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Princípio da consunção:
o problema conceitual do crime
progressivo e da progressão criminosa
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Guilherme da Rocha 01/08/2000 às 00:00


Ramos

Sumário: 1. Introdução; 2. Generalidades em


torno do Princípio da Consunção; 3. Do que vem a
ser concebido como "crime mais grave"; 4. Crime
Progressivo; 4.1. Noções Preliminares; 4.2.
Antefactum Impunível; 5. Progressão Criminosa;
5.1. Progressão Criminosa em Sentido Estrito; 5.2.
Postfactum Impunível; 6. Conclusões.

1. Introdução

:
O ordenamento jurídico, notadamente aquela
sua parte que dispõe sobre normas e regras de
caráter penal, por uma questão de boa técnica e
até de necessidade e segurança da coletividade a
que se destina, deve organizar, estruturar e, é
claro, fazer aplicá-las de modo que não surja entre
elas conflito intransponível, o que resultaria em
sérias controvérsias doutrinárias e
jurisprudenciais, sem falar na questão prática, qual
seja, a da falta ou má incidência da norma
correspondente à espécie fática penalmente
ilícita e de suas conjecturas e conseqüências.

Quer-se com isso asseverar que as normas


penais devem manter entre si compatibilidade, a
fim de que não ocorra, e. g., de uma única infração
penal sofrer a incidência de mais de uma norma
penal (bis in idem), o que implicaria, senão graves
injustiças (a co-incidência tornar-se-ia "cúmplice"
da impunidade, nalguns casos, e de injusta
punição, noutros), ao menos divergências
jurisprudenciais infindáveis.

Assim, para evitar que aconteça de duas ou


mais disposições penais regularem o mesmo fato,
ou melhor, com a finalidade de se dirimirem
quaisquer dúvidas a respeito de qual tipo penal, X
ou Y, a ser aplicado face a um caso concreto, é que
se criaram os "princípios para solução de conflitos
aparentes de normas".

Com efeito, a teoria e prática criminais muitas


vezes se deparam com fatos que, aparentemente,
são regulados por mais de uma norma penal.
Tenha-se como um exemplo emblemático o
comportamento do agente que mata a sua vítima
para subtrair-lhe valores. Perguntar-se-ia, pois: Em
qual norma incriminadora se enquadraria o delito
em exame, na do art. 121, § 2º, V, 1ª figura, do
Código Penal (homicídio praticado para assegurar
a execução de outro crime), na do art. 157, § 3º, in
fine, do estatuto repressivo (latrocínio), ou na de
ambas?

Vejamos que o correto enquadramento


normativo do fato-crime perpetrado não se trata
apenas de uma questão puramente teórica, de
Direito material, senão da aplicação desta ou
daquela norma vão depender sobremaneira os
efeitos processuais e executórios defluentes
contra o sujeito ativo. No exemplo proposto, a
exata determinação da norma incidente apontará
não apenas o nomen juris in specie do ilícito penal,
como, outrossim, prestará a fixar a competência
para o seu processo e julgamento, e a delimitar o
campo de validade e de incidência das normas
penais não incriminadoras explicativas de direitos
e garantias, de natureza executória, explicitadas
em lei.

Decerto, em vindo a ser descortinada a dúvida


em favor da existência de homicídio qualificado, a
competência do processo-crime pertencerá ao
Tribunal do Júri, ex vi do art. 74, § 1º, do Código de
Processo Penal. De outra parte, vislumbrando-se,
na hipótese, delito de latrocínio, além daqueles
efeitos (tão dura e comumente criticados pela
doutrina) de que dispõem os incisos I e II do § 1º do
art. 2º da Lei de Crimes Hediondos (Lei n.º
8.072/90), a competência, como é pacífico na
jurisprudência pátria, restará em mãos do juiz
singular, cujo rito seguirá os moldes dos
imperativos emanados dos arts. 498 usque 502,
todos do diploma processual penal.

