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Teoria da Infração Penal

Teoria da Infração Penal


Regente: Professor Doutor Fernando Torrão
Autoria: Francisco Lemos de Almeida - 21536917

Teoria da Infração Penal é a segunda cadeira do curso desta área do Direito Penal, pelo que
importa que algumas noções transmitidas no ano transato, em sede de Teoria da Lei Penal devem
estar presentes ou, não sendo caso disso, ser recordadas.

Este resumo – não passa precisamente disso – e, portanto, não dispensa a leitura da bibliografia
que abaixo indicarei e que fora recomendada pelo regente desta unidade curricular. Assim, com
o intuito de ajudar os demais estudantes, segue-se este documento que poderá servir de auxílio
ao vosso estudo.

O presente documento poderá conter erros ou imprecisões e, por isso, não me responsabilizo
por estes, sendo que, como referi, este deverá servir como complemento ao estudo e nunca como
base - base essa que deverá ser a leitura das obras recomendadas.

Bibliografia:

– Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Figueiredo Dias

– Direito Penal, Parte Geral, 2ªa Edição, Taipa de Carvalho

Universidade Lusíada Norte – Porto

3º Ano – 1º Semestre

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Teoria da Infração Penal

Capítulo I

Concurso de Crimes Efetivo, Puro ou Próprio

Da pluralidade de normas típicas aplicáveis ao comportamento global do agente, é legítimo


concluir que o comportamento revela uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude que devem
ser integralmente valorados para efeito de punição. Punição essa que, como veremos, será feita
à luz do artigo 77º, nº2 CP.
A regulamentação legal do concurso de crimes efetivo encontra-se no artigo 30,nº1 CP: o número
de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número
de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Constitui exemplo de concurso de crimes efetivo o seguinte: A mata B, viola C e burla D – ser-lhe-
ão aplicáveis as normas dos artigos 131º, 164º e 217º CP. Tratando-se de um concurso
heterogéneo de crimes efetivo, é-lhe aplicável o disposto no artigo 77º CP. O mesmo sucederá
quando a mesma norma típica seja violada várias vezes
Nestes casos, a consequência jurídica encontra-se disposta nos artigos 77º e 78º. Ora, todos os
crimes serão punidos com uma pena única sob a forma de uma pena conjunta. Para tanto, o juiz
determinará a pena concreta cabida a cada um dos ilícitos-típicos efetivamente cometidos, como
se cada um deles fosse elemento de um processo penal autónomo (artigo 71º CP). Só depois
deverá construir uma moldura penal conjunta: essa moldura terá como limite máximo a soma das
penas parcelares determinadas (que não poderão ultrapassar 25 anos de prisão e 900 dias de
multa) e como limite mínimo a pena concreta mais grave determinada (artigo 77º, nº2 CP). Posto
isto, o juiz deverá através de uma determinação conjunta dos factos e da personalidade (única)
do agente, proceder à determinação da medida concreta de pena a aplicar.

Concurso de Crimes Aparente, Impuro ou Impróprio


O ordenamento jurídico-penal português carece de normas expressas que regulem o regime de
punição a aplicar aos casos de concurso de crimes aparente, pelo que cabe ao intérprete construí-
lo, sempre respeitando as intenções político-criminais e os princípios dogmáticos que lhes
subjazem.
Neste contexto, não poderá aplicar-se qualquer regime que imponha a soma de penas (77º, nº2
CP), já que na maioria das vezes tal importaria a violação do ne bis in idem, na vertente da dupla
valoração.
A ideia que importa reter é a de que, não obstante o concurso aparente se traduzir numa
pluralidade de tipos legais violados pela conduta global, apresenta uma dominância de um único
sentido de desvalor do ilícito. Estaremos, hipoteticamente, perante relações de interseção, de
subsidiariedade ou de consunção – relações entre normas.
Neste momento, dediquemo-nos, então, à análise destas relações.

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Relações de Especialidade – entre normas abstratamente aplicáveis a um facto existe sempre


que um dos tipos legais (norma especial) integra todos os elementos de um outro tipo legal
(norma geral), só dele se distinguindo porque contém um qualquer outro elemento adicional –
seja relativo à ilicitude ou à culpa. Nesta relação de subordinação, valerá o princípio estruturante
do direito: lex specialis derogat legi generali (lei especial afasta a lei geral). Concluindo, neste
âmbito, a norma a aplicar será a especial – norma prevalecente.
Constituem exemplos1 destas relações os seguintes: homicídio qualificado (artigo 132º CP) face
ao homicídio (artigo 131º CP); o do aborto agravado (artigo 141º CP) face ao aborto (artigo 140º
CP); o roubo (artigo 210º CP) face ao furto (artigo 203º CP).
Numa última referência, dizer que para que possamos aplicar este critério de especialidade é
necessário que o tipo legal prevalecente se considere consumado (por hipótese, o homicídio
qualificado – artigo 132º CP). Ora, se antes estivermos perante uma tentativa, então não
estaremos perante um problema de especialidade, devendo, em sua vez, aplicar-se
paralelamente ambos os tipos.
Relações de Subsidiariedade – estas existem quando um tipo legal de crime deva ser somente
aplicado de forma auxiliar ou subsidiária, Ou seja, só se aplica a lei subsidiária caso não exista
outra norma abstratamente aplicável que comine com pena mais grave a mesma conduta.
Falamos, aqui, na aplicação prática do seguinte princípio: lex primaria derogat legi subsidiariae.
Assim, a norma a aplicar será a norma primária – que conterá a pena mais grave – e, por isso, a
prevalecente.
Neste contexto, podemos distinguir a subsidiariedade expressa e a subsidiariedade implícita. A
subsidiariedade expressa existe quando o teor literal de um dos tipos legais restringe
expressamente – expressão da vontade do legislador – a sua aplicação à existência de um outro
tipo que comine pena mais grave ou prevendo a sua subordinação. Considerem-se os seguintes
exemplos: condução do veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes
ou substâncias psicotrópicas (artigo 292º CP), lançamento de projétil contra veículo (artigo 293º
CP), peculato (artigo 375º, nº 1 e 3 CP), abuso de poder (artigo 382º CP).
A subsidiariedade implícita verifica-se nos casos em que, apesar do silêncio da lei, o legislador
entendeu criar, para alargamento ou reforço de tutela, tipos legais abrangentes de factos que se
representam como estádios evolutivos, antecipados ou intermédios de um crime consumado (ou
como formas de agressão menos intensas do mesmo bem jurídico).
Para podermos proceder à detetação da existência deste tipo de relações, é necessário
recorrermos ao nosso intuito (enquanto intérpretes), tendo em conta a representação que
fazemos de ambas as normas concorrentes.

1
Referir que Figueiredo Dias entende que esta relação de especialidade existe, também, entre o crime de
homicídio (artigo 131º CP) face ao crime de ofensa à integridade física (artigo 143º CP) – pág. 995 in
Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição. Não parece, todavia, ser esse o entendimento como
veremos supra.

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Hipoteticamente, serão exemplos: os tipos legais que punem os atos preparatórios em relação
aos que punem as tentativas e os crimes consumados; entre a própria tentativa e a consumação
(prevalecerão os tipos legais que punem a consumação); entre os tipos legais que os crimes de
perigo e que punem os crimes de dano; entre outros. Concluindo, existem três campos de
aplicação:
– o campo de aplicação de uma norma A;
– o campo de aplicação de uma norma B;
– e o campo de aplicação de ambas as normas
(“zona” pela qual ambas se interessam).
Exemplificando praticamente:
A mata um cão (artigo 212º CP)
A mata um lince ibérico (artigo 278º, nº1, alínea a) CP)
Estamos, neste caso, perante campos de aplicação diferentes, pelo que o agente deverá ser
julgado através de ambos os tipos mencionados – a sua punição cumulativa, in casu, não consagra
uma violação do princípio do ne bis in idem (dupla valoração).
Todavia, no seguinte exemplo, a resposta não será a mesma:
Consideremos, agora, que A matou um cão que, ao mesmo tempo, é uma espécie protegida.
Nesta situação, já estamos no campo de interseção das duas normas – artigo 212º CP e 218º, nº1,
alínea a) CP -, aplicando-se, agora, a norma primária (a que estabelece a pena mais grave) e, por
isso, a que resulta do artigo 278º, nº1, alínea a) CP.
Desta forma, afastada está a aplicação da norma secundária – o artigo 212º CP.
Relações de Consunção – estas relações existem quando o conteúdo de um ilícito típico inclui,
em regra, o do outro facto, de tal modo que a condenação pelo facto ilícito-típico mais grave
exprime já de forma suficiente o desvalor de todo o comportamento. Na prática, uma norma é
consumida pela outra – a prevalecente.
Nestes casos, podemos autonomizar duas normas: a norma-fim e a norma-instrumento. Quando
a norma-fim consuma/absorva a norma-instrumento estamos perante uma consunção pura;
quando tal se suceda no sentido inverso e, portanto, a norma-instrumento consumir a norma-fim,
estamos perante um quadro de consunção impura.
Vários poderão ser os exemplos apontados deste tipo de relações entre normas: desde logo,
importa incluir nesta sede a relação entre o homicídio e a ofensa à integridade física (artigos 131º
e 143º CP, respetivamente) – na verdade, e ao contrário do que pensa Figueiredo Dias2, este é um
exemplo de consunção. O homicídio já pune de forma bastante a ofensa à integridade física quer
ela seja simples ou grave, já que, desde logo, não é possível representar-se o resultado – morte,
sem que antes seja prefigurável um cenário de ofensa à integridade física. Assim sendo, o

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vide nota de rodapé 1.

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homicídio, porque pune a ação de matar e o resultado – morte, parece consumir o tipo de ofensa
à integridade física, pelo que punir um homicida por estes dois crimes consubstanciaria uma
violação do ne bis in idem, algo que não pode conceber-se.

Capítulo II
A Construção do Facto Punível

A construção do facto punível (do crime) tem por base - aceite na dogmática jurídico-penal - o
direito penal do facto, e nunca o direito penal do agente. Tal imperativo verifica-se no caráter
geral e abstrato que caracteriza o sistema jurídico-penal e, outrossim, pelo facto de as sanções
criminais visarem finalidades preventivas - nomeadamente a da tutela de bens jurídicos e a
ressocialização do agente. Negar-se tal pressuposto seria o mesmo que desrespeitar o Princípio
do Estado de Direito Democrático que, entre nós, vigora assente na igualdade perante a lei. Assim
sendo, é em redor do facto que se desenvolve a construção do facto punível.
Mas, na verdade, o que é o facto punível? Ora, afigura-se de elementar importância delimitar
este conceito - o facto punível é o conjunto de cinco elementos: ação, tipicidade, ilicitude, culpa
e punibilidade. Esta conceção é, no entanto, fruto de uma evolução levada a cabo no último
século, no decurso do qual surgiram três conceções distintas que mais do que quererem
substituir-se, quiseram superar-se - ainda que, como afirma Jescheck, todas elas continuam vivas,
"atualmente", consequência da contemporaneidade que os seus pensamentos comportam.
Posto isto, comecemos por estudar a Conceção "Clássica" (ou positivista-naturalista): esta visão,
influenciada pela Escola Moderna e pelo naturalismo positivista característico do monismo
científico, defendia que o sistema do facto punível haveria de ser somente constituído por
realidades empíricas e mensuráveis, pertencentes à facticidade (objetiva) do mundo exterior ou
a processos psíquicos internos (subjetivos). O conceito do crime deveria, então, ver-se bipartido
e agrupado numa vertente objetiva - a ação típica e ilícita - e numa vertente subjetiva a ação
culposa. Esta conceção tinha a ação como o movimento corporal determinante de uma
modificação do mundo exterior, ligada causalmente à vontade do agente - donde resultaria
inevitavelmente que uma dada ação se tornaria típica sempre que um dado comportamento se
subsumisse num tipo legal de crime (conceito que se afigura isento de quaisquer valores e
sentidos). Rapidamente, esta ação típica se tornaria ilícita caso não interviesse uma causa de
justificação, pelo que facilmente se daria como verificada a vertente objetiva do facto. Por sua
vez, no que toca à vertente subjetiva - concentrada na culpa - dar-se-ia como verificada sempre
que fosse possível comprovar a existência entre o agente e o seu facto objetivo de uma ligação
psicológica, suscetível de legitimar a imputação do facto ao agente a título de dolo ou de
negligência.
Esta conceção, no entanto, não conseguiu superar todas as críticas de que foi alvo
nomeadamente, porque o conceito de ação era demasiado lato e, tendo-se diminuído o seu
âmbito de forma considerável (quando se passou a exigir um movimento corpóreo para que esta

