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DIREITO PENAL II

GUIA DE RESOLUÇÃO DE CASOS PRÁTICOS

1.ª ETAPA
Identificação do tipo incriminador

É necessário começar por identificar o tipo incriminador a que se vai tentar imputar o
resultado. Para isso é necessário analisar todos os elementos da acção/omissão, para
então se decidir a que tipo de crime se pode, em princípio, imputar essa acção.
E aqui há que resolver, desde logo as questões em que se manifeste, um
concurso de normas (1); ou um concurso de crimes (2).

1) É necessário começar por verificar se a acção é subsumível a mais do que um


tipo de crime, ou seja, verificar se há concurso aparente ou legal ou de normas
(quando várias previsões legais são preenchidas, mas uma delas é suficiente para
esgotar o conteúdo ilícito do facto). Uma vez que a conduta do agente só formalmente
preenche vários tipos de crime, a aplicação de um dos tipos de crime afasta a aplicação
de outros, de que o agente tenha também preenchido os elementos típicos, sob pena
de se violar o princípio do ne bis in idem.

Na resolução do concurso de normas há que verificar se existe: (a) ou uma


relação de especialidade (quando um crime qualificado contém em si todos os
elementos de um tipo geral, ou fundamental, v.g., a verificação de um homicídio
qualificado afasta a aplicação do homicídio voluntário simples); (b) ou de
subsidiariedade (quando um crime se “apaga” perante outro, como forma menos
intensa de agressão, v.g., um crime de dano afasta um crime de perigo); (c) ou de
consumpção (quando um crime contém em si outro, não por necessidade conceptual,
mas de um modo típico, v.g., o roubo consome o furto, o homicídio consome, em
regra, as ofensas corporais); ou ainda, (d) de facto posterior não punível (quando uma
infracção penal subsequente, que isoladamente considerada poderia corresponder a
um certo tipo de crime, só se apropria ou aproveita das utilidades de uma infracção
penal passada, sem lesão de um novo titular de bens jurídicos (v.g., a ocultação de
cadáver pelo próprio homicida).

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2) É necessário verificar, em segundo lugar, se há concurso efectivo ou
concurso de crimes (situação em que o agente comete efectivamente vários crimes e a
sua responsabilidade contempla todas essas infracções praticadas).
Aqui há que distinguir entre concurso real (pluralidade de actos, quando o
agente pratica várias infracções penais autónomas), e concurso ideal (quando uma, e a
mesma acção, viola vários preceitos legais. O assento legal desta matéria é o art.º 41
do CP. As regras de punição estão depois previstas no art.º 127 do CP.

Se seguirmos a posição de Eduardo Correia, na vigência do Código anterior,


consideramos que o n.º 1 do art.º 41 do CP se refere igualmente às situações de
concurso real e de concurso ideal, e que o n.º 2 do art.º 41 do CP se refere às situações
de concurso aparente, ou concurso de normas, caso em que as regras da punição
previstas, depois, no art.º 127 do CP se aplicam tanto às situações de concurso real
como de concurso ideal. Diferentemente, se adoptarmos a posição de Cavaleiro de
Ferreira, que entendia que o agora n.º 1 do art.º 41 do CP se refere apenas às
situações de concurso real,; enquanto que o n.º 2 do art.º 41 do CP se refere ás
situações de concurso ideal, nos casos em que com a mesma conduta, o agente produz
mais do que um evento (concurso ideal ou formal, v.g., com um só tiro mata duas
pessoas, ou se com um só tiro, mata ou fere uma pessoa, e destrói uma montra), não
se daria acumulação de crimes, pelo que o art.º 127 do CP, que contém as regras sobre
acumulação de crimes, não seria aplicável ao caso. Numa situação de concurso ideal
(v.g., três homicídios; ou com uma bomba …), a pessoa seria punida apenas pelo crime
mais grave. Teríamos aqui uma relação de absorção, i.e., a pena do crime mais grave
absorve as outras. A relevância possível dos outros eventos (os mesmos exemplos…)
apenas relevaria em sede de circunstâncias gerais agravantes (art.º 37/ff) do CP).

Impõe-se verificar ainda, em certos casos, se há crime continuado (v. art.º 42 e


128, cfr. nos casos de furto o art.º 270/2 do CP).

