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O(S) FEMINISMO(S), A ESQUERDA PUNITIVA E O GOLEIRO

Uma das críticas mais fá ceis (e superficiais) dirigidas ao movimento feminista


(ou movimentos feministas, em uma melhor expressã o), é a que, em termos
político-criminais, o aproxima do punitivismo ou, ainda mais especificamente, a
que o insere no campo da chamada “esquerda punitiva”.

Nã o é incomum em momentos em que vêm à tona casos envolvendo atos brutais


de violência contra as mulheres, que muitos, ignorando completamente a
trajetó ria de lutas do feminismo, e a pluralidade epistemoló gica que orienta cada
uma de suas vertentes, se avoquem, desde suas convicçõ es de “esquerda”, o
direito de “etiqueta-lo” indiscriminadamente.

Nã o raro muitos dos críticos aproveitam também esses episó dios de grande
repercussã o para apontar como incongruente a pauta feminista que varia, no
entendimento deles, desde o viés abolicionista, no qual se encontra o pleito pela
descriminalizaçã o do aborto, até o que consideram o mais profundo punitivismo,
quando se trata das demandas pela tipificaçã o e puniçã o de crimes como
estupro, lesã o corporal e morte.

O tempo e espaço deste artigo nã o me permitem aprofundar em pormenores


todas as razõ es pelas quais é possível afirmar ser tã o só aparente o conflito entre
as demandas feministas pela autonomia do corpo e por uma vida livre de
violência.

Entretanto, é possível dizer, tal como afirma Alessandro Baratta, que o direito
penal mínimo – ú nico possível nos marcos constitucionais – nã o retira do Estado
e da sociedade a obrigaçã o de empenharem-se na busca de soluçõ es relativas a
situaçõ es de violência e de violaçõ es de direitos, ou de resolver conflitos e
problemas sociais que necessitam de respostas justas e adequadas1. Assim como,
pensando agora com Ferrajoli2, que os direitos fundamentais sã o sempre leis dos
mais fracos contra a lei dos mais fortes, e que esses servem para proteger as
pessoas também – e acima de tudo – contra as suas culturas, e, até mesmo, contra
suas famílias (a mulher contra o pai e o marido, no exemplo dele pró prio).

Dentro dos limites constitucionais, a resposta punitiva nã o pode ser mais do que
um elemento excepcional e possível, o que, no universo de reivindicaçõ es
feministas pela efetividade dos direitos fundamentais à autodeterminaçã o e à
proteçã o contra a violência de gênero, significa a configuraçã o de um programa
de direito penal mínimo para as mulheres.3

1
BARATTA, Alessandro. Criminología y Sistema Penal: compilación in memoriam. Montevideo;
Buenos Aires: BdeF, 2006. Pp. 149.
2
FERRAJOLI, Luigi. Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado , 2011. Pp. 107.
3
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Editora Saraiva,
2014.
É verdadeiramente preocupante os danos causados pelo punitivismo. Disso
somos, todos e todas, testemunhas. A inflaçã o legislativa penal, o
encarceramento em massa, os ataques à s garantias processuais penais
duramente construídas, enfim, a dor e sofrimento impostos aos tantos e à s tantas
selecionados pelo sistema penal, correm a olhos vistos. E as mulheres, mais do
que qualquer um, conhecem o peso da mã o de ferro no exercício do poder
punitivo quando sã o vítimas, rés ou condenadas, isto é, em qualquer posiçã o em
que estejam.

Por outro lado, é igualmente preocupante a insistência em desqualificar o(s)


movimento(s) feminista(s) por suas lutas contra a violência.

Desconsiderar a contribuiçã o feminista ao debate sobre os limites do direito


penal, simploriamente etiquetando diferentes concepçõ es de feminismo(s) como
punitivistas, na melhor das hipó teses, carece de profundidade teó rica. E, na pior
delas, configura um ato pró prio de um ranço machista que se externa aqui e ali,
entre um e outro discurso autointitulado de “esquerda”.

Alto lá , companheiro!

O caso envolvendo a morte de Eliza Samudio é um exemplo claro da cultura


patriarcal que, com a condescendência do Estado, obrigou aquela mulher, como
tantas outras neste país, a bater de porta em porta, e nã o encontrar de uma rede
de proteçã o efetiva contra a violência. Uma rede que nã o pode se resumir ao
sistema de justiça criminal, mas da qual ele também nã o pode ser excluído.

Eliza, como tantas outras, foi vítima de uma escalada de violências que culminou
em seu feminicídio4. E é significativo, sim, que seu agressor tenha sido
processado, julgado e, quando condenado definitivamente, que cumpra a
sentença que lhe cabe.

Mas, dizer isso com todas as letras nã o é, por outro lado, levantar cartazes onde a
palavra justiça assume o significado de vingança. Ou, tampouco, considerar
justificadas as violaçõ es as quais nã o somente Bruno, mas 34%5 das pessoas
encarceradas neste país, de outro modo, sã o também vítimas.

É inaceitá vel, seja no caso dele, ou de qualquer homem ou mulher presa


provisoriamente, a permanência em confinamento sem culpa formada por um
dia, um mês, menos ainda por mais de seis anos (!), três deles aguardando o
julgamento de um recurso (!).

Bruno, como qualquer outra pessoa, tem de ter respeitado um processo


verdadeiramente pautado pelas garantias constitucionais que a ele sã o (ou
devem ser) inerentes. Sendo o linchamento pú blico e a perseguiçã o insidiosa a
que tem sido submetido profundamente violadores.

4
Termo que tomo aqui de forma livre, por seu significado sócio-antropológico, posto que à época
ainda não constava no rol de qualificadoras do crime de homicídio.
5
Segundo recentes dados do CNJ disponíveis em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-
levantamento-dos-presos-provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais.
A legitimaçã o do direito penal é, antes de qualquer coisa, o discurso sobre sua
adaptaçã o material à Constituiçã o. Sendo verdadeiro, como também ensina
Baratta, que a resposta punitiva há de se dar em um marco conceitual a partir do
qual será também possível contribuir com a construçã o de uma cultura
garantista, entendendida nã o somente como uma limitaçã o formal que concerne
unicamente à á rea penal, mas, sobretudo, como um projeto substancial,
estendido a toda à política de proteçã o dos direitos, pró pria da sociedade
democrá tica.6

Nã o se trata aqui, portanto, de, acriticamente, legitimar o direito penal.


Entretanto, de afirmar que desmerecer o discurso feminista que recorre ao
direito penal de forma crítica e realista a partir da violência concreta vivida
historicamente pelas mulheres, é uma etiqueta injustificá vel.

Sã o sempre muito bem vindas todas as contribuiçõ es trazidas ao debate que


vislumbra um horizonte igualitá rio. E estarmos todos e todas abertas à s críticas é
condiçã o indispensá vel ao diá logo.

Contudo, como diz Rita Lee, “só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser
carvão”. E, por isso, como já sentimos na pele a açã o destruidora daqueles que
nos rotulavam e queimavam como “bruxas”, aguçamos nossos sentidos para
perceber, de longe, o cheiro e o calor das fogueiras alimentadas por discursos
dos que nos apontam e gritam “esquerda punitiva”.

Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutora em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e pós-doutoranda em Teorias
Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

6
BARATTA, Alessandro. Criminología y Sistema Penal: compilación in memoriam. Montevideo;
Buenos Aires: BdeF, 2006. Pp. 151.

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