Você está na página 1de 23

UM HOMEM CÉLEBRE: UMA ANÁLISE DO CONTO MACHADIANO SOB A

PERSPECTIVA BAKHTIANIANA

Aline dos Anjos do Rosário1


Ana Beatriz Torres Correa2
Luana da Silva Coelho3
Orientador: Dr. Raphael Bessa Ferreira4

RESUMO: Partindo do pressuposto de que as obras deixadas por Machado de Assis, um dos
maiores escritores brasileiros, são carregadas de discussões e reflexões que perpetuam até os
dias atuais, o presente artigo tem por objetivo analisar, a partir de conceitos explorados pelo
Círculo de Bakhtin, o conto machadiano Um Homem Célebre, de 1883, que retrata as
dificuldades pessoais vivadas pelo protagonista - Pestana - em meio a dualidade da vocação
versus ambição. Para tanto, foram escolhidos para a análise os conceitos de gêneros,
cronotopo, dialogismo, polifonia, alteridade e carnavalição (riso e ironia), perpassando,
principalmente, por Bakhtin (1987; 1997; 2003; 2006) e outros autores que fizeram releituras
ao longo do tempo, como Bezerra (2016), Faraco (2009) e Fiorin (2017). Como metodologia,
utilizou-se a pesquisa bibliográfica, que se desenvolve pela averiguação e estudo de materiais
já elaborados e discutidos anteriormente por livros meios (como livros e artigos), algo
explanado por Gil (2008) e Lakatos e Marconi (2003). Desse modo, inferiu-se que o conto
machadiano continua extremamente atual, visto que trata sobre temais universais como o
fazer artístico, o sucesso, a fama, vocação e ambição.

PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Círculo de Bakhtin; Conceitos; Conto;


Machado de Assis.

1. Introdução

Joaquim Maria Machado de Assis, ou simplesmente Machado de Assis, foi um escritor


brasileiro nascido no Rio de Janeiro, em 1839. Sempre procurando estímulos para escrever e
alcançando bom status em meio a burocracia administrativa, atuando em diversas funções: de
chefe da Diretoria do Comércio, do Ministério da Agricultura (1892) a diretor geral da

1
Graduanda do curso de Letras-Língua Portuguesa/2019 da Universidade do Estado do Pará. Email:
aline.anjos.75248@gmail.com.
2
Graduanda do curso de Letras-Língua Portuguesa/2019 da Universidade do Estado do Pará. Email:
anabeatriztorres54@gmail.com.
3
Graduanda do curso de Letras-Língua Portuguesa/2019 da Universidade do Estado do Pará. Email:
coelho.luana1@gmail.com.
4
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo.
Docente da área de Literatura do Departamento de Língua e Literatura da Universidade do Estado do Pará.
Contabilidade do Ministério. Mas foi na literatura que ele deixou sua marca profunda, com
obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, que lhe rendeu o título de iniciante do
Realismo no Brasil, Quincas Borda e Dom Casmurro, Machado funda, em 1896, juntamente a
outros escritores, a Academia Brasileira de Letras, sendo o primeiro presidente oficial.
Dessa forma, como autor atemporal, suas obras são estudas e analisadas até hoje,
como é o caso deste artigo. Com auxílio dos conceitos criados e explorados pelo filósofo e
pensador russo Mikhail Bakhtin, um dos mais influentes estudiosos da Análise do Discurso.
Assim, utilizou o conto machadiano Um Homem Célebre, que inicialmente foi publicado no
periódico A Estação, em 1883 e posteriormente incluído na coletânea Várias Histórias, em
1896.
Para desenvolvendo da pesquisa, partiu-se de seis conceitos: gêneros do discurso, que
são tipos relativamente estáveis de enunciados, compostos por tema, estrutura visual ou
escrita que determinado gênero pode apresentar. O cronotopo, em que as relações de tempo e
espaço são colocadas em evidência. O dialogismo, que é o embate de vozes que compõe um
discurso. A polifonia, que diz respeito as várias vozes e consciências que circulam em um
mesmo espaço, juntamente a alteridade, que é a relação do eu com comigo e com os outros. E
a carnavalização, que através do riso e da ironia, descontrói ideias estabelecidas e de
autoridade e hierarquia.
Isso posto, para a metodologia, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, que corresponde
a coleta de materiais já elaborados e discutidos anteriormente em diversas formas, como em
livros, artigos e periódicos de caráter científico, que, neste caso, abordem os conceitos da
Análise do Discurso que serão pontuados no conto de Machado. De acordo com Gil (2008) a
principal vantagem desse tipo de pesquisa “reside no fato de permitir ao investigador a
cobertura uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar
diretamente”. (p. 50) e sua finalidade, segundo Lakatos & Marconi (2003) “é colocar o
pesquisador em contato direto com tudo o que já foi escrito, dito ou filmado sobre
determinado assunto”. (p. 182).
Portanto, este artigo estruturou-se nos seguintes tópicos: introdução, resumo e
estruturação narrativa do conto, gêneros do discurso, cronotopo, dialogismo, polifonia e
alteridade, carnavalização (riso e ironia) e as considerações finais.

2. Um Homem Célebre: resumo e estrutura


O conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis, narra a história de Pestana, um
compositor de polcas que reside no Rio de Janeiro no ano de 1875. A prosa relata a constante
insatisfação do músico com relação às suas composições, já que apesar de criativo e famoso,
Pestana não se sentia completo e feliz como desejara.
O personagem, na realidade, tinha o sonho de compor como Mozart e Beethoven, ou
seja, de forma clássica e original: Pestana queria produzir uma sonata. No entanto, sempre que
se sentava ao piano, somente produzia polcas, estas, por sua vez, eram tão boas que
facilmente caíam no gosto popular, o que entristecia profundamente Pestana a ponto de odiar
suas músicas.
A obra Machadiana, desde o início e durante toda a sequência de acontecimentos que
são gerados a partir da primeira noite narrada, dizem muito sobre o quão infeliz era o músico,
embora sua fama e glória estivessem no auge. A insatisfação de Pestana leva-o à falência, não
apenas se tratando de finanças, mas sobretudo um fracasso na essência, que é causado por
uma constante cobrança de perfeição (o músico sempre tentava ser como seus ídolos) a qual
ele não conseguia alcançar. Pestana, inclusive, casa com Maria, uma cantora e admiradora dos
clássicos, acreditando que essa seria a solução para seu problema - entretanto, tudo se
transforma em tragédia, pois mesmo com a morte da esposa, ele não consegue compor um
clássico. Desse modo, o destino do protagonista parece inevitável: morre sendo apenas
reconhecido como compositor de polcas, sua maior angústia.
Machado de Assis, ao escrever esse conto, fala sobre a essência humana e alerta a
respeito do dualismo sonhos versus aparências, onde o homem (materializado no personagem
do conto) apresenta sonhos e ambições que são aniquiladas pela manutenção de uma
aparência que, na verdade, não é tão importante. A sociedade em que Pestana estava inserido
o cobrava em demasia, as pessoas o cobravam e, sobretudo, um sistema esmagador quebrava
seus objetivos em mil pedaços.
Há no conto reflexões que precisam ser discutidas e, acima de tudo, levadas para a sala
de aula: o músico precisou fazer escolhas, ou ele sobrevivia de sua música, mas levava uma
vida triste; ou corria atrás de seus sonhos e morrer à mercê do modelo econômico capitalista.
Estas são verdades extremamente atuais que, já em sua época, Machado de Assis procurava
desmascarar.
No que diz respeito aos fatores estruturantes da matéria literária, a voz que enuncia o
conto é a de um narrador demiurgo ou onisciente; este é senhor absoluto do mundo onde se
passa a narrativa e conhece completamente os fatos e os conflitos externos e internos do
passado, presente e futuro das personagens. Exemplificando:
(...) Pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo,
Rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e
patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos setenta anos em que entrava, e foi
a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. (ASSIS,
1946, p. 1)

