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Rogerio Schietti Machado Cruz. A PROIBIÇÃO DE DUPLA PERSECUÇÃO PENAL.

Rio
de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, pp. 201 e ss.

9.4.1 ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL EM RAZÃO DA


ATIPICIDADE DA CONDUTA

Apesar de os motivos que justificam a decisão de rejeitar a denúncia serem,


substancialmente, os mesmos que motivam o arquivamento de inquérito policial, a doutrina
e os tribunais que profligam haver coisa julgada quando se cuida de atipicidade da conduta
investigada parecem não distinguir a natureza jurídica dessas duas decisões.

E tal distinção se mostra meridianamente clara, sob variada angulação. O ato de


rejeição da denúncia é praticado quando já existe relação processual, embora incompleta,
entre o órgão de acusação (Ministério Público ou ofendido) e o juiz, enquanto a decisão que
arquiva o inquérito policial traduz tão-somente a concordância judicial com a decisão do
Ministério Público de não exercer a ação penal por motivo sujeito à sindicância judicial.

Na verdade, quem detém o poder de decidir entre arquivar ou não as investigações é


o Ministério Público, porquanto, pelo mecanismo previsto no artigo 28 do Código de
Processo Penal, é desse órgão de persecução penal a última palavra. Ao juiz, em caso de
insistência da chefia do Ministério Público quanto ao arquivamento, nada mais cabe fazer
do que aceitar a posição ministerial, haja vista que, sendo-lhe vedado exercer jurisdição de
ofício (nemo iudex sine actore), não lhe será permitido iniciar a ação penal sem que, para
tanto, seja formalizada a imputação por meio de peça acusatória, subscrita pelo titular do
ius actionis.

Há mais. A decisão que homologa o pedido de arquivamento não é jurisdicional.


Afirma-o Franco Cordero, ao referir-se às modalidades de decisão no processo penal e, no
particular, à que arquiva o inquérito, atendendo ao requerimento do Ministério Público, e à
que acolhe o pedido de reabertura das investigações: "O juiz arquiva com decreto ou
ordenança, conforme proveja de plano ou na audiência; e com um decreto motivado admite
novas investigações; nenhum dos dois atos constitui acertamento jurisdicional". (grifo
nosso).1

1
Franco Cordero. Procedura penale. Milão: Giuffrè, 1991, p. 775.
Na mesma linha de pensamento já se colocava Arturo Rocco, fazendo distinção
entre aqueles atos decisórios prolatados no curso de um processo judicial, como o que
extingue a ação penal, daqueles outros que, "embora emanando de um juiz, nada mais são
do que simples ordens e não supõem o exercício prévio de uma ação ou de um processo;
semelhantes ordens não podem evidentemente constituir um verdadeiro julgado."2

Entre nós, essa percepção coube a Afrânio Jardim, ao lecionar que a decisão de
arquivamento é ato judicial, mas não é ato de jurisdição. Eis seu pensamento:

Como se vê, no procedimento de arquivamento, o Juiz funciona


como fiscal do princípio da obrigatoriedade, exercendo uma função
anômala, porque não jurisdicional. Destarte, a decisão de
arquivamento jamais terá a eficácia de uma sentença de mérito. Não
havendo ação, jurisdição ou processo, tal decisão não fica protegida
pelo manto da coisa julgada. Cuida-se de decisão judicial, porque
prolatada pelo Juiz, mas de natureza não jurisdicional. Note-se,
inclusive, que, na hipótese de remessa dos autos ao Procurador-
Geral, substancialmente, a decisão de não propor a ação penal é
deste órgão do Ministério Público. Na medida em que o Juiz "estará
obrigado a atender" à manifestação do Procurador-Geral, o ato
judicial subseqüente tem caráter meramente formal.3

Tanto não é ato jurisdicional que, a despeito de encerrar a atividade investigatória


anterior ao processo e por conseguinte obstar o início da ação penal – que somente poderá
ser movida, a posteriori, se descobertas novas provas aptas a modificar o quadro fático-
jurídico sobre o qual se apoiou o arquivamento – não se prevê recurso algum contra tal
decisão.

Ato jurisdicional, para ser assim qualificado, deve prestar jurisdição, dizer o direito
(juris-dictio), decidir de modo a expressar o poder soberano do Poder Judiciário. Como
imaginar como ato de soberania decisão que pode ser desprestigiada por ato administrativo,
qual o do Procurador-Geral quando insiste no pedido de arquivamento?