Não se deslembre de que, em nível de


Execução Penal, acolher uma infração penal como
sendo latrocínio surtirá efeitos, por exemplo,
quando da concessão, ou não, do benefício do
livramento condicional, tudo consoante
cumulativamente aos requisitos subjetivos a
duração mínima da execução da pena cominada,
que não será inferior a 2/3 (art. 83, III, IV, V, e
parágrafo único, do Código Penal). Caso,
entretanto, pugne-se pelo homicídio qualificado,
muito obstante tratar-se, tal qual o anterior, de
crime hediondo (art. 1º, I, da Lei n.º 8.072/90),
evidentemente que, como a sua pena mínima
abstrata é substancialmente inferior que a do
latrocínio, a concessão do livramento condicional
dar-se-á muito mais celeremente do que se
condenado fosse o réu a executar a pena do delito
enquadrado no art. 157, § 3º, in fine, do Código
Penal.

Nesses termos, o fato delituoso do agente no


exemplo supra citado não poderá se subsumir a
duas disposições incriminadoras diferentes, pois
que as conseqüências e efeitos penais,
processuais e executórios de cada uma delas são
diferentes até, no âmbito da competência,
contrapostos. Acresça-se a injustiça da dupla
repressão penal a um mesmo fato (bis in idem).

Com a aplicação do primado do princípio da


especialidade, ter-se-á forçosamente de se
reconhecer pela subsistência, isoladamente, da
norma penal incriminadora que define o tipo penal
do latrocínio, solvendo-se assim,
conseguintemente, o conflito que se instaurara.

Todavia, não confundamos "concurso


aparente de normas" também chamado "conflito
aparente de normas", "concurso aparente de
normas coexistentes", "conflito aparente de
disposições penais", "concurso fictício de leis",
"concorrência imprópria", "concurso ideal
impróprio" e "concurso impróprio de normas"
com "concurso ou pluralidade de crimes". Neste,
existe concorrência real de normas (e não
meramente aparente): uma única conduta do
sujeito ativo produz dois ou mais resultados
delituosos (concurso formal, aberratio ictus e
aberratio delicti, desde que, nestes dois últimos,
advenha o resultado pretendido) ou duas ou mais
condutas causam dois ou mais resultados
delituosos (concurso material e crime continuado)
(1). Em ambos os casos, porém, existem dois ou
mais crimes, ainda quando advindos de uma só
conduta.

Portanto, o concurso real de normas exige:

1º) pluralidade de infrações penais;

2º) pluralidade de normas, cada uma destas


incidindo sobre uma infração penal praticada.

Para que haja o concurso aparente de normas,


no entanto, necessário é que de ordinário sejam
preenchidos dois requisitos:

1º) a ocorrência de uma única infração penal


(unidade de fato);

2º) pluralidade de normas identificando o


mesmo fato como delituoso.

A partir da análise dos requisitos do concurso


real e do concurso aparente de normas, nota-se
facilmente que a distinção entre os dois reside na
pluralidade de fatos, naquele, e na unidade de
fato, neste. Em inexistindo unidade de fato, i. e., se
o agente, com sua(s) ação(ões) ou omissão(ões),
provocou dois ou mais resultados penalmente
ilícitos, fala-se em real concorrência de normas
penais, não em "concorrência normativa
aparente".

Estabelecendo-se aparente conflito de


normas, pugna-se pela sua imediata solução por
um dos quatro conhecidos princípios:
especialidade, subsidiariedade, consunção e
alternatividade. Ficaremos, nesse ínterim, apenas
com o terceiro, pelos embates travados
circunscritos à concepção exata da realidade
fenomênica da consunção.

2. Generalidades em torno do Princípio da


Consunção:

Muitas vezes, ocorre de uma ou mais infrações


penais servirem de meios necessários, ou seja,
normais fases preparatórias ou de execução, para
a prática de uma outra, mais grave que aquelas.
Noutras situações, um ou mais ilícitos penais
constituem condutas anteriores ou posteriores do
cometimento de outro, cujo tipo penal prevê pena
mais severa, ou, o agente, tendo em mira uma
infração penal, pratica-a, mas logo se prontifica a
desenvolver outra.

Em cada uma dessas hipóteses que


ocorrem com bastante freqüência no cotidiano
jurídico-penal há um problema a ser resolvido.
Na primeira, pergunta-se, os tipos penais dos
"ilícitos-meios", i. e., que configuram fases
preparatórias ou executórias do "ilícito-fim",
incidem sobre o sujeito? E as condutas anteriores
e posteriores ao delito de maior gravidade,
cometidas contra o mesmo bem jurídico de um
mesmo sujeito passivo, merecerão represália
penal? E aquele crime antes tomado como fim do
agente, mas logo depois por ele ignorado,
cometendo outro, no mesmo iter criminis,
prejudicá-lo-á, cominando-lhe também a sua
pena?