Neste trecho, o narrador demonstra conhecimento sobre acontecimentos posteriores ao


momento que é apresentado na narrativa, explicitando a data da morte da viúva meses alguns
meses à frente.
O narrador também mostra seu saber sobre o passado das personagens e sobre seus
pensamentos e sentimentos ao relatar, além da hora exata da morte do protagonista, que a
personagem nunca havia feito uma piada antes, fazendo a primeira um pouco antes de morrer
e que Pestana estava insatisfeito consigo mesmo, tal como mostra esse trecho: “Foi a única
pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às
quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.”. (ASSIS, 1946, p.
7).
O enunciador da efabulação parece estar ciente também das fofocas que circundam as
personagens e o universo narrativo, como no seguinte fragmento: “(...) cumprimentou uns dez
retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe
ensinara latim e música. E que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana.”. (ASSIS,
1946, p. 2). Dessa forma, naturalmente, a narração é feita a partir de um foco onisciente ou
externo subjetivo, no qual há pleno conhecimento do universo literário.
Como expresso anteriormente Um Homem Célebre é um conto e, portanto, possui as
características típicas deste gênero narrativo: de forma geral, representa apenas um fragmento,
um momento significativo da vida da personagem, a duração temporal é curta, as personagens
e o espaço são brevemente caracterizados e a efabulação desenvolve-se em torno de um único
motivo central, de uma situação principal.

3. Gêneros do discurso

O estudo sobre gêneros remota da clássica teoria de divisão da poética, pensada por
Aristóteles, que dividia os discursos literários em épico (poesia de segunda voz), lírico (poesia
de primeira voz) e dramático (poesia de terceira voz) e os definia como “(...) obras da voz
tomando como critério o modo de representação mimética.” (Machado, 2005, p. 151), isto é, o
filósofo partia de um meio, que é a voz, para hierarquizar o discurso nas obras literárias,
traçando uma normatização para a poética.
Além de Aristóteles, Platão também teorizou os gêneros discursivos partindo de uma
classificação binária, na qual as esferas (gêneros) eram divididas a partir de juízos de valor.
Assim, “(...) ao gênero sério pertencia a epopeia e a tragédia; ao burlesco, a comédia e a
sátira.” (Machado, 2005, p. 151). E em “A República”, o filósofo postula uma tríade tomando
como ponto de partida a dualidade entre realidade e representação, dizendo que “ao gênero
mimético ou dramático pertencem a tragédia e a comédia; ao expositivo ou narrativo, o
ditirambo, o nomo e a poesia lírica; ao misto, a epopeia.” (Machado, 2005, p. 151/152).
Todavia, é importante salientar que, embora a teoria dos gêneros tenha surgido na
Poética e na Retórica de Aristóteles e, posteriormente, se consagrado na literatura como
principal teoria de análise, na discussão aqui proposta não cabe discorrer a respeito da
evolução do conceito de gêneros. Deve-se, portanto, partir do surgimento do gênero
conhecido como prosa comunicativa, que exigia um aprofundado estudo e análise do discurso
e da interação que perpassava essa categoria.
Dessa forma, fundamenta-se a discussão de gêneros do discurso nos postulados de
Mikhail Bakhtin, o qual considerava o processo dialógico da comunicação, já que a língua é
um meio de interação social e, a partir dessa mudança de rota nos estudos dos gêneros
discursivos, pode-se afirmar que “graças a essa abertura conceitual é possível considerar as
formações discursivas do amplo campo da comunicação mediada, seja aquela processada
pelos meios de comunicação de massa ou das modernas mídias digitais (...)” (Machado, 2005,
p. 152).
Para Bakhtin (2003, p. 282): “Falamos apenas através de determinados gêneros do
discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas
de construção do todo.” Ou seja, tudo o que é produzido pelo homem em forma de linguagem
oral ou escrita tem uma característica própria, e esta, com relação a ouros gêneros, podem ser
relativamente estáveis (mudar) ou permanecer assim como é. Este conceito, segundo Bentes
(2011, p. 17) é extremamente produtivo se for comparar com os anteriores, usados nos
estudos literários, já que trata o estudo de gêneros partindo de um uso real da língua,
dialogando com a interação oral, e não somente a tradição escrita.
Além disso, um dos conceitos para gêneros discursivos está intimamente atrelado aos
campos da atividade humana (Bakhtin, 2003), que são “(...) instâncias em que ocorrem
discursos, tais como a área jurídica, jornalística, religiosa, acadêmica, etc.” (Bentes, 2011, p.
17), e as pessoas, para participarem de determinados campos, precisam portar características
comuns como falar, por exemplo. Os gêneros se apresentam nestes campos porque um mesmo
discurso pode ocorrer em vários campos, e todo discurso, consequentemente, é um gênero
discursivo. Como afirma Bakhtin (2003, p. 248):
A riqueza e diversidade dos gêneros discursivos é imensa, porque as possibilidades
da atividade humana são inesgotáveis e porque em cada esfera da práxis existe todo
um repertório de gêneros discursivos que se diferencia e cresce à medida que se
desenvolve e se complexifica a própria esfera.

Assim, pode-se concluir que os gêneros discursivos são tipos de enunciados


compostos por um tema, uma estrutura específica e um estilo, e
(...) pressupõe legitimidade em um campo da atividade humana, um ou mais
interlocutores; pressupõe por finalidade reconhecida implícita, um lugar e um
momento legítimo de circulação; um suporte que será locus de veiculação desse
gênero e uma estrutura composicional relativamente estável. (BENTES, 2011, p. 18)