2.ª ETAPA
Identificar o título de participação do agente

Identificar a posição do agente em análise:


a. Autor (art.º 21/1 do CP): o que executa, total ou parcialmente, a conduta e que
em virtude disso tem o domínio do facto, e pode decidir se o evento ocorrerá
ou não. E que por sua vez pode ser autor imediato (o que executa pelas suas
próprias mãos, art.º 21/1, a) 1.ª parte); mediato (o que executa por intermédio

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de outrem, art.º 21/1 b) e c) in fine do CP); ou co-autor (quando vários tomam
parte directa na execução do facto, art.º 21/1, alíneas a), 2.ª parte, e e), do CP);
b. Instigador (art.º 21/1 c) e d) do CP): o que dolosamente determina outro à
prática do facto, ou seja, cria no executor a decisão de atentar contra um certo
bem jurídico-penal através da comissão de um concreto ilícito típico: tem o
domínio da decisão, mas não o domínio do facto.
Autor e instigador são punidos da mesma forma (art.ºs 21 e 22/a) do CP).
Se o executor excede a medida da instigação, o instigador só responde pelo
tipo que pretendeu instigar (art.º 22/b) do CP). Inversamente, se o executor ficar
aquém do que o instigador pretendeu, este só responde pelo facto efectivamente
praticado.
Nestes casos de comparticipação, como aplicar o regime da tentativa: a cada
um individualmente ou a todos globalmente? Tanto na autoria mediata como na
instigação, é de aplicar a solução global, ou seja, a tentativa começa, para todos os
participantes, a partir do momento em que um deles entre no estádio de execução; na
co-autoria, a solução individual é a que melhor se adequa com o princípio da
legalidade (tomar «parte directa» na execução, art.º 21/1, alíneas a), 2.ª parte, e e), do
CP).
A posição do cúmplice é acessória (art.º 23 do CP), supõe a existência de um
facto principal doloso, e traduz-se num auxílio moral (o favorecimento ou reforço da
decisão do autor de praticar o crime, art.º 23/a do CP), ou material (art.º 23/b do CP).
A cumplicidade só é possível até à consumação, não existe cumplicidade post factum.
Só existe cumplicidade relativamente a factos dolosos.
A pena do cúmplice é determinada em função da pena aplicada ao autor do
facto, especialmente atenuada (art.º 129 do CP).

3.ª ETAPA
Delimitar a estrutura do comportamento

A metodologia de resolução do caso é diferente, consoante estejamos perante


(1) uma omissão ou (2) uma acção.

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1) Se estivermos perante uma omissão, há que ter em consideração, desde
logo, a distinção entre: crimes de omissão próprios (quando a omissão faz parte do
tipo, v.g. art.º 214 do CP); e impróprios (todo e qualquer tipo descrito como acção que,
compreendendo certo resultado, possa ser equiparado à omissão da acção que
impediria aquele resultado, por força da cláusula de equiparação do art.º 2/1 do CP).

(a) A situação típica do delito de omissão é constituída especificamente pelos


pressupostos de facto que determinam o conteúdo concreto do dever de actuar. A
omissão é relevante apenas em função da acção devida, e quando crie ou potencie a
probabilidade (ou um risco) de verificação de um resultado típico;
(b) Para que exista omissão típica, a acção devida deve ser facticamente
possível;
(c) A imputação objectiva da omissão: (i) se se verificar que a acção devida
resultaria numa diminuição das probabilidades de verificação do resultado (ou do
risco), deve haver imputação objectiva; (ii) em caso de dúvida, esta deve ser negada (in
dubio pro reo); (iii) caso se comprove que da acção devida não resultaria tal
diminuição, aplica-se a tese do comportamento lícito alternativo.
(d) Posição de garante (no caso dos crimes de omissão impróprios): «A omissão
só é punível quando recair sobre o omitente um dever jurídico que pessoalmente o
obrigue a evitar esse resultado» (art.º 2/2 do CP). Ou seja, nos casos de omissão
imprópria, apenas recaem deveres jurídicos de actuar sobre aqueles que em virtude da
lei, do contrato, ou da ingerência, estejam nessa posição de garante.
(e) Dolo do tipo: elemento intelectual – representação dos pressupostos que
constituem a posição de garante; elemento volitivo – o autor omite a acção imposta,
apesar de contar seriamente com a possibilidade de realização típica, com a qual (pelo
menos) se conforma.
(f) Pode haver tentativa de omissão: a partir do momento em que a omissão da
acção devida aumenta as probabilidades (ou o risco) de verificação do resultado.
(g) Pode haver desistência, conforme o grau de progressão do iter criminis: (i)
se o agente ainda não praticou «todos» os actos que deviam produzir o crime
consumado – tentativa propriamente dita, ou tentativa inacabada, art.º 14 do CP –
bastará omitir os que faltam ainda praticar; (ii) caso contrário, na tentativa acabada

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(caso em que o agente já praticou todos os actos de execução, cfr. art.º 13 do CP), terá
que intervir activamente, no sentido de obstar à consumação, ou tentar proceder ao
salvamento – arrependimento activo.

