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AOS VENERANDOS JUÍZES

CONSELHEIROS DO TRIBUNAL SUPREMO

LUANDA

ASSUNTO: CARTA ABERTA

Venerandos Conselheiros, antes de mais, queira, por favor,


aceitar as minhas mais elevadas saudações!
Queiram, por favor, dedicar-me alguns minutos da Vossa atenção.
Sou Domingos Fernando Feca, escrivão de 2ª classe, actualmente
colocado no gabinete do Venerando Conselheiro Aurélio Simba,
exercendo a função de assessor jurídico. Sou, ainda, o coordenador da
Comissão de Instalação do Sindicato dos Funcionários Judiciais do
Tribunal Supremo.
Sirvo-me da presente para expor o seguinte:
No dia 13 de Outubro do ano corrente, recebi uma notificação de início
da abertura de um processo disciplinar contra mim por causa das
minhas publicações no Facebook, sendo que a mesma notificação me
convocava para ser ouvido no dia 17 de Outubro do ano corrente.
No dia em que eu seria ouvido, minutos antes da audição, a Sra.
Lourença Tatiana Octávio, minha companheira, transferida em Junho
de 2021 do Conselho Superior da Magistratura para a 12.ª Secção da
Comarca de Belas, recebeu, no mesmo dia 17, dia do interrogatório,
uma nova transferência para o Tribunal da Comarca do Icolo e Bengo
(11.ª Secção), sem a mínima e humana consideração de que é mãe de
filhos menores, num total desprezo pela desestruturação familiar que
esta transferência pode causar.
Será coincidência? É um mistério que facilmente os Senhores
Conselheiros poderão desvendar, entretanto a sabedoria popular apela:
“não se faz aos filhos dos outros o que não gostaria que se fizesse aos
seus”.
Sobre o processo disciplinar contra mim importa dizer que, eu sou,
desde 2016, professor de Ética e Deontologia Jurídica em algumas
universidades de Luanda e, no segundo semestre de 2020, em co-
autoria com os Drs. Paulo Tjipilica e Frederico Caniñguili, lancei e
publiquei o livro de Lições de Ética e Deontologia para as Profissões
Jurídicas - Magistrados, Provedor de Justiça, Advogados e Oficiais de
Justiça e, desde o lançamento do livro, tenho feito publicações na
minha página pessoal do Facebook das matérias que estão no livro,
expressando os deveres dos operadores do direito, condenando as más
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práticas, incentivando as boas práticas, porquanto sempre tive a firme
convicção de que o desenvolvimento do nosso país, Angola, passará pela
observância da ética, que a falta de ética é o principal problema do país
e de todos os angolanos.
Desde o lançamento daquele livro de Ética, assumi a causa de dar um
contributo vivo ao meu país sobre as matérias de Ética e Deontologia
Jurídica e estava consciente de que encontraria obstáculos, seria mal
compreendido, teria de trilhar caminhos pedregosos, sinuosos e
solitários, só não esperava que os obstáculos viriam da “minha própria
casa”, onde laboro, onde tenho doado os anos mais importantes da
minha vida, a minha juventude.
De entre as várias publicações que fiz, no uso normal da minha
liberdade de expressão ao abrigo do artigo 40.º da CRA, ficou ressaltada
na nota de acusação do processo disciplinar as seguintes:
1. “Quando o poder político leva para a cama o poder judicial o
resultado é excremento jurídico; quando o poder político paga para se
envolver com o jurídico isto é prostituição”.
No tocante a esta publicação, esclareci que é um pensamento que
consta no livro do qual sou autor principal, concretamente nas páginas
110 a 111, cuja origem principal está na expressão muito conhecida,
“quando a política entra no Tribunal, a justiça sai pela janela”. O
mesmo pensamento já partilhei na minha página do Facebook em 2021,
que numa linguagem poética adaptada para atender à comunicação
mais atractiva nas redes sociais apenas pretendi sublinhar a não
imiscuição do poder político no poder judicial e condenar o resultado
disto quando tal situação acontece. Ainda esclareci que são ideias
gerais e abstractas, não citam nomes de ninguém, nem de instituição
alguma; ademais, até porque não me apresento nas redes sociais como
funcionário do Tribunal Supremo, nem mesmo faço estas publicações
no exercício das minhas funções enquanto funcionário do Tribunal,
sublinho, que são publicações feitas na minha conta pessoal do
Facebook enquanto “missionário” da ética e da deontologia jurídica.
Venerandos!
Isto é crime? Isto é alguma novidade? Isto não é também o que a
Constituição da República e os Estatutos dos Magistrados defendem ou
condenam? Será que o legislador constitucional também falhou ao
enunciar isto? O errado não seria se eu publicasse ideias a promover a
corrupção? O legislador penal, ao prever no artigo 360.º do Código
Penal o crime de “Corrupção activa de magistrado e árbitro” ofendeu o
poder judicial? Será que os magistrados os são por serem perfeitos ou
são perfeitos por serem magistrados? Será que sobre os magistrados
nada se pode dizer, nada se pode mais pensar, nem comentar? Quem

