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Olavo de Carvalho
A mentira como sistema
Jornal da Tarde, 23 de novembro de 2000

Logo que me afastei do Partido Comunista, aos 22 anos, conservei uma visão do marxismo como
teoria errada, mas valiosa. Três décadas de estudos persuadiram-me de que ele é uma doutrina
não apenas falsa, mas mentirosa até à medula.
Marx mente nos seus pressupostos filosóficos, mente na sua apresentação da História, mente nas
suas teorias econômicas e mente nos dados estatísticos com que finge comprová-las. De sua obra
nada se aproveita, exceto o treino dialético que se ganha em duelar com um mentiroso astuto.
Perguntar se suas mentiras são propositais ou inconscientes – e nesta última hipótese tentar salvar
uma suposta “boa intenção” por trás da falsidade – é ignorar por completo as diferenças entre
consciência normal e sociopática.
Karl Marx foi com toda a evidência um sociopata, uma alma na qual a nebulosa mistura de verdade
e falsidade era um traço permanente, uma compulsão irresistível, não se aplicando a esse caso a
distinção entre a reta intenção da vontade e as falhas involuntárias da inteligência, com que
explicamos os erros dos homens normais.
É impossível não perceber algo dessa mistura já em Hegel, seu antecessor e, de certo modo,
mestre. Toda a filosofia de Hegel funda-se na premissa de que “o Ser, sem suas determinações, é
idêntico ao Nada”, uma afirmação à qual ele confere validade objetiva absoluta embora sabendo
que ela só tem significado quando referida não ao Ser e sim apenas ao conhecimento que temos
dele, e que ampliada para fora desse domínio é uma sentença totalmente desprovida de
significado. Digo “embora sabendo” porque é impossível que um homem dotado da destreza lógica
de Hegel não percebesse, nessa pedra fundamental da sua doutrina, a rachadura lógica entre uma
meia-verdade e um “flatus vocis”. Mas Hegel, firmemente decidido a construir um sistema
universal, não se deteve ante o que, aos olhos de sua ambição, pareceu um detalhe desprezível.
Seguiu em frente, misturando em doses cada vez mais complexas as meias-verdades às meias
mentiras à medida que a construção se avolumava.
Marx partiu dessa monstruosa falsificação teorética para erigir, em cima dela, a falsificação da
existência real, a ação historicamente falseada de milhões de seres humanos que consagraram suas
próprias vidas e sacrificaram milhões de vidas alheias no altar da mentira sistematizada.
Como foi possível que chegasse a recrutar tantos discípulos, a agitar tão vastas forças sociais e
políticas, a desfigurar a face do mundo a ponto de torná-lo indistingüível do inferno?
O sociopata, como o esquizofrênico, é uma alma dividida, mas dividida de tal modo que as partes
separadas, sem jamais juntar-se num confronto consciente, concorrem para uma meta comum
determinada pela vontade, o que o torna notavelmente capacitado para a ação – ao contrário do
esquizofrênico – na mesma medida em que incapacitado para o julgamento moral de si próprio.
Enquanto na psique normal a base da ação eficaz é a coerência entre consciência cognitiva e
vontade, no sociopata é a separação delas que produz aquela desenvoltura, aquela liberdade, que
lhe permite agir eficazmente onde o homem são seria detido por escrúpulos de consciência. A
força de vontade, no sociopata, não reflete a firmeza de uma convicção madura e consciente, mas
a inescrupulosidade de um desejo avassalador que vence todas as hesitações sufocando a voz da
consciência quando esta lhe cobra os direitos da verdade ou simplesmente lhe relembra a
fragilidade da condição humana. A força do homem são está na unidade da sua alma; a do
sociopata, na impossibilidade de unificar-se, que o leva a espalhar a dubiedade e a confusão por
onde passe. A primeira é idêntica à “simplicidade” bíblica; a segunda, à complexidade irremediável
de uma ruptura interna que se automultiplica indefinidamente. A primeira reflete o “sim, sim –
não, não” do mandamento de Jesus; a segunda é a voz do “bilingüis maledictus”, o homem de
língua bífida incapaz de dizer sem desdizer.
Daí a diferença entre a dialética clássica, de Sócrates e Aristóteles, e a dialética moderna de Hegel e
Marx. A primeira era a arte de reduzir as contradições à unidade; a segunda, a técnica de fazê-las
proliferar até que não possam mais ser abrangidas na unidade de uma visão intelectual e
extravasem para a vida ativa, semeando o ódio e a guerra sem fim. A primeira supera as
contradições da “práxis” na unidade superior da consciência contemplativa; a segunda alastra para
o reino da “práxis” o ódio a si mesmo que atormenta o intelecto incapaz de repouso
contemplativo.

Se…
Jornal da Tarde, 27 de novembro de 1998

Peço ao leitor que examine com atenção o seguinte parágrafo (grifos meus):
“Na Faculdade de Direito ensinaram-me que o profissional capaz era aquele que mais conhecia a
lei. No exercício da advocacia percebi que não bastava o conhecimento do direito positivo,
necessário era saber o que pensavam os juízes, qual o caminho da jurisprudência. Ao assumir a
magistratura, quando não tinha mais a responsabilidade ética de pedir bem, mas sim de decidir,
descobri, em meio a angústia e sofrimento, que saber da lei e da jurisprudência não era suficiente.
Os dispositivos legais, ao serem aplicados, com freqüência resultavam em decisões injustas. A
jurisprudência, por comprometida com situações concretizadas, nem sempre chegava ao justo.”
Agora veja:
Se um jovem advogado confessa que, nos seus anos de estudo, nunca percebeu a importância da
jurisprudência e sempre imaginou que a lei escrita bastasse para resolver todos os problemas num
tribunal, temos de concluir que esse estudante relapso jamais abriu um livro de introdução à
ciência do direito, pois não há um só deles que não o advertisse da enormidade de seu erro,
inadmissível não apenas num estudante de letras jurídicas, mas em qualquer cidadão leigo
medianamente culto.
Se, não contente de alardear tanta inépcia, o infeliz ainda acrescenta que, durante anos de prática
profissional, continuou imaginando que a lei e a jurisprudência juntas perfizessem a encarnação
mesma da idéia do justo, só tardiamente descobrindo que não, aí não apenas compreendemos que
esse advogado jamais consultou uma só obra de filosofia do direito, já que praticamente todas
começam pela discussão das relações problemáticas entre direito e justiça, mas também somos
forçados a admitir que, independentemente de sua catastrófica privação de leituras, esse indivíduo
é um idiota por natureza, já que a distinção entre o ideal e a prática é coisa de apreensão intuitiva
que não requer estudos especiais.
Se, ademais, quem faz essas declarações não as apresenta como o simples mea culpa de um
relapso arrependido, mas antes as trombeteia orgulhosamente como uma descoberta inédita e
fundamental para o mundo, vendo nelas uma crítica arrasadora ao sistema jurídico e não à sua
própria burrice pessoal, não podemos concluir daí senão que estamos diante de um caso
patológico de ignorância pretensiosa que beira os limites da insanidade.
Mas, se descobrimos em seguida que o depoente não é um simples advogadinho de porta de
xadrez e sim um juiz concursado e togado, aí à nossa reação de espanto ante sua anomalia
individual se soma um sentimento de angústia e preocupação quanto ao sistema Judiciário inteiro,
que, afetado de uma falha grave em seu processo de seleção, permitiu que as altas
responsabilidades da magistratura fossem entregues às mãos de semelhante cretino.
Se, para ir ainda mais longe no território do absurdo, o magistrado em questão não é apenas
magistrado, mas também professor de direito, nossa angústia ante o estado presente do sistema
Judiciário se converte em temor maior ainda quanto ao seu estado futuro, tendo em vista a
ameaça de propagar-se entre os magistrados em formação um tão pernicioso exemplo,
sacramentado pela aprovação oficial e conjunta das autoridades judiciárias e pedagógicas.
E, por último, se constatamos que esse professor de ignorância não é apenas um obscuro juiz de
comarca do interior, docente de uma faculdade de fundo de quintal, mas sim juiz de um Tribunal
de Alçada e professor de uma prestigiosa Escola de Magistratura, e que em vez de ser objeto de
chacota e desprezo na roda de seus colegas ele é seriamente tido na conta de uma autoridade
intelectual e de um maître à penser habilitado a remoldar todo o pensamento jurídico nacional,
então, meus filhos, é a derrocada final, tudo está perdido e já não há mais nada a fazer por este
país insano, sendo até mesmo inútil prosseguir escrevendo o presente artigo.
Encerro-o, portanto, declarando que o trecho citado se encontra na abertura do livro Magistério e
Direito Alternativo , de autoria de S. Exa. o dr. Amílton Bueno de Carvalho, juiz do Tribunal de
Alçada do Rio Grande do Sul, professor da Escola Superior da Magistratura do mesmo Estado e, last
but not least, o principal mentor da nova escola do “direito alternativo”.

Ralé de toga
Jornal da Tarde, 6 de agosto de 1998

Embora não seja estrita verdade o que pretendia Karl Marx, que a condição social dos homens
determine a sua consciência, ela o faz às vezes, e no mínimo é imprudente esquecer que ela pode
impor severos obstáculos ao conhecimento. É característico dos modernos acadêmicos precaver-se
contra esse erro no estudo de todos os assuntos humanos, salvo no deles mesmos. Se há um tema
raro nas investigações acadêmicas, é o das relações entre a estrutura do poder universitário e as
idéias dominantes entre estudantes e professores.
Mas é claro que a organização social e econômica do trabalho intelectual molda em parte a
temática e os pressupostos da investigação e do debate, e não é possível que um tipo qualquer de
organização – seja dos letrados chineses, seja a do clero medieval, seja a da moderna burocracia
acadêmica – deixe a mente totalmente livre de entraves para enxergar a verdade tal e qual. Por
isso é da mais alta conveniência que, numa mesma época, coexistam várias modalidades de
esforço intelectual, somando, por exemplo, ao trabalho coletivo das academias as contribuições
de free lancers e outsiders . Afastar ou menosprezar estes últimos trará a consagração da
organização acadêmica como o único canal permitido de atividade intelectual – e, quanto mais
homogênea a classe pensante, mais hão de proliferar nela os erros consagrados em dogmas.
Por isso mesmo jamais me atraiu a profissão universitária, inadequada a uma vocação pessoal
demasiado sui generis . O primeiro assunto que me interessou nesta vida foram as religiões
comparadas, das quais não havia curso universitário no Brasil e ainda são anêmicos entre nós. Foi a
necessidade de esclarecer certos problemas de teologia mística – islâmica, para tornar a coisa
ainda mais exótica – que me levou aos estudos filosóficos; e a busca de uma precisa diferenciação
entre o discurso da mística, o da poesia, o da filosofia, etc. foi que me pôs na pista da “teoria dos
quatro discursos” ( Aristóteles em Nova Perspectiva , Rio, Topbooks, 1997), a qual, se tem algum
valor filosófico independente, não é para mim senão etapa de um percurso que começa e termina
na vida interior. Como poderia eu adequar esse trajeto às exigências de programas e chefetes, é
coisa que escapa à minha imaginação.
Tão alheias são essas questões ao nosso mundinho universitário que ninguém, absolutamente
ninguém na universidade brasileira, se deu o trabalho de discutir minhas teses, e, se alguém aí quis
dizer algo a respeito, foi para dar o show de inépcia daquele parecerista da SBPC que escrevia
“inverossímel”, com “e”, e confundia Santo Alberto Magno com São Gregório Magno. Várias vezes
observei que todo o nosso primeiro escalão acadêmico reunido não teria força para empreender
uma discussão séria do meu livrinho – e ao dizer isso não estava sendo nada hiperbólico, mas
fazendo uma descrição precisa de um estado de coisas alarmante.
Para complicar, a teoria dos discursos incluía estudos de argumentação e persuasão, que depois
apliquei ao exame de mil e um debates da atualidade, em artigos de imprensa cuja ligação íntima
com um trabalho filosófico nem todos os leitores perceberam, ainda que eu a declarasse no
prólogo a Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão (Topbooks, 1998). E jamais a burrice
acadêmica se desmascarou tanto quanto nas suas reações a esses artigos. Quando um posudo
acadêmico, apanhado em flagrante delito de vigarice intelectual, reage com insultos ou
insinuaçõezinhas, sem sequer se dar conta de que não foi vítima senão da aplicação rigorosa de
distinções lógicas que ele teria a obrigação de conhecer e praticar, isso só denuncia, mais
enfaticamente ainda, a situação calamitosa de um ensino universitário no qual faltam menos
verbas do que quem as mereça.
Nessas condições, a entrada em cena de um trabalhador intelectual autônomo, simpático ou
antipático não vem ao caso, mas capaz de renovar uma certa ordem de estudos longamente
abandonada neste país, deveria ter sido saudada como uma ajuda providencial, o que não se deu
porque a nossa casta universitária não tem, para tanto, nem o necessário amor ao conhecimento,
nem suficiente desapego a vaidades corporativas.
Mas não é só com os de fora que o meio acadêmico tem má vontade. Quando se vê, de um lado, a
indolência com que esse círculo adiou até agora um exame do pensamento urgente e revigorante
do professor Roberto Mangabeira Unger, e, de outro, o entusiasmo indecente com que estudantes
açulados por professores da UFRJ se apressam em agredir com gritos e pancadas um reitor que não
veio ao seu gosto – então se percebe a miséria de uma casta tão empenhada em fugir do seu dever
quanto em mandar no que não é da sua alçada.
É a essa gente arrogante e burra, a essa ralé togada que vamos entregar o futuro da inteligência no
Brasil?