2) Se estivermos perante uma acção, a questão que imediatamente se coloca é:


a acção é típica? Em caso afirmativo, prossegue-se a análise do caso. Caso contrario a
análise pára aí.

4.ª ETAPA
Delimitar o estágio de realização do facto

O crime está consumado? Só há consumação quando se verifica o «crime


perfeito», ou seja, «quando todos, mas todos, os elementos do tipo foram preenchidos
de forma cabal e plena» (José de Faria Costa).
É diferente a metodologia a adoptar, consoante estejamos perante (1) um
crime tentado, ou (2) um crime consumado.
Se estivermos perante um crime consumado, há que começar sempre pela
investigação do tipo objectivo, e só depois o tipo subjectivo que o complementa. Se,
diferentemente estivermos perante um crime não consumado, tem de se discutir, logo
de início, a intenção do agente. A justificação desta inversão reside no facto de que
não se pode averiguar o complemento para o preenchimento do tipo objectivo sem se
saber, previamente, a que é que o autor estava resolvido1.

1) Crime não consumado. Os actos preparatórios não são puníveis, salvo


disposição legal em contrário (art.º 15 ex vi art.º 17/2 do CP).
Há tentativa, quando a realização do tipo de ilícito objectivo que se previu, e
intentou, não atingiu completamente o objectivo.
A tentativa tem por elementos:

1
v. CLAUS ROXIN: «Resolução do facto e começo de execução na tentativa», in Problemas Fundamentais
de Direito Penal, pp. 297-298.

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a. A intenção de cometer o facto (art.º 14/a) do CP). Por isso não há tentativa
negligente e, para alguns (v.g., Faria Costa), nem com dolo eventual,
justamente por esta falta de intenção;
b. Os actos de execução (expressão externa da decisão, art.º 14/b) do CP).

São actos de execução:


a. Os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime (critério
formal-objectivo); ou
b. os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c. os que, segundo a experiência comum (salvo circunstâncias imprevisíveis)
forem de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies
anteriormente mencionadas (critério material-objectivo, apreciado na base de
um critério de idoneidade, normalidade ou experiência comum);
d. tendo em conta o plano concreto de realização do agente (critério subjectivo).

Há crime frustrado, quando o agente pratica com intenção todos os actos de


execução que deveriam produzir como resultado o crime consumado, e todavia não o
produzem por circunstâncias independentes da sua vontade» (art.º 13/1 do CP). Se,
por exemplo, o agente dispara o único tiro de que dispõe e falha por um cabelo que
seja, estamos perante um crime frustrado.
Situação diferente é a tentativa falhada. Existe uma tentativa falhada quando
sem estarem ainda praticados «todos os actos de execução que deveriam produzir
como resultado o crime consumado», o autor reconhece ou, pelo menos, aceita que
no campo da sua actuação concreta, o seu objectivo se tornou inatingível2.

As razões do desaire podem ser as mais diversas: (1) o meio falha, v.g., a
pistola encrava-se no momento do disparo, ou a gazua que o assaltante pretende
utilizar para o arrombamento parte-se, e este não tem um outro instrumento
alternativo, estaríamos perante uma tentativa falhada de homicídio, ou de roubo; (2) o
agente fica incapaz de prosseguir na execução, v.g., o homicida, tendo dado início aos
actos de execução, sofre um ataque cardíaco, ou o agressor sexual ejacula
prematuramente antes da penetração da vítima, estaríamos perante uma tentativa
2
v. CLAUS ROXIN: Derecho Penal Parte General, Tomo II, Editorial Aranzadi, Navarra, 2014, pp. 617-618;
«”A tentativa falhada” – e simultaneamente, uma contribuição para o problema de retomar a
execução», in Problemas Fundamentais de Direito Penal, p. 339.

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falhada de homicídio, ou de violação; (3) a vítima não está presente, escapa ou
demonstra a sua superioridade, v.g., o assaltado fere gravemente, ou mata o
assaltante, estaríamos perante uma tentativa falhada de roubo; (4) ou até questões
estritamente jurídicas, v.g., a mulher que o agente quer violar, entrega-se
voluntariamente, estaríamos perante uma tentativa falhada de violação, porque falta o
elemento constrangimento para o coito (cfr. art.º 218 do CP).

Punibilidade: com as limitações dos art.ºs 13/2 e 14/d), art.ºs 130 e 131 do CP.