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relevasse), tal construção não poderia prevalecer; mais, a atividade lógico-formal de subsunção à
que estava adstrita a tipicidade, levava, igualmente, a resultados descabidos que não podiam
continuar a defender-se; reduzir-se o conceito de ilicitude à verificação de uma causa de
justificação mostrava-se paupérrimo; e no que toca ao conceito de culpa, esta conceção esquecer-
se-ia, também que os inimputáveis - incapazes de culpa - poderiam agir com dolo ou negligência.
Percebidas e compreendidas que estavam, à época, as deficiências desta conceção, construi-se
uma nova visão do conceito do facto punível, à qual se dá o nome de Conceção Neoclássica (ou
normativista). Fundada em valores de origem neokantiana e surgida nos primeiros anos do século
XX, esta conceção pretendia situar a construção do conceito do facto punível no mundo do "ser"
e o "dever-ser", instituindo-o de valores e sentidos que lhe eram estranhos até então. Daqui
decorre que se passou a caracterizar o ilícito como "danosidade social" e a culpa como
"censurabilidade" (do agente por ter agido como agiu, quando poderia ter agido de maneira
diferente). Todavia, não se trata de algo completamente novo - retiraram-se os exageros
naturalistas, substituídos pela relevância social mas nem por isso se "cortou" com a anterior
conceção. Na verdade, como dissemos, estas não pretendiam substituir-se mas, antes,
desenvolver o legado anterior - exemplo disso, é o facto do conceito de ação continuar a ser
concebido como comportamento humano causalmente determinante de uma modificação do
mundo exterior ligada à vontade do agente; no que concerne à tipicidade, esta já não se traduzia
reduzia apenas à subsunção mas teria que respeitar-se o requisito da danosidade social que o
comportamento deveria provocar, de forma a ser qualificado como tal; já o ilícito configurava-se
como um aglomerado de elementos subjetivos e objetivos; e quanto à culpa, esta conhecia, agora,
os seus graus através do dolo e da negligência, tinha-se a imputabilidade como a capacidade do
agente de avaliar a ilicitude do facto e, outrossim, exigir-se-ia ex novo, um comportamento
adequado ao direito.
Esta conceção também não escapou ilesa às críticas: a ação continuava a sugerir um conceito
mecânico-causalista que já estava ultrapassado, o que levaria a erros na construção posterior do
sistema.
Por fim, a última orientação: a Conceção Finalista (ou ôntico-fenomenológica). Após a II Guerra
Mundial, deu-se conta que as raízes neokantianas não ofereciam garantias de justiça e que,
portanto, os seus conteúdos deveriam ser superados, algo que se sucedeu, nomeadamente
aquando da passagem do Estado de Direito Formal para o Estado de Direito Democrático. Neste
seio, surge Hans Welzel a quem se atribui o mérito de se ter limitado a normatividade da Escola
Neoclássica através de leis estruturantes do “ser”. Para esta Escola, a ação humana seria uma
supradeterminação final de um processo causal – por outras palavras, o Homem dirige
finalisticamente os processos causais naturais em direção a fins mentalmente antecipados,
escolhendo para o efeito os meios correspondentes. Daqui resulta que o dolo passa a conformar
um elemento essencial da tipicidade – não bastava o entendimento neoclássico de que o tipo
seria apenas, ocasionalmente, constituído, também por elementos subjetivos; ora, era necessário
que este fosse constituído sempre por elementos objetivos (os elementos descritivos do agente,

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da conduta, etc.) e por elementos subjetivos (o dolo ou a negligência). Só da conjugação destes


poderia resultar o juízo da contrariedade da ação à ordem jurídica e, assim, o juízo de ilicitude.
Assim, restava à culpa o juízo de censura, já que o objeto da valoração (dolo ou negligência)
passava para o nível do ilícito – entendiam os finalistas que a culpa se encontrava, por fim,
reduzida àquilo que ela deveria ser.
Há que tecer, todavia, críticas à conceção montada por Welzel. Na verdade, este sistema mostra-
se pouco flexível (devido ao ontologismo), pelo que resta pouca “margem de manobra” para as
opções jurídico-políticas do legislador. O conceito de ação, por seu turno, radica num falso
ontologismo, contrariando, até, a ciência biológica – donde resulta que existem alguns animais
que são capazes de escolher os meios para alcançar os fins que supradeterminam; o ilícito e a
culpa também foram alvo de críticas, sendo que as mais importantes foram dirigidas a este último
conceito – transferindo-se o objeto de valoração para o tipo, então a culpa traduzir-se-ia num
mero juízo de censura feito pelo juíz. É que, se as sanções penais são distribuídas em função do
dolo e da negligência, então, no mínimo, deveremos tê-las como graus ou tipos de culpa.

A Conceção Teleológico-funcional e Racional do conceito de facto punível (Claus Roxin)

Atualmente, o conceito de ação surgido da Escola Finalista já se encontra ultrapassado – ação


não é, pelo menos tão-só, uma supradeterminação final de um processo causal; mais que isso, o
conceito ontológico que prima no seio daquela Escola já se encontra hoje afastado, dada a
inflexibilidade que sugere. Quanto ao ilícito típico, tal como afirma Welzel, é sempre um ilícito
pessoal. Relativamente à culpa, os autores concordam com o legado finalista – defensor dos
elementos de imputabilidade e da consciência -, mas já põem em causa a ideia de que a culpa se
esgota num juízo de censura, atribuindo-se a sua materialidade (dolo e negligência) a outros níveis
do sistema.
A perspetiva teológico-funcional e racional vem sugerir a construção deste sistema seja
comandado por valorações fundadas em proposições político-criminais imanentes às finalidades
jurídico-constitucionais.
Em torno do conceito de ação surgiu uma enorme discussão, tendo-se atribuído funções
diferentes à mesma, das quais poderemos dar conta em seguida:
Dentro do sistema categorial-classificatório, a ação, sendo o ponto de partida e a base autónoma
da construção do sistema, acarreta três funções distintas: a função de classificação – o conceito
de ação deve e tem de ser o conceito superior, abrangendo todas as formas que possam surgir de
comportamento punível (forma ativa, forma passiva, forma omissiva, etc.), sendo o elemento
comum a todas elas; a função de definição e ligação – isto é, ele tem de possuir a capacidade de
abranger todas as predicações posterior (tipicidade, ilicitude, culpa e punibilidade) sem, no
entanto, as pré-determinar; por fim, a função de delimitação – ou seja, o conceito deve excluir ab

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Teoria da Infração Penal

initio todos os comportamento que não podem relevar (como ações) para o direito penal e para
a construção do conceito de crime (excluindo, por exemplo, os acontecimentos naturais, os
comportamentos de animais, os atos reflexos, etc.).
No entanto, defende o professor Figueiredo Dias que a pretensão de Jescheck, ao atribuir à ação
três funções distintas, não pode lograr-se – parece não ser possível cumular-se no conceito de
ação as funções de classificação e de definição e ligação, porque incompatíveis, já que a primeira
visa uma pré-determinação de todo o sistema e a segunda pretende que isso não se suceda de
forma alguma.
Ora, em matéria de conceito geral de ação, importa dar notícia de alguns conceitos (que,
também, dão conta da impossibilidade da cumulação das referidas funções):
Conceito Final de Ação: neste seio, podemos averiguar duas possibilidades – em primeiro, manter
a identificação entre a finalidade e o dolo. Mas, neste caso, estar-se-ia a pré-determinar o
conceito de ilícito o qual, atendendo à função de ligação, só pode referir-se ao tipo; a segunda,
seria operar a cisão entre finalidade e dolo, bastando, para que possamos falar de uma ação final,
que o agente “tenha querido alguma coisa”, isto é, que tenha supradeterminado mentalmente
um fim e que, para o atingir tenha escolhido os meios. Nesta hipótese, pode-se dar como satisfeita
a função de classificação (a ação como “capacidade de dirigir e dominar, dentro de certos limites,
os processos causais”), mas o mesmo já não poderá dizer-se em relação à função de definição –
por exemplo, um agente pode ter querido penetrar na habitação de outra pessoa mas, ainda
assim, não ter preenchido os tipos ilícitos de violação de domicílio porque poderia haver acordo
com o titular do direito de habitação. A substância da ação não é suficiente para suportar as
predicações posteriores – in casu, da ilicitude.
Este conceito final de ação também não exprime em si todas as formas de comportamento que
podem relevar para o direito penal, já que exclui os crimes de omissão e os negligentes (pelo
menos, quanto ao resultado). Logo, não poderá consubstanciar-se, face ao acima exposto, em
conceito geral de ação.
Conceito Social de Ação: também este conceito, não pode cumprir a sua função de classificação,
já que de fora deixa, inevitavelmente, o caráter omissivo das ações – caso o integrasse, estaria a
perder a função de ligação na medida em que, de forma a que essas condutas relevem, teria de
atender-se, desde logo, à tipicidade: a ação ”esperada” só o é através de uma imposição jurídica
que nasce do tipo. Mais, deste conceito de ação demasiado lato, só poderia resultar a imputação
do resultado à conduta através da doutrina das condições equivalentes. Critérios mais apertados
de imputação só podem provir do âmbito da proteção da norma incriminadora mas, dessa forma,
o conceito social de ação perderia o seu caráter autónomo e prévio relativamente à tipicidade e,
com isso, não teria cumprido a sua função de ligação.
Conceito “Negativo” de Ação: também este conceito não satisfaz. Na verdade, esta conceção ao
abranger apenas os “crimes de resultado”, deixa de fora importantes categorias como os “crimes
de mera atividade” e os “crimes de mera omissão”, o que, só por si, leva ao incumprimento da
função de classificação. Por outro lado, tal concetualização parece ter a ver com a doutrina da

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Teoria da Infração Penal

imputação objetiva e, mais uma vez, com problemas do tipo, pelo que tal levaria à não-satisfação
da função de ligação.
Conceito Pessoal da Ação: Claus Roxin, desta feita, concetualizou ação como “expressão de
personalidade”, abrangendo nela tudo aquilo que pode ser imputado a um homem como centro
de ação anímico-espiritual. Este conceito normativo cobriria as funções de classificação,
delimitação e de ligação (não concorda o prof. Figueiredo Dias3).

Capítulo III – Os factos puníveis dolosos de ação


Tipos Incriminadores
Os tipos de ilícito apresentam uma estrutura complexa, sendo compostos por elementos de
natureza objetiva e de natureza subjetiva, a partir dos quais é possível construir um tipo objetivo
e um tipo subjetivo.
No tipo objetivo importa identificar um número de problemas gerais diretamente relacionados
com a função e o sentido da tipicidade; por outro lado, sublinhar algumas técnicas e
procedimentos usados pelo legislador na construção e na arrumação sistemática dos tipos
incriminadores.
Quanto ao autor, os crimes podem ser classificados como comuns ou específicos.
Em regra, autor de um crime pode ser qualquer pessoa – e, nestes casos estaremos perante
crimes comuns; ao passo que, certos crimes só podem ser cometidos por determinadas pessoas,
porque possuem uma certa qualidade ou sobre as quais recai um dever especial – crimes
específicos.
Constituem exemplos de crimes comuns os seguintes: artigo 131º (Homicídio), artigo 180º
(Difamação), artigo 234º (Apropriação Ilegítima), entre muitos outros. Normalmente, a redação
dos artigos que os abrangem inicia-se pela palavra “Quem...”.
Constituem exemplos de crimes específicos os seguintes: artigo 227º (Insolvência dolosa), artigo
284º (Recusa de Médico), artigo 375º (Peculato), artigo 382º (Abuso de poder), entre outros.
Nota: Os crimes que apenas podem ser cometidos por “funcionários” carecem de um
esclarecimento. É que para que consigamos perceber quem é “funcionário” para o direito penal
precisamos de consultar o artigo 386º, donde resulta que será “funcionário” toda a pessoa que
tenha um contacto, direto ou indireto, com a Administração Pública, pelo que ficam, desde logo,
excluídos os funcionários das empresas privadas.
No âmbito dos crimes específicos, podemos, ainda, conhecer os crimes específicos próprios (ou
puros) e os crimes específicos impróprios (ou impuros). Os primeiros – específicos próprios –
dependem de uma qualidade especial do autor ou de um dever que sobre ele recaia (já que não
existe outro tipo que puna o mesmo comportamento paralelamente); os segundos – específicos
impróprios – admitem outro tipo que pune o mesmo comportamento se for praticado por outras