Zenão e o paralítico
O Globo, 20 de janeiro de 2001

Quando digo que a queda do nível de consciência das nossas classes falantes já atingiu a faixa do
calamitoso, não estou exagerando nem brincando. Acompanho com regularidade os debates
políticos, leio as principais publicações culturais, recebo diariamente dezenas de e-mails de
universitários que levantam discussões sobre mil e um assuntos: tenho uma boa amostragem do
que se passa. Seis anos atrás ainda era possível documentar, através de exemplos selecionados,
como o fiz nos dois volumes de “O imbecil coletivo”, a veloz ascensão da estupidez na
intelectualidade nacional. Hoje quem tentasse coleta similar seria esmagado sob a massa de
documentos. Mas esse estado de coisas não deixa de ter suas vantagens. A maior delas é que, pelo
acúmulo de material, a confusão inicial dos dados cede lugar ao desenho nítido de algumas
constantes: o conjunto de cacoetes e incompetências que hoje caracteriza a forma mentis do
opinador nacional típico já pode ser descrito em poucas linhas.
A primeira característica é a absoluta incapacidade de distinguir entre um conceito e uma figura de
linguagem. Quando temos um sentimento difuso a respeito de algo que não compreendemos bem,
experimentamos naturalmente a dificuldade de expressá-lo. Uma figura de linguagem, apelando a
semelhanças sugestivas, ajuda-nos a vencer a dificuldade. Saímos de um nebuloso isolamento e
penetramos na corrente da conversação pública. A decorrente sensação de ter emergido das trevas
para a luz é porém totalmente ilusória: maior domínio da expressão não significa melhor
conhecimento do objeto do qual se fala, ingresso na tagarelice coletiva não significa contato com a
realidade. Quase todo debatedor público neste país, quando consegue domar sua dificuldade de
expressão, sente ter dito algo de “objetivo”, talvez até mesmo de evidente e autoprobante, quando
na verdade apenas objetivou sua subjetividade. Quanto mais árduo o desafio expressivo, mais a
vitória é enganosa. A libertação das brumas interiores, a capacidade de exprimir o que sentimos é,
decerto, um pressuposto do conhecimento objetivo, mas ainda está muito longe de alcançá-lo. No
Brasil ela tende antes a substituí-lo. A confusão entre falar e conhecer é uma regra estabelecida
dos debates nacionais.
Nessas condições, qualquer pretensão de “conceito”, quando chega a despontar, se esgota em
mera definição nominal. O processo de exame pelo qual o investigador, fazendo a crítica de suas
figuras de linguagem, acaba apreendendo algo da coisa real por entre as frestas do que ele próprio
disse dela, parece ser totalmente desconhecido nesta parte do mundo. A expressão figurada e
aproximativa, em vez de ser apenas o começo do processo de investigação, é o término dele: o
sujeito mal acabou de enunciar um vago problema, e crê já ter em mãos uma conclusão líquida e
certa.
Eu não diria, no entanto, que essa inépcia nasce da excessiva afeição às palavras, erroneamente
assinalada como traço da nossa cultura por observadores estrangeiros como James Bryce
e Hermann Keyserling. O que nos faz tomar as palavras por coisas não é o amor às primeiras, mas a
dificuldade de, por meio delas, chegar às segundas. Pesquisas de antropologia empresarial
mostraram que nossa população é insensível à palavra escrita, necessitando do apoio dos gestos e
sons para que a mensagem atinja a consciência. Mas essa dependência da presença física do
emissor assinala também uma dificuldade de saltar sobre a situação concreta do diálogo e
apreender diretamente as coisas e relações mencionadas. O que se capta nesse tipo de
comunicação é menos algo a respeito da realidade externa do que as intenções e sentimentos do
falante. O brasileiro inclina-se a apreender antes “o que querem dele” do que o quid da coisa da
qual se fala. Diga você o que disser, sobre não importa o que, e ele ouvirá uma ordem, um pedido,
um apelo, um estímulo, uma proibição. É natural que, ouvindo assim, também fale assim, isto é,
que, numa situação que exige descrever fatos e seres, ele se atenha a expressar o que sente, sem
notar sequer a diferença entre uma coisa e outra. Sua fala será então respondida na mesma clave,
e assim por diante indefinidamente, numa espécie de solipsismo coletivo no qual as almas, quanto
mais se abrem umas às outras, mais se fecham na sua ilusão subjetivista.
Daí a compulsiva necessidade de “tomar posição” antes e independentemente de conhecer as
coisas em questão, bem como a impossibilidade de ouvir uma argumentação ou prova senão como
expressão mais elaborada de uma “tomada de posição” subjetiva. No Brasil não se discutem idéias,
teorias, visões da realidade: discutem-se “posições” – atitudes, preferências, gostos e antipatias. Se
é verdade o que dizia Henry James, que “os senhores falam de coisas; os escravos, de pessoas”,
então somos, indiscutivelmente, uma nação de escravos.
É evidente que, não alcançado o nível do pensamento conceptual, mais impossível ainda fica
provar o que quer que seja. Daí a segunda característica do debatedor brasileiro hoje em dia: a
completa ignorância do que seja uma prova ou demonstração, na verdade uma total inconsciência
da necessidade de provas. Em vez da prova, temos a reiteração enfática ou o apelo a novas figuras
de linguagem, que, pela sua carga sentimental, bastem para estabelecer uma sintonia entre os
sentimentos do ouvinte e os da platéia, sem nem de longe tocar nos objetos em questão. E o
sujeito que fez isso sai persuadido de que disse alguma coisa do mundo real.
Curiosamente, indivíduos que ignoram tudo dos critérios de prova em filosofia ou ciência estão
bem atualizados com as limitações desses critérios, assinaladas por autores em voga. Em resultado,
a limitação se torna um substitutivo do critério mesmo e é por sua vez absolutizada, com grande
reconforto para o presunçoso ignorante que, justamente por nada ter provado, acredita estar no
cume da evolução epistemológica – como um paralítico que, ao ter notícia dos argumentos de
Zenão sobre a impossibilidade do movimento, se sentisse superior às pessoas capazes de andar.
PS – Após acusar-me de um crime que não cometi e mostrar-se indignado de que eu tivesse o
desplante de achar isso ruim, o sr. Marcio Moreira Alves anuncia agora que vai abandonar o ringue
para não ter de se rebaixar ao nível da minha pessoa. Sapientíssima decisão. Ele que fique lá em
cima, no seu “grand monde” de comunistas chiques, e não desça mais ao humilde porãozinho que,
em paz com Deus, habito. Se descer, vai apanhar de novo.
Já o tal de Betto, que de maneira mais ou menos vaga e implícita parece ter endossado as
acusações do sr. Moreira, não requer uma resposta em separado, porque, tendo ido essas
acusações para o ralo da completa desmoralização, com elas há de ir automaticamente, sem deixar
saudades, quem quer que as tenha subscrito.

O leitor precavido
Época, 13 de janeiro de 2001

É aquele que desconfia que suas objeções já ocorreram ao autor – e já estão respondidas
A precaução mais elementar, ao ler os escritos de um filósofo, é lembrar que nossas objeções mais
imediatas já devem ter-lhe ocorrido e podem estar respondidas, ao menos de maneira implícita, em
alguma outra parte de sua obra. Um filósofo é, afinal, um especialista em unidade: raramente ele
enunciará alguma proposição solta, sem raiz em princípios gerais e sem uma rede de conexões com
a totalidade de suas idéias. Um bom leitor de filosofia não se perde na discussão de detalhes isolados,
mas, guiado por um instinto de coerência que já o torna um pouco filósofo, busca por trás de tudo
os princípios e fundamentos. Só as objeções desse leitor contam para o filósofo. As demais são
irrelevantes como tiros de espoleta, e ele só as responderá por polidez. Pela mesma razão, o filósofo
que publique artigos na imprensa tem o direito de supor que seus leitores, sabendo da existência de
uma filosofia por trás de cada opinião isolada, terão o bom senso de refrear suas objeções mais
afoitas até captar melhor a posição dela no conjunto. Pois, para um filósofo, nenhum assunto, por
efêmero e casual que pareça, é solto e independente: cada um remete ao centro desde o qual tudo
– ou nada – se explica.
Se o leitor brasileiro não está habituado a essa precaução, é por um motivo muito simples: em geral
os indivíduos autorizados pelo Estado a representar em público o papel de “filósofos” não são
filósofos de maneira alguma, apenas professores e divulgadores, que não têm nem o dever nem a
competência do olhar filosófico. Tanto isso é assim que, quando aparece algum filósofo de verdade,
um Mário Ferreira dos Santos, um Vilém Flusser, alguém enfim capaz de pensar desde os
fundamentos, a primeira coisa que fazem é considerá-lo um estraga-prazeres e abster-se
religiosamente de prestar atenção ao que ele diz.
Diante do que escrevem esses professores, não é preciso aquela precaução, porque eles não têm um
quadro próprio de referência que deva ser conhecido: suas falas se recortam diretamente sobre o
fundo comum das conversações públicas do dia e podem ser compreendidas pelo simples cotejo com
ideologias, modas ou programas partidários. Mas tentar esse enfoque ante as opiniões de um
filósofo é cortar as próprias pernas, impedindo-se de chegar a conclusões ou objeções relevantes.
É verdade que filósofos – Gabriel Marcel, Benedetto Croce, Ortega y Gasset – escreveram artigos de
jornal, mas nenhum deles logrou a proeza – ou teve a pretensão – de fazer de algum desses artigos
uma peça autônoma, destacável do fundo de seu pensamento e passível de ser julgada por si.
Autonomia é para romances, contos, poemas. Em filosofia, toda expressão é provisória e requer o
acúmulo praticamente interminável de esclarecimentos. Mas ao público brasileiro de hoje falta algo
mais que a consciência disso. Falta o sentido mesmo da ligação orgânica entre as asserções e os
argumentos que as embasam. Em filosofia – e tudo o que um filósofo escreve é expressão de sua
filosofia –, nenhuma proposição significa nada quando considerada independentemente das razões
que a ela conduzem. Nas discussões vulgares, ao contrário, cada afirmação vale por si; os argumentos
podem torná-la mais aceitável, mas nada lhe acrescentam: sobra-lhes apenas a função de floreados
enfáticos, destinados a sublinhar e colorir uma decisão tomada antes e independentemente deles.
As idéias em circulação reduzem-se assim a meia dúzia de enunciados gerais simples, fórmulas
estereotípicas em torno das quais não há mais discussão além da estritamente necessária para
produzir, no mais breve prazo possível, um ardoroso “pró” ou um indignado “contra”.