A tentativa pode ser impossível: (a) pela própria impossibilidade do agente –


alguém realiza uma acção típica na convicção de que se dão nele cartas qualidades,
v.g., alguém, julgando erroneamente que o seu cônjuge ainda é vivo, contrai novo
matrimónio. Temos aqui uma tentativa impossível do crime de bigamia (cfr. art.º 206
do CP), por impossibilidade de do agente; (b) por inexistência do objecto essencial –
falta o objecto, v.g., uma mulher que pensa que está grávida e tenta abortar; alguém
que pensa que está a matar outrem, que já é cadáver; ou alguém que tenta furtar uma
coisa que afinal é sua; ou (c) por inidoneidade do meio empregue pelo agente – faltam
os meios, v.g., alguém aponta e dispara uma pistola que, sem saber, está
descarregada; ou alguém ministra uma injecção com um placebo, pensando que é
veneno; ou alguém ingere um chá de camomila na convicção de que é abortivo, …
Independentemente de ser, num juízo ex ante, aparentemente possível, ou
manifestamente impossível, a tentativa impossível não é (ainda) punível á luz do nosso
Direito.

Desistência voluntária da tentativa: (a) exige-se que o agente deixe de


prosseguir a execução do crime antes de estarem cumpridos «todos» os actos que
deviam produzir o crime consumado – tentativa propriamente dita, ou tentativa
inacabada, cfr. art.º 14/c) do CP – bastará omitir os que faltam ainda praticar; ou, (b)
se já os tiver cumprido (cfr. art.º 13 do CP), actue no sentido de evitar o resultado, ou
de proceder ao salvamento (arrependimento activo). Se assim for, não se pune a
tentativa.

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5.ª ETAPA
Imputação do resultado à conduta

Pode haver imputação objectiva do resultado à acção?

A teoria da adequação, consagrada no Código Penal (art.º 2/1), estabelece que,


só é causa adequada a produzir um resultado, aquela que, efectiva, e adequadamente,
produziu esse resultado. Assim sendo, é necessário, não só, que a acção seja adequada
a produzir o resultado; é necessário, também, que o resultado tenha acontecido
segundo um curso causal adequado.
Implica que, a imputação do resultado à acção, tenha se ser feito através de
dois juízos de adequação distintos, e cumulativos:
Num primeiro momento, devemos proceder a um juízo abstracto de
adequação, que nos vai permitir afirmar a tipicidade da conduta, aquilo que Figueiredo
Dias designa por «primeiro degrau constitutivo da exigência mínima»;
Num segundo momento, vamos proceder a um juízo concreto de adequação
(que pressupõe já afirmada a tipicidade da conduta). É justamente este juízo concreto
de adequação, que está na base da imputação objectiva do resultado à conduta. Por
outras palavras, é um segundo degrau, em que o que está em causa é já uma
causalidade jurídica, sob a forma da teoria da adequação (a relação meio/fim).
Devem ser tidos em conta os especiais conhecimentos do agente, bem como a
actuação de terceiros, salvo se ela aparecer como provável ou previsível.
Neste ponto, ter em atenção as diversas situações estudadas nas aulas,
nomeadamente: (1) os casos de causalidade virtual, ou interrupção do nexo causal; (2)
os casos de causalidade alternativa; (3) os casos de causalidade cumulativa; (4) os
casos de constituição anormal da vítima ou de processos causais atípicos, ou não
habituais.
Pode haver situações em que se justifique a consideração outros de critérios
complementares, com vista á limitação da responsabilidade:
Nas chamadas hipóteses de “risco permitido”, há que ter em conta que sendo
essas acções «socialmente adequadas», nem sequer se coloca um problema de acção.
E, por conseguinte, muito menos de imputação.

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Nas chamadas hipóteses de “diminuição de risco”, não havendo, como vimos,
um «desvalor da acção», não se coloca, igualmente, um problema de imputação.
Nas chamadas hipóteses de «comportamento lícito alternativo», ou seja,
naqueles casos em que se demonstra que um comportamento de acordo com a norma
de cuidado, não teria evitado o resultado, pensamos que a solução do problema está
em averiguar, e demonstrar, que o comportamento imposto pela referida norma de
cuidado teria sido inútil, «ineficaz». E se assim for, a referida norma de cuidado seria
inconstitucional, se aplicada ao caso concreto. Logo, não há imputação em termos
penais.
Nos casos de «aumento do risco», havendo uma dúvida razoável sobre se a
conduta foi, efectivamente, causa do resultado, por força do princípio in dubio pro reo,
terá que se considerar como não provada a imputação.
Pode, ainda assim, ter alguma utilidade, sobretudo nos casos de concorrência
de riscos, o recurso à teoria da esfera de protecção da norma como critério limitador
da responsabilidade, nos casos em que se verifique que o resultado eventualmente
imputável ao agente não se encontra abrangido pelo âmbito de protecção da norma
violada, antecipando assim a solução de casos que sempre encontrariam a exclusão da
responsabilidade no âmbito das causas de exclusão da ilicitude.