O conto machadiano Um Homem Célebre se encaixa perfeitamente na categoria dos


gêneros discursivos, proposta por Mikhail Bakhtin, se considerarmos primeiramente a
tipologia textual que este apresenta, com características próprias, linearmente escrito em
prosa, com personagens e um tempo narrativo pontualmente descritos. Assim, segundo Silva
(1999, p. 06) “o discurso, materializado na forma de texto, apresenta características que lhe
são geralmente comuns, moldadas pelas regras do funcionamento do(s) gênero(s), essas, por
sua vez, articuladas no interior das interações das esferas das relações sociais.”
Deve-se considerar que as designações direcionadas aos discursos é que fazem com
que estes sejam gêneros discursivos. Ora, Machado de Assis, ao produzir o texto, estava em
um tempo e local definidos, o escreveu com a intenção de criticar um sistema que impede a
produção de sonhos nas pessoas; estabeleceu na escrita uma característica composicional
relativamente estável e convencionalmente chamada de conto, e este está anexado a um
campo da atividade humana, diz-se, então, que a obra de Machado é um gênero discursivo.
Ademais, toda quantidade de textos que apresentem essas mesmas características designam o
gênero discursivo “conto”.
É possível observar no conto que há uma cadeia de discursos perpassados em um
tempo e local definidos: o Rio de Janeiro da década de 1870. A sociedade carioca gira em
torno de um campo da atividade humana, o sistema econômico vigente da época (e que é até
hoje), o qual corrompe ideais e aniquila esperanças; faz com que as pessoas vivam frias e
infelizes por verem suas vontades escaparem por entre suas mãos. Um Homem Célebre é um
conto para além de uma análise literária e discursiva, é para se refletir o que estamos fazendo
com nossas vidas, se somos realizados com o que temos e, sobretudo, se vale a pena abrir mão
dos sonhos em prol da satisfação alheia.
As pessoas precisam sobreviver ao caos instalado tanto do lado de fora quanto dentro
de si mesmo; cada personagem do conto tem uma história e conflitos que o autor vai
desencadeando ao longo do texto, o que provoca no leitor a sensação de estar exposto a
situações comunicativas reais, ou seja, não é uma fábula que é sabido o final e todos sabem
que não passa de fantasia. O teor atual, embora a linguagem característica da época, faz com
que o leitor se aproxime do texto, se enxergue nele e queira fazer diferente. Essa, com certeza,
foi a intenção de Machado de Assis.

4. Cronotopo

Relacionando as noções de tempo e espaço, surge o cronotopo (do grego cronos >
tempo e topos > espaço), isto é, para Bakhtin é indissociável esses dois elementos dentro das
manifestações literárias, havendo, assim, uma ligação direta entre literatura e história.
Segundo Fiorin (2017, p. 144) “as pessoas organizam o universo de sua experiência
imediata com imagens do mundo, criadas a partir das categorias de tempo e espaço, que não
inseparáveis”. Assim, de acordo com o conceito desenvolvido pelo autor supracitado, com
base nos estudos do círculo bakhtianiano, o cronotopo configura:
(...) uma ligação entre o mundo real e o mundo representado, que estão em interação
mútua. É uma categoria conteudístico-formal, que mostra a interligação fundamental
das relações espaciais e temporais, representadas nos textos, principalmente
literários. Cabe acrescentar que seu princípio condutor é o tempo. (FIORIN, 2017, p.
145)

Desse modo, através do cronotopo presente nas obras literários, é possível ter noção
dos aspectos temporais e espaciais da época em que determinado texto foi escrito e perceber
como esses aspectos se relacionaram com a sociedade ao decorrer dos anos, ou seja, “os
textos literários revelam-nos os cronotopos de épocas passadas e, por conseguinte, a
representação do mundo que tinha a sociedade em que eles surgiram”. (FIORIN, 2017, p.
145).
Por meio da análise do cronotopo faz-se capaz apreender em uma obra literária a sua
classificação (as tipologias dos romances, das narrativas, etc.), descrever a estrutura,
distinguir os gêneros discursivos, entre outros.
Em se tratando de Um Homem Célebre, por pertencer ao gênero conto, o tempo e
espaço são mais reduzidos, além destes demonstrarem características do movimento realista
que Machado estava inserido. O elemento central de seu enredo, como já foi posto
anteriormente, é a questão da ambição versus a vocação pela qual passa Pestana, que não
consegue atingir os feitos de seus ídolos da música clássica, como Mozart, Beethoven e Bach,
sendo somente reconhecido por suas polcas, algo que se torna um martírio, morrendo, assim,
sem alcançar imortalidade no meio da cultura erudita que tanto almejava. Ele entendia que
esta tinha “(...) muito mais chance de se perpetuar no tempo do que a popular, e a sua
frustração provém de que, não produzindo uma música ‘superior’, seu nome será esquecido”
(KALIFE JÚNIOR, 2013, p. 8). Pestana queria ser consagrado pela cultura erudita, visto que,
como discorre Aranha (1996, p. 40):
Com a cultura erudita, são produzidas as obras-primas que revolucionam os
diversos campos do saber e da ação, como as descobertas científicas, os novos
modos de pensar, as técnicas revolucionárias, as grandes obras literárias ou artísticas
em geral, enfim, produtos humanos que provocam “cortes” na maneira de pensar e
agir e que, por isso, se tornam clássicos.

É curioso notar que tal situação ainda é muito atual, em que a música se torna algo
para ser apenas comercializado, onde artistas que não conseguem chegar ao nível que querem
e por muitas vezes ficam presos a modas estabelecidas pela indústria cultural e adotadas por
empresários e produtores (no conto representado pela figura do editor) para atingir a cultura
de massa, assim, o que é retratado no século XIX, perpetua até o tempo atual. Bem como diz
Bezerra (2016, p. 192 - 193), “para Bakhtin, a reificação do homem surge com a sociedade de
classes e chega ao seu limite com o capitalismo, [reduzindo] os indivíduos à condição de
objetos”.
Essa reificação do homem, isto é, a valorização excessiva das coisas, em detrimento às
pessoas, condiz perfeitamente com o ambiente disseminado pela indústria cultural. De acordo
com Adorno e Horkheimer (2002, p. 27):
(...) As pessoas são reduzidas a meras coisas que aqueles que delas dispõem podem
colocá-las por um instante no céu para logo em seguida jogá-las no lixo; e que vão
para o diabo com os seus direitos e o seu trabalho. A indústria se interessa pelos
homens apenas como pelos próprios clientes e empregados, e reduziu, efetivamente,
a humanidade no seu conjunto, como cada um dos seus elementos, a esta forma
exaustiva.

Os obstáculos que impedem o protagonista do conto de realizar o seu sonho são


vários: a indústria cultural que cultuava a polca, o fato de Pestana venerar tanto seus ídolos,
ao ponto de não conseguir fazer algo realmente original, a diferença do quer ser e o ser. O
protagonista de Machado queria deixar sua marca na música clássica, já que, para ele, ser
reconhecido por compositor de polcas não a marca erudita suficiente. A questão de Pestana
ser só lembrado pelas polcas, um estilo corriqueiro na época, que tantos outros poderiam
fazer, também pode ser vista pela perspectiva de Adorno e Horkheimer (2002, p. 26) sobre a
indústria cultura, que:
(...) perfidamente realizou o homem como ser genérico. Cada um é apenas aquilo
que qualquer outro pode substituir: coisa fungível, um exemplar. Ele mesmo como
indivíduo é absolutamente substituível, o puro nada, e é isto que começa a
experimentar quando, com o tempo, termina por perder a semelhança.