A resposta a todas as questões é negativa.


Quando uma ou mais infrações penais figuram
unicamente como meios ou fases necessárias
para a consecução do crime-fim, ou quando
simplesmente se resumem a condutas, anteriores
(antefactum) ou posteriores (postfactum), do
crime-fim, estando, porém, insitamente
interligados a este, sem qualquer autonomia
portanto (pois o contrário daria margem ao
concurso real de crimes), ou quando ocorre a
chamada progressão criminosa (mudança de
finalidade ilícita pelo agente), o agente só terá
incorrido no tipo penal mais grave.

É o que determina o princípio da consunção,


para o qual em face a um ou mais ilícitos penais
denominados consuntos, que funcionam apenas
como fases de preparação ou de execução de um
outro, mais grave que o(s) primeiro(s), chamado
consuntivo, ou tão-somente como condutas,
anteriores ou posteriores, mas sempre
intimamente interligado ou inerente,
dependentemente, deste último, o sujeito ativo só
deverá ser responsabilizado pelo ilícito mais grave.
No dizer de Damásio de Jesus, "nestes casos, a
norma incriminadora que descreve o meio
necessário, a normal fase de preparação ou
execução de outro crime, ou a conduta anterior ou
posterior, é excluída pela norma a este relativa. Lex
consumens derogat legi consumptæ" (2).

Ao contrário do que ocorre no princípio da


especialidade, o da consunção só pode ser
analisado e aplicado tendo-se em vista o caso
concreto, i. e., a consunção exige um confronto in
concreto das leis que descrevem o mesmo fato
como criminoso/contravencional, em vista de que
uma infração penal não pode ser tida, a priori, ou
de per si, como consuntiva, imprescindindo-se da
análise de todas as circunstâncias com as quais ela
concorreu(3). Se tomo, p. ex., o crime de furto
qualificado (art. 155, § 4º, do Código Penal), não
posso, de antemão, dizer que ele é consuntivo,
pois que dele, em si, nada se pode aferir quanto
até mesmo a sua correspondência íntima com
outro crime. Abstratamente, enfim, é impossível
saber-se se ele é, ou não, consuntivo.

No entanto, se digo que o agente A, com o


intuito de furtar bens de uma residência, escala o
muro que a cerca e, utilizando-se de chave falsa,
abre-lhe a porta e penetra no seu interior,
subtraindo-lhe os bens e fugindo logo em
seguida, posso com toda a certeza afirmar que o
princípio da consunção se faz presente: o crime
consuntivo (que é sempre mais grave que os
consuntos), i. e., o furto qualificado pela escalada
e pelo emprego de chave falsa (art. 155, § 4º, II, 3ª
figura, e III, do Código Penal) absorve o consunto,
vale dizer, a violação de domicílio qualificada (art.
150, § 1º, 1ª figura, do Código Penal), que lhe serviu
de meio ou fase executória necessário(a).

Segundo Jiménez de Asúa(4), a consunção


pode produzir-se:

a) quando as disposições se relacionam de


imperfeição a perfeição (atos preparatórios
puníveis/tentativa e tentativa/consumação);

b) de auxílio a conduta direta (partícipe/ autor);

c) de minus a plus (crimes progressivos);

d) de meio a fim (crimes complexos); e

e) de parte a todo (consunção de fatos


anteriores e posteriores).

Nosso trabalho aqui desenvolvido tem o fito


de apreciar, tão-somente, os motivos
determinantes e as correspondentes
conseqüências da aplicação do princípio da
consunção ao crime progressivo e à progressão
criminosa, haja vista serem estes dois institutos os
ensejadores das maiores polêmicas e celeumas
travadas entre os doutrinadores.

3. Do que vem a ser concebido como


"crime mais grave"

:
Antes de lançarmos nosso olhar ao crime
progressivo e à progressão criminosa, chamemos
atenção para o que venha a ser definido e
entendido como "crime mais grave", pois que de
tal averiguação é que se poderá, eficazmente,
apontar com clareza e exatidão qual ou quais os
delitos consuntos, e qual o consuntivo, fazendo-
se, assim, a lídima justiça no caso prático.