6.ª ETAPA
Imputação subjectiva

Há imputação subjectiva?
Em regra, só são puníveis os crimes praticados com dolo. A negligência só é
punível nos casos especiais declarados na lei (art.º 136 do CP). Quer isto dizer que se
verificarem que determinado crime foi cometido com negligência e a lei não prever
essa possibilidade, não há tipo para preencher, logo não há imputação.
O dolo compõe-se de dois elementos: (1) o elemento intelectual e (2) o
elemento volitivo.

1) Elemento intelectual – o agente tem de ter consciência que preenche um


tipo de ilícito objectivo; essa consciência deve ser actual face ao momento da acção,

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entendendo-se que o é mesmo quando existe apenas uma co-consciência imanente à
acção (aquelas situações em que a possibilidade de preenchimento do tipo passou
necessariamente pela cabeça do agente).
Aqui há que verificar as diversas hipóteses de erro.
a) Erro sobre a factualidade típica: Quando falta ao agente o conhecimento
referido supra, o dolo do tipo não se pode afirmar. Erro aqui vale tanto como
representação errada e como falta de representação. Este mecanismo vale também
para as circunstâncias que agravam o ilícito, bem como para a aceitação errónea de
circunstâncias que o atenuam (por exemplo, erro quanto à existência de uma causa de
justificação).
b) Error in persona vel objectus: o erro quanto à identidade da vítima, quando
não seja também um erro sobre as qualidades tipicamente relevantes (v.g., uma
relação familiar), não releva para efeitos de imputação: «sempre que o objecto
concretamente atingido seja tipicamente idêntico ao projectado, o erro sobre o
objecto (ou a pessoa) é irrelevante»3.
c) Erro sobre o objecto (objectos tipicamente diferentes): o erro aqui é
relevante. Quanto ao objecto suposto, uma tentativa impossível; quanto ao objecto
efectivamente existente, há um erro sobre o tipo, que se traduz na possibilidade de
responsabilização do agente a título de negligência. Questão distinta é a que se refere
às qualidades do objecto (v.g., no furto): crime doloso consumado do objecto
efectivamente furtado.
d) Erro sobre o processo causal: divergência entre o risco criado pelo agente e
aquele do qual deriva o resultado.
Há que distinguir (i) os crimes de forma vinculada, em que o processo causal é
um elemento do tipo (v.g., envenenamento, violação, burla), sendo aí o erro
necessariamente relevante; (ii) dos crimes de forma livre, em que tal não acontece
(v.g., homicídio).
A questão fundamental, nos casos de erro sobre o processo causal, consiste em
saber, se o concreto modo de ocorrência do resultado, o concreto curso real, é
imputável ao dolo do agente. Se ele for imputável ao dolo do agente, significa que o
erro é irrelevante, e ele irá responder por um crime doloso consumado; se
3
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 346.

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entendermos que esse erro é relevante, que o concreto processo causal não é
imputável ao agente, então ele deverá ser punido por tentativa, necessariamente,
dolosa, e depois poderá, quando for caso disso, responder por um crime negligente
consumado.
Exemplos: A… quer matar B…, lançando-o de uma ponte abaixo. B… não morre
afogado, mas antes por traumatismo craniano, porque na queda, bateu com a cabeça
num dos pilares da ponte; ou A… quer matar B…, que está próximo de um precipício
disparando sobre ele, e em que B…, para escapar às balas, se lança sobre o precipício,
e morre). Neste tipo de casos, o erro sobre o processo causal é, em princípio,
irrelevante, porque não afecta o resultado, apenas o modo como este se produz, pelo
que o agente deverá ser punido, em qualquer dos casos, por um crime de homicídio
doloso consumado.
Diferente pode ser a solução, se a vítima cai efectivamente na água sem bater
em lado nenhum, nada até à margem e morre porque ao chegar à margem do rio, se
agarra a uma pedra que rola e o esmaga. Neste caso, é duvidoso, sequer, se se pode
imputar objectivamente o resultado morte a A…, pelo que restaria apenas a
possibilidade de o imputar por tentativa de homicídio4; ou se, no caso do precipício,
A… não actualizou na sua co-consciência, ao menos a título de dolo eventual, a
existência desse precipício. Neste caso o agente deverá ser punido em concurso de
crimes: por uma tentativa de homicídio, e por um homicídio negligente consumado5.
Maiores dificuldades oferecem as situações específicas de erro sobre o
processo causal por (i) antecipação do resultado (v.g., tentar deixar a vítima inanimada
com uma pancada, para depois a pendurar e simular o suicídio por enforcamento. A
vítima morre logo com a primeira pancada); e por (ii) retardamento do resultado,
também chamadas situações dolus generalis (v.g., A… bate em B… e pensando,
erroneamente, que o matou atira-o para a água, afogando-o).
Nas hipóteses de antecipação do resultado a questão está em saber se, no
momento em que o resultado se produz, o agente já está a praticar actos de execução;
ou se está ainda na fase dos actos preparatórios. Se apurarmos que a morte se produz
quando o agente já está a tentar o homicídio, é evidente que o erro sobre o processo
causal é irrelevante, porque aquela morte é a concretização do plano homicida do
agente: homicídio doloso consumado; se diferentemente, apurarmos que o agente