Além do mais, outro ponto destacado por Adorno e Horkheimer (1947, p. 57) é que a
indústria cultural utiliza a técnica da padronização e produção em série, como pode ser
constatado em determinada parte do conto de Machado, em que o editor de Pestana lhe
oferece um novo contrato:
(...) Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo,
e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar
dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o
contrato. (ASSIS, 1946, p. 6)

O espaço do conto é pouco variado, passando-se a ação toda no Rio de Janeiro, sendo
denominada a passagem de várias ruas, como a Rua do Areal, Formosa, Aterrado... levando o
leitor a se familiarizar com o ambiente, além da casa de Pestana, local das diversas tentativas
de se tornar um músico clássico. Além da presença da casa de Pestana, descrita como velha,
mas em que mantinha seu santuário com os retratos de seus grandes ídolos e o piano como
altar.
O foco presente na cidade supracitada também é uma forma de apresentar ao leitor a
vida de dada parte social daquela época: publicado em 1883, o tempo no conto se passa,
aproximadamente, entre os anos de 1875 e 1885, em que a sociedade burguesa carioca era
fascinada pelos saraus, música popular, festas.
É interessante notar como a noite configura, em diversos momentos, um tempo
constante para Pestana. A noite sempre foi ligada a figura do músico, por ser o principal
período para apresentações, mas, além disso, no conto de Machado é um momento de vida e
morte. Vida, porque durante a noite Pestana refletia: “(...) noites e noites, gastou-se assim,
confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da
música fácil” (ASSIS, 1946, p. 4). Buscava inspiração para compor, como na seguinte
passagem do texto:
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para
as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de
pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento mas o
pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-
lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse
descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma
constelação de partituras. (ASSIS, 1946, p. 2)

Aliás, mesmo quando não era à noite, o tempo escuro acompanhava Pestana que, no
trecho abaixo, mostra um momento de pura inspiração dele:
(...) − Mas parece que hoje chove. − Chove, repetiu Pestana maquinalmente. −
Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro. Pestana olhava para o preto, vago,
preocupado. De repente: − Espera aí. Correu à sala dos retratos, abriu o piano,
sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou tocar alguma cousa própria,
uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os
anúncios. (ASSIS, 1946, p. 3)

E a morte, dito anteriormente, diz respeito a uma das partes mais pesadas do conto, em
que a esposa de Pestana, Maria, morre. Isto é, o período em que Pestana mais refletia, buscava
inspiração e escrevia, foi também marcado pela morte daquela que ele considerava que seria
sua inspiração para adentrar ao erudito: “Maria (...) ia tossindo e morrendo, até que expirou,
uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado. Era noite de Natal.” (ASSIS,
1946, p. 5). Além do próprio Pestana morrer à noite, às quatro horas e cinco minutos da
madrugada.
À vista disso, pode-se sintetizar o cronotopo de Um Homem Célebre da seguinte
forma:
Tabela 1. O cronotopo de Um Homem Célebre
Lugar-tempo Machado (42 anos). O conto de 1883.
Personagens Pestana, Sinhazinha Mota, viúva Camargo,
Haydn, editor, Maria.
Gêneros Conto
Memórias A construção do artista (e do próprio eu)
entre o ser e o querer ser em meio a
sociedade capitalista. A inconformidade do
indivíduo.
Argumentos Ambição versus vocação; indústria cultural;
o dom artístico.
Atos Reflexão sobre o fazer artístico e a
sociedade.

5. Dialogismo

O sujeito social está inserido em um “mar” de discursos construídos e produz


enunciados que estabelecem relações de sentido com outros enunciados; uma voz está sempre
repleta de outras vozes. Dessa forma, os enunciados possuem sempre sentido de ordem
dialógica, pois o enunciador constrói seu discurso irremediavelmente influenciado,
atravessado pelo discurso de outro(s), que consequentemente está presente no seu. À relação
dessa multiplicidade de vozes que compõem um discurso, dá-se a definição de Dialogismo,
conceito estabelecido pelo teórico russo Mikhail Bakhtine possivelmente o mais conhecido do
Círculo Bakhtiniano.
Visto que as diversas vozes sociais e individuais coabitam dentro do sujeito, é preciso
fazer uma consideração sobre a relação dialógica entre elas, nas palavras de Fiorin (2017, p.
28):
As relações dialógicas tanto podem ser contratuais ou polêmicas, de divergência ou
de convergência, de aceitação ou de recusa, de acordo ou de desacordo, de
entendimento ou de desinteligência, de avença ou de desavença, de conciliação ou
de luta, de concerto ou de desconcerto. (...). Se a sociedade é dividida em grupos
sociais, com interesses divergentes, então os enunciados são sempre o espaço de luta
entre vozes sociais, o que significa que são inevitavelmente o lugar da contradição.

Nesse sentido, sendo a realidade heterogênea, o sujeito absorve diferentes vozes


sociais e é constitutivamente dialógico. Seu mundo interior e integrado por diversas vozes, as
quais estabelecem entre si relações de concordância e discordância.
O mundo interior é formado a partir da heterogeneidade dialógica das vozes sociais.
Os enunciados, construídos pelo sujeito, são constitutivamente ideológicos, pois são uma
resposta ativa às vozes interiorizadas. Por isso, eles nunca são expressão de uma consciência
individual, descolada da realidade social, uma vez que ela é formada pela incorporação das
vozes sociais em circulação na sociedade. (FIORIN, 2017, p. 64).
Percebe-se, portanto, que o “eu” de cada sujeito está repleto de “eus” indicando a
interação viva das vozes sociais que faz cada ser humano um ser social e individual e
possibilita uma pluralidade na individualidade. A voz que dar à luz aos discursos de cada um
está constantemente sob influência de outras vozes, na mesma medida em que voa, ganhando
dimensão, força e “unindo-se” à outras, para formar novos discursos dos quais ela fará parte.
De diferentes formas o dialogismo pode auxiliar na construção de uma narrativa e de
uma personagem; em “Um homem célebre”, analisar-se-á as vozes que perpassam em
inúmeros momentos o discurso de Pestana e a narrativa em geral, dando maior atenção ao
embate entre Cultura Popular e Cultura Erudita e a relação dialógica entre Mercado e Arte.
No início do conto, Pestana está em sarau íntimo e a ele é solicitado que tocasse uma
quadrilha, de bom grado o músico corre ao piano e toca; logo em seguida a anfitriã da casa
pede que ele toque uma polca sua “Não Bula Comigo, Nhonhô” e o narrador deixa muito
claro o descontentamento de Pestana diante do pedido e, sobretudo, por ter que correspondê-
lo, tocando a polca.
A personagem foge do sucesso e da popularidade de suas polcas. Mais adiante o
narrador nos descreve parte da casa de Pestana e destaca a quantidade quadros que ele possui
de compositores de música clássica, como: Beethoven, Mozart, Schumann, Cimarosa. Por
conseguinte, apresenta-se ao leitor o esforço tremendo do protagonista para produzir músicas
que se comparem às dos seus ídolos nos retratos da parede; ele busca inspiração no que pode
para fazer música clássica, música que seria eternizada pela posteridade; seu sonho era entrar
para o roll de artistas imortais, o que apenas a produção de polcas não faria. Entretanto, o
músico só conseguia produzir esse tipo de música. As polcas surgiam na mente de Pestana
com naturalidade e fluidez e eram materializadas por seus dedos ao piano rapidamente, sem
nenhum obstáculo ou dificuldade. Isso era motivo de frustração para o protagonista que
ambiciona ser um autor de música clássica, mas sua vocação estava voltada para música
popular. Aqui percebe-se a influência conflituosa de trações culturais que também explicitam
as vozes sociais de um universo social.
Pestana encontra-se situado na relação entre o popular e o erudito e essa relação
influencia de sobremaneira a construção da personagem e o desenvolvimento da narrativa.
Para melhor discutir dessa relação dialógica, é indispensável delinear o conceito dos dois
tipos de cultura que serão abordados neste momento. Segundo Tomazi (2008), Cultura
Popular corresponde à manifestação genuína de um povo e pode ser expressa em contos,
mitos, artesanato rústico, assim como em grafites, sincretismo musicais etc; para Aranha
(1996, p. 40):
A cultura erudita é a produção elaborada, acadêmica, centrada no sistema
educacional, sobretudo na universidade, também conhecida como cultura de elite,
por ser produzida por uma minoria de intelectuais das mais diversas especialidades.
Com a cultura erudita são produzidas (...) as grandes obras literárias, ou artísticas em
geral.

