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Rio
de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, pp. 201 e ss.
1
Franco Cordero. Procedura penale. Milão: Giuffrè, 1991, p. 775.
Na mesma linha de pensamento já se colocava Arturo Rocco, fazendo distinção
entre aqueles atos decisórios prolatados no curso de um processo judicial, como o que
extingue a ação penal, daqueles outros que, "embora emanando de um juiz, nada mais são
do que simples ordens e não supõem o exercício prévio de uma ação ou de um processo;
semelhantes ordens não podem evidentemente constituir um verdadeiro julgado."2
Entre nós, essa percepção coube a Afrânio Jardim, ao lecionar que a decisão de
arquivamento é ato judicial, mas não é ato de jurisdição. Eis seu pensamento:
Ato jurisdicional, para ser assim qualificado, deve prestar jurisdição, dizer o direito
(juris-dictio), decidir de modo a expressar o poder soberano do Poder Judiciário. Como
imaginar como ato de soberania decisão que pode ser desprestigiada por ato administrativo,
qual o do Procurador-Geral quando insiste no pedido de arquivamento?
2
Arturo Rocco. Sul concetto di decisione giudiziaria penale quale presupposto formale della cosa giudicata
penale. In: Opere giuridiche. Roma: Foro Italiano, 1933, v. III, p. 72.
3
Afrânio Silva Jardim. Teoria da ação penal pública. In: Direito processual penal. 6. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1997, p. 120.
Logo, não se mostra ponderável a posição sustentada por Jacinto Coutinho, ao
definir a natureza do ato de arquivamento do inquérito policial. Após sustentar que a
decisão de arquivamento possui a natureza de ato jurisdicional, afirma que isso
4
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. A natureza cautelar da decisão de arquivamento do inquérito policial.
Revista do Processo, ano 18, n. 70, p. 54, abr./jun. 1993.
5
Ibid.
6
Jorge de Figueiredo Dias. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p. 411. Nada obstante
o pensamento de Figueiredo Dias, o fato é que os artigos 277 e 279 do CPP não deixam dúvidas quanto à
possibilidade de reabertura do inquérito, independentemente do motivo para o arquivamento, bastando que
surjam novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo titular da ação penal ao
arquivar as investigações: "Artigo 277º (Arquivamento do inquérito) 1. O Ministério Público procede ao
arquivamento do inquérito logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido
não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento. 2. O inquérito é
igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação
de crime ou de quem foram os agentes. [...] Artigo 279º (Reabertura do inquérito) 1. Esgotado o prazo a que
se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que
invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento".
É certo que a pessoa indiciada em um inquérito policial sofre inúmeros gravames
em sua vida pessoal, em seu patrimônio, em sua liberdade, razão pela qual se atribui ao
indiciado uma condição similar à do acusado (quasi imputatus)7 para a defesa de seus
direitos, constitucionalmente assegurados. Não raro, na dicção de Scarance Fernandes, a
pessoa investigada, embora não esteja nem mesmo formalmente indiciada, é tratada já
como acusada ou até como condenada, tanto pela autoridade policial quanto pela imprensa.8
Também não é incomum a ausência de ato formal de indiciamento, de modo a sujeitar a
pessoa investigada a ser ouvida na qualidade de testemunha, negando-se-lhe o direito ao
silêncio, como ocorre amiúde em Comissões Parlamentares de Inquérito, provocando uma
enxurrada de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, para assegurar ao virtual
indiciado o direito de não produzir prova contra si.
7
Helio Tornaghi. Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. III, p. 158.
8
Antônio Scarance Fernandes. A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002, p. 102.
9
Prova desse legítimo interesse de quem ainda não é parte na relação processual é o teor da Súmula 707 do
STF, ao dizer que "Constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao
recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo".
10
Posição similar é sustentada por Vicente Greco Filho, para quem "mesmo antes do recebimento da
denúncia ou queixa, há processo, e processo apto a produzir uma sentença de mérito, com força de coisa
julgada material" (Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 343).
Ministério Público? Por isso, é bom enfatizar o papel do juiz no sistema atual de
arquivamento de inquérito, em que "é apenas o impulsionador da revisão interna no
Ministério Público"11, além, é claro, de órgão responsável pela tutela dos direitos do
suspeito durante todo o curso das investigações, quando ainda não há relação processual
formada.
Sendo, portanto, ato judicial não jurisdicional, é indevido falar de coisa julgada em
relação à decisão que arquiva o inquérito policial ou as peças de informação. Quando
muito, é decisão que preclui o reexame do caso, ante a permanência da situação fática que
justificou o posicionamento do Ministério Público.
O decisum em comento possui, então, eficácia rebus sic stantibus, como deixa claro,
aliás, o artigo 18 do Código de Processo Penal, que fala em "falta de base para a denúncia",
expressão que tem sido entendida como "falta de provas para a denúncia", de forma a
induzir a doutrina a sustentar ser somente possível o desarquivamento do inquérito e o
início de ação penal se surgirem novas provas. Na verdade, não obstante a autoridade da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – que cristalizou aquele entendimento por
meio da Súmula 524 – não há porque deixar de aplicar o artigo 18 a todos os casos em que
novos elementos de informação trouxeram ao titular da ação penal um convencimento
diferente do que o levou a solicitar o arquivamento das investigações.