4
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 343.
5
JOÃO CURADO NEVES: «Comportamento ilícito alternativo e concurso de riscos», p. 163.

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ainda está na fase dos actos preparatórios, ter-se-á que admitir a punição do agente
em concurso real de crimes: um crime doloso de ofensas corporais, agravado pelo
resultado morte (art.º 172 do CP), e por uma tentativa impossível de homicídio (art.º
155 e art.º 11 do CP), caso se entenda que a tentativa impossível não manifesta é
punível entre nós.
Nas hipóteses de retardamento do resultado o problema é que, quando há
dolo do facto, há uma mera tentativa (porque B… não morre); quando há consumação,
já não existe dolo do facto, porque o autor já não tem consciência de que está a matar.
Aqui há que distinguir duas situações: as situações em que há planeamento prévio do
encobrimento; das situações em que não há esse planeamento. Se o agente planeou,
desde o início, encobrir o crime, está-se perante uma só acção com duas fases: o dolo
estende-se a todo o acontecimento (dolus generalis) de modo a que o agente deverá
ser punido por um só crime doloso consumado; se faltou o planeamento prévio, e esta
é uma decisão posterior, a punição só poderá ter lugar a título de tentativa, em
concurso com um homicídio negligente consumado6.
e) Aberratio ictus vel impetus: erro na execução, atinge-se objecto diferente do
pretendido; quanto ao objecto visado há tentativa, necessariamente dolosa; quanto ao
objecto efectivamente atingido, crime consumado, na forma negligente.
Do erro de execução se distingue, quanto á solução, o dolo alternativo, caso em
que o agente se propõe, ou se conforma, com a realização de um ou de outro tipo de
ilícito (v.g., tira a carteira de uma vítima de um acidente de viação, sem cuidar de
verificar se está morto ou apenas inconsciente, o agente conta com as duas
possibilidades, furto ou apropriação indevida, tem dolo em relação aos dois tipos de
crime; ou aponta a uma peça de caça, contando, contudo, com a séria possibilidade de
atingir uma pessoa que está próxima do alvo. Neste caso o agente tem dúvidas quanto
a saber se atingirá um ou outro objecto). Neste tipo de situações há que considerar
que ambas as condutas são dolosas, sendo que uma se fica pela tentativa e outra pela
consumação.
f) Erro sobre a proibição legal: … exclui o dolo do tipo, quando ao crime não
corresponda uma valoração axiológica de conhecimento indispensável (v.g., conduzir
com 1,2 gr/l álcool no sangue é crime: é indispensável à afirmação do dolo do tipo o
conhecimento deste valor).

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JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, p. 344.

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2) Elemento volitivo, i.e., vontade dirigida à realização do resultado.
Dolo directo: a realização do tipo objectivo de ilícito é o verdadeiro fim da
conduta (art.º 3/1 do CP); dolo necessário: a realização do tipo objectivo de ilícito não
surge como fim, mas como consequência inevitável, ainda que lateral (art.º 3/2 do CP);
Dolo eventual: a realização do tipo objectivo de ilícito surge apenas como
consequência possível da conduta (art.º 3/3 do CP).
O problema de distinção do dolo eventual com negligência consciente (art.ºs
3/3 e 4/1 do CP). Quando a verificação de um resultado como possível é
completamente indiferente, então tanto está bem a sua verificação como a sua não
verificação: neste caso, há dolo (teorias da aceitação e da conformação).

7.ª ETAPA
Ilicitude

Existe causa de exclusão da ilicitude?