Nesse contexto, enquadra-se a polca em Cultura Popular e naturalmente as músicas


clássicas em Cultura Erudita. A popularidade da polca nos salões de música do século XIX é
inegável, no entanto depois de um tempo este ritmo saiu de moda e foi absorvido pelo choro e
posteriormente submetido aos “novos” padrões do samba. Essas mudanças estilísticas na
polca são um processo natural em tradições da cultura popular, porque diferentemente do
folclore (que procura conservar as tradições como sempre o foram, sem adaptá-las ou
transformá-las), a cultura não é estática, ela é ativa, viva e mutante. A Cultura Erudita também
se transforma, adquire novos padrões, mas o fato é que a obra pertencente a este roll
imortaliza o nome do artista, enquanto a pertencente à Popular dá a ele o anonimato ao
transformar sua obra em bem coletivo.
Há uma história contada por Paulo Cesar Pinheiro, grande compositor de música
popular e poeta, na qual ele relata que um dia recebeu um cartão de natal no qual estava
escrito “O importante é que nossa emoção sobreviva”; a frase foi criada pelo compositor na
década de setenta e estava sendo utilizado no cartão como se não tivesse autoria e já fosse de
domínio popular.
Voltando para o protagonista do nosso conto, Pestana queria o reconhecimento da
posteridade, queira seu nome reconhecido e imortalizado e, para isso, ambicionava mais que
tudo compor música clássica, no entanto, sua vocação não era esta e, por isso, como o próprio
narrador diz “morreu mal consigo mesmo”.
Essas duas vozes estavam em constante conflito dentro do autor travestidas de
ambição e vocação; seus desejos, seu maior sonho, sua frustração e suas atitudes foram
intensamente influenciadas por esse embate o qual auxiliou na evolução da narrativa e da
personagem.
Outra relação dialógica a ser ressaltada no texto é a entre Mercado e Arte. Dois
conceitos serão essenciais para o desenvolvimento desta análise, o de Indústria Cultural e
Cultura de Massa. Segundo Aranha (1996, p. 41):
A cultura de massa resulta dos meios de comunicação de massa, ou mass media. São
considerados meios de comunicação de massa o cinema, o rádio, a televisão, o
vídeo, a impressa, as revistas de grande circulação, que atingem rapidamente um
número enorme de pessoas pertencentes a todas as classes sociais e de diferente
formação cultural. (...) Ao contrário da cultura popular, a cultura de massa é
produzida “de cima pra baixo”, impõe padrões e homogeneíza o gosto por meio do
poder de difusão de seus produtos. Em linhas gerais, é também uma produção
estandardizada, visando o passatempo, o divertimento e o consumo.

Já Indústria Cultural é conceito utilizado para designar a forma de produzir cultura


usando as técnicas de produção capitalista industrial. Feitas as devidas considerações,
retornemos à análise.
No decorrer da história, percebe-se que a polca foi apropriada pela cultura de massa,
algo típico da industrial cultural, visando suprir a demanda das massas e obter lucro, sem se
preocupar com a arte enquanto bem cultural, mas sim como produto comercial que precisa
abastecer o mercado. Essas observações podem ser corroboradas na relação de Pestana com o
editor que lhe comprava as músicas:
Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andaria já por
umas trinta. O editor achou-a linda.
– Vai fazer grande feito.
Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca em 1871, quis
dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor abanou a cabeça e
disse-lhe que os título deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão
a algum sucesso doa dia,– ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28
de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa.
– Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa, perguntou o autor.
– Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.
Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a
polca, mas não tardou que compusesse outra; e a comichão da publicidade levou-o a
imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou
apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante. (ASSIS, 1946, p. 3).

Neste trecho, observa-se que o editor está preocupado com a popularidade da obra,
pouco importa seu conteúdo ou se o título que ele quer dar corresponde ao assunto sobre o
qual a música trata. Pestana no início de sua vida artística tenta fazer a poeticidade prevalecer
sobre a força mercadológica, no entanto, a personagem rende-se ao capital com o tempo.
Continuemos a análise a partir desse outro fragmento:
No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.
– Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar de sua graça. Toda gente
pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito? – Nada.
– Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato:
vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na
venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar
dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o
contrato.
– Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do
Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder, vão fazer a reforma
eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um
bom título de ocasião. (ASSIS, 1946, p. 5).

Aqui nota-se a produção em “larga escala” de polcas, como se elas fossem carros de
uma linha de produção. Pestana, precisando de dinheiro, aceita o contrato que faz dele mais
um operário da música do que artista. Além disso, apesar do editor querer dar às músicas
títulos que fazem referência a acontecimentos recentes, o objetivo dele não é retratar a
realidade, tanto é que não se importa com o conteúdo das polcas, mas apenas em garantir a
popularidade delas por meio da familiaridade que o público estabelecerá com os nomes.
A partir da leitura do conto, sabe-se que as músicas de Pestana fazem sucesso, são
conhecidas e adoradas, animam os salões de festa da burguesia ao mesmo tempo em que são
cantaroladas pelo barbeiro por exemplo. As pessoas as cantam, dançam e divertem-se. Porém
a máquina por trás dessa produção em massa que diverte e entretém faz a arte perder o que a
torna única, revolucionária. Nas palavras de Webber (1998, p 146):
A indústria cultural anula o potencial crítico da cultura ao realizar ilusoriamente
aquele ideal de liberdade e felicidade por meio de sua mercantilização. A cultura,
reduzida a simples valor de troca, deixa de prestar-se à reflexão crítica sobre as
condições de existência em que vivem os homens para servir aos propósitos de
perpetuação do status quo por meio da acomodação e do conformismo.

É perceptível, portanto, que o discurso do mercado e da arte atravessa toda a narrativa


de Machado de Assis, suscitando reflexões sobre a arte enquanto mercadoria do mundo
capitalista. Essas vozes perpassando a história ajuda-a a potencializar a criticidade do conto e
possibilita reflexões ainda muito atuais, contribuindo para que ainda hoje “Um homem
célebre” do século XIX, seja tão contemporâneo e provoque reflexões como “os POP’s, os
Funks’s, os Rocks’s da vida são mais arte/cultura ou mais produto de consumo em massa?”