Os que não pensam


Época, 9 de dezembro de 2000

O sujeito pensa que disse, mas não disse nada


Não posso deixar de aplaudir a sugestão do ministro Weffort de que o grego e o latim devem voltar
a nossas escolas. A sugestão, é claro, parecerá odiosa aos cretinos que imaginam que a cultura é
um instrumento que você compra para fazer com ela o que quiser, e com base nessa premissa
alegam que as línguas clássicas “não servem para nada”. É característico do semiletrado não
compreender a cultura senão como utensílio ou como adorno, sem enxergar que ela não existe
para nós fazermos alguma coisa com ela, mas para ela fazer algo conosco: para nos construir e nos
fortalecer enquanto seres capazes de consciência.
Nada no repertório dos conhecimentos humanos tem esse poder educativo como os estudos
clássicos. Uma boa injeção de gramática latina e filosofia grega, na juventude, nos torna imunes, na
idade madura, à infinidade de estupefacientes culturais que hoje danam as melhores inteligências.
Não digo que esse remédio, sozinho, possa deter a alucinante precipitação da inteligência nacional
ladeira abaixo. Mas pode melhorar a compreensão da linguagem, que hoje raia, nas elites, o
analfabetismo funcional.
Arrastados no declínio da fala geral, mesmo os homens mais preparados acabam por perder de
todo a compreensão do que lêem e mesmo do que dizem.
Tomo como exemplo a declaração do deputado José Genoíno: “Há dois documentos da Igreja que
prezo muito e coloco no mesmo patamar do Manifesto Comunista: Os Dez Mandamentos e O
Sermão da Montanha”.
Se Os Dez Mandamentos põem Deus acima de todas as coisas, o homem que diz amá-los tanto
quanto a uma filosofia que professa expulsar Deus dos céus está, no ato, declarando que para ele o
culto a Deus e o ódio a Deus valem exatamente o mesmo. Obviamente pode-se desprezar por igual
essas duas coisas, ou amá-las em sentido desigual, mas jamais amá-las por igual. Isso decorre da
simples apreensão do sentido do enunciado, e é esta apreensão que na declaração do deputado
falha por completo.
Considerados na mesma clave de sentido, Os Dez Mandamentos e o Manifesto Comunista nunca
têm valores idênticos. Se um diz a verdade, o outro mente.
Não há terceira alternativa. Nem Genoíno nem qualquer outro ser humano pode amá-los “no
mesmo patamar” sem, no ato, declarar guerra àquilo que diz. Se ele afirmasse que seu coração
oscila entre dois pólos, ou então que ama os dois textos em planos diversos, ou que nenhum deles
lhe diz nada exceto como documento histórico, tudo estaria bem. Ao expor como emblema
convencional da harmonia dos contrários algo que, de fato, é a mútua hostilidade dos
incompatíveis, ele cai no tipo de linguagem auto-hipnótica que hoje domina nossos debates
públicos, uma linguagem que, em vez de despertar a consciência, a entorpece.
Quando tentei explicar isso a uma platéia que não era de iletrados nem de estudantes, mas de
juízes de Direito, alguns me objetaram que eu estava exigindo rigor lógico de uma frase que
deveria ser compreendida em sentido poético ou plurissenso; e tive a maior dificuldade para
explicar à platéia a diferença entre a multiplicidade de sentidos da fala poética e a ausência de
sentido de uma afirmação que se eletrocuta a si mesma. Pois para compreender isso é preciso
captar a diferença entre uma mera contradição lógico-formal (já que uma verdade pode ser
perfeitamente expressa em termos contraditórios) e a contradição efetiva, real, entre dois atos
interiores que não podem coexistir exceto como erro de auto-interpretação do falante, isto é,
como sinal de que ele, rigorosamente, não sabe o que diz.

Esclarecimento não de todo inútil


O Globo, 16 de março de 2002

Um filósofo, se o é de verdade, tem o direito de exigir que suas declarações sobre qualquer assunto
menor sejam interpretadas à luz de suas próprias concepções mais gerais e fundamentais e não a
partir de semelhanças ou diferenças fortuitas com opiniões de outras pessoas. Esse direito se torna
ainda mais irrecusável se tais opiniões, por dignas e honradas que sejam no seu domínio próprio, são
emitidas desde o ponto de vista de interesses imediatos alheios à única preocupação filosófica
essencial, que é a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa.
Os interesses imediatos, a contrapelo da exigência filosófica de unidade, com freqüência levam a
alma a esfarelar-se em compromissos dispersantes e no desempenho de papéis mutuamente
incoerentes, até o limite em que um homem, no auge de seu aparente poder de ação no mundo, já
não é capaz de discernir sua própria voz entre a multiplicidade dos discursos com que improvisa
adaptações sem fim às cobranças circundantes.
Esse é em geral o destino dos políticos, que acabam tendo de se apegar à sua imagem pública como
a um derradeiro Ersatz de sua substância humana, desbaratada numa sucessão alucinante de
sorrisos forçados e respostas fingidas.
Respeito, de longe, os homens que em nome do interesse público se entregam a esse sacrifício do
que há de mais precioso em suas almas. Mas jamais desejaria ser um deles e não posso deixar de
considerar que, como forma de vida, a sua é incomparavelmente inferior àquela que escolhi, por
mais relevantes que sejam os motivos que os induziram a tanto e por deleitáveis que lhes pareçam
os prêmios que esperam obter de semelhante aposta.
Para um filósofo, se o é por devoção sincera e não por simples ofício acadêmico (que é uma forma
de existência política e nada mais), não há coisa da qual ele mais deseje estar próximo, sem se afastar
dela um só instante, do que a sua própria voz interior, o verbum mentis , no qual ele se reconhece
como autoconsciência responsável e que é, de fato, o único elo que liga seu pensamento à sua
própria realidade, portanto a todas as demais realidades. Todo conhecimento da realidade obedece,
com efeito, a esta lei de ferro, segundo a qual quem conhece com a periferia do seu ser só conhece
perifericamente, e só quem se instala no centro do seu próprio coração pode enxergar o centro do
que quer que seja. Mesmo um pensamento sobre assunto nominalmente filosófico, se não é pensado
desde esse núcleo vivo da responsabilidade existencial e cognitiva, não é filosófico de maneira
alguma, mas apenas, na melhor das hipóteses, uma imitação bem feita de discurso filosófico. Incluo
nesta categoria, sem hesitação, tudo o que tenho lido da produção de nossos filosofantes desde o
dia em que o saudoso Vilém Flusser, cansado de um diálogo impossível com filósofos de plástico, foi
embora do Brasil para ser filósofo alemão na Alemanha.
É que, hoje em dia, a filosofia acadêmica relegou o autoconhecimento do homem concreto às
divisões especializadas de psicoterapia e auto-ajuda, reduzindo a atividade filosófica ao seu
arremedo exterior, isto é, ao diálogo entre papéis sociais no recinto de um teatro cuidadosamente
montado para excluir toda voz humana real. Caprichar no desempenho desses papéis, assimilando
bem os trejeitos corporais e cacoetes de linguagem que fazem um sujeito parecer filósofo aos olhos
de quem jamais viu um filósofo, eis em que consiste o ensino atual de filosofia, uma atividade
desesperadora cujos praticantes, para se consolar de sua absoluta insubstancialidade, têm de
alimentar a ilusão de representar papéis politicamente relevantes para os destinos do país.
Não é preciso dizer quanto essa forma de existência triste e irônica é a última que eu poderia desejar
para mim mesmo e quanto me esforcei para me manter o mais longe dele e o mais próximo do meu
próprio verbum mentis , sem o que, aliás, não teria sido possível escrever nada do que escrevi,
lecionar nada do que lecionei.
Por isso não pude deixar de ficar consternado quando alguns leitores interpretaram meu artigo da
semana passada como expressão de “apoio” à candidatura Roseana Sarney. Nada tenho contra D.
Roseana, mas também nada a favor; e, se tivesse a favor, muito estranho seria que esperasse para
manifestá-lo só após o sepultamento da sua candidatura. Posso assegurar — embora a explicação
acima já o torne desnecessário — que nada está mais distante de minhas preocupações do que
tomadas de posição eleitorais. Uma campanha eleitoral, no Brasil de hoje, é apenas um gigantesco
esforço de causar boa impressão, e rigorosamente nada de substancial pode ser discutido desde o
ponto de vista de um interesse tão epidérmico, por mais que a irritação histérica do ambiente force
para o epidérmico parecer profundo. O Brasil entrou num processo acelerado e desastroso de
declínio da consciência, do qual a atual campanha presidencial é apenas um sintoma, não tendo o
menor sentido esperar que o sintoma tenha o poder mágico de suprimir sua própria causa. É verdade
que esse declínio reflete, por sua vez, o desmoronamento revolucionário da cultura e da sociedade
sob os golpes da demolição gramsciana (cuja existência algum literato de plantão pode até mesmo
tentar ocultar à força de piadinhas, seja por inépcia de percebê-la, seja por interesse de mantê-la
discreta). Mas também é certo que nenhum resultado eleitoral poderá reverter esse processo,
principalmente se esse resultado consistir na eleição de D. Roseana, uma candidata que,
partidariamente oposta às forças que o geraram, lhes é no entanto totalmente subserviente desde
o ponto de vista moral, intelectual e ideológico e talvez nem sequer tenha se dado conta disso.
O horizonte intelectual inteiro das nossas classes falantes está circunscrito e delimitado pelo novo
“senso comum” fabricado pela intelectualidade esquerdista desde os anos 60. Mesmo aqueles que
se crêem direitistas — ou antes, aqueles a quem a própria esquerda designou esse papel hoje tão
indesejado — mal conseguem pensar e se expressar senão nos termos que lhes são ditados pelo
adversário. Chegamos ao cúmulo de ter um presidente que reveste o rótulo “neoliberal” como uma
camisa de força, sem ser capaz de enunciar uma só idéia liberal sem ser no código estereotipado que
a própria esquerda forjou para uso interno nos seus exercícios escolares de autodoutrinação
antiliberal.
Em política, a hegemonia das idéias, dos símbolos e do vocabulário em circulação corresponde ao
que é, na arte militar, o domínio do espaço aéreo. Uma eleição, nessa hora, tem a importância
estratégica de uma briga de bar no meio de um bombardeio. Tenho pois o direito de me sentir
ofendido quando alguém supõe que raciocino desde alguma tomada de posição eleitoral, pois
considero esse tipo de raciocínio uma ocupação boa para estrategistas de botequim.