Questão prévia: os elementos subjectivos das causas de justificação (tipos


justificadores) Os efeitos justificativos de uma determinada situação dependem da
intencionalidade do agente nesse sentido? Exemplo: A… mata B… para herdar bens, no
momento em que B… ia matar A… por não gostar dele: há legítima defesa?
Uma parte da doutrina que defende (defendia) a pura objectividade dos tipos
justificadores, independentemente de qualquer subjectividade (pode-se dizer que
aqui, os elementos do tipo justificador apenas têm virtualidade para excluir o desvalor
do resultado); para Figueiredo Dias os elementos subjectivos são essenciais à exclusão
da ilicitude (o que permite também justificar o desvalor da acção). O conhecimento
pelo agente dos elementos do tipo justificador é exigência subjectiva mínima
indispensável à exclusão da ilicitude. Quando não haja esse conhecimento, mas se
cumpram todos os pressupostos objectivos do tipo justificador, não há desvalor do
resultado (logo não se pode punir como “crime consumado”). Aplicação por analogia

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do regime da tentativa (permitida, pois alarga os limites da justificação) aos casos em
que faltam os elementos subjectivos das causas de justificação7.
Assim, considera que esta é uma situação análoga à da tentativa (que se
distingue por ter desvalor da acção sem desvalor do resultado) e, por essa via (que é
permitida, pois alarga os limites da justificação), a aplicação do seu regime. No caso
em análise, A… seria punido por ter tentado matar B… mas, dado que não existe
desvalor no resultado (uma vez que B… ia matar A…, preenchendo-se o tipo de
legitima defesa), mas beneficiando do regime da tentativa.
Questão diferente é quando o agente supõe erroneamente que está abrangido
por uma causa de justificação. Estão cumpridos os elementos subjectivos, mas não os
objectivos (A… mata B… porque B…, numa brincadeira, que A… desconhecia, o ameaça
com uma pistola). Há uma suposição, errada, de que existe uma causa de justificação.
Equivalência ao erro sobre os pressupostos de facto: o erro exclui o dolo, subsiste a
negligência8.

As concretas causas de justificação: verificação dos pressupostos, e dos


requisitos. Não os confundir!
Estado de necessidade (art.º 48/1 a) e 49 do CP): afastamento de um perigo
(cfr. o estado de necessidade desculpante, art.º 48/2 b) do CP).
Legítima defesa: (art.º 48/1 b) e 50 do CP): defesa de uma agressão…. Não se
exige o animus defendendi.
Conflito de deveres (art.º 48/1 c) e 51 do CP). Confrontado com dois deveres de
agir que se conflituam, deve o agente escolher o que seja pelo menos igual ao que
sacrifica.
Consentimento justificante (art.º 340 do CC): discute-se se é uma causa de
exclusão da tipicidade (nesse sentido, Claus Roxin, e Américo Taipa de Carvalho, e a
posição defendida nas nossas aulas), com o argumento de que, se há consentimento,
não há violação do bem jurídico; e a posição tradicional, dualista (Geerds), que
distingue acordo de consentimento. Segundo esta doutrina, o acordo (casos em que a
acção típica pressupõe, conceptualmente, actuar contra a vontade do lesado, v.g.,

7
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, pp. 370-372.
8
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, pp. 374-378.

14
introdução em casa alheia (contra a vontade de), art.º 261 do CP; violação, art.º 218 do
CP; furto, art.º 270 do CP) exclui a tipicidade; diferentemente, há consentimento em
sentido estrito, nos casos em que a falta de consentimento não é elemento do tipo,
apenas excludente da ilicitude (no essencial, a generalidade dos crimes de ofensas
corporais e danos).
Objecto do consentimento: é doutrina dominante a que que nos diz que, nos
crimes de resultado, o consentimento tem de abranger tanto a acção como o resultado
típicos (Costa Andrade, Figueiredo Dias); Pressupostos de eficácia: (i) o carácter
pessoal e disponibilidade do bem jurídico lesado; e (ii) a não contrariedade aos bons
costumes (art.º 340/2 do CC, in fine, sobretudo por gravidade ou irreversibilidade do
dano num bem, apesar da sua disponibilidade); (iii) autodeterminação, i.e., uma
vontade livre, esclarecida e séria. Em caso de erro provocado sobre a situação de
consentimento, Figueiredo Dias entende que o consentimento é ineficaz quando o
engano se refira ao bem jurídico ou, não se referindo, versa sobre uma finalidade
altruística; quanto ao erro espontâneo do declarante, não prejudica a eficácia do
consentimento, se o autor, desconhecendo o erro, agir com base nesse
consentimento); (iv) o conhecimento do consentimento (se ele existir mas não for
conhecido pelo agente, há punição – analogicamente - por tentativa: desvalor da acção
sem desvalor do resultado).
Consentimento hipotético: aplicação da teoria do comportamento lícito
alternativo ao consentimento: se se comprovar, ex post, que seria dado o
consentimento, não há que punir o agente. Consentimento presumido (art.º 340/3 do
CC): equipara a um consentimento real e eficaz de um facto que o lesado teria
presumivelmente consentido se tivesse conhecido. Requisitos: Recair sobre bens
jurídicos disponíveis, não ofender os bons costumes, ser a decisão necessária naquele
momento (no interesse do lesado), conformar-se com a vontade “normal e razoável”
de uma pessoa (de acordo com a sua vontade presumível).