6. Polifonia e alteridade

Partindo do dialogismo, entende-se por polifonia as várias vozes e consciências que


circulam em um mesmo espaço e “interagem num diálogo infinito” (FARACO, 2009, p. 77).
Entretanto, levando em consideração que o termo “polifonia” foi introduzido por Bakhtin para
designar um modo de narração de Dostoievski, para que não se confundir os conceitos
bakhtianianos envolta do diálogo, discurso e vozes, Faraco (2009, p. 77-78) faz a seguinte
afirmação:
Polifonia não pode, desse modo, ser confundido com heteroglossia ou
plurivocidade, que são termos utilizados por Bakhtin para designar a realidade
heterogênea da linguagem quando vista pelo ângulo da multiplicidade de línguas
sociais (“o plurilinguismo real”). (...) Polifonia não é, para Bakhtin, um universo de
muitas vozes, mas um universo em que todas vozes são eqüipolentes”.

Em seus estudos, Bakhtin definiu duas vertentes do romance, do qual interessa, nesse
momento, o polifônico, que está associado aos “(...) conceitos de realidade em formação,
inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo, polifonia” (BEZERRA, 2016, p. 191). E essa
multiplicidade de vozes presente na modalidade polifônica do romance teve um cronotopo
ideal, de acordo com a visão de Bakhtin, segundo Bezerra (2016, p. 193) explica:
(...) Bakhtin afirma que o romance polifônico só pôde realizar-se na era capitalista, e
justamente na Rússia, onde uma diversidade de universos e grupos sociais
nitidamente individualizados e conflituosos havia rompido o equilíbrio ideológico,
criado as premissas objetivas dos múltiplos planos e as múltiplas vozes da
existência, indicando que a essência conflituosa da vida social em formação não
cabia nos limites da consciência monológica segura e calmamente contemplativa e
requeria outro método de representação.

Com isso, faz-se importante compreender que, para Bakhtin, “a vida humana é por sua
própria natureza dialógica” (FARACO, 2009, p. 76), isto é, a quase todo momento os sujeitos
estão se relacionando, através de perguntas, respostas, atenção, discussões - sempre há uma
interação, os discursos perpassando uns aos outros. De acordo com Bakhtin (2006, p. 115):
(...) Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade.
A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia
sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra
é o território comum do locutor e do interlocutor.

Bakhtin acreditava que uma pessoa investia todo o seu ser no discurso e esse discurso
penetraria o simpósio universal (“tecido dialógico da vida humana”). Desse modo, dentro
desse simpósio universal, a comunicação constitui o ser, significa a relação do ser para o outro
e do outro para si mesmo, assim:
(...) a morte absoluta (o não ser) é o estado de não ser ouvido, de não ser
reconhecido, de não ser lembrado. (...) A subjetividade se constitui e se move no
denso caldo do simpósio universal, sendo a alteridade e a intersubjetividade,
portanto, absolutamente, indispensáveis. (FARACO, 2009, p. 76).

Desta forma, a alteridade é justamente as relações do eu-para-mim, eu-para-o-outro e


o-outro-para-mim, em que os indivíduos se constituem através das multiplicidades de vozes
circulando em um mesmo espaço - a polifonia. O indivíduo se altera através das relações de
alteridade, através do outro. Segundo discorre Bakhtin (1997, p. 314 - 318):
Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos
de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou
assimilação. (...) As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu
tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. (...) Em todo
enunciado, contato que o examinemos com apuro, levando em conta as condições
concretas da comunicação verbal, descobriremos as palavras do outro ocultas ou
semi-ocultas, e com graus diferentes de alteridade.

Com isso, “a alteridade intervém sempre. A identidade é um movimento em direção ao


outro, um reconhecimento de si pelo outro que tanto pode ser a sociedade como a cultura. E o
elo de ligação é a linguagem” (PIRES, 2002, p. 40), assim, averiguando as relações de
alteridade em Um Homem Célebre, infere-se que na categoria do eu-para-mim, que
corresponde à relação que o “eu” vai construindo com consigo mesmo, é a forma de como eu
vejo a mim mesmo, Pestana tinha uma postura rígida, exigente e angustiada com ele mesmo,
pois não conseguia ser o artista que almejava, além do compositor de polcas:
(...) Enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas
obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao
diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais? Às vezes,
como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia: ele corria
ao piano para aventá-la inteira,
traduzi-la, em sons, mas era em vão: a idéia esvaía-se. (ASSIS, 1946, p. 2)

E quanto mais se martirizava, parecia em vão, pois não conseguia fazer nada original,
só reproduzir as músicas de seus ídolos clássicos: “(...) irritado, erguia-se, jurava abandonar a
arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em
Mozart, a imitá-lo ao piano” (ASSIS, 1946, p. 3). Outra passagem do conto que evidencia
essa relação de Pestana com ele mesmo é quando, de forma efêmera, aprecia sua nova
composição:
(...) E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da
moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma
página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e
Schumann. (ASSIS, 1946, p. 4)
Como já foi dito anteriormente, Pestana não gostava de ser reconhecido como um
mero compositor de polcas, desse modo, sua relação do eu-para-o-outro, que diz respeito à
aproximação para com o “outro”, as respostas ao outro, por mais que às vezes de forma
velada, era depreciativa, podendo ser percebida em trechos como “(...) Vexado aborrecido,
Pestana respondeu que sim, era ele” (ASSIS, 1946, p. 1), “Pestana fez uma carreta, mas
dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo”
(ASSIS, 1946, p. 1).
Outro aspecto da categoria do eu-para-o-outro que pode ser verificada, concerne na
relação de admiração que Pestana possuía com seus ídolos, quando contemplava os quadros
na parede ou ouvia as músicas:
(...) sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede.
Um só era a óleo, o de um padre, que o educara. (...) Os demais retratos eram de
compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann (...)
postos ali como santos de uma igreja. (ASSIS, 1946, p. 2).

Ademais, a relação com Maria é um importante ponto da relação eu-para-o-outro no


conto de Machado, visto que, sendo a única relação amorosa de Pestana, o amor sentido por
ele só surgiu por ela ser uma cantora e também admiradora dos clássicos. Desse modo,
Pestana acreditava que conseguiria alcançar um registro clássico, com sempre almejou, posto
a inspiração que viria do casamento com Maria: “(...) essa esperança abotoou desde as
primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a
alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias” (ASSIS,
1946, p. 5).
Finalmente, sobre a categoria bakhtiniana do o-outro-para-mim, que se refere quando
o outro se posiciona e/ou se aproxima de mim, pode-se constatar que o público (lê-se aqui
como o “outro”) tem uma verdadeira estima por Pestana, sabiam suas polcas de cor, algo que
posso ser visto em diversos trechos, como: “(...) a viúva correu novamente ao Pestana para um
obséquio mui particular. − Diga, minha senhora. − É que nos toque agora aquela sua polca
Não Bula Comigo, Nhonhô” (ASSIS, 1946, p. 1). O reconhecimento cultuado em meio às
apresentações, tal qual a felicidade de encontrar um ídolo: “− AH! o SENHOR é que é o
Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois,
corrigindo a familiaridade: − Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?” (ASSIS, 1946,
p. 1). E a notoriedade: “assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe
definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas.” (ASSIS, 1946, p. 6).
As últimas palavras do conto deixam explícita todas as categorias de relação de
alteridade que existia na vida de Pestana: “(...) expirou na madrugada seguinte, às quatro
horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo” (ASSIS, 1946, p. 7)