Rompendo o hábito
Época, 11 de agosto de 2001

Pedindo licença ao leitor, respondo ao doutor Lejeune


Não tenho nesta coluna o hábito da tréplica, mas o doutor Lejeune Mato Grosso é irresistível.
Raros doutores ilustraram tão literalmente meus argumentos no esforço mesmo de contestá-los.
Em meu artigo “Filósofos a granel” afirmei que os mentores da campanha pela adoção da filosofia
e da sociologia no curso médio não estão habilitados a ensinar filosofia nenhuma e sociologia
nenhuma, mas apenas a dar esses nomes à mistura de demagogia revolucionária e slogans da
moda, que, com dinheiro público, querem incutir em nossas crianças para torná-las uma fácil
massa de manobra. Nada disse, portanto, contra aquelas disciplinas em si (e seria o cúmulo que o
fizesse, sendo eu mesmo professor de uma delas), mas contra a filosofia e a sociologia dos
Lejeunes, que, autorizados a ensinar o que não sabem, ensinarão o que sabem: não filosofia, nem
sociologia, mas luta de classes e chavões politicamente corretos. Tanto que os próceres da
campanha, num agilíssimo golpe de jiu-jítsu parlamentar, se esquivam a qualquer debate prévio
sobre o conteúdo das disciplinas a ser ensinadas: querem primeiro obter o acesso à platéia infantil,
rapidamente e sem muita discussão, para poder lhe transmitir o que bem entendam sem dar
satisfações à opinião pública.
O doutor Lejeune respondeu com uma apologia da filosofia e da sociologia enquanto tais, abstrata
e genericamente, sem nem de longe tocar em meus argumentos contra a sua filosofia e a sua
sociologia, as únicas contra as quais eu havia falado. No tratado de Schopenhauer sobre os truques
da erística, a falsa dialética dos charlatães e demagogos, que publiquei em edição comentada sob o
título Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão (Topbooks, 1997), isso corresponde
rigorosamente ao estratagema número 19, fuga do específico para o geral: “Se o adversário solicita
alguma objeção contra um ponto concreto da sua tese, mas não encontramos nada apropriado,
devemos enfocar o aspecto geral do tema e atacá-lo assim”. O artigo do professor Lejeune ilustra,
melhor do que eu poderia fazê-lo, o tipo de formação filosófica que ele e seus correligionários
pretendem dar a nossas crianças. Ele diz que é melhor ensinar uma filosofia ruim do que nenhuma.
Mas a filosofia não é um tomate, que, estragado, continua tomate. Uma filosofia estragada não é
mais filosofia: é o tipo de pensamento falso e oportunista do qual a filosofia, precisamente, veio
nos libertar. Ensiná-lo com o nome de filosofia é o mesmo que chamar de medicina a falta de
saúde.
Quanto à qualidade da formação que tem em vista, ele a ilustra ainda mais claramente com o
exemplo histórico a que recorre para dar a este debate a aparência postiça de um confronto entre
progressismo e obscurantismo: “Na Idade Média, o saber só poderia ser apropriado por filhos dos
nobres e ainda assim isso ocorria apenas em mosteiros e abadias”. A Idade Média do professor
Lejeune é a de quem aprendeu História nos filmes de Conan, o Bárbaro. Nobres e filhos de nobres,
nessa época, simplesmente não estudavam. O clero, classe instruída composta de pessoas de todas
as origens sociais, tinha um mínimo de aristocratas. E as escolas não ficavam em “mosteiros e
abadias” (valha-me Deus! Já pensaram a meninada invadindo esses centros de recolhimento e
meditação?), e sim nas catedrais e paróquias. Qualquer história da educação explica isso, mas o
homem que quer “fazer uma revolução” na educação nacional não leu nenhuma.
Se o professor Lejeune se limitasse a ser inculto sozinho, seria problema exclusivo dele. Mas a
incultura do líder reflete a dos liderados. É um fenômeno social, e dos mais alarmantes. Neste
momento há milhares de militantes, tão incultos quanto o professor Lejeune, ansiosos por moldar
as mentes infantis à imagem e à semelhança de seus preconceitos ideológicos, que eles tomam por
filosofia e sociologia. Pode haver maior risco para o futuro do país que entregar as novas gerações
aos cuidados de indivíduos que pretendem educá-las antes de educar-se a si mesmos?

Honra ao mérito
Jornal da Tarde, 7 de junho de 2001

De uma polêmica que o dr. Oswaldo Porchat Pereira teve comigo, e da qual saiu com o rabo entre
as pernas após uma vã tentativa de me assustar com uns argumentos supremamente calhordas,
concluí que ele era um fracote. Da leitura de um de seus escritos filosóficos de maturidade, concluí
que era um idiota.
Lendo, agora, sua tese de doutoramento, retirada do baú pela Editora da Unesp, descubro, com
grata satisfação, que 33 anos atrás ele não era nada disso: era um estudioso sério, capaz de
trabalho intelectual pesado, honesto e até corajoso.
Tendo divulgado as duas primeiras conclusões, vejo-me na estrita obrigação de publicar a terceira,
ao menos para que se veja que o homem não é ruim por natureza, mas ficou assim por força de
três décadas e tanto de serviço público na USP, uma experiência capaz de corromper até os santos
e da qual eu, que nunca passei por ela, não posso jurar que me sairia melhor.
Ciência e Dialética em Aristóteles permaneceu inédito e agora vem a público por mérito de d.
Marilena Chauí, a qual, por distração ou malícia, inaugurou com o livro uma coleção à qual deu o
mesmo nome daquela que há dois anos dirijo na Editora Record: Biblioteca de Filosofia.
Dona Marilena é mesmo uma pessoa estranha. Anos atrás (corrijam-me, por favor, se eu estiver
errado), acusada por José Guilherme Merquior de plagiar uns escritos de Claude Leffort, respondeu
que tivera um caso amoroso com o autor plagiado, sugerindo que páginas inteiras da obra dele
teriam sido transmitidas à sua pessoa por meios que não são da nossa conta.
Mas ela não há de ser acusada de ter por mim análoga simpatia. A palavra mais doce que já disse a
meu respeito foi “cafajeste”, recebendo uma resposta que, embora publicada, não ouso repetir, de
vez que já passou há tempos a emoção do insulto que me fez proferi-la.
Lembro o episódio apenas para atestar que d. Marilena não tem comigo nenhuma intimidade
afável que justificaria, como no caso Leffort, uma transmissão telepática. Permanece, pois, o
mistério. Não podendo resolvê-lo, voltemos ao dr. Porchat.
Para avaliar a importância do seu trabalho, é preciso estar ciente de que ele, no seu momento,
respondeu eficazmente a uma polêmica de meio século que se travava em torno da continuidade
ou descontinuidade da idéia de ciência em Aristóteles, e que essa discussão não tinha somente
interesse histórico, dada a inspiração que muitos filósofos da ciência e cientistas de ofício,
especialmente biólogos, estavam buscando no Estagirita para revigorar o senso da unidade
orgânica do saber.
A disputa nasceu com Werner Jaeger (depois autor da celebradíssima Paidéia), quando, aplicando a
Aristóteles o método biográfico-genético que tão bem funciona com autores mais recentes,
concluiu que a filosofia do mestre tinha passado por substanciais mutações e nela não se
encontrava mais unidade do que aquela que se pode vislumbrar nas expressões de qualquer alma
humana, que se transforma no curso dos tempos e se esquece de si.
Embora rejeitando em essência o método de Jaeger, o grosso do “establishment” acadêmico
subscreveu a idéia de que haveria em Aristóteles, e sobretudo em sua concepção do saber
científico, vários começos e recomeços, não sobrando no fim um sistema, porém ao menos dois,
num conflito sem solução.
Opondo-se valentemente a essa respeitável maioria, Porchat matou a questão pelo método que
aprendera de Victor Goldschmidt e Martial Guéroult: a reconstituição meticulosa, mediante leitura
analítica, da “ordem das razões” que estruturam uma filosofia. Daí surge brilhantemente
restaurada a unidade da teoria aristotélica da ciência, acima de qualquer dúvida razoável.
No curso de minhas investigações sobre a concepção do discurso em Aristóteles, topei,
evidentemente, com a mesma questão. Cheguei à mesma resposta, sem ter o tempo ou os meios
de prová-la, e passei adiante, pois o objeto da minha investigação era outro. Mas sempre conservei
algumas dúvidas quanto a esse ponto em particular, sabendo que um dia eu ou alguém teria de
voltar lá para tirá-lo a limpo. Diante da constatação de que Porchat, numa tese inédita, já tinha
matado o problema, só posso exclamar: bravo!
Evidentemente, se eu tivesse lido a tese enquanto trabalhava no meu Aristóteles em Nova
Perspectiva, isto em nada teria mudado minha conclusão global, mas certamente eu a teria
afirmado com mais vigor e certeza, pois a unidade da lógica científica é um argumento decisivo em
favor da unidade da concepção aristotélica do discurso em geral, que é o que ali procuro defender.
Só lamento que um sujeito tão capaz fosse sepultar seus talentos no cemitério uspiano. Dá para
entender por que, começando com Aristóteles, ele terminou no pirronismo, a mais demissionária
das filosofias. Era pedir demissão do emprego — ou da filosofia.

Mais paralaxe
O Globo, 28 de dezembro de 2002

Alguns leitores pedem-me mais explicações sobre a tal “paralaxe conceitual” que mencionei outro
dia. Vou tentar.
Toda afirmação filosófica sobre a realidade em geral, a humanidade em geral ou o conhecimento em
geral inclui necessariamente, entre os objetos a que se aplica, a pessoa real do emissor e a situação
de discurso na qual a afirmação é feita.
O que quer que um homem diga sobre esses assuntos ele diz também sobre si mesmo. Ninguém tem
o direito de constituir-se, sem mais nem menos, em exceção a uma teoria que pretenda versar sobre
o gênero ou espécie a que ele próprio pertence.
Essa elementar precaução metodológica foi negligenciada por praticamente todos os filósofos mais
importantes do ciclo dito “moderno”, assim como por muitas das escolas de pensamento que
dominam o universo intelectual contemporâneo.
Em resultado, temos uma imponente galeria de doutrinas que nada nos dizem sobre o mundo em
que foram produzidas, nem muito menos sobre as pessoas reais que as criaram, mas tudo sobre um
mundo inventado que não as inclui e que elas se limitam a observar desde fora, desde um imaginário
posto de observação privilegiado. Esse posto de observação corresponde, estrutural e
funcionalmente, ao do “narrador onisciente” nas obras de ficção, o qual não é afetado pelo curso
dos acontecimentos narrados. Construídas com uma técnica ficcional, mas totalmente inconscientes
do expediente que empregam, essas filosofias são obras de ficção que não ousam se apresentar
como tais.
Alguns exemplos:
1) Descartes diz que vai examinar seriamente os seus próprios pensamentos, e começa a fazê-lo sob
forma de introspecção autobiográfica. No meio do caminho, perde o fio do seu eu pessoal e concreto,
do seu eu biográfico, e começa a falar de um eu genérico e abstrato, o “eu filosófico”. Ele nem se dá
conta do salto, e acredita continuar fazendo autobiografia quando está fazendo apenas construção
lógica. Ele acaba acreditando que é realmente esse eu filosófico, sob cuja sombra o eu real
desaparece por completo. Resultado: sua auto-observação cai nos erros mais grosseiros, como por
exemplo o de esquecer que a continuidade temporal do eu é um pressuposto do cogito e não uma
conclusão obtida dele.
2) David Hume diz que nossas idéias gerais não têm valor cognitivo nenhum, porque são apenas
aglomerados fortuitos de sensações corporais. Em nenhum instante ele se dá conta de que a filosofia
de David Hume, compondo-se ela própria de idéias gerais assim formadas, também não pode valer
grande coisa. O estado de alienação do filósofo ao criar sua filosofia não poderia ser mais completo.
3) Maquiavel ensina que o Príncipe deve conquistar o poder absoluto e em seguida livrar-se dos que
o ajudaram a subir. Ora, quem pode ter ajudado mais ao Príncipe do que o filósofo que lhe ensinou
a fórmula da conquista do poder absoluto? Se o Príncipe o levasse a sério, ele próprio, Nicolau
Maquiavel, seria o primeiro a ser jogado no lixo junto com o seu livro, prova do crime. Contrariando
o louvor geral que consagra Maquiavel como o primeiro observador “realista” da política, o Príncipe
é um modelo idealizado que só pode ser descrito em literatura precisamente na medida em que
nenhum contemporâneo logre encarná-lo na realidade. A alienação chega ao cúmulo quando
Maquiavel diz que todos os males do Estado vêm dos intelectuais contemplativos que, não podendo
atuar na política, teorizam sobre ela — o que é precisamente o que ele está fazendo. Aliás, Otto
Maria Carpeaux já havia assinalado que a visão que Maquiavel tem da política não é política: é
estética.
4) Karl Marx assegura que só o proletariado, por ser a última e extrema vítima da alienação, pode
apreender realisticamente o curso inteiro do processo alienante e, por isso, libertar-se dele. Só o
proletariado, em suma, tem adequada consciência histórica. Mas não é mesmo uma coisa
extraordinária que o primeiro, logo o primeiro a personificar essa consciência proletária seja um
burguês? Não digo que isso seja impossível, mas, à luz da teoria marxista, é uma exceção
notabilíssima e improvável. Karl Marx passa sobre ela com a maior inocência, sem nem de longe
notar um desvio de foco, uma paralaxe entre o personagem que representa e o conteúdo das suas
falas. No mundo de Karl Marx, não existe Karl Marx.
E por aí vai. Ao exame meticuloso desses e de muitos outros casos similares tenho dedicado meus
cursos desde há alguns anos. O lado mais interessante é a crítica ficcional da filosofia ficcional. De
fato, os melhores observadores críticos da alienação filosófica foram os escritores de ficção,
principalmente Dostoiévski, Kafka, Pirandello, Ionesco e Camus. Os Demônios, O Processo, Henrique
IV, O Rinoceronte e O Estrangeiro são peças de um imenso requisitório literário contra as pretensões
da filosofia moderna. Vale aí o contraste delineado por Saul Bellow entre o “intelectual” e o
“escritor”: de um lado, o construtor de alienações elegantes; de outro, o porta-voz das “impressões
autênticas”, verdades às vezes simplórias que estouram o balão intelectual. Já viram, né? Quando eu
crescer, quero ser “escritor”.
***
Falando em alienação: nosso presidente eleito parece não ter idéia da encrenca em que se meteu ao
adotar uma linha de ação que subentende a conciliação do inconciliável: de um lado, a aliança Lula-
Bush; de outro, Lula-Chávez. Talvez ele esteja feliz demais com sua ascensão social para poder pensar
nessas coisas horríveis.
***
Quando Constantine C. Menges previu a iminente criação de uma aliança Lula-Chávez, a mídia
tupiniquim em peso se reuniu para fazer-lhe a caveira. Bem, agora a aliança está aí. Foi feita
mediante ostensiva tomada de partido do futuro governo brasileiro numa disputa interna
venezuelana, e os jornalistas que participaram da campanha anti-Menges não têm sequer a
hombridade de reconhecer: “Erramos.”
Estado policial, já!
O Globo, 26 de outubro de 2002

