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PERSPECTIVA BAKHTIANIANA
RESUMO: Partindo do pressuposto de que as obras deixadas por Machado de Assis, um dos
maiores escritores brasileiros, são carregadas de discussões e reflexões que perpetuam até os
dias atuais, o presente artigo tem por objetivo analisar, a partir de conceitos explorados pelo
Círculo de Bakhtin, o conto machadiano Um Homem Célebre, de 1883, que retrata as
dificuldades pessoais vivadas pelo protagonista - Pestana - em meio a dualidade da vocação
versus ambição. Para tanto, foram escolhidos para a análise os conceitos de gêneros,
cronotopo, dialogismo, polifonia, alteridade e carnavalição (riso e ironia), perpassando,
principalmente, por Bakhtin (1987; 1997; 2003; 2006) e outros autores que fizeram releituras
ao longo do tempo, como Bezerra (2016), Faraco (2009) e Fiorin (2017). Como metodologia,
utilizou-se a pesquisa bibliográfica, que se desenvolve pela averiguação e estudo de materiais
já elaborados e discutidos anteriormente por livros meios (como livros e artigos), algo
explanado por Gil (2008) e Lakatos e Marconi (2003). Desse modo, inferiu-se que o conto
machadiano continua extremamente atual, visto que trata sobre temais universais como o
fazer artístico, o sucesso, a fama, vocação e ambição.
1. Introdução
1
Graduanda do curso de Letras-Língua Portuguesa/2019 da Universidade do Estado do Pará. Email:
aline.anjos.75248@gmail.com.
2
Graduanda do curso de Letras-Língua Portuguesa/2019 da Universidade do Estado do Pará. Email:
anabeatriztorres54@gmail.com.
3
Graduanda do curso de Letras-Língua Portuguesa/2019 da Universidade do Estado do Pará. Email:
coelho.luana1@gmail.com.
4
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo.
Docente da área de Literatura do Departamento de Língua e Literatura da Universidade do Estado do Pará.
Contabilidade do Ministério. Mas foi na literatura que ele deixou sua marca profunda, com
obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, que lhe rendeu o título de iniciante do
Realismo no Brasil, Quincas Borda e Dom Casmurro, Machado funda, em 1896, juntamente a
outros escritores, a Academia Brasileira de Letras, sendo o primeiro presidente oficial.
Dessa forma, como autor atemporal, suas obras são estudas e analisadas até hoje,
como é o caso deste artigo. Com auxílio dos conceitos criados e explorados pelo filósofo e
pensador russo Mikhail Bakhtin, um dos mais influentes estudiosos da Análise do Discurso.
Assim, utilizou o conto machadiano Um Homem Célebre, que inicialmente foi publicado no
periódico A Estação, em 1883 e posteriormente incluído na coletânea Várias Histórias, em
1896.
Para desenvolvendo da pesquisa, partiu-se de seis conceitos: gêneros do discurso, que
são tipos relativamente estáveis de enunciados, compostos por tema, estrutura visual ou
escrita que determinado gênero pode apresentar. O cronotopo, em que as relações de tempo e
espaço são colocadas em evidência. O dialogismo, que é o embate de vozes que compõe um
discurso. A polifonia, que diz respeito as várias vozes e consciências que circulam em um
mesmo espaço, juntamente a alteridade, que é a relação do eu com comigo e com os outros. E
a carnavalização, que através do riso e da ironia, descontrói ideias estabelecidas e de
autoridade e hierarquia.
Isso posto, para a metodologia, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, que corresponde
a coleta de materiais já elaborados e discutidos anteriormente em diversas formas, como em
livros, artigos e periódicos de caráter científico, que, neste caso, abordem os conceitos da
Análise do Discurso que serão pontuados no conto de Machado. De acordo com Gil (2008) a
principal vantagem desse tipo de pesquisa “reside no fato de permitir ao investigador a
cobertura uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar
diretamente”. (p. 50) e sua finalidade, segundo Lakatos & Marconi (2003) “é colocar o
pesquisador em contato direto com tudo o que já foi escrito, dito ou filmado sobre
determinado assunto”. (p. 182).
Portanto, este artigo estruturou-se nos seguintes tópicos: introdução, resumo e
estruturação narrativa do conto, gêneros do discurso, cronotopo, dialogismo, polifonia e
alteridade, carnavalização (riso e ironia) e as considerações finais.