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defende ideias sobre a ética e deontologia no poder judicial é criminoso,
viola um dever profissional?
2. “O maior perigo para o poder judicial/judiciário não são os conflitos a
dirimir, mas os infiltrados sob o disfarce de juízes e procuradores”.
Esta é outra publicação que consta no livro do qual sou autor principal,
propriamente na página 155. Esclareci que o sentido está claro: não
pode haver infiltrados no poder judicial, pois constitui o maior perigo
para a mesma faceta do poder do Estado. Na página 155 do livro
esclareço o que se entende por infiltrados.
Venerandos!
Isto é novidade? Pensar assim é errado? Não é bom quando um
Tribunal tem funcionários que pensam sobre a ética judiciária? Será
que pensar assim é errado ou está errado quem não quer que se pense
assim? As expressões “poder judicial”, juízes e procuradores são
pertença de alguém? Terei eu violado um dever profissional? Se sim
qual? Terei eu violado o segredo profissional, o segredo de justiça, o
dever de obediência, entre outros? Os Senhores Venerandos
Conselheiros melhor ajuizarão.
Durante a fase eleitoral, numa altura em que todo o país se debatia com
o tema eleitoral, mobilização ao voto, solicitação de todos a participação
constitucional na vida pública nos termos do artigo 52.º da CRA, entre
outros acontecimentos consabidos por todos. Também fiz diferentes
publicações a alertar para o melhor voto e a necessidade de sermos
verdadeiros actores para o bem e melhor futuro do nosso país, conforme
anexos.
3. “A realidade é difícil… “Assalto ao Poder”, grande filme, só não sabia
que teríamos de sair da ficção para a vida real e com realização em
Angola. A realidade é difícil… Os filmes são proféticos, a profecia do
filme a realizar-se em Angola”.
Esta é outra publicação feita por mim, no exercício do meu direito à
liberdade de expressão e de participação na vida pública. A pergunta
que fiz ao instrutor do processo e deixo-a aqui também é a seguinte: O
que esta publicação tem a ver com o poder judicial, meu Deus?
Será que tudo isso era, afinal, só para se chegar até aqui, visto que
também fiz comentários na época eleitoral em defesa da alternância
política, como também fiz outros comentários contra a oposição, como
constam nas publicações seguintes:
“Quando a ditadura e a oposição comem no mesmo prato, o resultado é
catastrófico: TIRANIA ATROZ em simulação democrática. Chega de
simulacros políticos. Uma terceira via é urgente, chamar-se-á
SOCIEDADE CIVIL.”

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“Quando um grupo ou um indivíduo é enganado uma vez, torna-se
vítima indiscutível. Quando é enganado duas vezes, é idiota. Quando é
engando três vezes, é um imbecil ao quadrado. Quando é enganado pela
quarta vez, em verdade é um colaborador secreto e simula ser enganado
para benefício próprio. Na quinta vez, passa a ser o enganador de quem
ainda acredita nele como sendo vítima. Por isso, quem ainda assim
acredita na vítima por simulação, passa ele a ser desde agora o
somatório de toda esta ignomínia.” (autoria de Domingos da Cruz).
É perceptível que talvez as publicações não tenham agradado algumas
sensibilidades, mas que eu, que sendo um técnico, usando a minha
página pessoal do Facebook, que terei violado deveres profissionais, não
será forçoso, não será demais? Então não é a própria Constituição da
República que fala do direito à liberdade de expressão, no seu artigo
40.º? Não é a Constituição da República que fala do direito à
participação do cidadão na vida pública, no seu artigo 52.º? Do direito à
liberdade de consciência e a objecção de consciência no seu artigo 41.º?
Será proibido pensar?
Numa plena demostração do animus puniendi e desequilíbrio na
balança, na nota de acusação o instrutor produziu várias
circunstâncias agravantes, mas omitiu completamente as atenuantes.
Se for para ser punido por defender a ética e deontologia jurídica,
“sofrerei feliz”, direi aos meus parentes que dependem de mim que este
sofrimento será por uma causa nobre e para o bem de todos; se for para
ser punido por causa da minha liberdade de consciência, de expressão,
e de opinião, direi aos meus dependentes que sofreremos sim, mas
“livres”, sofreremos para que não mais haja escravos em Angola, como
nos ensina Mahatma Ghandi “existem muitos homens presos a
andarem nas ruas, muitos homens livres nas prisões” - Devemos
preferir ser homens livres mesmo que punidos, a escravos mas sem
punição.
Se for pela causa da justiça e pelo país, posso ser mais um dos
mártires, pois como ensina Sócrates “é melhor sofrer uma injustiça do
que cometê-la”, porque, no final, ninguém se escapa da mais nobre
justiça, pois a justiça é como a ética que fugir dela é uma forma
diferente de irmos em sua direcção e cairmos em suas mãos. Não é
possível realizar justiça sem ética. Todos nós, um dia, seremos julgados,
podemos nos escapar da justiça dos homens, mas da justiça da
natureza e de Deus jamais nos escaparemos dela.
Senhor Venerando Presidente do Tribunal Supremo,
Venerandos Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo,

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Viva a Justiça!
Muito obrigado pela atenção dispensada.

Luanda, 25 de Outubro de 2022

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Domingos Fernando Feca

A remeter às seguintes entidades:


Exmo. Presidente da República
Exma. Presidente da Assembleia Nacional
Veneranda Juíza Presidente do Tribunal Constitucional
Digníssimo Procurador Geral da República
Exma. Provedora de Justiça
Presidentes das Bancadas Parlamentares dos Partidos Políticos
Autoridades Eclesiásticas

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