3
Vide páginas 259 e ss., Direito Penal, Dias Figueiredo

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Teoria da Infração Penal

pessoas. Assim, tomem-se como exemplos de crimes específicos próprios os seguintes: artigo
370º (Prevaricação de advogado ou solicitador), artigo 284º (Recusa de médico); e como
exemplos de crimes específicos impróprios os seguintes: artigo 378º face ao artigo 190º. Quanto
à conduta, os crimes podem ser de resultado ou de mera atividade. Nesta sede, definem-se quais
os comportamentos juridicamente relevantes, sendo certo que para que relevem é necessário
que sejam, desde logo, humanos – excluída está a capacidade de ação das coisas inanimadas e
dos animais, mas não dos entes coletivos 4 - e voluntários e, por isso, de fora ficam os atos
reflexos5, os cometidos em estados de inconsciência ou sob o impulso de forças irresistíveis6.
Posto isto, os crimes serão de resultado quando o tipo pressuponha a produção de um evento
como consequência da atividade do agente. O crime só se considera consumado se se verificar
uma alteração externa espácio-temporalmente distinta da conduta.
Importante: Resultado é a parte do tipo que o agente não domina, sendo uma mera consequência
da sua ação (note-se que o agente poderá dominá-lo quando escolhe atuar). Nos crimes de mera
atividade, o tipo incriminador preenche-se através da mera execução de um determinado
comportamento.
Considerem-se os seguintes exemplos: artigo 131º (Homicídio), artigo 143º (Ofensa à integridade
física), artigo 217º (Burla) – crimes de resultado; artigo 190º (Violação de domicílio ou
perturbação da vida privada), artigo 359º (Falsidade de depoimento ou declaração), artigo 371º
(Violação do Segredo de Justiça) – crimes de mera atividade.
Esta distinção não é tão fácil quanto aparenta, mas parece que o critério decisivo é que à ação
acresça (ou não) um efeito sobre o objeto da ação e desta distinto espácio-temporalmente.
– Outra classificação:
Crimes de Execução Vinculada: por exemplo, o crime de burla (artigo 217º CP) – só comete o
crime de burla quem atue “por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente
provocou”. Assim, se a conduta do agente não estiver abrangida pelo tipo, então não estaremos
perante um crime de burla, já que este ilícito só pode ser cometido pela forma descrita.
Crimes de Execução Livre: o exemplo paradigmático será o do homicídio (artigo 131º). Na
verdade, existem “milhentas” formas de cometer este crime, sendo indiferente a forma como o
resultado – morte – é alcançado.
Quanto ao bem jurídico, podemos classificar os crimes como crimes de dano ou crimes de perigo.

4
Este problema é abordado nas págs. 295 ss., i n Questões Fundamentais da Doutrina Geral, Tomo I,
Dias Figueiredo
5
Não se confundam os atos reflexos com os atos mecânicos (estão incutidos de tal forma no
agente que este, muitas vezes, nem se apercebe que os está a praticar). Quanto a estes
segundos - tem sido entendimento que, consubstanciando exteriorizações de personalidade,
são suscetíveis de desencadearem responsabilidade penal.
6
vis absoluta

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Teoria da Infração Penal

Todavia, antes de nos centrarmos nesta classificação, importa perceber o que é, na sua essência,
um bem jurídico e, outroassim, o que o distingue do objeto da ação. Nesse sentido, considere-se
o seguinte exemplo: A furta um anel a B; aqui, o objeto da ação é o anel e o bem jurídico é a
“propriedade alheia”. Assim, bem jurídico é a expressão de um interesse, da pessoa ou da
comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo
socialmente relevante e, por isso, juridicamente reconhecido como valioso. Por sua vez, o objeto
da ação não é mais do que a manifestação real desta noção abstrata; é a realidade ameaçada ou
lesada pela prática de uma conduta ilícita.
Aqui chegados, avancemos para a mencionada classificação – quanto à forma como o bem
jurídico é posto em causa pela atuação do agente.
Os crimes de dano serão os que a realização do tipo incriminador pressupõe uma lesão efetiva
do bem jurídico como consequência de uma conduta (exemplos: artigo 131º (Homicídio), artigo
212º (Dano), artigo 164º (Violação Sexual)). Em contrapartida, nos crimes de perigo a realização
do tipo incriminador não pressupõe a lesão, bastando a mera colocação em perigo do bem
jurídico.
Dentro dos crimes de perigo, podemos conhecer os crimes de perigo concreto – aqui, o perigo
faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido
posto em perigo (exemplos: artigo 138º (Exposição ou Abandono), artigo 291º (Condução
Perigosa de Veículo Rodoviário), artigo 272º (Incêndios ou Explosões)); e os crimes de perigo
abstrato – o perigo não é elemento do tipo, mas a sua motivação. Certos comportamentos são
tipificados em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite
de ser comprovada no caso concreto7 (exemplos: Artigo 292º (Condução de um veículo em estado
de embriaguez, artigo 275º (Posse de arma proibida)). Tem-se levantado o problema da
constitucionalidade destes ilícitos-típicos pelo facto de poderem constituir uma tutela demasiado
avançada de um bem jurídico, pondo em risco o Princípio da Legalidade e o Princípio da Culpa. O
tribunal Constitucional, no entanto, admite-os e, por isso, decide pela sua não
inconstitucionalidade desde que visem a proteção de bens jurídicos de grande importância,
quando for possível identificar o bem jurídico tutelado e, cumulativamente, a conduta típica for
descrita de uma forma minuciosa e precisa. Daqui resultaram posições que, não obstante o
regime dos crimes de perigo abstrato, defendem a possibilidade de não punição de algumas
condutas (sempre aferida casuisticamente). Isto é, a não punição de condutas que prefigurem a
prática de um crime de perigo abstrato quando se comprove que na realidade não existiu, de
forma absoluta, perigo para o bem jurídico, ou que o agente tomou as medidas necessárias para
evitar que o bem jurídico fosse colocado em perigo – doutrina dos crimes de perigo abstrato-
concreto.

7
Defende o professor Figueiredo Dias que a perigosidade se presume iuris et de iure pela lei.

11
Teoria da Infração Penal

– Outras classificações8:
Crimes Simples e Crimes Complexos
Crimes (ou tipos) Simples: visam apenas a tutela de um bem jurídico, como o homicídio (artigo
131º) – vida; e o furto (artigo 203º) – propriedade.
Crimes (ou tipos) Complexos: visam a tutela de vários bens jurídicos, como o roubo (artigo 210º)
– integridade física e propriedade.
Crimes Fundamentais, Qualificados e Privilegiados
Os crimes fundamentais contêm o tipo objetivo de ilícito na sua forma mais simples, constituíndo
o mínimo denominador comum, que será desenvolvido e conformado pelos tipos qualificados e
privilegiados (o tipo-base). A partir destes tipos fundamentais, o legislador acrescenta-lhe
elementos que agravam a pena – crimes qualificados -, ou, pelo contrário, que a atenuam –
crimes privilegiados.
Como exemplo tenha-se o tipo-base de homicídio, previsto no artigo 131º CP, previsto na forma
qualificada no artigo 132º CP e na forma privilegiada no artigo 133º CP; ou o tipo-base de furto
(artigo 203º CP) que conhece forma qualificada no artigo 204º CP.

Crimes Instantâneos, Duradouros e Habituais


Os crimes instantâneos traduzem-se na realização de um ato ou na produção de um evento cuja
duração é instantânea, não se protelando no tempo (exemplo: o homicídio (artigo 131º CP) dá-se
no momento da morte da vítima).
Os crimes duradouros pressupõem que a consumação se prolongue no tempo, por vontade do
autor. Assim, se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e se prolongar no tempo
enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas,
estamos perante um crime duradouro – exemplo: sequestro (artigo 158º CP).
Os crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente
pratique determinado comportamento de uma forma reiterada (exemplo: maus tratos (artigo
152º CP), lenocínio (artigo 169º CP), aborto agravado (artigo 141º, nº2 CP)).
Posto isto, resta-nos, no que toca ao capítulo dos tipos incriminadores, fazer uma alusão aos
crimes continuados – que, desde logo, não devem ser, de forma alguma, confundidos com os
crimes habituais. A existência de um crime continuado pressupõe a verificação de uma série de
requisitos – diga-se cumulativos – que se encontram previstos no nº2 do artigo 30º CP. A saber:
a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários crimes que fundamentalmente protejam

8
Outras classificações poderiam ser aqui referidas mas porque não revestem grande interesse
prático ou porque, neste momento, não se revelam importantes não serão alvo de
esclarecimentos. Todavia, para os que pretendam conhecer mais, nomeadamente, acerca
dos crimes de empreendimento e dos crimes qualificados pelo resultado deverão consultar
as págs.315 e seguintes do manual supracitado – anteriormente indicado na bibliografia – de
Dias Figueiredo.

12
Teoria da Infração Penal

o mesmo bem jurídico; executada por forma essencialmente homogénea; e no quadro de


solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Ao crime continuado aplica-se a pena que corresponde à conduta mais grave que integra a
continuação, conforme resultado artigo 79º, nº1 CP. Aqui pode revelar-se o propósito do
legislador subtrair a punição às regras da punição do concurso de crimes e submetê-la a um
regime adequada à consideração do caso como unidade de crime. Denote-se que não estão
abrangidos pelo nº2 do artigo 30º CP, os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais
(nº3).

Capítulo IV - A imputação objetiva do resultado à conduta

O problema da imputação objetiva releva, fundamentalmente, quanto aos crimes de resultado9.


Quando o preenchimento de um tipo de ilícito impõe a produção de um resultado, importa
verificar não apenas se este resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído
(imputado) à ação10.
Neste âmbito, podemos destacar algumas teorias: a Teoria das Condições Equivalentes11 – neste
primeiro degrau 12 , defende-se que a ação há-de, pelo menos, ter sido causa do resultado. A
premissa básica desta teoria é a de que a causa de um resultado é toda a condição sem a qual o
resultado não teria tido lugar 13 . Assim sendo, todas as condições que, de alguma forma,
contribuíram para que o resultado se tivesse produzido são causais em relação a ele e devem ser
consideradas em pé de igualdade, já que o resultado é indivisível e não pode ser pensado sem a
totalidade das condições que o determinaram.
Esta teoria acaba, assim, por abranger a mais longínqua condição, o que implica um regressus ad
infinitum. Ora, dada a sua desmesurada abrangência – e sendo que esta leva a resultados
inconcebíveis -, foi necessário proceder a correções, nomeadamente recorrendo a critérios de
imputação objetiva mais exigentes. Donde, o critério concebido por esta norma, não poderá só por
si, arvorar-se como o critério definitivo de imputação objetiva.
Dada a insuficiência desta teoria, surgiu um segundo degrau, o qual foi ocupado pela Teoria da
Causalidade Adequada14 (ou da Adequação) – esta vem estabelecer um critério complementar da
Teoria das Condições Equivalentes e, por isso, para que o resultado possa ser imputado à ação é
ainda e sempre necessário que, em concreto, se tenha verificado um nexo causal entre ambos. A

9
Vide capítulo III.
10
A esta exigência mínima dá-se o nome de causalidade.
11
Surgida no século XIX, com Glaser e v. Buri.
12
Conforme refere Figueiredo Dias.
13
Fórmula chamada de conditio sine qua non.
14
Criada no final do século XIX por v. Kries.