3. Gêneros do discurso
O estudo sobre gêneros remota da clássica teoria de divisão da poética, pensada por
Aristóteles, que dividia os discursos literários em épico (poesia de segunda voz), lírico (poesia
de primeira voz) e dramático (poesia de terceira voz) e os definia como “(...) obras da voz
tomando como critério o modo de representação mimética.” (Machado, 2005, p. 151), isto é, o
filósofo partia de um meio, que é a voz, para hierarquizar o discurso nas obras literárias,
traçando uma normatização para a poética.
Além de Aristóteles, Platão também teorizou os gêneros discursivos partindo de uma
classificação binária, na qual as esferas (gêneros) eram divididas a partir de juízos de valor.
Assim, “(...) ao gênero sério pertencia a epopeia e a tragédia; ao burlesco, a comédia e a
sátira.” (Machado, 2005, p. 151). E em “A República”, o filósofo postula uma tríade tomando
como ponto de partida a dualidade entre realidade e representação, dizendo que “ao gênero
mimético ou dramático pertencem a tragédia e a comédia; ao expositivo ou narrativo, o
ditirambo, o nomo e a poesia lírica; ao misto, a epopeia.” (Machado, 2005, p. 151/152).
Todavia, é importante salientar que, embora a teoria dos gêneros tenha surgido na
Poética e na Retórica de Aristóteles e, posteriormente, se consagrado na literatura como
principal teoria de análise, na discussão aqui proposta não cabe discorrer a respeito da
evolução do conceito de gêneros. Deve-se, portanto, partir do surgimento do gênero
conhecido como prosa comunicativa, que exigia um aprofundado estudo e análise do discurso
e da interação que perpassava essa categoria.
Dessa forma, fundamenta-se a discussão de gêneros do discurso nos postulados de
Mikhail Bakhtin, o qual considerava o processo dialógico da comunicação, já que a língua é
um meio de interação social e, a partir dessa mudança de rota nos estudos dos gêneros
discursivos, pode-se afirmar que “graças a essa abertura conceitual é possível considerar as
formações discursivas do amplo campo da comunicação mediada, seja aquela processada
pelos meios de comunicação de massa ou das modernas mídias digitais (...)” (Machado, 2005,
p. 152).
Para Bakhtin (2003, p. 282): “Falamos apenas através de determinados gêneros do
discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas
de construção do todo.” Ou seja, tudo o que é produzido pelo homem em forma de linguagem
oral ou escrita tem uma característica própria, e esta, com relação a ouros gêneros, podem ser
relativamente estáveis (mudar) ou permanecer assim como é. Este conceito, segundo Bentes
(2011, p. 17) é extremamente produtivo se for comparar com os anteriores, usados nos
estudos literários, já que trata o estudo de gêneros partindo de um uso real da língua,
dialogando com a interação oral, e não somente a tradição escrita.
Além disso, um dos conceitos para gêneros discursivos está intimamente atrelado aos
campos da atividade humana (Bakhtin, 2003), que são “(...) instâncias em que ocorrem
discursos, tais como a área jurídica, jornalística, religiosa, acadêmica, etc.” (Bentes, 2011, p.
17), e as pessoas, para participarem de determinados campos, precisam portar características
comuns como falar, por exemplo. Os gêneros se apresentam nestes campos porque um mesmo
discurso pode ocorrer em vários campos, e todo discurso, consequentemente, é um gênero
discursivo. Como afirma Bakhtin (2003, p. 248):
A riqueza e diversidade dos gêneros discursivos é imensa, porque as possibilidades
da atividade humana são inesgotáveis e porque em cada esfera da práxis existe todo
um repertório de gêneros discursivos que se diferencia e cresce à medida que se
desenvolve e se complexifica a própria esfera.
4. Cronotopo
Relacionando as noções de tempo e espaço, surge o cronotopo (do grego cronos >
tempo e topos > espaço), isto é, para Bakhtin é indissociável esses dois elementos dentro das
manifestações literárias, havendo, assim, uma ligação direta entre literatura e história.
Segundo Fiorin (2017, p. 144) “as pessoas organizam o universo de sua experiência
imediata com imagens do mundo, criadas a partir das categorias de tempo e espaço, que não
inseparáveis”. Assim, de acordo com o conceito desenvolvido pelo autor supracitado, com
base nos estudos do círculo bakhtianiano, o cronotopo configura:
(...) uma ligação entre o mundo real e o mundo representado, que estão em interação
mútua. É uma categoria conteudístico-formal, que mostra a interligação fundamental
das relações espaciais e temporais, representadas nos textos, principalmente
literários. Cabe acrescentar que seu princípio condutor é o tempo. (FIORIN, 2017, p.