2
Arturo Rocco. Sul concetto di decisione giudiziaria penale quale presupposto formale della cosa giudicata
penale. In: Opere giuridiche. Roma: Foro Italiano, 1933, v. III, p. 72.
3
Afrânio Silva Jardim. Teoria da ação penal pública. In: Direito processual penal. 6. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1997, p. 120.
Logo, não se mostra ponderável a posição sustentada por Jacinto Coutinho, ao
definir a natureza do ato de arquivamento do inquérito policial. Após sustentar que a
decisão de arquivamento possui a natureza de ato jurisdicional, afirma que isso

implica reconhecer a existência de um processo, mas não vemos


dificuldade nesse reconhecimento, desde que o caso a ser decidido é
eminentemente cautelar em relação à questão de fundo. [...] O ato
de decisão do Juiz, por óbvio, há de ser ato de um processo. Mas
qual processo? A resposta, à evidência, levar-nos-ia ao processo
cautelar. 4

Mais adiante, em forma de conclusão, o citado autor reafirma que a decisão de


arquivamento do inquérito policial "é ato de natureza cautelar, seja como conclusão de
processo cautelar, quando o MP requer o arquivamento, seja como conclusão antecipada de
processo de conhecimento, quando o juiz não recebe a denúncia ou a queixa".5

No direito português, tal doutrina já fora empunhada por Figueiredo Dias, ao


atribuir o caráter de jurisdicional à decisão de arquivamento do inquérito na hipótese de se
verificar que "os factos que dos autos constam não constituem infração penal, ou que se
extinguiu a ação penal em relação a todos os agentes", consoante a redação do artigo 343
do Código de Processo Penal já revogado. Diz, ainda, o professor lusitano que mesmo
quando se concede o poder de arquivar o inquérito ao membro do Ministério Público,
continua tal ato a gozar da natureza de decisão "substancialmente jurisdicional", de modo a
fazer coisa julgada material.6

4
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. A natureza cautelar da decisão de arquivamento do inquérito policial.
Revista do Processo, ano 18, n. 70, p. 54, abr./jun. 1993.
5
Ibid.
6
Jorge de Figueiredo Dias. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p. 411. Nada obstante
o pensamento de Figueiredo Dias, o fato é que os artigos 277 e 279 do CPP não deixam dúvidas quanto à
possibilidade de reabertura do inquérito, independentemente do motivo para o arquivamento, bastando que
surjam novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo titular da ação penal ao
arquivar as investigações: "Artigo 277º (Arquivamento do inquérito) 1. O Ministério Público procede ao
arquivamento do inquérito logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido
não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento. 2. O inquérito é
igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação
de crime ou de quem foram os agentes. [...] Artigo 279º (Reabertura do inquérito) 1. Esgotado o prazo a que
se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que
invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento".
É certo que a pessoa indiciada em um inquérito policial sofre inúmeros gravames
em sua vida pessoal, em seu patrimônio, em sua liberdade, razão pela qual se atribui ao
indiciado uma condição similar à do acusado (quasi imputatus)7 para a defesa de seus
direitos, constitucionalmente assegurados. Não raro, na dicção de Scarance Fernandes, a
pessoa investigada, embora não esteja nem mesmo formalmente indiciada, é tratada já
como acusada ou até como condenada, tanto pela autoridade policial quanto pela imprensa.8
Também não é incomum a ausência de ato formal de indiciamento, de modo a sujeitar a
pessoa investigada a ser ouvida na qualidade de testemunha, negando-se-lhe o direito ao
silêncio, como ocorre amiúde em Comissões Parlamentares de Inquérito, provocando uma
enxurrada de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, para assegurar ao virtual
indiciado o direito de não produzir prova contra si.

Portanto, ainda que se reconheça ao indiciado a titularidade de direitos durante o


curso das investigações e ainda que no resultado dessas tenha ele interesse direto9, parece ir
longe demais a proposta de atribuir à decisão que simplesmente acolhe o requerimento do
Ministério Público o caráter de "ato de natureza cautelar", ou, mais ainda, ato que
determina a "conclusão de processo cautelar"10, ou tout court ato jurisdicional.