11
Fauzi Hassan Choukr. Código de processo penal. Comentários e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005, p. 108.
somente quando o motivo do arquivamento for a extinção da
punibilidade não se aplica tal dispositivo, que permite a reabertura
das investigações. Sendo outro o motivo para o pedido de
arquivamento, o surgimento de prova nova pode ensejar o
desarquivamento e o oferecimento de denúncia, pois o fato
anteriormente considerado atípico pode, agora, diante de nova
evidência, revestir-se de tipicidade, a excludente de ilicitude antes
reconhecida pode descaracterizar-se em razão de novo elemento
probante, a insignificância da conduta – indevidamente utilizada
como razão para o arquivamento – pode desnaturar-se por motivo
de prova de sua maior expressividade, etc12 (grifo nosso).
12
Carlos Frederido Coelho Nogueira (Comentários ao Código de Processo Penal. Bauru: Edipro, 2002, v. I,
p. 408), onde exemplifica com a hipótese de inquérito arquivado porque não se demonstrou violência, grave
ameaça ou fraude no procedimento do genitor investigado por suposta conjunção carnal com a filha maior de
18 anos, o que configuraria incesto, figura delitiva ausente de nosso ordenamento penal. Se, ao depois, surge
prova de que a relação sexual somente fora alcançada em virtude de violência física empregada pelo pai para
dominar a filha, resta claro, em seu entender, que o inquérito pode ser desarquivado e a denúncia por estupro
ser oferecida.
13
Ibid., p. 411.
14
Carlos Frederido Coelho Nogueira. Comentários ao Código de Processo Penal. Bauru: Edipro, 2002, v. I,
p. 183.
15
A. Velez Mariconde. Derecho procesal penal. Tomo II. 2. ed. Buenos Aires: Lerner, p. 118. O mesmo
entendimento é repetido em outro trecho do livro (p. 326), onde se afirma que, se o processo não foi iniciado,
não haverá de se falar em dupla persecução jurisdicional.
Este conceito estrito do processo – que não existe realmente se não
intervém o órgão jurisdicional – tem singular importância teórica e
prática. Por exemplo, enquanto ao princípio non bis in idem: este
não incide quando o processo jurisdicional não se iniciou, ou
porque o Juiz de Instrução rejeitou a denúncia, rechaçou o
requerimento do promotor para iniciar instrução ou arquivou o
sumário de prevenção, por considerar que o fato referido em tais
atos não se enquadra em uma figura penal. Em tais hipóteses, ainda
que os atos da Polícia ou do Ministério Público tentaram provocar a
atividade jurisdicional, não há inconveniente em que o tentem uma
segunda vez, pondo de relevo ou agregando novas circunstâncias
fáticas que na primeira oportunidade não se levaram em conta. O
que se proíbe é submeter uma pessoa a processo jurisdicional mais
de uma vez pelo mesmo fato. (grifo do autor)
16
"Art. 408 (Richiesta di archiviazione per infondatezza della notizia di reato) 1. Entro i termini previsti dagli
articoli precedenti, il pubblico ministero, se la notizia di reato è infondata, presenta al giudice richiesta di
archiviazione. Con la richiesta è trasmesso il fascicolo contenente la notizia di reato, la documentazione
relativa alle indagini espletate e i verbali degli atti compiuti davanti al giudice per le indagini preliminari."
Art.411 (Altri casi di archiviazione) 1. Le disposizioni degli artt. 408, 409 e 410 si applicano anche quando
risulta che manca una condizione di procedibilità, che il reato è estinto o che il fatto non è previsto dalla
legge come reato. (grifo nosso). Art. 414 (Riapertura delle indagini) 1. Dopo il provvedimento di
archiviazione emesso a norma degli articoli precedenti, il giudice autorizza con decreto motivato la riapertura
delle indagini su richiesta del pubblico ministero motivata dalla esigenza di nuove investigazioni. [...]
alguma norma incriminadora [...] ou porque é um fato penalmente relevante quando de seu
cometimento, porém não mais no momento de seu acertamento."17
Assim, será tanto motivo para arquivar, sob o mesmo fundamento, o inquérito
instaurado para apurar, por exemplo, a prática de relações sexuais consentidas entre o
investigado e sua namorada de 15 anos (circunstância desde o início conhecida, a
configurar a licitude do conúbio sexual), quanto para apurar a conduta que, ao longo das
investigações, demonstrou tratar-se tão-somente de ilicitude civil (demora na restituição de
bem emprestado, inicialmente considerada crime de apropriação indébita). Em ambas as
situações, o fato não é previsto pela lei como crime, nem abstratamente (no primeiro
exemplo) nem após a sua apuração inquisitorial (na segunda hipótese).
Em qualquer dessas situações e de outras referidas nos artigos 408 e 411 do CPP
italiano, nada impede a reabertura das investigações quando se trata de fato que não
constitui crime, desde que – eis a única exigência legal – haja decisão judicial motivada,
após requerimento do Ministério Público.
Aliás, os autores acima citados são enfáticos ao estender também à decisão que
rejeita a denúncia – sentenza di non luogo a procedere – os mesmos efeitos da decisão que
arquiva as investigações preliminares, permitindo quer a renovação da imputação –
reformulada, evidentemente – quer a reabertura das investigações, sem que disso se
depreenda qualquer violação à regra do ne bis in idem. 18
Não é por outro motivo que se afirma, em relação ao direito italiano, que
20
Gian Domenico Pisapia. Compendio di procedura penale. 2. ed. Pádua: Cedam, 1979, p. 485. No mesmo
sentido, Arturo Rocco (Sul concetto di decisione giudiziaria penale quale presupposto formale della cosa
giudicata penale. In: Opere giuridiche. Roma: Foro Italiano, 1933, v. III, p. 70).
21
Luigi Tramontano. Il Codice de Procedura Penale spiegato. Piacenza: La Tribuna, 2003, p. 374.