13
Teoria da Infração Penal

ideia é a de que a imputação penal não pode ir além da capacidade geral do homem de dirigir e
dominar os processos causais.
Concluindo, serão relevantes ao nível da imputação objetiva não todas as condições, mas só
aquelas que, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer – segundo o que é
previsível -, são idóneas a produzir o resultado.
A consagração desta teoria no nosso ordenamento jurídico-penal resulta, implicitamente, do
artigo 10º (“ação adequada” a produzir um certo resultado, como à “omissão da ação adequada a
evitá-lo”).
No entanto, também esta teoria enfrenta algumas dificuldades – na verdade, o nexo de adequação
que esta sugere, tem de se aferir segundo um juízo ex ante (já que, em concreto, depois de
verificado o resultado é difícil negar a previsibilidade) e não ex post – juízo de prognose póstuma:
o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a
conduta e ponderar, enquanto observador objetivo, se, dadas as regras gerais da experiência e o
normal acontecer dos factos, a ação praticada teria como consequência a produção do resultado.
Caso se conclua que o resultado não era previsível, então não haverá lugar à imputação 15.
Ao juízo de prognose póstuma devem ser levados os conhecimentos especiais do agente – aqueles
que o agente detinha, apesar da generalidade das pessoas não dispor.
Além disto, a adequação deve referir-se a todo o processo causal, e não só ao resultado – e, aqui,
levantam-se problemas da “intervenção de terceiros” e da “interrupção do nexo causal”; neste
seio, a regra é a de que a atuação de terceiro que se integre no processo causal desencadeado pelo
agente excluirá a imputação, salvo se esta for provável ou previsível.
Apesar da Teoria da “Causalidade Adequada” ter vindo diminuir o campo de imputação e,
outrossim, lhe seja reconhecido o mérito de ter trazido para este âmbito critérios mais rigorosos
de imputação, esta teoria ainda não se mostra satisfatória, pelo que foi corrigida por vários
princípios – como o do juízo de prognose póstuma, o da causa virtual, o da tentativa impossível16,
entre outros. Ainda assim, deixou espaço para que um terceiro degrau se erguesse – falamos da
Teoria da Conexão do Risco. Segundo esta, o resultado só deve ser imputável à ação quando esta
tenha criado (ou aumentado, ou incrementado) um risco proibido para o bem jurídico protegido
pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. Temos, então, dois
requisitos17 para que possa haver lugar à imputação: o agente, com a sua ação, tem que criar um
risco não permitido ou tenha aumentado um risco já existente; e que esse risco tenha conduzido à
produção de um resultado concreto.

15
Exemplo: A dá uma navalhada superficial a B, que acaba por morrer devido a hemofilia.
16
Conforme veremos infra.
17
Ou condições (cumulativas). Quando uma não se verifique, a imputação deve ter-se por excluída.

14
Teoria da Infração Penal

Analisemo-los:
- Criação de um risco não permitido: quanto às condutas que diminuem ou atenuem um risco pré-
existente, a imputação deve ter-se por excluída 18; a imputação não deve operar, também, em
relação às condutas que não tenham ultrapassado o limite do risco juridicamente protegido – não
pode o direito penal, dada a sua natureza de ultima ratio, sancionar comportamentos que tenham
produzido a lesão de bens jurídicos em virtude da materialização de riscos que são tolerados de
forma geral – falamos, neste sentido, do risco geral de vida, desde que dotado de uma medida
normal.
- Potenciação do risco: nestas situações, já está criado um risco que ameaça o bem jurídico
protegido, antes da atuação do agente. No entanto, o resultado continuará a ser imputado à
conduta do agente, se esta aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando a situação do
bem jurídico ameaçado19.
- Concretização do risco não permitido no resultado típico: como se disse, não basta que o agente,
com a sua ação, crie ou potencie um risco não permitido; é preciso, também, determinar se foi
esse o risco que se materializou ou concretizo no resultado típico20. A dificuldade provém de que
sobre a existência e as características do perigo é decisivo um juízo ex ante; para saber que perigo
acabou por determinar o resultado, é uma questão que só pode ser respondida ex post, ou seja,
com o conhecimento de todas as circunstâncias relevantes para a verificação efetiva do resultado.
- Produção de resultados não cobertos pelo fim ou pelo âmbito de proteção da norma: além das
condições já mencionadas, para que a imputação do resultado a uma conduta possa suceder, é
ainda necessário que o perigo que se concretizou no resultado seja um daqueles que corresponde
ao fim de proteção da norma de cuidado. Quando tal não se verifique, deve ter-se por excluída a
imputação objetiva. O campo de aplicação desta situação é, nomeadamente, o da negligência; não
estando excluída a hipótese desta situação ocorrer em relação a ações dolosas21.
À partida, a criação ou potenciação de um risco e a sua concretização no resultado típico será
bastante para que possamos falar em imputação objetiva do resultado à ação. No entanto, tal
verificação não bastará nos casos em que o âmbito do tipo não cobre resultados da espécie
daquele que efetivamente se verificou – por excelência, como dissemos, o campo dos crimes
negligentes.

18
É o exemplo de A que empurra B, causando-lhe leves lesões, para evitar que este seja atropelado por um
veículo que segue na sua direção.
19
Exemplo: o condutor de uma ambulância que, em virtude de uma manobra errada, causa a morte do
paciente que transportava e que, em todo o caso, se encontrava já em péssimo estado em virtude de um
enfarte maciço do miocárdio.
20
Esta não é uma tarefa fácil, nomeadamente quando estejamos perante casos de concurso de riscos. Veja-
se Direito Penal, Tomo I, Figueiredo Dias, 337-338.
21
Neste contexto, analise-se o exemplo dada por Figueiredo dias, in Direito Penal, Tomo I, 339.

15
Teoria da Infração Penal

Por fim, e no que toca à imputação objetiva, resta dar conta do problema da “causalidade virtual”
que, dada a sua relevância, merece um tratamento autónomo, ainda que sumário.
Aqui, na verdade, pode o agente ter criado um perigo não permitido com a sua ação, este ter-se
materializado no resultado típico e, todavia, haver razões para duvidar-se que este deva ser
imputado objetivamente àquele – causalidade virtual.
Assim, por exemplo – A faz explodir o avião X para matar o passageiro B; no entanto, B acabaria
por morrer, ainda que A não tivesse feito explodir o avião, já que este despenhar-se-ia igualmente
por falta de combustível. Neste contexto, a causa virtual seria a de que avião se despenharia por
falta de combustível, o que levaria à morte B, bem como os restantes passageiros.
Ora, tem sido entendimento da doutrina – maioritariamente – que à causa virtual não deve ser
atribuída qualquer relevância jurídico-penal; continua a ter sentido não abandonar o bem jurídico
à agressão do agente só porque aquele já não pode, definitivamente, ser salvo.

Capítulo V – Tipo Subjetivo de Ilícito

Dolo do tipo
O Código Penal não define o dolo do tipo, limitando-se, no seu artigo 14º a expor cada uma das
suas formas. Na sua aceção mais geral poderá ser conceitualizado como o conhecimento e vontade
de realização do tipo objetivo de ilícito.
E, antes de mais, importa retirar algumas conclusões do que é estipulado pelo artigo 13º: só é
punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
Donde, em primeiro lugar, poder-se-á concluir que no âmbito criminal o lugar primordial, por mais
grave, é conferido à criminalidade dolosa. Ora, tanto assim é que apenas um décimo dos crimes
previstos no Código Penal estão previstos na forma negligente; e quase sempre com molduras
penais mais baixas do que os correspondentes delitos dolosos. A estrutura dogmática do dolo tem,
então, de estar condicionada por esta diferente relevância dos delitos dolosos e dos negligentes,
pelo desvalor jurídico mais alto que caberá aos primeiros face aos segundos. Assim sendo, a
diferença entre estes dois tipos de delitos terá que ser, essencialmente, uma diferença de culpa.
O dolo do tipo, baseando-se na diferença de culpa, surge estruturalmente composto por dois
elementos: o elemento intelectual (conhecimento) e o elemento volitivo (vontade). Ora, só este
segundo elemento nos poderá levar à distinção entre a culpa dolosa e culpa negligente, uma vez
que do artigo 15º, alínea a) resulta que o comportamento será negligente, ainda que o agente
represente que preenche um tipo de ilícito (negligência consciente); é, portanto, o elemento
volitivo, quando ligado ao elemento intelectual requerido, que diferencia estes dois graus de culpa.

16
Teoria da Infração Penal

Momento intelectual do dolo


Este elemento trata da necessidade, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça,
saiba, represente corretamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um
tipo objetivo (artigo 16º, nº1).
Na ratio desta exigência pretende-se que o agente conheça tudo o que é necessário a uma correta
orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação
intentada, para o seu caráter ilícito.
Só quando todos os elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se
poderá vir a afirmar que ele decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude
contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Logo, sempre que o agente não
represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objetivo o
dolo terá de ser negado.
Fala-se, neste contexto, do princípio da congruência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo de
ilícito doloso.
Ora, conforme o que foi dito, a afirmação do dolo do tipo exige, então, o conhecimento da
totalidade dos elementos constitutivos do respetivo tipo de ilícito objetivo, da factualidade típica:
neste sentido, falamos do conhecimento dos elementos descritivos e normativos – não sendo,
todavia, necessária a exata subsunção jurídica, sob pena de só o jurista poder atuar dolosamente.
Se o agente conhece o conteúdo do elemento, mas desconhece a sua qualificação jurídica, trata-
se de um erro de subsunção – o qual é irrelevante para o dolo do tipo. O conhecimento do agente
dos elementos normativos deve consistir na apreensão do sentido ou significado correspondente,
no essencial e segundo o nível próprio das representações do agente, ao resultado daquela
subsunção.
Este conhecimento requerido pelo dolo do tipo exige a sua atualização na consciência psicológica
ou intencional no momento da ação22.
Por outro lado, caso falte ao agente o conhecimento da totalidade das circunstâncias, de facto ou
de direito, descritivas ou normativas, do facto, o dolo do tipo não pode afirmar-se. Tal solução
resulta do disposto no artigo 16º, nº1 - o erro sobre a factualidade típica exclui o dolo.
Neste contexto, o erro deve ser entendido num duplo sentido: no de uma representação positiva
errada, mas também no sentido de falta de representação; por seu turno, a expressão “exclui o
dolo” não implica que o dolo já existente seja eliminado. Na verdade, o dolo do tipo não chega a
constituir-se quando faltam os seus pressupostos.
Esta doutrina vale não só para as circunstâncias que fundamentam o ilícito, mas também para
todas aquelas que a agravam e para a aceitação errónea de circunstâncias que o atenuam 23.
Negado o dolo do tipo, falta o tipo subjetivo apenas do crime doloso de ação correspondente.
Pode, no entanto, o agente ter realizado dolosamente outros tipos de ilícito como pode ainda estar

22
Para mais esclarecimentos, vide Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, 355-356.
23
Vejam-se os exemplos dados por Figueiredo Dias, in Direito Penal, ibidem, 357.

17
Teoria da Infração Penal

preenchido um tipo de ilícito negligente – a punibilidade a título de negligência fica ressalvada


(artigo 16º, nº3): se o respetivo comportamento for expressamente previsto pela lei como crime
negligente e se a negligência se tiver efetivamente verificado no caso.
Nos crimes de resultado tanto a ação como o resultado são circunstâncias do facto pertencentes
ao tipo objetivo de ilícito, pelo que têm de ser levados à consciência intencional do agente. Daí
questionar-se em que termos é necessário o conhecimento pelo agente da conexão entre ação e
resultado, isto é, do risco criado e vazado no resultado que fundamenta a imputação objetiva. Na
verdade, como afirma Figueiredo Dias, só desta maneira a realização do tipo objetivo de ilícito no
seu todo surgirá como “obra do agente”.
Neste contexto, abordemos o erro sobre o processo causal: quanto à relevância deste erro, os
entendimentos são ambíguos – no âmbito doutrinal, uns consideram que o agente apenas será
punido pela tentativa, quando o resultado tenha lugar por concretização de um risco não previsto,
já que não se poderá afirmar a congruência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo doloso; outros,
por sua vez, consideram que o erro sobre o processo causal é, em princípio irrelevante, salvo,
porventura, quando se trate de crimes de execução vinculada 24 , pois só nestes casos é que o
processo causal constitui um elemento do tipo objetivo de ilícito e, por isso, uma circunstância de
facto para efeito do artigo 16º, nº1.
Figueiredo Dias, por sua vez, afirma que este erro (sobre o processo causal) deve ser relevante nos
casos em que a imputação objetiva tenha lugar. E, aqui: ou o tipo de ilícito é de execução vinculada
e o erro sobre o processo causal traduz-se num mero erro sobre a factualidade típica e, por isso,
relevante; ou, sendo de execução livre, torna-se difícil figurar uma hipótese em que a imputação
objetiva deva ser afirmada e, todavia, o dolo do tipo ser negado. Onde e quando uma tal hipótese
deva ser figurada, o erro sobre o processo causal não pode deixar de ter-se por relevante no sentido
da não afirmação do dolo e o agente só poderá ser punido a título de tentativa 25.