Releva insistir na observação de que em muitos sistemas processuais – e mesmo no


Brasil, se vingar a reforma processual que há anos tramita no Congresso Nacional – o juiz
não tem qualquer participação no ato de arquivamento. Tal circunstância, além de
demonstrar que se trata de ato eminentemente administrativo, que não presta jurisdição
alguma, serve para preservar a imparcialidade do magistrado. Deveras, como negar o
comprometimento da imparcialidade do magistrado que, após recusar fundamentadamente
o pedido de arquivamento das investigações, venha a processar e julgar o acusado que, no
mecanismo do artigo 28 do CPP, acabou sendo denunciado pelo Procurador-Geral do

7
Helio Tornaghi. Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. III, p. 158.
8
Antônio Scarance Fernandes. A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002, p. 102.
9
Prova desse legítimo interesse de quem ainda não é parte na relação processual é o teor da Súmula 707 do
STF, ao dizer que "Constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao
recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo".
10
Posição similar é sustentada por Vicente Greco Filho, para quem "mesmo antes do recebimento da
denúncia ou queixa, há processo, e processo apto a produzir uma sentença de mérito, com força de coisa
julgada material" (Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 343).
Ministério Público? Por isso, é bom enfatizar o papel do juiz no sistema atual de
arquivamento de inquérito, em que "é apenas o impulsionador da revisão interna no
Ministério Público"11, além, é claro, de órgão responsável pela tutela dos direitos do
suspeito durante todo o curso das investigações, quando ainda não há relação processual
formada.

Sobre esse distanciamento judicial do ato de arquivamento, vale lembrar o exemplo


do sistema português, cujo Código de Processo Penal, em seu artigo 277, atribui ao
Ministério Público a exclusividade da decisão. E mais, sem qualquer distinção quanto ao
motivo do arquivamento – constatação de "não ter verificado crime" ou falta de "indicios
suficientes da verficação de crime ou de quem foram os agentes" –, o inquérito pode ser
reaberto "se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados
pelo Ministério Público no despacho de arquivamento" (artigo 279).

Sendo, portanto, ato judicial não jurisdicional, é indevido falar de coisa julgada em
relação à decisão que arquiva o inquérito policial ou as peças de informação. Quando
muito, é decisão que preclui o reexame do caso, ante a permanência da situação fática que
justificou o posicionamento do Ministério Público.

O decisum em comento possui, então, eficácia rebus sic stantibus, como deixa claro,
aliás, o artigo 18 do Código de Processo Penal, que fala em "falta de base para a denúncia",
expressão que tem sido entendida como "falta de provas para a denúncia", de forma a
induzir a doutrina a sustentar ser somente possível o desarquivamento do inquérito e o
início de ação penal se surgirem novas provas. Na verdade, não obstante a autoridade da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – que cristalizou aquele entendimento por
meio da Súmula 524 – não há porque deixar de aplicar o artigo 18 a todos os casos em que
novos elementos de informação trouxeram ao titular da ação penal um convencimento
diferente do que o levou a solicitar o arquivamento das investigações.

Quase integralmente se alinha nessa direção o escólio de Coelho Nogueira, para


quem, ao falar o artigo 18 do Código de Processo Penal em "falta de base para a
denúncia",

11
Fauzi Hassan Choukr. Código de processo penal. Comentários e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005, p. 108.
somente quando o motivo do arquivamento for a extinção da
punibilidade não se aplica tal dispositivo, que permite a reabertura
das investigações. Sendo outro o motivo para o pedido de
arquivamento, o surgimento de prova nova pode ensejar o
desarquivamento e o oferecimento de denúncia, pois o fato
anteriormente considerado atípico pode, agora, diante de nova
evidência, revestir-se de tipicidade, a excludente de ilicitude antes
reconhecida pode descaracterizar-se em razão de novo elemento
probante, a insignificância da conduta – indevidamente utilizada
como razão para o arquivamento – pode desnaturar-se por motivo
de prova de sua maior expressividade, etc12 (grifo nosso).