O PT, ansioso, não quer nem esperar a posse de Lula para instaurar neste país o Estado policial dos
seus sonhos cubanos. O sr. André Singer, assessor do candidato petista, está fazendo o que pode
para dar cinco anos de cadeia a cada internauta que tenha emitido ou repassado e-mails com
mensagens anti-Lula, numa gama que vai das notícias falsas às meras piadas. O próprio partido
encarregou-se de rastrear os culpados. O número deles subirá fatalmente a alguns milhares. Em
poucas semanas, a estréia petista no poder terá superado de muito a ditadura militar, que em vinte
anos não fez mais de dois mil presos políticos.
Mas não se pode acusar o PT de obsessão punitiva. O partido faz também policiamento preventivo:
os proprietários do site http://antilula.blogspot.com foram aconselhados a fechá-lo para evitar um
processo. O aviso veio de um tal de Grupo de Repressão a Atos de Intolerância, um nome que é
novilíngua em estado puro.
Também tenho um aviso: faz anos que militantes e simpatizantes petistas vêm espalhando na
internet palavras injuriosas e fofocas cabeludas a meu respeito, muito piores do que qualquer coisa
que se possa ter dito de Lula. Já me chamaram de tudo, desde neonazista até agente sionista, além
de enviar mensagens falsas em meu nome a fóruns de debates, de me prometer um lugar de honra
no “paredón” e de notificar ao distinto público que há trinta anos não trabalho, vivendo da
exploração de mulheres. Por falta de tempo, de dinheiro e de estômago, nunca tomei qualquer
iniciativa judicial contra essas criaturas, mas olhem que o sr. Singer acaba de me dar uma boa idéia…
A naturalidade com que essa gente petista se concede as mais abusivas liberdades, fazendo pose de
dignidade ofendida quando alguém esboça uma resposta mesmo tímida, é, com toda a evidência,
prova daquele total desprezo ao próximo, daquele egocentrismo grosseiro e cego que caracteriza os
sociopatas. Não há mesmo nada de estranho nisso, pois todas as militâncias ideológicas dos tempos
modernos nunca passaram de sociopatia organizada. Característico é o hábito de juntar-se em
bandos para vociferar insultos ameaçadores e, quando a vítima se confessa intimidada, rotular de
“terrorismo” a expressão de seus sentimentos. Como kapos de um campo de concentração, os cães-
de-guarda petistas só admitem uma resposta aos seus latidos: o silêncio contrito, a humildade
cabisbaixa, a confissão dos pecados seguida de uma declaração de amor a Lulinha…
Qualquer breve exame da retórica petista comprovará que, em matéria de linguagem desbocada e
truculenta, ela não tem concorrentes. Num concurso de “hate speech”, o petismo levaria todos os
prêmios. A resposta de Lula a Regina Duarte ganharia pelo menos menção honrosa. Aliás ninguém
vê nada de mais em que ele acuse o presidente da República de “extorsão” e xingue de “picaretas”,
numa só tacada, trezentos parlamentares ou um escritor cubano que ele nem conhece. Mas se um
de nós responde que ele é um iletrado metido a falar do que não sabe, ah, isto não! É injúria, é
difamação, é… terrorismo!
O próprio horror antibacharelista que intelectuais do PT alardeiam ante a exigência de diploma para
o seu candidato é puro fingimento malicioso. Quando comecei a publicar livros de filosofia e obtive
algum sucesso, a mesma turminha caiu de paus e pedras em cima de mim, pela ousadia de fazê-lo
sem “diploma de filósofo”. Bacharelismo por bacharelismo, alguns bichos, de fato, são mais iguais
que os outros…
Mas, voltando da hipocrisia à prepotência: o PT já nomeou até um fiscal-mor para vigiar e punir tudo
o que se escreva contra Lula. Desde Felinto Müller ninguém exercia tão alta função inquisitorial neste
Brasil. Mesmo no tempo dos militares, quando alguém inventava piadas sobre o general Costa e
Silva, o único risco que corria era o de vê-las entrar no repertório do presidente, que as colecionava
e repassava, divertindo-se a valer. Mas essa gente do PT se leva infinitamente a sério. Não sabe rir,
só dar aquelas gargalhadas forçadas das zombarias ginasianas. Quando quer expor ao ridículo um
adversário, não é capaz de sátira inteligente ou ironia sutil: recorre ao hiperbolismo bufo, disforme
e rancoroso das velhas chalaças comunistas — o equivalente mais próximo do senso de humor nas
almas endurecidas pelo orgulho e pelo ódio.
O referido fiscal já tem em mãos a cópia de um artigo meu, para escarafunchá-lo em busca de
“calúnias” e, provavelmente também, “terrorismo”. Pois que procure. Que tente encontrar ali uma
só falsidade, um só fato que não seja atestado em documentos e conhecido da mídia nacional ou
estrangeira. Que se divirta com esse esporte macabro de ciscar, espumando de rancor vingativo,
indícios de antilulismo. Da minha parte, nada mais tenho a procurar: já encontrei e já divulguei
provas cabais do compromisso de solidariedade que liga o sr. Lula à narcoguerrilha colombiana, e
nem toda a polícia mental petista reunida conseguirá apagar da História o rastro de perfídia e
hipocrisia que esse candidato deixou ao mentir a toda uma nação, negando o que sua própria
assinatura atestava e provando que tem muito a esconder.
Aliás, a mentira, quanto mais esconde, mais revela. Dois exemplos: (1) Tão logo publicados os meus
artigos que transcreviam resoluções do Foro de São Paulo, esses documentos foram retirados do site
da entidade, com a pressa dos criminosos que apagam as pistas do crime. (2) Ao obter do TSE a
proibição de que José Serra mencionasse o caso Farc no horário eleitoral, o PT apenas imitou um
ardil já testado na Venezuela, anos atrás, contra o concorrente de Hugo Chávez.
São atos que põem à mostra precisamente aquilo que pretendiam esconder: a mão onipresente do
Foro de São Paulo…

Sobre o ensino da filosofia


Jornal da Tarde, 25 de abril de 2002

Se você examinar algum manual de introdução a Platão, a Aristóteles ou a qualquer outro filósofo
verá que as preocupações essenciais de seus autores são três. Primeira, reconstituir o quanto
possível a unidade sistemática do pensamento do filósofo, expondo-a numa ordem lógica mais direta
do que aquela que se encontra nos seus escritos. Segunda, assinalar as mudanças de rumo
eventualmente observadas na evolução intelectual do filósofo em direção a essa unidade. Terceira,
relacionar de algum modo o pensamento dele à cultura e à sociedade do “seu tempo”. O sistema
filosófico é assim enfocado sob três aspectos: sua estrutura lógica, a história da sua formação e suas
raízes no ambiente humano em torno.
Essas três coisas são importantes, mas há um porém: você pode estudá-las pelo resto dos seus dias
e não chegar a compreender grande coisa da filosofia do filósofo, ao menos tal como ele próprio a
compreendia.
O problema é que essas modalidades de estudo tomam a filosofia de fulano ou beltrano como objeto
de sua investigação, ao passo que nenhuma filosofia surgiu como objeto de investigação de si própria
e sim como canal para a investigação de alguma outra coisa.
Aristóteles jamais estudou “filosofia de Aristóteles”. Estudou os meteoros, a fisiologia animal, o
funcionamento da psique, a estrutura do discurso, os princípios da validade do saber, a organização
das sociedades políticas, as metas da vida humana, a constituição do universo e a natureza de Deus.
Se você não olhar diretamente para essas coisas, tirando suas próprias conclusões e comparando-as
com as de Aristóteles, pouco entenderá destas últimas. Sua visão de Aristóteles será tão falseada
quanto a de alguém que quisesse julgar a narração de uma partida de futebol sem levar em conta se
ela corresponde ou não ao que efetivamente se passou no campo.
Toda filosofia, afinal, não é mais que a exposição de um conjunto de atos intelectivos realizados por
um indivíduo que queria saber alguma coisa sobre algo que, decididamente, não era a sua própria
obra filosófica. Só a revivescência pessoal desses atos, com foco nos mesmos alvos a que se dirigiam
originariamente, permite apreender a filosofia in statu nascendi, isto é, não como produto cultural
acabado, estratificado, congelado, mas como atividade real e vivente da inteligência humana no
confronto com os dados da realidade.
Fora disso, você pode aprender algo sobre filosofia, mas não aprender filosofia.
É claro que, de vez em quando, será preciso retornar dos objetos da filosofia à própria filosofia
tomada como objeto, para averiguar se as conclusões do filósofo conferem com outras conclusões
enunciadas por ele em outras partes do seu sistema, ou se estão em acordo ou desacordo com as
teorias de outros filósofos. Mas é evidente que esta é uma atividade apenas de controle, de
importância derivada e secundária. Esse controle é como olhar no espelho retrovisor: é uma coisa
útil para você dirigir um automóvel, mas ninguém pode dirigir um automóvel mantendo a atenção
fixa no espelho retrovisor o tempo todo, sem nunca olhar para a frente.
Ou a filosofia é um saber, ou é apenas uma atividade lúdica sem propósito.
Se ela é um saber, é um saber a propósito de algum objeto que, evidentemente, não pode ser
somente ela mesma.
Os antigos estavam mais conscientes disso do que os modernos estudiosos de filosofia. Por isso
preocupavam-se pouco com os sistemas filosóficos enquanto tais – seja considerados do ponto de
vista estrutural, seja evolutivo, seja cultural e sociológico -, mas buscavam sobretudo testar, no
confronto com os objetos, a veracidade ou a falsidade do que esses sistemas diziam a respeito. Esse
método pode parecer ingênuo e primitivo desde o ponto de vista das técnicas eruditas altamente
sofisticadas que hoje se empregam para estudar filosofia. Mas nenhum acúmulo de técnicas e de
sofisticação pode substituir uma atitude cognitiva apropriada ao objeto.
Essa arte, esse talento de ajustar o foco é exatamente o que vem se perdendo na sofisticação
crescente das técnicas, e que os antigos possuíam em abundância. Por isso é que, no meio de tantos
estudos que a cada ano se produzem sobre Aristóteles nas universidades do mundo, pouquíssimos
são de leitura tão proveitosa quanto os velhos comentários de Sto. Tomás, de Duns Scot ou de
Avicena.
Não deixa de ser curioso que uma das críticas convencionais ao universo intelectual da Idade Média
consista em chamá-lo de “livresco”. Não há nada mais livresco do que tomar uma obra filosófica
como objeto em vez de olhar para as realidades de que ela fala – e essa inversão de foco é a definição
mesma de muitos dos métodos aprimoradíssimos que os modernos substituíram aos medievais.