145)
Desse modo, através do cronotopo presente nas obras literários, é possível ter noção
dos aspectos temporais e espaciais da época em que determinado texto foi escrito e perceber
como esses aspectos se relacionaram com a sociedade ao decorrer dos anos, ou seja, “os
textos literários revelam-nos os cronotopos de épocas passadas e, por conseguinte, a
representação do mundo que tinha a sociedade em que eles surgiram”. (FIORIN, 2017, p.
145).
Por meio da análise do cronotopo faz-se capaz apreender em uma obra literária a sua
classificação (as tipologias dos romances, das narrativas, etc.), descrever a estrutura,
distinguir os gêneros discursivos, entre outros.
Em se tratando de Um Homem Célebre, por pertencer ao gênero conto, o tempo e
espaço são mais reduzidos, além destes demonstrarem características do movimento realista
que Machado estava inserido. O elemento central de seu enredo, como já foi posto
anteriormente, é a questão da ambição versus a vocação pela qual passa Pestana, que não
consegue atingir os feitos de seus ídolos da música clássica, como Mozart, Beethoven e Bach,
sendo somente reconhecido por suas polcas, algo que se torna um martírio, morrendo, assim,
sem alcançar imortalidade no meio da cultura erudita que tanto almejava. Ele entendia que
esta tinha “(...) muito mais chance de se perpetuar no tempo do que a popular, e a sua
frustração provém de que, não produzindo uma música ‘superior’, seu nome será esquecido”
(KALIFE JÚNIOR, 2013, p. 8). Pestana queria ser consagrado pela cultura erudita, visto que,
como discorre Aranha (1996, p. 40):
Com a cultura erudita, são produzidas as obras-primas que revolucionam os
diversos campos do saber e da ação, como as descobertas científicas, os novos
modos de pensar, as técnicas revolucionárias, as grandes obras literárias ou artísticas
em geral, enfim, produtos humanos que provocam “cortes” na maneira de pensar e
agir e que, por isso, se tornam clássicos.
É curioso notar que tal situação ainda é muito atual, em que a música se torna algo
para ser apenas comercializado, onde artistas que não conseguem chegar ao nível que querem
e por muitas vezes ficam presos a modas estabelecidas pela indústria cultural e adotadas por
empresários e produtores (no conto representado pela figura do editor) para atingir a cultura
de massa, assim, o que é retratado no século XIX, perpetua até o tempo atual. Bem como diz
Bezerra (2016, p. 192 - 193), “para Bakhtin, a reificação do homem surge com a sociedade de
classes e chega ao seu limite com o capitalismo, [reduzindo] os indivíduos à condição de
objetos”.
Essa reificação do homem, isto é, a valorização excessiva das coisas, em detrimento às
pessoas, condiz perfeitamente com o ambiente disseminado pela indústria cultural. De acordo
com Adorno e Horkheimer (2002, p. 27):
(...) As pessoas são reduzidas a meras coisas que aqueles que delas dispõem podem
colocá-las por um instante no céu para logo em seguida jogá-las no lixo; e que vão
para o diabo com os seus direitos e o seu trabalho. A indústria se interessa pelos
homens apenas como pelos próprios clientes e empregados, e reduziu, efetivamente,
a humanidade no seu conjunto, como cada um dos seus elementos, a esta forma
exaustiva.
Além do mais, outro ponto destacado por Adorno e Horkheimer (1947, p. 57) é que a
indústria cultural utiliza a técnica da padronização e produção em série, como pode ser
constatado em determinada parte do conto de Machado, em que o editor de Pestana lhe
oferece um novo contrato:
(...) Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo,
e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar
dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o
contrato. (ASSIS, 1946, p. 6)
O espaço do conto é pouco variado, passando-se a ação toda no Rio de Janeiro, sendo
denominada a passagem de várias ruas, como a Rua do Areal, Formosa, Aterrado... levando o
leitor a se familiarizar com o ambiente, além da casa de Pestana, local das diversas tentativas
de se tornar um músico clássico. Além da presença da casa de Pestana, descrita como velha,
mas em que mantinha seu santuário com os retratos de seus grandes ídolos e o piano como
altar.