Salienta, ainda, que o desarquivamento do inquérito policial não ofende o princípio


do ne bis in idem, "pois o indivíduo não chegou a ser processado pelo fato objeto da
investigação."13

Há quem vá mais longe. Cuidando-se de arquivamento motivado pela afirmada


atipicidade da conduta, em que houve "mera valoração jurídica dos fatos demonstrados no
inquérito ou peças de informação", não se faz necessário coligir prova nova, porquanto
"aqui, o arquivamento não se deu por insuficiência do conjunto probatório, mas pela
redução dos fatos provados a tipos jurídicos, na feliz expressão de Eduardo Couture".14

No direito comparado, também se colhem subsídios que vêm inteiramente ao


encontro da posição ora sustentada. Na Espanha, é clara a opinião de Velez Mariconde15, no
sentido da possibilidade de revisão do ato de arquivamento do inquérito policial (ou mesmo
de rejeição da denúncia):

12
Carlos Frederido Coelho Nogueira (Comentários ao Código de Processo Penal. Bauru: Edipro, 2002, v. I,
p. 408), onde exemplifica com a hipótese de inquérito arquivado porque não se demonstrou violência, grave
ameaça ou fraude no procedimento do genitor investigado por suposta conjunção carnal com a filha maior de
18 anos, o que configuraria incesto, figura delitiva ausente de nosso ordenamento penal. Se, ao depois, surge
prova de que a relação sexual somente fora alcançada em virtude de violência física empregada pelo pai para
dominar a filha, resta claro, em seu entender, que o inquérito pode ser desarquivado e a denúncia por estupro
ser oferecida.
13
Ibid., p. 411.
14
Carlos Frederido Coelho Nogueira. Comentários ao Código de Processo Penal. Bauru: Edipro, 2002, v. I,
p. 183.
15
A. Velez Mariconde. Derecho procesal penal. Tomo II. 2. ed. Buenos Aires: Lerner, p. 118. O mesmo
entendimento é repetido em outro trecho do livro (p. 326), onde se afirma que, se o processo não foi iniciado,
não haverá de se falar em dupla persecução jurisdicional.
Este conceito estrito do processo – que não existe realmente se não
intervém o órgão jurisdicional – tem singular importância teórica e
prática. Por exemplo, enquanto ao princípio non bis in idem: este
não incide quando o processo jurisdicional não se iniciou, ou
porque o Juiz de Instrução rejeitou a denúncia, rechaçou o
requerimento do promotor para iniciar instrução ou arquivou o
sumário de prevenção, por considerar que o fato referido em tais
atos não se enquadra em uma figura penal. Em tais hipóteses, ainda
que os atos da Polícia ou do Ministério Público tentaram provocar a
atividade jurisdicional, não há inconveniente em que o tentem uma
segunda vez, pondo de relevo ou agregando novas circunstâncias
fáticas que na primeira oportunidade não se levaram em conta. O
que se proíbe é submeter uma pessoa a processo jurisdicional mais
de uma vez pelo mesmo fato. (grifo do autor)

Na Itália – que possui uma legislação moderna e de onde sempre se buscou


inspiração para a feitura dos homólogos códigos brasileiros – a questão vem regulamentada
no Código de Processo Penal de 1988, nos artigos relativos ao arquivamento das indagini
preliminari (artigos 408 e seguintes). A leitura da cabeça dos artigos 408 e 411, combinada
com a leitura do artigo 414, não deixa dúvida alguma de que, mesmo em hipóteses nas
quais se verifica a presença de causa extintiva de punibilidade, ou se conclui não ser o fato
previsto em lei como crime, é possível o desarquivamento das investigações, mediante
decisão motivada do juiz, a requerimento do Ministério Público.16

Ao propósito de explicitar o significado da expressão "perché el fatto non è previsto


dalla legge come reato", como causa de arquivamento do inquérito mencionada no artigo
411 do CPP italiano – que corresponderia ao artigo 43, inciso I, do nosso Código de
Processo Penal – Andrea Dalia e Marzia Ferraioli pontuam que o arquivamento sob tal
fundamento significa que "um fato, tornado certo quanto à sua materialidade, não
corresponde a um modelo legal de incriminação", ou porque "é um fato não tipificado em

16
"Art. 408 (Richiesta di archiviazione per infondatezza della notizia di reato) 1. Entro i termini previsti dagli
articoli precedenti, il pubblico ministero, se la notizia di reato è infondata, presenta al giudice richiesta di
archiviazione. Con la richiesta è trasmesso il fascicolo contenente la notizia di reato, la documentazione
relativa alle indagini espletate e i verbali degli atti compiuti davanti al giudice per le indagini preliminari."
Art.411 (Altri casi di archiviazione) 1. Le disposizioni degli artt. 408, 409 e 410 si applicano anche quando
risulta che manca una condizione di procedibilità, che il reato è estinto o che il fatto non è previsto dalla
legge come reato. (grifo nosso). Art. 414 (Riapertura delle indagini) 1. Dopo il provvedimento di
archiviazione emesso a norma degli articoli precedenti, il giudice autorizza con decreto motivato la riapertura
delle indagini su richiesta del pubblico ministero motivata dalla esigenza di nuove investigazioni. [...]
alguma norma incriminadora [...] ou porque é um fato penalmente relevante quando de seu
cometimento, porém não mais no momento de seu acertamento."17