15
8.ª ETAPA
Culpa

Existe uma causa de exclusão da culpa?

Todos os passos foram dados até aqui: imputou-se objectiva e subjectivamente


o resultado ao agente; o facto era ilícito e não existia causa de exclusão de ilicitude.
Resta saber se, ainda assim, se pune o agente, atendendo á sua culpa (juízo de
censura).
Dolo e falta de consciência do ilícito – A consciência do ilícito (do seu desvalor
axiológico) é um elemento essencial do juízo de culpa, devendo esta ser negada
sempre que, sendo exigível, essa consciência não exista. Negada a culpa, não há lugar
a imputação. Se subsistir a culpa, pune-se quanto ao tipo doloso, ainda que com pena
especialmente atenuada.

Inimputabilidade:
· Inimputabilidade absoluta (art.º 46 do CP)
· Inimputabilidade relativa (art.º 47 do CP)

Questão da acção livre na causa (art.º 53 do CP)

Causas de desculpa:
· A negação da culpa: causas de exclusão da culpa (causas de desculpa)
· O estado de necessidade subjectivo, ou desculpante (art.º 48/2 b) do CP);
· O medo desculpável, no excesso de legítima defesa (art.º 50/2 do CP); e
· O “encobrimento” de familiares (art.º 24/2 do CP)9.

Erro sobre os pressupostos de facto de uma causa de exclusão de culpa. É um


problema de consciência da ilicitude. Uma situação em que a pessoa age em erro
sobre um pressuposto de facto de uma causa de exclusão de culpa exclui a culpa10.

9
v. TERESA PIZARRO BELEZA: Lições…, II, pp. 316-317.

16
O problema da graduação da culpa. Para além da possibilidade de exclusão de
culpa, nos casos que estudámos, há ainda a possibilidade de graduação da culpa (TPB:
II, 322-324).
Atenuantes especiais: art.º 53 (e art.º 137 ex vi art.º 136 do CP)
Atenuantes particulares: art.ºs 182, 183, 184 e 185 do CP (o que diferencia face
ao art.º 43/4 é a gravidade da provocação)
Atenuantes gerais: art.º 43/d do CP – a provocação…; art.º 43/f do CP – o
imperfeito conhecimento da ilicitude (não propriamente falta de …); art.º 43/l do CP –
a obediência hierárquica não exclui a culpa, mas pode atenuá-la…

9.ª ETAPA
Punibilidade

Impõe-se, por fim, a verificar a existência/ou não de:

Condições objectivas de punibilidade, v.g., a disposição do art.º 56/6 a) do CP


que diz que o criminoso tem de ser encontrado em Moçambique para ser punido.
Causas de isenção de pena, v.g., o furto entre cônjuges, art.º 279/1 do CP,
aplicável também ao roubo, ex-vi art.º 286 do CP (é também um problema de
procedibilidade); ou o abandono da execução e denúncia de actos de rebelião armada,
levantamento e incitamento à guerra civil (art.ºs 390 e 396 do CP); a desistência
voluntária, que consiste fundamentalmente em que a pessoa, por sua livre vontade,
pára, a meio da execução, o crime que tinha planeado (art.º 14/c) do CP, a contrario);
o arrependimento activo. No caso de frustração o agente não será punido se, por
actividade própria e voluntária, consegue evitar o resultado (art.º 13 do CP, a
contrario).
Causas de extinção da responsabilidade criminal, v.g., amnistia (art.º 151/1 c)
do CP); perdão da parte (nos casos em que isso é permitido, art.º 151/1 d) do CP),
prescrição do procedimento criminal (art.º 151/3 do CP). A sua verificação, funciona
como causa de extinção da responsabilidade criminal (v. art.º 151 do CP).

10
v. TERESA PIZARRO BELEZA: Lições…, II, pp. 318-321.

17
Procedibilidade: a distinção entre crimes públicos (o procedimento criminal não
está dependente nem de acusação particular nem de queixa), semi-públicos (o
procedimento criminal depende de queixa do ofendido) e privados (o procedimento
criminal depende de acusação particular).

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