O foco presente na cidade supracitada também é uma forma de apresentar ao leitor a
vida de dada parte social daquela época: publicado em 1883, o tempo no conto se passa,
aproximadamente, entre os anos de 1875 e 1885, em que a sociedade burguesa carioca era
fascinada pelos saraus, música popular, festas.
É interessante notar como a noite configura, em diversos momentos, um tempo
constante para Pestana. A noite sempre foi ligada a figura do músico, por ser o principal
período para apresentações, mas, além disso, no conto de Machado é um momento de vida e
morte. Vida, porque durante a noite Pestana refletia: “(...) noites e noites, gastou-se assim,
confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da
música fácil” (ASSIS, 1946, p. 4). Buscava inspiração para compor, como na seguinte
passagem do texto:
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para
as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de
pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento mas o
pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-
lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse
descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma
constelação de partituras. (ASSIS, 1946, p. 2)
Aliás, mesmo quando não era à noite, o tempo escuro acompanhava Pestana que, no
trecho abaixo, mostra um momento de pura inspiração dele:
(...) − Mas parece que hoje chove. − Chove, repetiu Pestana maquinalmente. −
Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro. Pestana olhava para o preto, vago,
preocupado. De repente: − Espera aí. Correu à sala dos retratos, abriu o piano,
sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou tocar alguma cousa própria,
uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os
anúncios. (ASSIS, 1946, p. 3)
E a morte, dito anteriormente, diz respeito a uma das partes mais pesadas do conto, em
que a esposa de Pestana, Maria, morre. Isto é, o período em que Pestana mais refletia, buscava
inspiração e escrevia, foi também marcado pela morte daquela que ele considerava que seria
sua inspiração para adentrar ao erudito: “Maria (...) ia tossindo e morrendo, até que expirou,
uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado. Era noite de Natal.” (ASSIS,
1946, p. 5). Além do próprio Pestana morrer à noite, às quatro horas e cinco minutos da
madrugada.
À vista disso, pode-se sintetizar o cronotopo de Um Homem Célebre da seguinte
forma:
Tabela 1. O cronotopo de Um Homem Célebre
Lugar-tempo Machado (42 anos). O conto de 1883.
Personagens Pestana, Sinhazinha Mota, viúva Camargo,
Haydn, editor, Maria.
Gêneros Conto
Memórias A construção do artista (e do próprio eu)
entre o ser e o querer ser em meio a
sociedade capitalista. A inconformidade do
indivíduo.
Argumentos Ambição versus vocação; indústria cultural;
o dom artístico.
Atos Reflexão sobre o fazer artístico e a
sociedade.
5. Dialogismo
Neste trecho, observa-se que o editor está preocupado com a popularidade da obra,
pouco importa seu conteúdo ou se o título que ele quer dar corresponde ao assunto sobre o
qual a música trata. Pestana no início de sua vida artística tenta fazer a poeticidade prevalecer
sobre a força mercadológica, no entanto, a personagem rende-se ao capital com o tempo.
Continuemos a análise a partir desse outro fragmento:
No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.
– Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar de sua graça. Toda gente
pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito? – Nada.
– Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato:
vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na
venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar
dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o
contrato.
– Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do
Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder, vão fazer a reforma
eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um
bom título de ocasião. (ASSIS, 1946, p. 5).
Aqui nota-se a produção em “larga escala” de polcas, como se elas fossem carros de
uma linha de produção. Pestana, precisando de dinheiro, aceita o contrato que faz dele mais
um operário da música do que artista. Além disso, apesar do editor querer dar às músicas
títulos que fazem referência a acontecimentos recentes, o objetivo dele não é retratar a
realidade, tanto é que não se importa com o conteúdo das polcas, mas apenas em garantir a
popularidade delas por meio da familiaridade que o público estabelecerá com os nomes.
A partir da leitura do conto, sabe-se que as músicas de Pestana fazem sucesso, são
conhecidas e adoradas, animam os salões de festa da burguesia ao mesmo tempo em que são
cantaroladas pelo barbeiro por exemplo. As pessoas as cantam, dançam e divertem-se. Porém
a máquina por trás dessa produção em massa que diverte e entretém faz a arte perder o que a
torna única, revolucionária. Nas palavras de Webber (1998, p 146):
A indústria cultural anula o potencial crítico da cultura ao realizar ilusoriamente
aquele ideal de liberdade e felicidade por meio de sua mercantilização. A cultura,
reduzida a simples valor de troca, deixa de prestar-se à reflexão crítica sobre as
condições de existência em que vivem os homens para servir aos propósitos de
perpetuação do status quo por meio da acomodação e do conformismo.
