamentais essenciais para a garantia de uma vida humana digna. O
desacato ao direito à vida - integridade física e dignidade inerente à pessoa humana
-, à liberdade, à segurança pessoal e à saúde, predominante nesses casos, atinge
não só a dignidade da mulher, mas também detém a construção de uma sociedade
justa na qual predomine o bem de todos sem discriminação de qualquer natureza,
fins estes que constituem normas programáticas da Carta que rege a Federação
brasileira.
Em que pese não ser impossível que ocorra com homens, os dados mostram
que nossa herança sócio-histórica cultural fez das mulheres as principais vítimas de
abusos, inclusive os abusos médicos. Por isso, é necessário dar a esse sexo
atenção legal especial, devido sua condição de vulnerabilidade de gênero e, no
contexto de assistência médica, hiper vulnerabilidade. Basta uma crise para que os
direitos das mulheres sejam questionados, violados... e, quando o direito de um
cidadão é esvaziado, o de todos são.
Portanto, considerando que o abuso médico contra a mulher permanece à
margem da legislação brasileira e que incorre em uma violação grave aos direitos
fundamentais à dignidade humana e indispensáveis à existência da Constituição
brasileira, é essencial trazê-lo para o centro dos debates acadêmicos e jurídicos, a
fim de fortalecer o combate a essa cruel violência.
É importante jamais perder de vista as palavras de Lafer (2004): “Toda
sociedade na qual a garantia de direitos não é assegurada [...], não tem
constituição”. (p. 55). O esvaziamento e relativização dos direitos fundamentais
colocam em risco toda a ordem jurídica brasileira e a possibilidade de uma
existência humana digna na qual seja possível a concretização da felicidade. Todos
têm direito constitucional a uma vida sem violência. É preciso que nos mobilizemos
para que esse direito seja efetivamente respeitado.

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Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/violencia-obstetrica-atinge-cerca-de-
45-das-mulheres-na-rede-publica-brasileira-vitimas-perdem-bebes-ficam-com-
lesoes-25332302. Acesso em: 30 set. 2022.

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