Assim, será tanto motivo para arquivar, sob o mesmo fundamento, o inquérito
instaurado para apurar, por exemplo, a prática de relações sexuais consentidas entre o
investigado e sua namorada de 15 anos (circunstância desde o início conhecida, a
configurar a licitude do conúbio sexual), quanto para apurar a conduta que, ao longo das
investigações, demonstrou tratar-se tão-somente de ilicitude civil (demora na restituição de
bem emprestado, inicialmente considerada crime de apropriação indébita). Em ambas as
situações, o fato não é previsto pela lei como crime, nem abstratamente (no primeiro
exemplo) nem após a sua apuração inquisitorial (na segunda hipótese).

Em qualquer dessas situações e de outras referidas nos artigos 408 e 411 do CPP
italiano, nada impede a reabertura das investigações quando se trata de fato que não
constitui crime, desde que – eis a única exigência legal – haja decisão judicial motivada,
após requerimento do Ministério Público.

Aliás, os autores acima citados são enfáticos ao estender também à decisão que
rejeita a denúncia – sentenza di non luogo a procedere – os mesmos efeitos da decisão que
arquiva as investigações preliminares, permitindo quer a renovação da imputação –
reformulada, evidentemente – quer a reabertura das investigações, sem que disso se
depreenda qualquer violação à regra do ne bis in idem. 18

Isso porque, como já enfatizado, o efeito preclusivo decorrente da proibição de


dupla persecução penal somente ocorre quando se trata de sentença de mérito, em que o
grau de cognição ampla e profunda permite afirmar ter sido a pretensão punitiva
efetivamente acolhida (condenação) ou rejeitada (absolvição).19

Esse entendimento, saliente-se, não é novo, já tendo sido sustentado anteriormente


ao Código de 1988 por autores como Gian Pisapia, que, ao comentar o efeito preclusivo das
decisões sob a regência do Código Rocco (de 1930), asseverou não poder ser reconhecido
17
Andrea Antonio Dalia e Marzia Ferraioli. Manuale di diritto processuale penale. 5. ed. Milão: Cedam, p.
590.
18
Andrea Antonio Dalia e Marzia Ferraioli. Manuale di diritto processuale penale. 5. ed. Milão: Cedam, p.
593.
19
Ibid., p. 814.
em relação ao ato de arquivamento das investigações, o qual não é equiparável nem mesmo
a uma decisão de extinção do processo.20

Com efeito, não se pode admitir provimento jurisdicional de mérito – porquanto


extingue a pretensão punitiva material – em um momento da persecução penal em que o
Estado apenas cuida de tentar esclarecer a ocorrência de um crime e sua autoria para munir
o titular da ação penal de informações para exercer ou não o seu direito de mover a ação. A
extinção da punibilidade, como objeto da decisão, exigiria, ao menos, a provocação do
titular do ius actionis, sob pena de haver jurisdição sem processo e sem ação, em clara
violação à basilar regra inerente ao sistema acusatório (ne procedat iudex ex officio).

Não é por outro motivo que se afirma, em relação ao direito italiano, que

a imediata declaração de extinção de punibilidade é uma disciplina


que não pode encontrar aplicação no arco de todo o percurso
procedimental, mas se limita exclusivamente à fase processual,
isto é, ao momento sucessivo à formulação da imputação; no
curso das investigações preliminares, de fato, o papel do instituto
em comento é exercitado pelo arquivamento (grifo nosso)21

20
Gian Domenico Pisapia. Compendio di procedura penale. 2. ed. Pádua: Cedam, 1979, p. 485. No mesmo
sentido, Arturo Rocco (Sul concetto di decisione giudiziaria penale quale presupposto formale della cosa
giudicata penale. In: Opere giuridiche. Roma: Foro Italiano, 1933, v. III, p. 70).
21
Luigi Tramontano. Il Codice de Procedura Penale spiegato. Piacenza: La Tribuna, 2003, p. 374.

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