Dolus generalis – trata-se de casos em que o agente erra sobre qual de diversos atos de uma
conexão da ação produzirá o resultado almejado. E, neste sentido, relevam dois momentos: num
primeiro momento o agente pensa erroneamente ter produzido, com a sua ação, o resultado
típico; num segundo momento, fruto de uma nova atuação do agente 26 , o resultado vem
efetivamente a concretizar-se (exemplo: o agente que, atuando com o dolo correspondente,
acredita ter morto com uma pancada a sua vítima e depois tentar simular um suicídio, enforcando-
a, tendo a morte ocorrido só com o enforcamento).
Ainda que neste âmbito, o entendimento doutrinal não seja consensual, a solução, entre nós, deve
seguir os passos da doutrina da imputação objetiva: e, então, saber se o risco que se concretiza no
resultado pode reconduzir-se ao quadro dos riscos criados pela (primeira) ação. Se a resposta for

24
Vide capítulo III.
25
Neste sentido, veja-se o exemplo de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, 359-360.
26
Quase sempre com fins de encobrimento.

18
Teoria da Infração Penal

afirmativa deve considerar-se o crime como consumado; se negativa, a imputação só poderá ter
lugar a título de negligência, eventualmente em concurso com um crime negligente consumado.

Aberratio ictus vel impetus – estes são os casos em que, por erro na execução, vem a ser atingido
objeto diferente daquele que estava no propósito do agente (exemplo: A pretende matar B com m
tiro, mas este vir a atingir C, em vez de B). Aqui, o resultado ao qual se refere a vontade de
realização do facto não se verifica, mas sim um outro, da mesma espécie ou de espécie diferente.
A ação falha o seu alvo, configurando, por isso, uma tentativa. A produção do outro resultado só
pode eventualmente conformar-se como um crime negligente. Desta forma, a punição deve ter
lugar só por tentativa ou por concurso desta com um crime negligente27.

Error in persona vel objeto28 - nestas situações, o agente encontra-se em erro quanto à identidade
do objeto ou da pessoa a atingir; ademais, o decurso do acontecimento corresponde inteiramente
ao intentado. Não se trata, pois, de um erro na execução, mas na formulação da vontade.
Exemplo: A, pensando que está alvejar B, seu inimigo, dispara contra ele um tiro mortal,
verificando-se, posteriormente, que afinal quem A matara foi C, um estranho, e não B.
Este erro é, no nosso ordenamento jurídico-penal, irrelevante – a lei proíbe a lesão não de um
determinado objeto ou indivíduo, mas de todo e qualquer objeto ou pessoa compreendidos no
tipo de ilícito.
Nota: se o agente erra também sobre as qualidades tipicamente relevantes do objeto por ele
atingido, então há que ficar ou só na responsabilidade por tentativa, ou eventualmente na
combinação de tentativa com uma responsabilidade por negligência.

Em determinadas circunstâncias – excecionais – à afirmação do dolo do tipo torna-se ainda


indispensável que o agente tenha atuado com conhecimento da proibição legal. A reduzida
relevância axiológica da ação faz com que o facto, no conjunto dos seus elementos, não suscite
imediatamente um problema de desvalor ligado ao dever-ser jurídico; o substrato da valoração da
ilicitude não é constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um novo
elemento: a proibição legal.
É destas situações que trata o artigo 16º, nº1 quando diz que um erro sobre a proibição exclui o
dolo quando o seu conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar
consciência da ilicitude do facto29.

27
Denominada teoria da concretização.
28
Erro sobre a pessoa do objeto.
29
Nomeadamente – mas não exclusivamente -, este erro relevará no âmbito dos ilícitos de mera ordenação
social.

19
Teoria da Infração Penal

Momento volitivo do dolo


Já vimos que o conhecimento das circunstâncias de facto e, na medida necessária, do decurso do
acontecimento não podem, só por si, indiciar a contrariedade ou indiferença ao dever-ser jurídico-
penal. A este momento (intelectual) acresce um outro – o momento volitivo -, exigindo-se, aqui, a
prática do facto presidida por uma vontade dirigida à sua realização.
Por vezes, esta vontade é manifesta – os casos de dolo direito; outras vezes é menos clara –
quando o agente parte para a realização do facto tendo-o representado como meramente possível
– dolo necessário; e, ainda, casos de dolo eventual (os mais controversos, dada a sua proximidade
com a negligência consciente).
O dolo direto é constituído por aqueles casos em que a realização do tipo objetivo de ilícito surge
como um verdadeiro fim da conduta (artigo 14º, nº1) – exemplificando: A, admirador incondicional
de um quadro de Picasso, mas sem dinheiro para o comprar, assalta o estabelecimento de leilões
onde o quadro será vendido no dia seguinte e o subtrai para ficar com ele; aqui, o agente dirigiu
diretamente a sua vontade À realização do facto.
No dolo necessário a realização do facto surge não como um pressuposto para alcançar a
finalidade da conduta, mas como sua consequência necessária (inevitável), ainda que “lateral” ao
fim da conduta (artigo 14º, nº2). Esta “inevitabilidade” traduz a característica especial ao nível do
elemento intelectual do dolo: a previsão do facto há-de ter ultrapassado a mera representação da
consequência como “possível”, para o ser como “certa” ou, pelo menos, “altamente provável” –
exemplificando: o agente que coloca uma bomba no avião de forma a, em pleno voo, matar um
seu inimigo que nele viaja, mas plenamente consciente que a explosão provocará, como vem a
provocar, a morte dos restantes viajantes (e, portanto, a morte dos restantes viajantes ser-lhe-á
imputada a título de dolo necessário).
Finalmente, no dolo eventual os casos caracterizam-se pela circunstância da realização do tipo
objetivo de ilícito ser representada pelo agente apenas “como consequência possível da conduta”
(artigo 14º, nº3). No entanto, um dolo assim estruturado torna-se muito próximo da negligência
consciente (artigo 15º, alínea a)), pelo facto de também esta supor aquela representação da
realização típica como consequência possível da conduta.
Neste seio, formularam-se algumas teorias30 para se conseguirem distanciar estas duas figuras (do
dolo eventual e da negligência consciente). Assim,
Teorias da probabilidade – esta doutrina assenta na ideia de que à afirmação do dolo do tipo não
basta o conhecimento da mera possibilidade de realização, mas requer-se que a representação
assuma a forma de probabilidade, ou mesmo de probabilidade relativamente alta31.
Teorias da aceitação – aqui, pergunta-se se o agente, apesar da representação típica como possível,
aceitou intimamente a sua verificação, ou pelo menos revelou a sua indiferença perante ela (dolo

30
Das quais apenas daremos conta sumariamente. Para mais desenvolvimentos, vide Direito Penal, Tomo
I, Figueiredo Dias, 368-377.
31
Ter como fundamento uma ideia de probabilidade de realização típica levanta alguns problemas – vide
369-370 do manual mencionado supra.

20
Teoria da Infração Penal

eventual); ou se, pelo contrário, a repudiou intimamente (e, neste momento, entrar-se-á no campo
da imputação a título de negligência consciente)32.
Teorias da conformação – esta é, então, a conceção que é hoje largamente dominante; é a ela que
se refere, aliás, o artigo 14º, nº3: se o agente atuar conformando-se com aquela realização. Assim,
parte-se da ideia de que o dolo pressupõe algo mais do que o conhecimento do perigo da realização
típica. Conforme refere Eduardo Correia, o critério do dolo eventual será o facto de o agente atuar
não confiando em que o resultado se não verificará.
Seguindo a orientação de Figueiredo Dias, não obstante as teorias da conformação constituírem a
conceção dominante, não é a preferível33.
Esta distinção é demasiado frágil e insegura que mal é capaz de justificar diferenças significativas
das molduras penais aplicáveis a um e a outro caso.

Capítulo VI – Causas de justificação ou de exclusão da ilicitude

Os tipos incriminadores e os tipos justificadores constituem, respetivamente, uma via provisória


de fundamentação da ilicitude e uma via definitiva de exclusão da ilicitude indiciada pela
subsunção da ação concreta a um tipo incriminador.
Ao contrário dos tipos incriminadores, do ponto de vista estrutural, os tipos justificadores são
gerais e abstratos, no sentido de que não são em princípio referidos a um bem jurídico
determinado, valendo para uma generalidade de situações independentes da concreta
conformação do tipo incriminador em análise.
As causas de justificação não têm de possuir caráter especificamente penal, podendo provir da
totalidade da ordem jurídica e, por isso, constarem de qualquer ramo de direito – respeito pelo
Princípio da Unidade da Ordem Jurídica. Isto resulta expressamente do artigo 31º: o facto não é
punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade; ora,
é de fácil compreensão o porquê de a ordem jurídica dever ser considerada na sua totalidade: se
uma ação é considerada lícita pelo direito civil, administrativo ou por qualquer outro, essa licitude
tem de impor-se a nível do direito penal, pelo menos no sentido de que ela não pode constituir um
ilícito penal; se ela for considerada ilícita por um ramo do direito, então tal ilicitude estender-se-á
a qualquer outro ramo.
Quanto aos elementos subjetivos dos tipos justificadores, várias considerações parecem impor-se:
a primeira é a de que estes não operam de forma puramente objetiva – independentemente da
exigência de quaisquer elementos subjetivos. Na verdade, existem causas de justificação – como a
legítima defesa34 (fala-se de animus defendendi) - que exigem estes elementos subjetivos. Deste

32
Sobre o alcance das críticas de que foram alvo estas teorias, vide 370-371.
33
Vide 372.
34
Como veremos infra.

21
Teoria da Infração Penal

modo, os elementos objetivos do tipo justificador servem para excluir o desvalor do resultado,
enquanto os subjetivos para concretizar a falta de desvalor da ação.
Assim, o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo justificador constitui-se como a
exigência subjetiva mínima indispensável à exclusão da ilicitude, o mínimo denominador comum
de todo e qualquer causa justificativa – ainda que algumas façam, ainda, exigências adicionais.
Ora, qual o tratamento jurídico-penal que merecerá o agente que atue ao abrigo de uma causa de
justificação mas que não represente os elementos do tipo? Defende Figueiredo Dias que dever-se-
á aplicar o regime da tentativa por analogia35.
Por outro lado, poderá ocorrer que o agente aceite erroneamente que estão verificados os
pressupostos de uma causa de justificação, ainda que, na realidade, não o estejam. Aqui,
inversamente das situações que abordámos anteriormente, objetivamente não se dão no caso os
elementos justificadores exigidos, mas (subjetivamente) o agente supõe falsamente que eles se
verificam – situações de justificação putativa ou de erro sobre os elementos do tipo justificador36.
O tratamento dado a estes casos resulta do artigo 16º, nº2 – o erro sobre um estado de coisas que,
a existir, excluiria a ilicitude do facto, exclui o dolo. No entanto, e conforme ressalva o nº3 do
mesmo preceito, poderá haver lugar à punibilidade a título de negligência37.
Posto isto, e introduzido o presente capítulo, analisaremos os tipos justificadores de uma forma
autónoma e, até, pormenorizada.

Legítima defesa
Prevista no artigo 32º CP, esta opera nos seguintes casos: constitui legítima defesa o facto
praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente
protegidos do agente ou de terceiro.
Neste contexto, deve pôr-se de lado o pensamento de Hegel traduzido na ideia de que o Direito
nunca deve ceder perante o ilícito; na verdade, defendendo-se o Direito perante o ilícito, o agente,
através do seu facto, está a defender não só os interesses agredidos mas, em último termo, o
interesse da comunidade na integridade do direito objetivo.
Atualmente, a legítima defesa é imprescindível na proteção (necessária) e consequente prevenção
do bem jurídico agredido. Por detrás desta figura, encontram-se dois fundamentos: a necessidade
de defesa da ordem jurídica, através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos de
valor superior aos postos em causa pela agressão; por outro lado, também existe a necessidade de
proteção dos bens jurídicos ameaçados pela agressão.

35
Para mais desenvolvimentos, vide Direito Penal, Tomo I, Figueiredo Dias, 394-396.
36
Tome-se como exemplo destes casos o seguinte: A aponta uma pistola a B gritando “a bolsa ou a vida”,
mas B saca rapidamente de uma arma que traz no bolso e mata A; verifica-se depois que A, um “pândego”
dotado de um estranho sentido de humor, só queria assustar B e que a arma que lhe apontou não passava
de um brinquedo.
37
Esta questão, no entanto, mereceu, por parte de Figueiredo Dias, um tratamento mais complexo – vide
397-400.