6. Polifonia e alteridade
Em seus estudos, Bakhtin definiu duas vertentes do romance, do qual interessa, nesse
momento, o polifônico, que está associado aos “(...) conceitos de realidade em formação,
inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo, polifonia” (BEZERRA, 2016, p. 191). E essa
multiplicidade de vozes presente na modalidade polifônica do romance teve um cronotopo
ideal, de acordo com a visão de Bakhtin, segundo Bezerra (2016, p. 193) explica:
(...) Bakhtin afirma que o romance polifônico só pôde realizar-se na era capitalista, e
justamente na Rússia, onde uma diversidade de universos e grupos sociais
nitidamente individualizados e conflituosos havia rompido o equilíbrio ideológico,
criado as premissas objetivas dos múltiplos planos e as múltiplas vozes da
existência, indicando que a essência conflituosa da vida social em formação não
cabia nos limites da consciência monológica segura e calmamente contemplativa e
requeria outro método de representação.
Com isso, faz-se importante compreender que, para Bakhtin, “a vida humana é por sua
própria natureza dialógica” (FARACO, 2009, p. 76), isto é, a quase todo momento os sujeitos
estão se relacionando, através de perguntas, respostas, atenção, discussões - sempre há uma
interação, os discursos perpassando uns aos outros. De acordo com Bakhtin (2006, p. 115):
(...) Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade.
A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia
sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra
é o território comum do locutor e do interlocutor.
Bakhtin acreditava que uma pessoa investia todo o seu ser no discurso e esse discurso
penetraria o simpósio universal (“tecido dialógico da vida humana”). Desse modo, dentro
desse simpósio universal, a comunicação constitui o ser, significa a relação do ser para o outro
e do outro para si mesmo, assim:
(...) a morte absoluta (o não ser) é o estado de não ser ouvido, de não ser
reconhecido, de não ser lembrado. (...) A subjetividade se constitui e se move no
denso caldo do simpósio universal, sendo a alteridade e a intersubjetividade,
portanto, absolutamente, indispensáveis. (FARACO, 2009, p. 76).
E quanto mais se martirizava, parecia em vão, pois não conseguia fazer nada original,
só reproduzir as músicas de seus ídolos clássicos: “(...) irritado, erguia-se, jurava abandonar a
arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em
Mozart, a imitá-lo ao piano” (ASSIS, 1946, p. 3). Outra passagem do conto que evidencia
essa relação de Pestana com ele mesmo é quando, de forma efêmera, aprecia sua nova
composição:
(...) E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da
moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma
página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e
Schumann. (ASSIS, 1946, p. 4)
Como já foi dito anteriormente, Pestana não gostava de ser reconhecido como um
mero compositor de polcas, desse modo, sua relação do eu-para-o-outro, que diz respeito à
aproximação para com o “outro”, as respostas ao outro, por mais que às vezes de forma
velada, era depreciativa, podendo ser percebida em trechos como “(...) Vexado aborrecido,
Pestana respondeu que sim, era ele” (ASSIS, 1946, p. 1), “Pestana fez uma carreta, mas
dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo”
(ASSIS, 1946, p. 1).
Outro aspecto da categoria do eu-para-o-outro que pode ser verificada, concerne na
relação de admiração que Pestana possuía com seus ídolos, quando contemplava os quadros
na parede ou ouvia as músicas:
(...) sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede.
Um só era a óleo, o de um padre, que o educara. (...) Os demais retratos eram de
compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann (...)
postos ali como santos de uma igreja. (ASSIS, 1946, p. 2).
Desse modo, Bakhtin pensa em “um mundo em que qualquer gesto centrípeto será
logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da polêmica, da ironia”
(FARACO, 2009, p. 79), consequentemente, a literatura carnavalesca também fará uso dessas
características, sendo as categorias da percepção carnavalesca do mundo o contato familiar, a
excentricidade e a profanação, assim, “a linguagem carnavalesca é familiar, repleta de
sarcasmos e insultos (FIORIN, 2017, p. 102).