Que é filosofia?
Zero Hora, 17 de outubro de 2004

Toda filosofia nasce de um impulso originário – infantil, se quiserem — de entender a realidade da


experiência. Mas, entre esse impulso e a “filosofia” como atividade curricular acadêmica, a
distância é às vezes tão grande que ele desaparece por completo.
As desculpas para isso são sempre as mais respeitáveis. Antes de responder às perguntas da
infância é preciso adquirir os instrumentos intelectuais do saber adulto, o que inclui o estudo das
obras dos filósofos; este estudo supõe o domínio da interpretação de textos; e a interpretação de
textos pode ser tão interessante que se torna um pólo de atração independente. Eis-nos então nos
píncaros do saber filosófico acadêmico, ao menos no sentido franco-uspiano do termo, e
imunizados para sempre às perguntas que nos levaram, pela primeira vez, ao estudo da filosofia.
Na USP dos anos 60, que não parece ter mudado muito desde então, qualquer tentativa de
enfrentar essas perguntas em vez de ocupar-se da nobre tarefa da análise de textos era desprezada
como amadorismo, beletrismo, ensaísmo. Quando o prof. José Arthur Gianotti, no auge da sua
maturidade intelectual, define a filosofia como uma ocupação com textos, ele não faz senão
expressar sua experiência de algo que, no ambiente da sua formação, recebia o nome de
“filosofia”, mas que jamais seria reconhecido como tal por Sócrates e Platão.
Platão — ou Sócrates — mostrava um caminho para a filosofia que jamais poderia ser encontrado
num texto. Ele falava de uma anamnesis, de um mergulho na memória pessoal em busca do
instante do nascimento da consciência filosófica. A consciência filosófica era a antevisão das formas
universais eternas. Essas formas transcendiam infinitamente a esfera da experiência corporal,
portanto também da memória sensível, mas, em algum momento esquecido do tempo, haviam se
entremostrado nela e despertado, na alma do indivíduo carnal, a aspiração do Bem supremo. No
curso posterior da vida, a maioria dos homens se esquecia desse momento para sempre. Em
outros, a ocultação era parcial. Se o objeto experienciado desaparecia da consciência, a aspiração a
que ele dera nascimento permanecia viva. Viva, mas buscando satisfação a esmo em objetos
impróprios, errando entre símbolos e simulacros até atinar — ou não — com o caminho de volta. O
encontro do aprendiz com o filósofo maduro era um momento decisivo dessa busca. O filósofo
atraía os discípulos porque algo, nele, evocava o Bem supremo. O filósofo era um símbolo. O
discípulo podia agarrar-se a ele como a qualquer outro símbolo, adorando-o ao ponto de desejar
possuí-lo carnalmente. É o que Alcebíades, após a noitada do Banquete, confessa a Sócrates. Mas
Sócrates lhe explica que ele está buscando na direção errada. O que move a alma do discípulo é o
desejo de um bem espiritual esquecido, que a carne de Sócrates não pode satisfazer. O filósofo é
um símbolo do Bem e não o próprio Bem. Nesse sentido, ele não é diferente de qualquer outro
símbolo. Mas ele não é apenas símbolo. Ele não se limita a representar exteriormente o Bem, como
a beleza material o representa sem saber o que faz. Ele é um registro consciente daquele Bem que
ele próprio simboliza. Ele é o homem que realizou a anamnesis e descobriu na própria alma a
abertura para o Bem. Por isso ele pode ensinar a Alcebíades o caminho de volta, mostrar que esse
caminho não se encontra no corpo de Sócrates, e sim na alma de Alcebíades. Ele convida o
discípulo à metanóia, ao giro da direção da atenção desde fora para dentro, desde a atualidade dos
sinais sensíveis para a escuridão da memória, em cujo fundo brilha, escondida, a recordação da
abertura primordial para a experiência do Bem e das formas eternas.
A análise infindável de textos é uma longa deleitação viciosa no corpo dos símbolos, um derivativo
carnal que afasta para sempre da recordação do Bem ao mesmo tempo que crê piamente “fazer
filosofia”. Foi isso que ensinaram ao prof. Gianotti com o nome de “filosofia”. Mas não era isso o
que Sócrates e Platão ensinavam.

Obra e vida em filosofia


O Globo, 13 de setembro de 2003

O que escrevi aqui sobre a Escola de Frankfurt não foram observações de improviso, mas uma
seleção extraída de notas que há tempos venho juntando sobre o problema das relações entre “obra”
e “vida” em filosofia. Uso aspas para indicar que ambos os conceitos são mais nebulosos do que a
banalidade dos termos indica à primeira vista.
Quando se fala da “obra” de um poeta, de um romancista, o que se entende por isso não é tudo o
que ele escreveu, mas só a parte formalmente literária, publicada ou publicável. O que sobra —
rascunhos, cartas, declarações orais – é material biográfico que não afeta o julgamento da “obra”,
embora possa contribuir indiretamente para a sua compreensão. Mesmo da parte publicada, às
vezes só uma pequena fração interessa, esteticamente. Isso é assim porque a arte é inerentemente
busca da forma — forma identificável, material, estável. Os “sentidos” que aí as gerações de leitores
acreditarão encontrar podem variar, mas, por isso mesmo, subentendem a permanência da forma
(nada o comprova melhor do que a obsessão de documentar — fixar — aquelas manifestações
artísticas, pretensamente revolucionárias, que se alardeiam fluidas e transitórias por princípio).
A filosofia, ao contrário, — toda filosofia — constitui-se essencialmente do seu “sentido”, que o
filósofo busca transmitir por todos os meios ao seu alcance, inclusive literários, não estando o valor
desse sentido condicionado ao maior ou menor sucesso da sua exteriorização verbal. Tudo o que nos
sobrou de Aristóteles são rascunhos, fragmentos, notas de aula. Seus “livros” não são livros: são
arranjos póstumos. A parte publicada, que Cícero louvava como “um rio de ouro” da eloqüência,
perdeu-se irremediavalmente. Se isso acontecesse a um poeta, a um ficcionista, teríamos aí, na
melhor das hipóteses, um caso de grande escritor falhado: a intenção subjetiva que não se traduz
em forma, ou que a perde, é a definição mesma do fracasso artístico. Que seria Shakespeare sem
suas peças, seus sonetos, reduzido a sonhos e esboços de intenções? Mas a filosofia de Aristóteles
subsiste integralmente nos escombros da sua expressão escrita. E o ensinamento oral de Platão,
reconstituído desde mil e um indícios, é hoje considerado mais importante do que toda a sua obra
publicada, da qual constitui a chave-de-abóbada.
Compreendem a diferença?
É que a filosofia, busca do sentido, é permanente reinterpretação e retificação de si mesma,
raramente admitindo fechar-se em expressão acabada e irretocável. Daí que um rascunho, um
trecho de carta, uma frase solta possam às vezes iluminar de tal modo o conjunto, que acabem
assumindo um posto elevadíssimo na hierarquia dos pensamentos do filósofo.
As melhores idéias de um filósofo não coincidem necessariamente com seus escritos mais limpos e
acabados. Isso quando a quase totalidade da obra, como no caso de Leibniz ou de Husserl, não se
constitui mais de anotações que de obras prontas para publicação. Não por acaso, o pai dos filósofos,
Sócrates, não deixou obra escrita. É o pensador oral por excelência.
Por isso as relações entre “obra” e “vida” não podem ser as mesmas em literatura e filosofia. A
idolatria do “texto”, em que a USP viciou gerações inteiras de estudantes, só serviu para apagar a
distinção entre filosofia e filologia. Não que a análise do texto seja desimportante. Mas ela não basta:
às vezes, o melhor de uma filosofia está no que o filósofo apenas pensou, sem chegar a escrever —
observação que, aplicada à literatura, seria puro nonsense.
É claro que nem tudo, na vida de um filósofo, é igualmente significativo para a compreensão de sua
filosofia. Há nela, como em qualquer vida, uma extensa faixa que se constitui somente do caos da
experiência bruta, fragmentária, semiconsciente e até impessoal, da qual o filósofo se esforça por
apreender o nexo interno que, uma vez conscientizado, se integrará no seu pensamento filosófico,
quer chegue a ser escrito, quer fique na intenção. É esta passagem da experiência à consciência
explícita que assinala a diferença entre a pura matéria existencial de uma filosofia e a sua forma
intelectual personalizada, não sendo o filósofo responsável pela primeira, mas certamente pela
segunda.
Por outro lado, há atos, escolhas e decisões maduramente pensados que devem, sem hesitação, ser
compreendidos como interpretações, aplicações ou extensões que o filósofo deu aos seus próprios
princípios orientadores.
É neste e não naquele aspecto da relação obra-vida que devem ser buscados, quando existem, os
sinais da “paralaxe cognitiva” a que me referi em artigos anteriores. Seria pueril cobrar de um filósofo
aquela “coerência entre palavras e atos”, literal, material e estereotipada, que os moralistas cobram
dos homens públicos. O que se pode e se deve exigir é que aquela parte da vida que de maneira clara
e consciente se integra no universo pensado de um pensador não seja, pelo seu conteúdo
significativo, um desmentido formal dos princípios da sua filosofia. E mesmo neste caso ainda será
preciso distinguir entre um lapso momentâneo, uma incongruência estrutural, um auto-engano ou
uma astúcia premeditada. O caso de Maquiavel é claro: a publicação de uma receita de conspiração
afirma implicitamente que essa conspiração não será realizada, pelo menos como está no livro. Mas
Maquiavel era esperto demais para não perceber isso. “O Príncipe”, portanto, não é uma descrição
científica da sociedade política: é um “mito”. Os intérpretes, hoje, são quase unânimes quanto a esse
ponto.
Já a opção de Horkheimer e Adorno por um “alto padrão de vida” no meio da miséria geral cuja culpa
eles lançavam, precisamente, nas classes de alto padrão de vida, não pode ser considerada nem uma
incoerência moral, nem um sinal de cegueira involuntária, mas sim a expressão consciente de um
cinismo gnóstico que odiava o mal sem amar o bem. Como todo gnosticismo, a filosofia dos
frankfurtianos é ódio, não ao mal, mas ao Ser.
Mutatis mutandis, o soberbo desprezo de Karl Marx ao filho bastardo que teve com a empregada
também não é uma “incoerência”. É a prova de algo que o próprio Marx reconhecia, mas que hoje
seus admiradores se recusam a enxergar: que sua adesão à causa dos pobres não tinha o mínimo
sentido ético — era apenas a conseqüência lógica, fria e amoral, de uma certa interpretação da
História.
Literatura do baixo ventre
Jornal da Tarde, 03 de julho de 2003