22
Teoria da Infração Penal

Posto isto, cumpre abordar os requisitos desta figura:


Agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro – em primeiro lugar,
o conceito de agressão deve compreender-se como ameaça derivada de um comportamento a um
bem juridicamente38 protegido. Esta deve ser humana, já que só os seres humanos podem violar o
direito (ficam, então, excluídas as atuações de animais39, bem como o perigo decorrente de coisas
inanimadas).
Cumulativamente, a conduta humana deve ser voluntária – não há legítima defesa quando a
resposta seja exercida contra uma agressão cometida em estado de inconsciência ou em que a
vontade esteja completamente ausente.
Diga-se que, ao contrário do entendimento de parte da doutrina, Figueiredo Dias defende que a
legítima defesa deve aceitar-se, para além de contra as omissões impuras40, também contra as
puras – assim sendo, será legítimo forçar-se um automobilista a transportar ao hospital a vítima de
um acidente – cfr. artigo 200º CP. Deste omitir resulta um perigo para bens jurídicos individuais41
e supra-individuais).
A legítima defesa só é admitida contra agressões atuais – estas serão atuais quando sejam
iminentes, quando já se iniciaram ou ainda persistem. E, aqui, decisiva é a situação objetiva e não
o que seja representado pelo agredido; além disto, esta serão iminentes quando o bem jurídico se
encontra já imediatamente ameaçado42.
E, agora, num breve parênteses, importa dar nota de um grupo de casos que, neste seio, suscitam
algumas dúvidas: casos em que, não obstante a agressão não ser ainda sequer iminente, já se sabe
antecipadamente, com certeza ou com elevado grau de segurança, que ela vai ter lugar43. Parte da
doutrina entende que poderá operar a exclusão da ilicitude através do argumento da defesa mais
eficaz – segundo a qual a agressão seria já atual no momento em que ela fosse iminente tornasse
a resposta impossível ou se ela só fosse provável mediante um grave endurecimento dos meios (a
legítima defesa preventiva); em sentido contrário, situa-se o entendimento de Figueiredo Dias: esta
proposta não deve ser acolhida porque alarga demais o conceito de atualidade; e porque terá
consequências nefastas, legitimando formas privadas de defesa em substituição da atuação das
autoridades públicas competentes, a quem pertence intervir nestas situações. Em suma, porque
não estamos perante agressões atuais.

38
Juridicamente e não necessariamente jurídico-penal.
39
A legítima defesa, contudo, não deve ser negada quando exercida contra animais que estejam a ser
usados por alguém como instrumento de agressão, já que nestes casos não deixamos de estar perante uma
agressão humana, apenas com a particularidade de um animal ser utlizado como arma.
40
O entendimento, quanto a estas, é consensual.
41
Concretamente, a vida.
42
Tenha-se em conta o seguinte exemplo: deve considerar-se coberto pela legítima defesa o disparo de A
sobre B quando efetuado no momento em que B levou a mão ao bolso para sacar do revólver como o qual
pretendia atirar sobre A.
43
Exemplo: o dono de uma estalagem ouve, ao jantar, três hóspedes combinarem entre si o assalto ao
estabelecimento durante a noite.

23
Teoria da Infração Penal

A defesa pode ter lugar até ao último momento em que a agressão ainda persiste. No entanto,
não pode confundir-se este momento com o da consumação, já que na maioria dos crimes a
agressão e o estado de antijuridicidade perduram para além da consumação típica ou “formal”.
Assim sendo, neste contexto é relevante o momento até ao qual a defesa é suscetível de pôr fim à
agressão, pois só então fica afastado o perigo de que ela possa vir a revelar-se desnecessária para
repelir aquela.
Mais: a legítima defesa só é admitida contra agressão ilícita – esta ilicitude, como dissemos, deve
ser aferida à luz da totalidade da ordem jurídica, não tendo de ser especificamente penal. Deste
pressuposto, resulta que não são ilícitas as agressões justificadas, não podendo contra elas ser
exercida legítima defesa. A quem atua ao abrigo de ma causa de exclusão é concedido um direito
de intervenção na esfera de terceiros, que faz impender sobre estes um dever de suportar aquela
conduta e impossibilita uma reação em legítima defesa.
Por fim, diga-se que é entendimento da maioria da doutrina que tanto as agressões dolosas como
as negligentes podem dar lugar a uma resposta em legítima defesa. Por outro lado, também esta
figura poderá ser utilizada como resposta a agressões ilícitas, ainda que o agente atue sem culpa –
devido a inimputabilidade, à existência de uma causa de exclusão da culpa ou a um erro sobre a
ilicitude não censurável.
Ação de defesa – do artigo 32º resulta, desde logo, que a defesa deve ser necessária; donde, não
haverá defesa “legítima” se ela for desnecessária.
A justificação por legítima defesa pressupõe que na ação de defesa sejam usados os meios
necessários para repelir a agressão atual e ilícita – falamos, portanto, da necessidade de meios. O
meio será necessário se for idóneo para deter a agressão e, caso sejam vários os meios adequados
de resposta, ele for o menos gravoso para o agressor.
O juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão, tem natureza ex ante, e nele deve ser
avaliada objetivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo atenção as características
pessoais do agressor, os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em
contraposição das características pessoais do defendente e os instrumentos de defesa de que
poderia lançar mão. Ainda que não resulte expressamente do artigo 32º CP, o meio menos gravoso
para o agressor será sempre o recurso às forças policiais; donde, sempre que tal seja possível,
deverá considerar-se esse meio como o necessário à defesa44.
O uso de um meio não necessário determina um excesso, o que leva à não justificação do facto
por legítima defesa. Estas situações estão previstas no artigo 33º CP – vulgarmente designadas pela
doutrina por excesso de meios ou de legítima defesa45. Estes casos, dada a complexidade46 que os
rodeia, poderá merecer tratamentos que atenuem as sanções criminais a aplicar, ainda que não se

44
Neste sentido, cfr. artigo 21º, nº1 CRP.
45
Ver exemplos referidos por Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, 422.
46
De sentimentos, nomeadamente. Exige-se uma frieza de ânimo e discernimento na escolha do meio, o
que, muitas vezes, dada a emoção derivada da agressão não é possível.

24
Teoria da Infração Penal

exclua a ilicitude – como a diminuição da pena (nº1, artigo 33º) e, até, a exclusão da culpa (nº2,
artigo 33º).
Neste campo, exige-se ainda a necessidade de defesa – a defesa deve, ela própria, ser
normativamente imposta para que possa ser vista como exigência de reafirmação do Direito face
ao ilícito na pessoa do agredido.
Nota: Quanto menos responsável for o agente pela sua atuação, mais restritos serão os limites de
necessidade de defesa. Por isso, a defesa agressiva não é necessária se o agredido puder esquivar-
se à agressão (por exemplo, quando os agressores sejam inimputáveis; ou porque o agressor atua
com falta de consciência do ilícito não censurável).
Pode suceder que a agressão seja precedida de atitudes de provocação do agredido sobre o
agressor: é o agredido que dá azo à situação de confronto através de injúrias, da prática de atos
ilícitos (mas não atuais) que afetam a esfera jurídica do agressor ou mesmo de atos lícitos mas
socialmente reprováveis. Nestas hipóteses, a necessidade de defesa deve ser negada,
nomeadamente quando a agressão haja sido pré-ordenadamente provocada – constitui exemplo
o seguinte: A, pretendendo ajustar contas antigas com B e sabendo que este é bastante sensível a
certo tipo de insultos, profere propositadamente essas injúrias para suscitar nele uma reação e, ao
abrigo de uma aparência de legítima defesa, poder esfaqueá-lo com uma navalha que trazia
escondida; no entanto, casos haverá em que a agressão não foi pré-ordenadamente provocada –
e, aqui, a doutrina não nega a necessidade de defesa, introduzindo-lhe, todavia, fortes limitações.
Por fim, referir um último grupo de casos – crassa desproporção do significado da agressão e da
defesa: A, paralítico, na falta de outro meio, dispara a matar contra o ladrão B, que quer furtar-lhe
a carteira que contém 5 euros. Aqui, impera a unanimidade: todos estão de acordo que não é
conferido a A um direito de intervenção com o relevo jurídico que este possui, seja em nome da
legítima defesa ou de qualquer outra causa de justificação.

Posto isto, o estudo desta causa de exclusão fica concluído. Remetemos, no entanto, para a obra 47
de Figueiredo Dias para a análise de outros grupos de casos que não analisámos, dada a sua pouca
relevância prática.

Estados de necessidade justificantes


O direito de necessidade encontra-se previsto no artigo 34º CP, pressupondo a situação de
necessidade que um perigo atual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou
do terceiro só possa ser afastado se outro bem for lesado ou posto em perigo.
Temos, então, os seguintes pressupostos: não ter sido voluntariamente criada pelo agente a
situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro; haver sensível
superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; ser razoável

47
In Direito Penal, Tomo I, 431-437.

25
Teoria da Infração Penal

impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse


ameaçado.
A situação-base é, então, a existência de uma situação de perigo atual para determinado bem ou
interesse jurídico de determinada pessoa, situação de perigo esta que só pode ser neutralizada
mediante a lesão de um interesse ou bem jurídico de uma terceira pessoa alheia à criação da
situação de perigo48.
O fundamento legitimador desta figura é o Princípio da Solidariedade – leva a que um terceiro
tenha de tolerar a lesão de um seu bem jurídico, quando tal lesão seja indispensável para salvar
um outro bem jurídico em perigo.~´
Protegido por esta figura pode ser, à partida, qualquer bem jurídico, penal ou não penal. Este bem
(qualquer que seja) tem que se encontrar objetivamente em perigo, porque só então se pode
justificar que um dever de suportar a ação típica recaia sobre o atingido pela intervenção. Ademais,
resulta do artigo 34º que este perigo tem que ser atual, valendo, aqui, a doutrina que referimos a
propósito do estudo da legítima defesa49; que, nesta sede, merecerá algum alargamento – o perigo
deverá considerar-se atual mesmo quando ainda não seja iminente50, mas a não realização do facto
salvador levaria a uma potenciação do perigo; e também no caso dos chamados “perigos
duradouros” – v.g., quando existe um edifício em perigo de desmoronamento, se bem que não
possa determinar-se se e quando tal ocorrerá. Vislumbra-se, então, a necessidade da construção
de uma figura como o estado de necessidade preventivo51.
Nos termos da alínea a) do artigo 34º exige-se que a situação de perigo não haja sido
voluntariamente criada pelo agente, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro – fala-se,
assim, da voluntariedade da criação de perigo 52 . No entanto, e ao contrário do que defende
Binding, não se poderá levar esta ideia (de voluntariedade) ao extremo, devendo conferir-se-lhe
alguma flexibilidade na sua interpretação – exemplificando: Se B, em estado de embriaguez, corta
a sua própria orelha e não tem ninguém que o leve ao posto médico, deverá abster-se de conduzir
um veículo ate a um local onde possa ser tratado (artigo 292º)? A resposta deve ser negativa: em
qualquer destes casos persiste o fundamento justificante do estado de necessidade.

48
Situação comum ao direto de necessidade (artigo 34º) e ao estado de necessidade desculpante (causa de
exclusão da culpa – artigo 35º).
49
No mesmo sentido, Taipa de Carvalho.
50
Em sentido contrário, Taipa de Carvalho – defende que, ao contrário do que sugere Figueiredo Dias, em
qualquer dos casos por ele apresentados já nos encontramos num estádio posterior ao da iminência do
perigo – e não anterior.
51
Ao contrário do que se viu quanto à legítima defesa preventiva – que não deve ser admitida. No entanto,
existe também quem discorde da necessidade de construção da figura do estado de necessidade preventivo
– vide Direito Penal, Tomo I, Figueiredo Dias, 443.
52
Quem se tenha posto em perigo, então que pereça. – citamos Binding.