7. Carnavalização: riso e ironia

A questão em torno da carnavalização é discorrida por Bakhtin, principalmente, em A


cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, onde
apresenta a ideia de que um mundo concentrado em autoridade e discursos de hierarquia, teria
de ser superado através do carnaval - uma nova forma de ver o mundo. Para Bakhtin:
(...) o carnaval constituía um conjunto de manifestações da cultura popular medieval
e do Renascimento e um princípio, organizado e coerente, de compreensão de
mundo. O carnaval, propriamente dito, não é, evidentemente, um fenômeno literário,
mas um espetáculo ritualístico que funde ações e gestos elaborando uma linguagem
concreto-sensorial simbólica. (SOERENSEN, 2011, p. 319)

Durante o carnaval, suspende-se as leis, restrições, as proibições, “(...) valores,


normas, tabus religiosos, políticos e morais correntes” (SOERENSEN, 2011, p. 322),
passando-se do monológico para o polifônico, desse modo, “a festa em si é importante apenas
na medida em que, ao viver o carnaval, podemos visualizar a possibilidade de outro mundo,
de negar o atual e afirmar o possível.” (FARACO, 2009, p. 80). Daí o caráter dialógico e
polifônico do carnaval, pois, segundo Fiorin (2017, p. 102):
(...) mostra duas vidas separadas temporalmente: uma é a oficial, monoliticamente
séria e triste, submetida a uma ordem hierarquicamente rígida, penetrada de
dogmatismo, temor, veneração e piedade; outra, a da praça pública, livre, repleta de
riso ambivalente, de sacrilégios, de profanações, de aviltamentos, de
inconveniências, de contatos familiares com tudo e com todos.

Com isso, “a carnavalização é a transposição para a arte do espírito carnavalesco”


(FIORIN, 2017, p. 97), afirmando, Bakhtin (1987, p. 33) que “a sensação carnavalesca do
mundo transpõe-se de alguma forma à linguagem do pensamento filosófico idealista e
subjetivo”. Durante o carnaval, para Bakhtin, o mais importante é a percepção do senso
carnavalesco do mundo, posto que:
É este senso um poderoso instrumento contra qualquer monologização da existência
humana; é ele que materializa a força cultural do riso: dessacraliza os discursos
oficiais, os discursos da ordem e da hierarquia, os discursos do sério e do imutável.
Bakhtin não é, nessa perspectiva, o teórico do carnaval, mas o filósofo da
carnavalização. (FARACO, 2009, p. 80).

Desse modo, Bakhtin pensa em “um mundo em que qualquer gesto centrípeto será
logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da polêmica, da ironia”
(FARACO, 2009, p. 79), consequentemente, a literatura carnavalesca também fará uso dessas
características, sendo as categorias da percepção carnavalesca do mundo o contato familiar, a
excentricidade e a profanação, assim, “a linguagem carnavalesca é familiar, repleta de
sarcasmos e insultos (FIORIN, 2017, p. 102).
De acordo com Bakhtin (1987, p. 33) “(...) o riso se atenua, e toma a forma de humor,
ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso
reduz-se ao mínimo.” Com isso, explicando a evolução literária da polifonia em Dostoievski,
Bakhtin discorre que no período helenístico os gêneros dividiam-se em sérios e cômicos e
cômicos-sérios. Destes, tem-se uma profunda marca na visão carnavalesca, principalmente
advindo da sátira menipeia, que continua influenciando a escrita carnavalesca. Dentre as
características essenciais para a temática do riso e da ironia, segundo Fiorin (2017, p. 99 -
100), há:
a) avultamento do elemento cômico; e) discussão das “últimas questões” (a morte, o
sentido da vida e assim por diante); i) gosto pronunciado pelos escândalos, pelas
condutas excêntricas, pelas infrações às normas estabelecidas de conduta e de
etiqueta, inclusive a etiqueta da fala (por isso, aparecem os discursos inconvenientes,
de uma sinceridade cínica, as profanações desmistificadoras do sagrado, a falta
exagera de etiqueta); n) opção pelos problemas contemporâneos, pela polêmica com
os discursos de sua época, pelas alusões aos acontecimentos de seu tempo.

Algo relevante de destaque, é que do século XVII quase não existe a experiência de
viver o carnaval, somente de assisti-lo, desse modo, sobre a produção de literatura
carnavalizada apresenta um novo aspecto, de acordo com o que explana Fiorin (2017, p. 115 -
116)
(...) a partir do século XVIII, a literatura carnavalizada, que vive até os nossos dias,
não tem como fonte o carnaval, mas a literatura carnavalizada precedente. A
carnavalização torna-se uma tradição literária. (...) Machado de Assis produz uma
literatura carnavalizada. No entanto, ele a produz, não a partir da vivência do
carnaval, mas da tradição literária: Cervantes, Diderot, Sterne, etc.

À vista do que foi discutido até agora, analisando a carnavalização em Um Homem


Célebre, pode-se constatar a ironia e o riso em diversas passagens do conto, começando pelo
fato de Pestana não gostar de ser reconhecido pelas polcas que compõe, quem não gostaria de
ser bem sucedido e ser famoso daquilo que faz? Mas Pestana tem a irônica maldição de ser
admirado por aquilo que não gostaria de fazer, fazendo careta e ficando aborrecido quando
alguém lhe lembrava das polcas.
Outro momento de carnavalização, em que dessacraliza a figura do padre, insinuando
que um seria o pai de Pestana: “(...) cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede.
Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que,
segundo os ociosos, era o próprio pai de Pestana” (ASSIS, 1946, p. 2). Esta postura condiz
com os dizeres de Fiorin (2017, p. 104 - 105), quando afirma que “para ser carnavalesca, é
preciso que uma obra seja marcada pelo riso, que dessacraliza e relativiza as coisas serias, as
verdades estabelecidas, e que é dirigido aos poderosos, ao que é considerado superior.
Um dos momentos para engraçados do conto dá-se quando Pestana leva sua polca
mais recente ao editor, este diz que “(...) os títulos deviam ser, já de si, destinados à
popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, − ou pela graça das palavras, indicou-lhe
dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa” (ASSIS, 1946, p. 3).
Pestana. sem compreender, pergunta ao editor qual o significado de “Candongas Não Fazem
Festa” e recebe como resposta do editor, simplesmente: “− Não quer dizer nada, mas
populariza-se logo” (ASSIS, 1946, p. 3).
É perceptível a crítica irônica que se faz a falta de apreço significativo com a obra por
parte do editor, mas também nota-se que A Lei de 28 de Setembro, conhecida por Lei do
Ventre Livre, é real e muito séria para ser tratada de forma banal pelo editor, já que diz
respeito a declaração de que filhos de mulheres escravizadas, de nascimento a partir de tal
data, ficariam livres. Desse modo, pode-se apreender, que a:
A literatura carnavalizada (...) permite a inclusão da ironia e da paródia em seu
âmago. (...) Os discursos não-sérios que a ironia pode causar são carnavalescos já
que são detentores do poder de significar não significando... São discursos onde é
estabelecido um jogo com as palavras, capazes de subverter ou até de transgredir
normas estabelecidas na vida em sociedade. (MACHADO, 2014, p. 112/114)

Ademais, há a presença do riso quando Pestana coloca a culpa no celibato por não ter
inspiração suficiente para compor um clássico:
O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo,
artisticamente, considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por
aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias,
profundas, inspiradas e trabalhadas. (ASSIS, 1946, p. 5)