Nas suas Memórias, de 1994, Adolfo Bioy Casares deixou este depoimento sobre sua colaboração
com Jorge Luís Borges:
“As primeiras coisas vêm primeiro, e as segundas podem-se esquecer: a prioridade era a literatura,
a adequação literária, a filosofia, a verdade… Para os dois, o mais importante era compreender…
Então não se tratava dele nem de mim, de quem havia falado, mas de haver entendido a verdade
de algo.”
No mesmo sentido, já havia anotado em Diário e Fantasia:
“A inteligência trabalha como uma espécie de ética. Não permite concessões, não tolera
ruindades.”
Quantos escritores brasileiros das últimas três ou quatro décadas poderiam repetir essas palavras
com igual sinceridade?
Para começar, não acreditam em “verdade”. Livram-se dela com dois ou três chavões relativistas
ou desconstrucionistas, e não pensam mais nisso. Quanto à sinceridade, imaginam que consista em
detalhes de fisiologia sexual.
A grande literatura nasce da síntese do fervor, da devoção, da sinceridade moral, com a elevação
da inteligência e a amplitude da visão do mundo. Entre as décadas de 20 e 60 as letras brasileiras
quase alcançaram o ponto de fusão em que a mistura desses elementos produziria a “high
seriousness” exigida por Mathew Arnold. Mas, depois, a mistura desandou. Voltamos
miseravelmente à escrita dos samoiedas, os literatos da Bruzundanga, assim descritos por Lima
Barreto em 1922:
“Não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das
coisas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las totalmente,
de absorvê-las. Só querem a aparência das coisas… A glória das letras, só a tem quem a elas se dá
inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega
com fé cega. Os samoiedas contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação de
notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras por instrução insuficiente ou
viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade…”
A sinceridade mede-se pelo esforço. Antes de acertar definitivamente a mão com La Invención de
Morel (1940), Bioy escreveu, dos vinte aos vinte e seis anos, uma infinidade de contos e romances
muito ruins. Mas não foi tempo perdido:
“Naquele período de criação contínua e desafortunada, li e estudei muito. Li literatura espanhola,
com a intenção de abarcá-la na diversidade dos seus gêneros, desde os começos até o presente,
sem limitar-me aos autores e livros mais conhecidos; literatura argentina, sem excluir formas
populares, como as letras de tango e milonga, que selecionava em El Alma que Canta e em El Canta
Claro, para uma provável antologia; literatura francesa, inglesa, norte-americana e russa; algo da
alemã, da italiana, da portuguesa (desde logo, Eça de Queiroz); literatura grega e latina, algo da
chinesa, da japonesa, da persa. Teorias literárias. Versificação, sintaxe, gramática. The Art of
Writing de Stevenson, Dealing with Words de Vernon Lee. Filosofia, lógica, lógica simbólica.
Introduções às ciências, classificações das ciências, introdução às matemáticas. A Bíblia. Santo
Agostinho. Padres da Igreja. A relatividade. A quarta dimensão. Teorias biológicas.”
Basta ler esse parágrafo para perceber instantaneamente o que há de errado com a cultura
nacional. O romancista argentino — como aliás em seu tempo o pobre Lima Barreto, espremendo o
orçamento raquítico para comprar livros de filosofia e ciência — estudou mais durante esses seis
anos do que o fez ao longo da vida inteira qualquer dos escritores nacionais que o nosso público de
hoje aplaude. Quantos dentre eles chegam a ter ao menos o interesse, por vago e preguiçoso que
seja, de estender sua visão das coisas por um domínio tão amplo de conhecimentos? Nenhum
chega mesmo a conceber a possibilidade de fazê-lo, e, se lhe insinuamos que haveria nisso alguma
conveniência, a resposta quase infalível é um par de olhos arregalados seguidos de uma
desconversa mordaz. Estudo sério é para professores, e mesmo assim olhe lá! Moderação nisso.
Nada além do exigido pelo currículo. Literato brasileiro que se preza tem o esforço intelectual na
conta de pedantismo reacionário e, segundo afirma um deles com orgulho, “escreve com o baixo
ventre”.

Direita e esquerda, origem e fim


Diário do Comércio, 1o de novembro de 2005

Proponho ao leitor, hoje, uma breve investigação de história das idéias. Ela pode ser um tanto
trabalhosa no começo, mas renderá bons frutos para a compreensão de muitos fatos da vida
presente.
A inconstância e a variedade dos discursos ideológicos da esquerda e da direita, para não mencionar
suas freqüentes inversões e enxertos mútuos, tornam tão difícil apreender conceptualmente a
diferença entre essas duas correntes políticas, que muitos estudiosos desistiram de fazê-lo e
optaram por tomá-las como meros rótulos convencionais ou publicitários, sem qualquer conteúdo
preciso.
Outros, vendo que a zona de indistinção entre elas se amplia com o tempo, concluíram que elas
faziam sentido na origem, mas se tornaram progressivamente inutilizáveis como conceitos
descritivos.
Apesar dessas objeções razoáveis, as denominações de esquerda e direita ainda servem a grupos
políticos atuantes, que, não raro imantando-as com uma carga emocional poderosa, as utilizam não
só como símbolos de auto-identificação mas, inversamente, como indicadores esquemáticos pelos
quais desenham em imaginação a figura do seu adversário ideal e a projetam, historicamente, sobre
este ou aquele grupo social.
Quando surge uma situação paradoxal desse tipo, isto é, quando conceitos demasiado fluidos ou
mesmo vazios de conteúdo têm não obstante uma presença real como forças historicamente
atuantes, é porque suas várias e conflitantes definições verbais são apenas tentativas parciais e
falhadas de expressar um dado de realidade, uma verdade de experiência, cuja unidade de
significado, obscuramente pressentida, permanece abaixo do limiar de consciência dos personagens
envolvidos e só pode ser desencavada mediante a análise direta da experiência enquanto tal, isto é,
tomada independentemente de suas formulações verbais historicamente registradas.
Dito de outro modo: a distinção de direita e esquerda existe objetivamente e é estável o bastante
para ser objeto de um conceito científico, mas ela não consiste em nada do que a direita ou a
esquerda dizem de si mesmas ou uma da outra. Consiste numa diferença entre duas percepções da
realidade, diferença que permanece constante ao longo de todas as variações de significado dos
termos respectivos e que, uma vez apreendida, permite elucidar a unidade por baixo dessas
variações e explicar como elas se tornaram historicamente possíveis.
Anos atrás comecei a trabalhar numa solução para esse problema e de vez em quando volto a ela
desde ângulos diversos, sempre notando que permanece válida.
A solução, em versão dramaticamente resumida, é a seguinte: direita e esquerda, muito antes de
serem diferenças “ideológicas” ou de programa político, são duas maneiras diferentes de vivenciar
o tempo histórico. Essas duas maneiras estão ambas arraigadas no mito fundador da nossa
civilização, a narrativa bíblica, que vai de uma “origem” a um “fim”, do Gênesis ao Apocalipse. Note
o leitor que a origem se localiza num passado tão remoto, anterior mesmo à contagem do tempo
humano, que nem pode ser concebida historicamente. Começa num “pré-tempo”, ou “não-tempo”.
Começa na eternidade. O final, por sua vez, também não pode ser contado como capítulo da
seqüência temporal, pois é a cessação e a superação do transcurso histórico, o “fim dos tempos”,
quando a sucessão dos momentos vividos se reabsorve na simultaneidade do eterno. A totalidade
dos tempos, pois, transcorre “dentro” da eternidade, exatamente como qualquer quantidade, por
imensa que seja, é um subconjunto do infinito. O Apóstolo Paulo expressa isso de maneira exemplar,
dizendo: “ N’Ele [em Deus, no infinito, no eterno] vivemos, nos movemos e somos [agimos e
existimos historicamente, isto é, no tempo].” Estar emoldurado pela eternidade é um elemento
essencial da própria estrutura do tempo. Sem estar balizada pela simultaneidade, a sucessão seria
impossível: a própria idéia de tempo se esfarelaria numa poeira de instantes inconexos. Não é, pois,
de espantar que a consciência histórica se forme desde dentro do legado judaico-cristão como um
de seus frutos mais típicos. Mas, quando entre os séculos XVIII e XIX essa consciência se consolida
como domínio independente e floresce numa variedade de manifestações, entre as quais a “ciência
histórica”, a “filosofia da história” e a voga das idéias de “progresso” e “evolução”, nesse mesmo
instante a moldura eterna desaparece e a dimensão temporal passa a ocupar todo o campo de visão
socialmente dominante.
Uma das primeiras conseqüências dessa restrição do horizonte é que as idéias de “origem” e “fim”,
já não remetendo a uma dimensão supratemporal, passam a ser concebidas como meros capítulos
“dentro” do tempo – uma incongruência quase cômica que infectará com o germe da irracionalidade
muitas conquistas de uma ciência que se anunciava promissora. Entre as inúmeras manifestações da
teratologia intelectual que desde então sugam as atenções de pessoas bem intencionadas destacam-
se, por exemplo, as tentativas de datar o começo dos tempos a partir de uma suposta origem da
matéria, como se as leis que determinam a formação da matéria não tivessem de preexistir-lhe
eternamente; ou os esforços patéticos para abranger o conjunto do transcurso histórico num sistema
de “leis” que presumidamente o levam a um determinado estágio final, como se o estágio final não
fosse apenas mais um acontecimento de uma seqüência destinada a prosseguir sem término
previsível.
Se nas esferas superiores do pensamento florescem então por toda parte concepções pueris que
empolgam as atenções por umas décadas para depois ser atiradas à lata de lixo do esquecimento, o
distúrbio geral da percepção do tempo não poderia deixar de se manifestar também, até com nitidez
aumentada, em domínios mais grosseiros da atividade mental humana, como a política. E é aí que
as balizas eternas do tempo, reduzidas a capítulos especiais da seqüência temporal, passam a ser
vivenciadas como dois símbolos legitimadores da autoridade política.
De um lado, a mera antigüidade temporal do poder existente (que na realidade podia nem ser tão
antigo assim, apenas mais velho que seus inimigos) parecia investi-lo de uma aura celeste. O famoso
“direito divino dos reis”, que de fato não era uma instituição muito antiga, mas o resultado mais ou
menos recente do corte do cordão umbilical que atava o poder real à autoridade da Igreja, não é
senão a tradução em linguagem jurídico-teológica de uma vivência de tempo que identificava a
antigüidade relativa com a origem absoluta.
De outro lado, a perspectiva do Juízo Final, com o prêmio dos justos e o castigo dos maus quando da
reabsorção do tempo na eternidade, era espremida para dentro da imagem futura de um reino
terrestre de justiça e paz, de um regime político perfeito, que, paradoxalmente, seria ao mesmo
tempo o fim da história e a continuação da história.
Tal é a origem respectiva dos “reacionários” ou “conservadores” e dos “revolucionários” ou
“progressistas”. A direita e a esquerda modernas surgem de adaptações degradantes de símbolos
mitológicos, roubados à eternidade, comprimidos na dimensão temporal e transfigurados em deuses
de ocasião.
É evidente que, na estrutura do tempo real, não existe nem antigüidade sacra nem apocalipse
terrestre – nem direito divino dos reis nem carisma do profeta revolucionário. São, um e outro,
menos que mitos (pois uso o termo “mito” no sentido nobre de narrativa arquetípica, e não como
oposto de “verdade”). O rei não é o poder de Deus e o revolucionário não é um profeta. São apenas
dois sujeitos que se imaginam importantes, o primeiro porque toma a antiguidade da sua família
como se fosse a origem dos tempos, o segundo porque atribui a seus projetos de governo a grandeza
mítica do Juízo Final.
Direita e esquerda passaram por inúmeras variações e combinações ao longo dos últimos séculos.
Mas, onde quer que se perfilem com força suficiente para hostilizar-se mutuamente no palco da
política, essa distinção permanece no fundo dos seus discursos: direita é o que se legitima em nome
da antigüidade, da experiência consolidada, do conhecimento adquirido, da segurança e da
prudência, ainda quando, na prática, esqueça a experiência, despreze o conhecimento e, cometendo
toda sorte de imprudências, ponha em risco a segurança geral; esquerda é o que se arroga no
presente a autoridade e o prestígio de um belo mundo futuro de justiça, paz e liberdade, mesmo
quando, na prática, espalhe a maldade e a injustiça em doses maiores do que tudo o que se acumulou
no passado.
O fato de que tantas vezes os conteúdos dos discursos de direita e esquerda se mesclem e se
confundam explica-se facilmente pela precariedade mesma de seus símbolos iniciais de referência –
a antigüidade e o futuro –, os quais, não podendo dar conta da realidade concreta, exigem
dialeticamente ser complementados pelos seus respectivos contrários, fazendo brotar, dentro de
cada uma das duas regiões mentais em luta para distinguir-se e sobrepujar-se mutuamente, uma
área que já não é antagônica à sua adversária, mas é a sua imitação. É assim que, por exemplo, a
permanência conservadora pode ser projetada no futuro, numa espécie de utopia do existente,
como as aventuras coloniais com que os reis prometiam a expansão da fé. E é assim que o hipotético
mundo futuro do revolucionário busca revestir-se do prestígio das origens, apresentando-se como
restauração de uma perdida idade de ouro, como na doutrina do “bom selvagem” de Rousseau ou
no “comunismo primitivo” de Karl Marx. É inevitável, pois, que os conteúdos dos discursos
respectivos por vezes se confundam, mas só retoricamente, pois, na esfera da ação prática, tanto o
reacionário quanto o revolucionário se apegam firmemente às suas respectivas orientações no
tempo.
Por meio dessa distinção é possível captar a unidade entre diferentes tipos históricos de direitismo
e esquerdismo cuja variedade, de outra maneira, nos desorientaria. Um adepto do capitalismo liberal
clássico, portanto, podia ser um esquerdista no século XVIII, porque apostava numa utopia de
liberdade econômica da qual não tinha experiência concreta num universo de mercantilismo e
estatismo monárquico. Mas é um conservador no século XXI porque fala em nome da experiência
adquirida de dois séculos de capitalismo moderno e já não pretende chegar a um paraíso libertário
e sim apenas conservar, prudentemente intactos, os meios de ação comprovadamente capazes de
fomentar a prosperidade geral. Pode, no entanto, tornar-se um revolucionário no instante seguinte,
quando aposta que a expansão geral da economia de mercado produzirá a utopia global de um
mundo sem violência. Em cada etapa dessas transformações, o coeficiente de esquerdismo e
direitismo de sua posição pode ser medido com precisão razoável.
É inevitável, também, que, pelo menos em certos momentos do processo, esquerdistas e direitistas
se equivoquem profundamente no julgamento de si próprios ou de seus adversários. Da parte dos
direitistas, tanto hoje como ao longo de todo o século XX, a grande ilusão é a da equivalência. Como
estão acostumados à idéia de que direita e esquerda existem como dados mais ou menos estáveis
da ordem democrática, acreditam que essa ordem pode ser preservada intacta e que para isso é
possível “educar” os esquerdistas para que se afeiçoem às regras do jogo e não tentem mais destruir
a ordem vigente. Pelo lado esquerdista, porém, essa acomodação é impossível. No mundo dos
direitistas pode haver direitistas e esquerdistas, mas, no mundo dos esquerdistas, só esquerdistas
têm o direito de existir: o advento do reino esquerdista consiste, essencialmente, na eliminação de
todos os direitistas, na erradicação completa da autoridade do antigo. Foi por essas razões que os
EUA retiraram pacificamente suas tropas dos países europeus ocupados depois da II Guerra Mundial,
acreditando que os russos iam fazer o mesmo, quando os russos, ao contrário, tinham de ficar lá de
qualquer modo, porque, na perspectiva da revolução, o fim de uma guerra era apenas o começo de
outra e de outra e de outra, até à extinção final do capitalismo. A sucessão quase inacreditável de
fracassos estratégicos da direita no mundo deve-se, no fundo, a uma limitação estrutural do
direitismo: eliminar a esquerda completamente seria uma utopia, mas a direita não pode tornar-se
utópica sem deixar de ser o que é e transformar-se ela própria em revolucionária, absorvendo valores
e símbolos da esquerda ao ponto de destruir a própria ordem estabelecida que desejava preservar.
O fascismo, como demonstrou Erik von Kuenhelt-Leddin no clássico “Leftism: From De Sade and Marx
to Hitler and Marcuse” (1974), nasce da esquerda e arrebata a direita na ilusão suicida da revolução
contra-revolucionária. Ser direitista é oscilar perpetuamente entre uma tolerância debilitante e
acessos periódicos de ódio vingativo descontrolado e quase sempre vão. Mas a direita no Brasil está
em decomposição há décadas e não tem graça nenhuma falar dela.
A esquerda, por sua vez, como se apóia integralmente na imagem móvel de um futuro hipotético,
não pode julgar-se a si própria pelos padrões atualmente existentes, condenados “a priori” como
resíduos de um passado abominável. Seu único compromisso é com o futuro, mas quem inventa esse
futuro e o modifica conforme as necessidades estratégicas e táticas do presente é ela própria. Por
fatalidade constitutiva do seu símbolo fundador, ela é sempre o legislador que, não tendo autoridade
acima de si, legisla em causa própria, faz o que bem entende e, a seus olhos, tem razão em todas as
circunstâncias, embriagando-se na contemplação vaidosa de uma imagem de pureza e santidade
infinitas, mesmo quando chafurda num lamaçal de crimes e iniqüidades incomparavelmente
superiores a todos os males passados que prometia eliminar. Ser esquerdista é viver num estado de
desorientação moral profunda, estrutural e incurável. É mergulhar as mãos em sangue e fezes
jurando que as banha nas águas lustrais de uma redenção divina.
Por isso não se deve estranhar que o partido mais ladrão, mais criminoso, mais perverso de toda a
nossa História, o partido amigo de narcoguerrilheiros e ditadores genocidas, o partido que aplaudia
a liquidação de dezenas de milhares de cubanos desarmados enquanto condenava com paroxismos
de indignação a de trezentos terroristas brasileiros, o partido que condena os atentados a bomba
quando acontecem na Espanha e aplaude os realizados no Brasil, o partido que instituiu o suborno e
a propina como sistema de governo, seja também o partido que mais bate no peito alegando méritos
e glórias excelsos.
Ser esquerdista é ser precisamente isso.
***
Direita e esquerda são politizações de símbolos mitológicos cujo conteúdo originário se tornou
inalcançável na experiência comum. Elas existirão enquanto permanecermos no ciclo moderno, cujo
destino essencial, como bem viu Napoleão Bonaparte, é politizar tudo e ignorar o que esteja acima
da política. Não existirão para sempre. Mas, quando cessarem de existir, a política terá perdido pelo
menos boa parte do espaço que usurpou de outras dimensões da existência.