26
Teoria da Infração Penal

Assim sendo dever-se-á considerar afastada a justificação apenas se a situação for


intencionalmente53 provocada pelo agente, isto é, se ele premeditadamente criou a situação para
poder livrar-se dela à custa da lesão de bens jurídicos alheios54.
Por outro lado, resulta da alínea b) do artigo 34º uma outra exigência – a sensível superioridade
do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado 55 . A lei exige, pois, que se
pondere o valor dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em colisão e do
grau do perigo que os ameaça – ponderação dos bens jurídicos. E, por isso, é relevante a hierarquia
dos bens jurídicos em confronto, ainda que não exista, para estes casos, uma solução unitária56.
Analogamente ao que sucede na legítima defesa – com a necessidade do meio para impedir a
agressão -, também só há justificação, se o agente utilizar um meio idóneo a afastar o perigo e,
havendo vários meios idóneos, utilizar o menos lesivo para o terceiro – a adequação desdobra-se
em idoneidade e menor danosidade.
Refira-se, também, que o artigo 34º, através do direito de necessidade, tanto justifica a ação
praticada pelo próprio titular do bem em perigo como a ação salvadora praticada por um terceiro.
Nestes últimos casos, existe uma dupla solidariedade – a do agente (pressuposto que sobre este
recai um dever jurídico de auxílio57, seja dever de garante seja dever geral de auxílio) e a do terceiro
sobre o qual recai o dever de tolerar a ação salvadora.
A alínea c) do artigo 34º estabelece que é necessário que seja razoável impor ao lesado o sacrifício
do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado. Assim, como afirma
Jescheck, a justificação de uma ação depende de duas valorações: a superioridade do interesse em
perigo e a razoabilidade ético-jurídica do sacrifício do bem jurídico do terceiro58.
Finalmente, cumpre tecer algumas observações quanto ao elemento subjetivo – o conhecimento
da situação objetiva fundamentadora do direito de necessidade: este conhecimento significa o
conhecimento ou representação dos elementos e pressupostos objetivos do direito de
necessidade, efetivamente existentes, isto é, que na realidade se verificam.

53
O mesmo entendimento é defendido por Taipa de Carvalho.
54
E, mesmo aqui, quando se queira proteger interesses de terceiro, a justificação não deve ser negada –
como mostra Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, 445.
55
Princípio do interesse preponderante.
56
Transcrevemos Fernanda Palma – a justificação em estado de necessidade não é reconduzível ao
confronto objetivo entre bens jurídicos, como era próprio da teoria da ilicitude objetiva, porque é o mundo
do merecimento pessoal de todos os intervenientes possíveis num conflito de interesses o que sobressai do
artigo 34º.
57
Conforme resulta do artigo 200º, nº3 CP, o dever de solidariedade cessa quando a ação necessária para
salvar o bem jurídico em perigo puser em risco sério a vida ou a integridade física essencial do omitente.
Esta é uma clara limitação à alínea c) do artigo 34º CP e, simultaneamente, um limite ao dever de
solidariedade; e, até, ao dever de garante (artigo 10º, nº2).
58
Vide nota 57.

27
Teoria da Infração Penal

Quanto ao direito de necessidade previsto no Código Civil – previsto no artigo 339º -, a verdade é
que não acrescenta muito ao artigo 34º CP, daí que não a analisaremos59.

Conflito de deveres
O artigo 36º, nº1, 1ª parte CP estabelece que não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no
cumprimento de deveres jurídicos (…) satisfizer dever de valor igual ou superior ao dever (…) que
sacrificar.
Donde podemos extrair os seguintes pressupostos: a impossibilidade de cumprir dois (ou mais)
deveres jurídicos e o cumprimento do dever superior, quando os valores são de hierarquia
diferente, ou o cumprimento de qualquer um dos deveres, nos casos de os deveres em conflito
serem da mesma hierarquia.
Em primeiro lugar, importa salientar que os deveres em conflito têm de ser deveres jurídicos60. No
entanto, não é necessário que os deveres em apreço sejam jurídico-penais, sendo apenas
suficiente que um deles o seja61 - logo, o conflito de deveres previsto no artigo 36º, nº1 pode ser
entre um dever jurídico-penal e um dever jurídico não penal.
Constitui exemplo de conflito de deveres o seguinte: um pai vê os seus dois filhos a afogar-se e só
pode salvar um.
Esta causa de exclusão não pode ser confundida com o direito de necessidade: enquanto que o
fundamento do conflito de deveres baseia-se na impossibilidade de cumprir os dois deveres de
ação, o direito de necessidade baseia-se, conforme vimos, no Princípio da Solidariedade62.
Como se procede à hierarquização ou ponderação dos deveres? Para tanto, vislumbra-se
fundamental recorrer a vários critérios, dos quais daremos conta: em primeiro lugar, releva o valor
dos bens jurídicos em confronto – em regra, os bens jurídicos pessoais são mais importantes que
os patrimoniais; abstratamente, também serão mais valiosos os bens jurídico-penais que os bens
jurídicos não patrimoniais; outro critério de ponderação será o da gravidade dos danos – estando
em confronto danos patrimoniais elevados e danos patrimoniais claramente inferiores, prevalece
o dever de praticar a ação impeditiva daqueles; em terceiro, relevará o grau de perigo - o caso de
dois sinistrados que dão entrada no hospital, ambos correndo risco de morte, mas em que este
risco é mais iminente num que noutro. Na impossibilidade de atendimento simultâneo dos dois,
deverá ser atendido primeiramente aquele que não pode esperar nenhum tempo pela intervenção.

59
Vide Direito Penal, 2ª Edição, Taipa de Carvalho, 420-422.
60
No entanto, como mostra Taipa de Carvalho poderá haver, excecionalmente, conflito entre um dever
moral e um dever jurídico – vide Direito Penal, 2ª Edição, 423.
61
I. é, só é necessário que um deles seja um dever jurídico-penal. Esta exigência deriva do facto de esta
figura ser uma causa de exclusão da ilicitude penal, ou seja, uma causa de exclusão de ilicitude penal do
não cumprimento de um dever que tem de ser jurídico-penal.
62
Em sentido diverso, Figueiredo Dias – o conflito de deveres repousa no mesmo fundamento justificador
do direito de necessidade.

28
Teoria da Infração Penal

Quando se verifiquem uma igualdade de circunstâncias, defende Taipa de Carvalho, que a solução
mais justa será a de praticar a ação “salvadora” do bem daquele de que foi vítima.
Finalmente, aborde-se o critério da espécie do dever jurídico – dever jurídico de garante (artigo
10º, nº2) e dever geral de auxílio (artigo 200º). E, aqui, o entendimento é o de que prevalecerá o
primeiro em relação ao segundo.

Obediência hierárquica63
A resolução das questões levantadas pelo dever de obediência hierárquica implica que se
considerem, num primeiro momento, quais os pressupostos da ordem dada pelo superior
hierárquico. Neste âmbito, podemos distinguir os pressupostos formais – referem-se à
competência material-abstrata e à forma que deve revestir a ordem. Donde, terá legitimidade
formal a ordem que emano da autoridade competente e que revestiu as formalidades legalmente
prescritas; e os pressupostos materiais – exigência que a ordem do superior hierárquico se traduza
na concretização do direito face à situação concreta que vai ser executada.
Face a uma ordem forma e materialmente legítima é devida obediência por parte do respetivo
inferior hierárquico e os atos praticados por este, na execução da ordem, estão justificados; pelo
contrário, não é devida obediência a uma ordem formalmente ilegítima, pelo que o seu não
acatamento não se consubstancia na prática de um ilícito.

Consentimento
A primeira consideração a fazer será a de que o consentimento tanto pode ter como objeto a
prática de atos que são socialmente adequados e até positivos, como ter por objeto a prática de
atos que são socialmente inadequados e negativos. Ora, quando visem a prática de factos
inadequados e negativos, o consentimento servirá para justificar a conduta – sem ele, a conduta
seria ilícita; donde, nestes casos, operará como causa de exclusão da ilicitude.
O fundamento do consentimento, como causa de exclusão da ilicitude, é o princípio da autonomia
ou autodeterminação individual. Contudo, para que nestas hipóteses o consentimento releve, é
necessário que deem por verificados alguns pressupostos; analisemo-los: o artigo 38º, nº1
estabelece que o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos
livremente disponíveis e o facto de não ofender os bons costumes. Ora, é necessário que o bem
jurídico seja disponível e que, sendo-o, que o facto lesivo do bem jurídico disponível em apreço
não ofenda os bons costumes. Neste momento, levanta-se uma questão: quais são os bens jurídicos
dos quais pode o seu titular livremente dispor? Há um critério que permite que identifiquemos
quais os bens jurídicos disponíveis e quais os bens jurídicos indisponíveis – no entanto, antes de
mais, é evidente que é indubitavelmente indisponível, o bem jurídico vida, uma vez que constitui

63
Esta causa de exclusão não vai ser alvo de grande aprofundamento, dada a pouca importância que lhe foi
concebida ao longo do semestre. Para mais desenvolvimentos – porque utiliza uma linguagem mais simples
e porque as posições doutrinais não diferem muito neste contexto – vide Taipa de Carvalho, Direito Penal,
2ª Edição, 432-442.

29
Teoria da Infração Penal

o “suporte” de todos os outros bens jurídicos bens jurídicos. Tal decorre da própria legislação
penal, nomeadamente do artigo 134º CP - quando pune o homicídio a pedido da vítima; e do artigo
135º CP – quando pune o auxílio ao suicídio. Mas, também, a integridade física – protegido pelo
artigo 144º CP64 – é indisponível.
Por outro lado, são disponíveis – em regra – os bens jurídicos patrimoniais; ou outros, como a
honra65.
A questão mais complexa situa-se ao nível da integridade física protegida pelo artigo 143º 66 - tendo
em conta a posição de Taipa de Carvalho, o consentimento deve ter-se como irrelevante, no
sentido de não excluir a ilicitude do facto praticado, quando vise consentir lesões que, embora não
configurem o crime de “ofensas à integridade física grave”, sejam graves ou irreversíveis67.
E, diga-se, a cláusula dos “bons costumes” também deve ter-se como ponto de referência para a
delimitação, dentro das ofensas à integridade física previstas no artigo 143º, entre aquelas que
poderão ser consentidas eficazmente e as que não poderão ser.
Cumulativamente, é necessário que o consentimento seja livre (liberdade do consentimento) –
sendo o fundamento desta causa de justificação, o princípio da autodeterminação, o
consentimento só relevará quando tenha sido plenamente livre. Esta liberdade pressupõe, desde
logo, a capacidade de compreensão do sentido da decisão de autorização na heterolesão e dos
efeitos do ato de lesão consentido.
Relativamente aos menores de 16 anos, o consentimento deve ser prestado pelos seus
representantes e sempre no interesse do representado – artigo 38º, nº3 CP; caso assim não suceda,
o consentimento é irrelevante.
Exigir-se que o consentimento seja livre, é o mesmo que dizer que este não pode ser obtido através
de coação ou ameaça, por exemplo – pelo que, quando assim suceder, o consentimento deve ser
tido como não livre.
Quanto à forma: não é exigida forma para o consentimento, sendo irrelevante – tanto pode ser
dado por escrito, como oral ou gestualmente; o que resulta do nº2 do artigo 38º: o consentimento
pode ser expresso por qualquer meio.
Finalmente, dizer ainda que o consentimento pode ser livremente revogado até à execução do
facto – artigo 38º, nº2, in fine.
Ora, exige-se – tal como se disse relativamente a outras casas de justificação – a verificação de um
elemento subjetivo, que se traduz no conhecimento do consentimento: exige-se que o agente
conheça a situação objetiva justificante que, concretamente, é o próprio consentimento (artigo
38º, nº4).

64
Falamos das ofensas à integridade física graves.
65
Cfr. artigos 180º a 184º CP.
66
Denominada por Taipa de Carvalho por integridade física “não essencial”.
67
Por exemplo, a facada num braço.

30
Teoria da Infração Penal

Consentimento presumido – o artigo 39º, nº1 equipara o consentimento presumido ao


consentimento efetivo (referido no artigo 38º), estabelecendo, por sua vez, o nº2 os pressupostos
de relevância ou validade deste. São eles: a necessidade urgente de praticar o facto; a
impossibilidade de o titular do interesse ou bem jurídico declarar o seu consentimento; e a
presunção que este, se pudesse, consentia efetivamente no facto.
O campo da aplicação do consentimento presumido é, por excelência, o das intervenções médico-
cirúrgicas, quando o paciente se encontra impossibilitado de manifestar o seu consentimento ou
oposição a tais práticas médicas. Nestes casos, o consentimento não funcionará como causa de
justificação, mas antes como causa de exclusão da tipicidade (artigo 156º, nº2 CP).