Na terminologia do Direito Penal Positivo(5),


"crime mais grave" é simplesmente o crime cujo
tipo penal prevê sanção mais rigorosa, quantitativa
e/ou qualitativamente, que a prevista nos tipos
penais dos "crimes menos graves".

Em sendo assim, se tomo


exemplificativamente dois delitos, A e B, será tido
como quantitativamente "mais grave" aquele que
apresentar, em sua previsão legal (previsão da
sanctio juris in abstracto), pena máxima superior
que a do outro. Caso as penas máximas sejam
idênticas, ver-se-á qual deles possui a pena
mínima maior, e esse delito é que será o "mais
grave". O critério quantitativo é o observado na
enorme maioria dos casos de consunção.

           Qualitativamente e nesse caso só terá


sentido a inquirição do "crime mais grave" se as
penas mínima e máxima forem simultaneamente
idênticas, o que é bastante raro que ocorra , no
entanto, ter-se-á como "crime mais grave" o
apenado com reclusão, que, ao contrário da
detenção, prevê o regime fechado de execução
da pena(6).

No caso de sanções exatamente idênticas,


como ocorre entre os crimes de estelionato (art.
171 do Código Penal) e falsidade de documento
particular (art. 298 do Código Penal) reclusão, de
1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa , poderemos ter, de
acordo com a hipótese fática e com o
posicionamento que se adote, duas soluções. Se
se entender que os ilícitos envolvidos guardam
entre si relação de consunção (quando então
objetos jurídicos e sujeitos passivos deverão ser
idênticos em ambas as infrações), ocorre
absorção do primeiro pelo segundo, seja porque
se compreenda um deles necessário ao
subseqüente (crime progressivo), seja porque o
primeiro que for praticado é antefactum impunível,
que também é hipótese de crime progressivo,
como veremos no próximo item. Por outro lado,
caso não guardem (ou se entenda não guardarem)
relação de absorção, como é de nosso
entendimento, haverá lugar para o concurso de
crimes (de ordinário, material).

Não existem, ao nosso ver, critérios rígidos


nesse sentido, mas um mínimo deles far-se-á
mister como parâmetros de referência toda vez
que exsurgir um conflito aparente entre normas
penais que deva ser solucionado pelo princípio da
consunção, em uma das duas modalidades
objetos de nosso estudo, crime progressivo ou
progressão criminosa. E, a bem da verdade e da
prossecução da justiça, muito embora não se
possa arvorar de desejar que sejam adotados os
critérios supra relacionados, ao menos plausíveis
eles se apresentam para uma fundamentada
fixação dos crimes consuntos e consuntivos.

4. Crime Progressivo

          4.1. Noções Preliminares:

Fala-se que existe crime progressivo quando


o sujeito, para alcançar um resultado normativo
(ofensa ou perigo de dano a um bem jurídico),
necessariamente deverá passar por uma conduta
inicial que produz outro evento normativo, menos
grave que o primeiro. Noutros termos: para
ofender um bem jurídico qualquer, o agente,
indispensavelmente, terá de inicialmente ofender
outro, de menor gravidade passagem por um
minus em direção a um plus.

Em tais casos, o crime-fim pretendido pelo


agente (plus), para ser efetivamente consumado,
só será alcançado quando o agente, diante do
caso concreto, percorre um crime-meio (minus),
sempre de menor gravidade: um delito está como
que "no meio do caminho" (crime consunto) que
levará o autor ao seu "destino" (crime consuntivo).

Ao agente, então, não serão imputadas duas


normas penais, a que descreve o crime-meio e a
que prevê o crime-fim: como para se chegar a este
plus é, repita-se, não só "útil" como mesmo
indispensável passar-se pela consumação dum
minus, este é absorvido por aquele, e só a título do
plus responderá o agente.

Vários são os exemplos que se pode


considerar na consunção de minus a plus: os
doutrinariamente qualificados como "crimes de
dano" (que ofendem um bem jurídico), por
exemplo, absorvem os "crimes de perigo" (os que
ameaçam ofender um bem jurídico); o crime de
seqüestro (art. 148 do Código Penal) é absorvido
pelo de redução de alguém a situação análoga à
de escravo (art. 149 do Código Penal); o estupro
(art. 213 do Código Penal), o atentado violento ao
pudor (art. 214 do Código Penal), a posse sexual
mediante fraude (art. 215 do Código Penal), o

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