De acordo com Bakhtin (1987, p. 33) “(...) o riso se atenua, e toma a forma de humor,
ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso
reduz-se ao mínimo.” Com isso, explicando a evolução literária da polifonia em Dostoievski,
Bakhtin discorre que no período helenístico os gêneros dividiam-se em sérios e cômicos e
cômicos-sérios. Destes, tem-se uma profunda marca na visão carnavalesca, principalmente
advindo da sátira menipeia, que continua influenciando a escrita carnavalesca. Dentre as
características essenciais para a temática do riso e da ironia, segundo Fiorin (2017, p. 99 -
100), há:
a) avultamento do elemento cômico; e) discussão das “últimas questões” (a morte, o
sentido da vida e assim por diante); i) gosto pronunciado pelos escândalos, pelas
condutas excêntricas, pelas infrações às normas estabelecidas de conduta e de
etiqueta, inclusive a etiqueta da fala (por isso, aparecem os discursos inconvenientes,
de uma sinceridade cínica, as profanações desmistificadoras do sagrado, a falta
exagera de etiqueta); n) opção pelos problemas contemporâneos, pela polêmica com
os discursos de sua época, pelas alusões aos acontecimentos de seu tempo.
Algo relevante de destaque, é que do século XVII quase não existe a experiência de
viver o carnaval, somente de assisti-lo, desse modo, sobre a produção de literatura
carnavalizada apresenta um novo aspecto, de acordo com o que explana Fiorin (2017, p. 115 -
116)
(...) a partir do século XVIII, a literatura carnavalizada, que vive até os nossos dias,
não tem como fonte o carnaval, mas a literatura carnavalizada precedente. A
carnavalização torna-se uma tradição literária. (...) Machado de Assis produz uma
literatura carnavalizada. No entanto, ele a produz, não a partir da vivência do
carnaval, mas da tradição literária: Cervantes, Diderot, Sterne, etc.
Ademais, há a presença do riso quando Pestana coloca a culpa no celibato por não ter
inspiração suficiente para compor um clássico:
O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo,
artisticamente, considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por
aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias,
profundas, inspiradas e trabalhadas. (ASSIS, 1946, p. 5)
O que não se mostra verdadeiro, pois logo na primeira tentativa de compor um noturno
para Maria e apresentar-lhe de surpresa, o seu plano não terminar como imaginava:
(...) Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar
um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente,
parando, interrogou-a com os olhos. − Acaba, disse Maria, não é Chopin? Pestana
empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. (ASSIS,
1946, p. 5)
Isto é, quando estava certo de que conseguiria compor um clássico para a esposa, já
que tinha a ideia fixada que era a inspiração que faltava, compôs um plágio de Chopin sem se
dar conta, assim, percebe-se que toda a trajetória de Pestana é repleta de ironia, até com um
teor de pessimismo - como pode ser visto quando Maria morre e Pestana ouve, de um baile
que estava ocorrendo na vizinhança, suas polcas sendo tocadas. Nada escapa da
carnavalização, bem como diz Fiorin (2017, p. 97/101):
Ao esforço centrípeto dos discursos de autoridade opõe-se o riso, que leva a uma
aguda percepção da existência discursiva centrífuga. (...) A força corrosiva do riso
leva a uma explosão de liberdade, que não admite nenhum dogma, nenhum
autoritarismo, nenhuma seriedade tacanha.
Por fim, há o riso envolvendo as questões políticas vigentes. Nessa época, o governo
do Império estava passando pelo Período Regencial, em que havia a alternância de grupos
(mais tarde, transformados em partidos) de teor ora liberal, ora conservador. Dessa maneira,
após fecha um contrato, o editor diz a Pestana que a produção da primeira polca deveria
começar imediatamente, era urgente, pois “os liberais foram chamados ao poder, vão fazer
reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um
bom título de ocasião” (ASSIS, 1946, p. 6). Adiante, quando Pestana está quase morrendo, diz
que “(...) como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; outra
servirá quando subirem os liberais” (ASSIS, 1946, p. 7). Essas referências às autoridades
condizem com o que discorre Soerensen (2011, p. 322) sobre a suspensão das hierarquias
durante o carnaval:
A eliminação provisória das relações hierárquicas produziu o aparecimento de uma
linguagem carnavalesca típica. As formas e símbolos da linguagem carnavalesca
estão embebidos da noção e lirismo da alternância e da renovação, da consciência da
alegre relatividade das verdades e das autoridades do poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1996.
ASSIS, Machado de. Um Homem Célebre. In: Várias Histórias. Rio de Janeiro: W. M.
Jackson Inc. 1946.
______. Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes: 1997.
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