O que não se mostra verdadeiro, pois logo na primeira tentativa de compor um noturno
para Maria e apresentar-lhe de surpresa, o seu plano não terminar como imaginava:
(...) Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar
um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente,
parando, interrogou-a com os olhos. − Acaba, disse Maria, não é Chopin? Pestana
empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. (ASSIS,
1946, p. 5)

Isto é, quando estava certo de que conseguiria compor um clássico para a esposa, já
que tinha a ideia fixada que era a inspiração que faltava, compôs um plágio de Chopin sem se
dar conta, assim, percebe-se que toda a trajetória de Pestana é repleta de ironia, até com um
teor de pessimismo - como pode ser visto quando Maria morre e Pestana ouve, de um baile
que estava ocorrendo na vizinhança, suas polcas sendo tocadas. Nada escapa da
carnavalização, bem como diz Fiorin (2017, p. 97/101):
Ao esforço centrípeto dos discursos de autoridade opõe-se o riso, que leva a uma
aguda percepção da existência discursiva centrífuga. (...) A força corrosiva do riso
leva a uma explosão de liberdade, que não admite nenhum dogma, nenhum
autoritarismo, nenhuma seriedade tacanha.

Por fim, há o riso envolvendo as questões políticas vigentes. Nessa época, o governo
do Império estava passando pelo Período Regencial, em que havia a alternância de grupos
(mais tarde, transformados em partidos) de teor ora liberal, ora conservador. Dessa maneira,
após fecha um contrato, o editor diz a Pestana que a produção da primeira polca deveria
começar imediatamente, era urgente, pois “os liberais foram chamados ao poder, vão fazer
reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um
bom título de ocasião” (ASSIS, 1946, p. 6). Adiante, quando Pestana está quase morrendo, diz
que “(...) como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; outra
servirá quando subirem os liberais” (ASSIS, 1946, p. 7). Essas referências às autoridades
condizem com o que discorre Soerensen (2011, p. 322) sobre a suspensão das hierarquias
durante o carnaval:
A eliminação provisória das relações hierárquicas produziu o aparecimento de uma
linguagem carnavalesca típica. As formas e símbolos da linguagem carnavalesca
estão embebidos da noção e lirismo da alternância e da renovação, da consciência da
alegre relatividade das verdades e das autoridades do poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao decorrer da análise desenvolvida neste artigo, com auxílio dos conceitos


bakhtinainos, percebe-se que o conto de Machado, apesar de ser de 1883, trata sobre temas
universais, que foram muito explorados posteriormente e em diversas formas, como no conto
Um Artista da Fome, de Kafka, ou até mesmo no filme hollywoodiano Nasce Uma Estrela (A
Star is Born), de 2018, que em sua quarta adaptação, teve como acréscimo a figura do
empresário, aquele que domina as ideologias da indústria cultural e assim molda os artistas
sonhadores, bem como o editor de Um Homem Célebre faz com Pestana.
De olhar atemporal e perspicaz, Machado constrói uma narrativa em seu conto que
continua extremamente atual, com questionamentos sobre sucesso, indústria cultural, música,
vocação, talento e ambição, que a sociedade de hoje em dia consegue fazer até com mais
força devido à grande popularidade da tecnologia com a internet e as redes sociais.
REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: BENJAMIN,


W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos Escolhidos. São Paulo,
Abril Cultural, 1983.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento - Fragmentos


Filosóficos, 1947. Disponível em: <http://antivalor.vilabol..com.br>. Acesso em: 04. jul.
2019.

______.; ______. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.


______. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

ARAGÃO, Pedro. Entre polcas, quadrilhas e sambas: processos de mudança musical no


choro a partir de análises comparativas entre gravações fonográficas no século XX. Rio de
Janeiro, 2014.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1996.

ASSIS, Machado de. Um Homem Célebre. In: Várias Histórias. Rio de Janeiro: W. M.
Jackson Inc. 1946.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 1987.

______. Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes: 1997.

______. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins,
2003. p. 261-306.

______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12. ed. São Paulo: HUCITEC, 2006.

BEDIN, Karime.; HOFFMANN, Manoeli Cristina.; CALDEIRA, Rafaele Fernades. “Um


Homem Célebre”: O Olhar de Antônio Candido. Revista Ensaio, Paraná, v. 1, 2017.

BENJAMIN, Walter. A Obra De Arte Na Era De Sua Reprodutibilidade Técnica. In: Magia E
Técnica, Arte E Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1985.

BENTES, José Anchieta de Oliveira. A propósito da perspectiva de alfabetizar letrando. In:


SOUZA, Camila da Silva (Org.). et al. Linguagens, saberes e interculturalidade. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2011, p. 13-24.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São
Paulo: Contexto, 2016. p. 191 - 200.

CASTAGNA, Paulo. A música urbana de salão do século XIX. Apostila do curso de


História da Música Brasileira. 2003.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. p. 45 - 94.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2017.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de Pesquisa Social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

LAKATOS, Eva Maria.; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia


científica. 5. ed. São Paulo: 2003.

MACHADO, Ida Lucia. A ironia como estratégia comunicativa e argumentativa.


Bakhtiniana. n. 9, São Paulo, jan/jul. 2014. p. 108 - 128.

MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: BRAITH, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-
chave. São Paulo: Contexto, 2005, p. 151-166.

MARCUZZO, Patrícia. Diálogo inconcluso: os conceitos de dialogismo e polifonia na obra de


Mikhail Bakhtin. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 36, 2008. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/cadernosdoil/.> . Acesso: 30. jun. 2019.

MOTTER, Carolina. et al. Análise temática do conto Um Homem Célebre de Machado de


Assis. Disponível em: <https://pt.slideshare.net/vanessacarladoamaral/anlise-temtica-do-
conto-de-machado-de-assis-um-homem-clebre>. Acesso em: 30. jun. 2019.

KALIFE JÚNIOR, Luís Fernando. A obra certa, a pessoa errada. 2013. Disponível em:
<http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/XIII_semanadeletras/pdfs/luiskalife.pdf.> Acesso em:
03. jul. 2019.

PIRES, Vera Lúcia. Dialogismo e alteridade ou a teoria da enunciação em Bakhtin. Organon:


Revista do Instituto de Letras da UFRGS. v. 16, n. 32-33. 2002. p. 35 - 48. Disponível em:
<https://doi.org/10.22456/2238-8915.29782>. Acesso em: 28. jun. 2019

SILVA, Jane Quintiliano. Gênero Discursivo e Tipologia Textual. Revista: Scripta. v. 1. n. 1.


p. 87-106. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 1999.

SOERENSEN, Claudiana. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin. Travessias. v.


05, n. 1. 2011. p. 318 - 331.

WEBER, Wagner Luís. O Mosquito na Vidraça: a formação dos cidadãos à luz da teoria
crítica da Escola de Frankfurt. In: ZUIN, Antonio Álvaro Soares.; PUCCI, Bruno.; RAMOS
DE-OLIVEIRA, Newton (orgs). A educação danificada: contribuições à teoria crítica da
educação. Petrópolis/São Carlos: Vozes/UFSCAR, 1998.

Você também pode gostar