Capítulo VII – Culpa e causas de exclusão da culpa

Conforme estudámos – no âmbito da cadeira de Teoria da Lei Penal -, no nosso ordenamento


jurídico-penal vigora o Princípio da Culpa, pelo que não há responsabilidade penal sem culpa.
Assim sendo, não basta que o agente haja cometido um tipo de ilícito mas é ainda necessário,
como conditio sine qua non, que este tenha agido com culpa. Não havendo culpa, só restam duas
possibilidades: ou o agente é absolvido ou, então, sendo caso disso, é-lhe aplicada uma medida de
segurança.
A submissão do conteúdo material da culpa jurídico-penal à liberdade do agente reconduz-se
àquilo que se denomina a culpa da vontade. Assim, culpa só pode ser censurabilidade da ação por
o culpado ter atuado contra o dever quando podia ter atuado de acordo com ele – o poder de agir
de outra maneira na situação é um requisito irrenunciável do conceito de culpa: quer este veja
diretamente na decisão livre e consciente da vontade a favor do ilícito, de que o poder de agir de
outra maneira é pressuposto; quer ele se veja no cometimento do ilícito por um agente que detinha
capacidade para se determinar de acordo com a norma. No entanto, esta construção enfrenta
algumas dificuldades que, diga-se, inultrapassáveis: a primeira situa-se ao nível da
indemonstrabilidade – é muito difícil comprovar este “poder de agir de outra maneira”, tanto na
vertente teórica como na vertente prática. Na verdade, só comprovando-o é que se conseguirão
distinguir ações culposas de ações não culposas; a segunda traduz-se nas consequências político-
criminais insuportáveis que acarreta68.
Ora, as críticas a que reconduzem as teorias da culpa, levaram à procura de soluções. Nesse
sentido, começou a falar-se da abstração do poder de agir de outra maneira na situação e de uma
sua correlativa generalização para o poder que do agente se deve esperar ou exigir,
nomeadamente através do critério objetivista do homem médio69.

68
Para mais desenvolvimentos, Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, 518.
69
Diz, no entanto, Figueiredo Dias, que esta generalização leva à duvidosa desconsideração da
personalidade do agente.

31
Teoria da Infração Penal

Um outro passo com vista à superação da mencionada querela, traduziu-se na conceção de uma
“culpa do (ou pelo) caráter” – do que aqui se trata não é de substituir a responsabilidade pelo
facto por uma responsabilidade pela personalidade (assim, atenta-se ao caráter ou à personalidade
que no facto se exprimiu). No entanto, também esta teoria foi alvo de uma crítica importante – na
verdade, o fundamento desta culpa continuou a ser o mau exercício (reiterado ao longo da vida)
da liberdade de vontade.
Finalmente, analise-se a liberdade pessoal e a tese da culpa da pessoa. Visando a superação de
uma liberdade indeterminista (o “livre-arbítrio”) por uma liberdade pessoal, criou-se uma
conceção fundada na ideia da liberdade como “característica do ser-total-que-age”. Ora,
conforme afirma Figueiredo Dias, poder-se-á falar de culpa da pessoa (pessoa essa concreta e
situada, Homem socializado, no sentido de que vive em um mundo e de que é, assim, aquilo que
através da sua ação objetiva no mundo e que o mundo subjetiva nele). Tais teorizadores vieram
mostrar que o “lugar” da liberdade se situa na mais radical e originária das realidades: o existir
humano – o homem tem que se decidir a si e sobre si, sem que possa em qualquer momento furtar-
se a tal decisão. A ideia é, então, a de que o homem determina a sua ação através da sua livre
decisão sobre si mesmo.
Deste modo será, pois, a culpa o ter que responder pelas qualidades juridicamente desvaliosas
da personalidade que fundamentam um facto ilícito-típico e nele se exprimem.

Tipo de culpa doloso


A este nível, podemos distinguir o tipo de culpa doloso e o tipo de culpa negligente – conforme
resulta do subtítulo, é deste primeiro que se tratará.
Importa relembrar que este tipo de culpa só se afirmará quando estejamos perante um ilícito-
típico doloso e se possa comprovar que o agente no cometimento do ilícito-típico revelou uma
atitude íntima contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas70.
Dolo e falta de consciência do ilícito (erro sobre a ilicitude – artigo 17º CP) – deve, num primeiro
momento, determinar-se o que é a consciência do ilícito em causa para o efeito de afirmação ou
negação da culpa. A maioria da doutrina faz equivaler a consciência do ilícito à consciência da
ilicitude como juízo de desvalor jurídico da ação.
Neste seio, o que nos importa é o elemento intelectual do dolo – que consiste na representação,
pelo agente, no momento em que pratica a conduta, de todos os elementos constitutivos do tipo
de ilícito objetivo e da proibição legal, quando o conhecimento desta proibição for indispensável
para que o agente possa ter consciência da ilicitude do facto. Mas, agora, não falamos de um dolo
do tipo mas de um dolo ético 71 ou emocional; pressuporá a culpa dolosa a consciência da ilicitude

70
Donde, caso tal comprovação não seja possível estar-se-á no campo da punibilidade a título de
negligência.
71
Nas palavras de Taipa de Carvalho. Traduzido no desprezo pelos bens jurídicos.

32
Teoria da Infração Penal

do facto típico praticado? Ou, por outras palavras, excluirá o erro sobre a ilicitude a culpa e,
consequentemente, a responsabilidade penal?
Procuraram dar resposta a esta questão algumas teorias, das quais nos ocuparemos em seguida:
Teorias do dolo – defendem que este erro, isto é, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo.
O que se defende é, então, que o elemento intelectual do dolo abrange o conhecimento da
proibição – da ilicitude do facto.
Não tendo o agente, no momento da prática do facto ilícito, a consciência da ilicitude, não atua
dolosamente, pois faltará o elemento intelectual referido (faltando este elemento, o dolo tem que
ser negado e o agente poderá ser punido mas a título de negligência, se se verificarem os
pressupostos de tal punibilidade72 e o agente for censurável pelo erro).
Nas Teorias do Dolo, podemos dar conta de dois sub-grupos: teoria estrita do dolo – para os que
a defendem, o erro sobre a ilicitude exclui sempre o dolo; teoria limitada do dolo – estes 73
defendem a mesma fundamentação e a mesma conclusão da teoria estrita do dolo, divergindo
estas conceções apenas ao nível das consequências jurídico-práticas. Assim sendo, os defensores
da teoria limitada do dolo consideram que há casos tão graves que o desconhecimento da
proibição é revelador de uma “personalidade cega para o direito”. Donde, estabelecem a seguinte
limitação punitiva: nos casos em que a falta de consciência da ilicitude é reveladora de uma grave
e censurável indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, perante o bem jurídico afetado pelo
facto ilícito, embora o erro sobre a ilicitude exclua o dolo, deve, todavia, o agente ser punido como
se tivesse agido dolosamente, sendo-lhe aplicável correspondente ao crime doloso. Pelo contrário,
os defensores da teoria estrita do dolo não impõem esta limitação.
Teorias da culpa – por seu turno, estas teorias defendem que o erro sobre a ilicitude não exclui o
dolo. Reduzem o dolo ao conhecimento da factualidade típica, aceitando somente o dolo de facto
ou dolo natural, donde a conclusão é a de que ao dolo é estranho qualquer conhecimento da
proibição ou ilicitude. Logo, o erro sobre a factualidade típica exclui o dolo, pois que exclui o
elemento intelectual do dolo do facto, deixando – no que diz respeito à culpa – o dolo intacto.
A relevância do erro sobre a ilicitude está na sua evitabilidade ou inevitabilidade: se for evitável
(censurável), há culpa; caso seja inevitável (não censurável), exclui a culpa.
Também no “mundo” destas teorias, se poderão autonomizar dois sub-grupos: a teoria estrita da
culpa – ao dolo é estranha qualquer referência à ilicitude; o dolo é a mera representação e vontade
do facto que está descrito no tipo incriminador. Logo, apenas o erro sobre os elementos do tipo
legal exclui o dolo; teoria limitada da culpa – considera que o dolo abrange não apenas os
elementos do tipo legal mas também os pressupostos das causas de justificação. Logo, o erro sobre
um destes elementos também exclui o dolo.

Posto isto, resta referir qual a posição adotada pelo Código Penal.

72
Vide Capítulo V.
73
De entre os quais destacamos Eduardo Correia.

33
Teoria da Infração Penal

Ora, resulta do artigo 17º, nº1 que, quando a falta de consciência da ilicitude do facto praticado
não for reveladora de uma atitude ético-pessoal de indiferença74 perante o dever-ser jurídico-
penal, tal falta o erro tem o efeito de uma causa de exclusão da culpa. Pelo contrário, quando este
erro for censurável – for revelador e uma personalidade de indiferença perante o bem jurídico
lesado ou posto em perigo, então há culpa e o agente é punível pelo respetivo crime doloso. Poder-
se-á dizer que a própria falta de consciência é, nestes casos, culposa – cfr. artigo 17º, nº2.
Quanto ao erro sobre os elementos de uma causa de justificação, por força do artigo 16º, nº2, não
restam dúvidas, de que se opera à exclusão dolo – tanto da factualidade típica como do dolo-culpa.

Causas de desculpação75
Desde logo, não se pode confundir as causas de desculpação com as causas de exclusão, já que
aquelas excluem a culpa e estas, como analisámos e dissemos em sede devida, excluem a ilicitude.
Ademais, o juízo de ilicitude tem por objeto o facto humano em si mesmo considerado, ao passo
que o juízo de culpa tem por objeto o próprio agente do facto ilícito.
As causas de exclusão da culpa são a inimputabilidade, o erro sobre a ilicitude não censurável e as
causas de desculpação em sentido estrito.
A imputabilidade é um pressuposto objetivo da culpa – o inimputável (seja em razão da idade ou
em razão de anomalia psíquica) não é suscetível de ser objeto de um juízo de censura – cfr. artigos
19º e 20º CP. Assim, a inimputabilidade será uma causa de exclusão da culpa.
A inexigibilidade traduz-se na ideia da averiguação se, concretamente, era exigível ao agente a
prática de uma conduta diferente da adotada – o denominado comportamento lícito alternativo
(e, portanto, um comportamento adequado ao direito). E, deste modo, para efetuar tal
averiguação deve ter-se em conta o padrão do homem dotado de uma resistência espiritual normal
(em relação aos momentos exteriores que poderão influenciar o agente a praticar o facto ilícito-
típico). Ora, se a generalidade dos homens atuassem da mesma forma (que atuou o agente), então
a culpa deve ter-se por excluída porque não lhe era exigível a prática do comportamento lícito
alternativo.
Estado de necessidade desculpante (artigo 35º) – esta é uma das manifestações do princípio da
inexigibilidade. Ora, supõe – e, de resto, como já foi dito anteriormente, a colisão de bens jurídicos,
pelo que se deverá ter em conta, neste seio, também, as exigências de hierarquia dos bens em
conflito. A exclusão da culpa através desta figura só operará quando não esteja em causa a
salvaguarda de bens jurídicos claramente preponderantes, mas antes de bens inferiores, iguais ou,
no máximo, sensivelmente superiores ao bem jurídico lesado.
Atentemos aos requisitos: perigo atual e não removível de outro modo; bens suscetíveis de serem
lesados – vale o que foi dito para o Estado de Necessidade consagrado no artigo 34º CP76. Ora, +e

74
Referimo-nos à existência (ou não) do dolo emocional – situado na culpa.
75
Utilizamos a designação de Taipa de Carvalho.
76
Vide páginas 25-26.

34
Teoria da Infração Penal

também exigido o elemento subjetivo, isto é, que o agente tenha, com ele, prosseguido a finalidade
de salvação do bem jurídico ameaçado.
Assim, se não for exigido ao agente comportamento diverso – a inexigibilidade – é-lhe excluída a
culpa (artigo 35º, nº1).
Excesso de legítima defesa 77 (artigo 33º CP) – do que aqui se trata é, ao contrário do que
pressupõe a legítima defesa (artigo 32º), de um desrespeito pela ideia de proporcionalidade e
adequação de meios que subjaz a esta figura (“meio necessário”). Quando o agente empregue um
meio de forma excessiva e se, concretamente, não lhe for exigível comportamento diverso (não é
censurável), não será punido (nº2, artigo 33º); quando assim não seja, poderá haver lugar a uma
especial atenuação da pena (nº1).

77
Ao contrário do que abordamos aqui, a legítima defesa putativa “cabe” no artigo 16º, nº2 CP – o agente
representa, erroneamente, que está a atuar ao abrigo desta figura mas não se verificam os seus
pressupostos; o que levará à exclusão do dolo.

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