Diferença radical
Jornal do Brasil, 13 de outubro de 2005

Há quem julgue o manifesto dos clubes militares um aceno de esperança. Para avaliá-lo, no entanto,
é preciso confrontá-lo com a situação objetiva a que ele professa responder. Por mais turva que seja
essa situação, um dos fatos que a integram paira acima dos outros e ilumina o sentido do conjunto
com fulgurante claridade: o sr. presidente da República, acusado de vários crimes e de cumplicidade
em outros tantos, negou todos eles mas já confessou o pior de todos. Ele admitiu, em documento
oficial, que toma decisões de governo em reuniões secretas com ditadores e narcotraficantes
estrangeiros, premeditadamente calculadas para desviar as atenções do povo brasileiro, do
Congresso, da justiça, das Forças Armadas, etc. Negação absoluta da soberania nacional, a
declaração expressa o desprezo completo do sr. presidente às instituições e à vontade popular,
barradas na entrada por falta de convite enquanto a portas fechadas ele resolve os destinos da nação
em parceria com interlocutores mais dignos da sua confiança: a narcoguerrilha colombiana,
o Sendero Luminoso, o MIR chileno etc. É o mais cínico e brutal insulto que, em atos e depois em
palavras, qualquer governante deste mundo já fez ao seu país, ao seu povo, à Constituição, às leis e
ao cargo que ocupa. E todos os que tomaram conhecimento dessa declaração sabem que ela não é
mero floreio de linguagem: é a afirmação literal de um fato que as atas e resoluções do Foro de São
Paulo confirmam da maneira mais incontornável.
Diante disso, um protesto que se limite a endossar o falatório da mídia contra “a corrupção”, sem
tocar nem de leve no escândalo supremo, acaba por fornecer ao réu confesso um álibi para
amortecer o sentido de suas palavras e fazer com que ele não venha a ser acusado senão de ofensas
bem menores do que aquela que admitiu ter praticado.
É claro que não foi essa a intenção dos signatários, homens honrados que conheço e respeito. Se
diante da gravidade imensurável da confissão presidencial eles preferem falar de outra coisa, não é
porque desejam colaborar na ocultação do crime. É porque, atônitos como o restante da população,
já não atinam com a diferença radical, com a desproporção monstruosa entre os males de agora e
os de sempre. Quando a perceberem, será tarde para assinar manifestos.
***
Há mais de uma década recebo mensagens desesperadas de alunos e professores que, por
desaprovarem a propaganda comunista imperante nas suas escolas, sofrem discriminação e
constrangimento. A glorificação do comunismo e a exclusão dos divergentes já se tornaram normas
tácitas aplicadas em toda a rede de ensino, pública ou privada.
Mas agora parece que a escalada da opressão escolar deu um “salto qualitativo”. Francisco Peçanha
Neves, professor de filosofia no Colégio de Aplicação do Rio de Janeiro, adverte que os alunos,
enraivecidos pelas suas idéias políticamente incorretas, passaram dos insultos às ameaças diretas de
agressão física, diante dos olhos complacentes da direção do estabelecimento. Diremos que é uma
epidemia de indisciplina? Ao contrário. É disciplina. É ordem. É obediência às regras de uma ideologia
que o próprio ministro da Educação admira e cultua. O Colégio de Aplicação não é uma Casa de Mãe
Joana. É um modelo de educação comunista.
***
No artigo anterior, de tanto compactar a argumentação, cometi um lapso que no entanto não a
invalida em nada. É claro que as armas roubadas do Estado não entram na classificação “origem
ilegal”, como inadvertidamente dei a entender. O que eu quis dizer é que não cabe incluí-las, como
fazia o Globo , entre os argumentos contra a posse de armas pelos cidadãos comuns. Se, de acordo
com o mesmo jornal, os civis têm dez vezes mais armas do que o Estado, e se onze por cento das
armas apreendidas com bandidos eram de propriedade estatal, então é patente que elas não
estavam mais protegidas contra roubo do que o estariam sob a guarda de qualquer um de nós. O
Estado só quer nos desarmar para ter o monopólio do direito de ser roubado.

O reinado das trevas


O Globo, 23 de abril de 2005

Nas suas célebres “Reflexões sobre a História” (1905), o historiador suíço Jacob Burckhart discerne
três fatores ativos na história européia: o Estado, a religião e a cultura. Correspondem às três raízes
da civilização ocidental apontadas por Ernest Renan: a organização romana do poder, a revelação
judaico-cristã e a filosofia grega. Mas já aparecem no Codex Justinianum (539), com sua definição
das funções do imperador como comandante militar, como defensor da fé e como intérprete das
leis segundo critérios racionais aprendidos, em última análise, dos gregos.
O ressurgimento da idéia em fontes tão separadas basta para ilustrar a permanência dos três
fatores e a sua função no equilíbrio civilizacional. A tensão entre o Estado, a Igreja e os intelectuais
não é só o fio condutor da história ocidental: é o padrão distintivo entre as épocas de liberdade e
de opressão. A opressão sobrevém quando uma das três forças subjuga as outras duas, rompendo
a articulação normal. A estabilidade democrática da Inglaterra e dos EUA proveio de que a fé
intelectual dominante (o cientificismo positivista) imperou no microcosmo universitário sem
arruinar a religião geral e a ordem pública. Na Rússia dos tzares, o Estado fundido à Igreja esmaga a
filosofia e a ciência. Em 1917, os intelectuais transmutados em revolucionários conquistam o poder
político e esmagam a religião. Na Alemanha nazista, a força expansiva do Estado sufoca por igual a
cultura e a Igreja. Por toda parte, a tripla distinção burckhardtiana não cessa de mostrar sua
fecundidade. Aplicada ao Brasil, permite delinear com muita clareza o quadro presente.
Reagindo aos militares, a intelectualidade ativista dos anos 60 recorre à estratégia gramsciana de
domar a sociedade pela hegemonia cultural antes de aventurar-se à conquista do poder político.
Por volta de 1990 a hegemonia é fato consumado: símbolos e valores da esquerda, tão
disseminados que já não são reconhecidos como tais, dominam todo o panorama dos debates
públicos, da arte e da mídia. A conquista do Estado, na via aberta pelo rolo compressor da
hegemonia, vem em 2002, numa eleição disputada “em família” entre quatro candidatos de
esquerda. Daí por diante já não existe, na prática, atividade intelectual independente: artistas,
professores, juristas, jornalistas tornam-se os sacerdotes do unanimismo, permanecendo-lhe fiéis
mesmo quando ele os decepciona e colaborando docilmente para que todo fato que o desabone
além das conveniências permaneça ignorado do público. Críticas esporádicas anulam-se a si
próprias por meio das ressalvas laudatórias de praxe e não alteram a situação.
O establishment cultural e midiático integrou-se ao poder de Estado. A política, doravante, reduz-
se à disputa superficial de cargos e vantagens entre facções irmanadas pela identidade dos fins
ideológicos.
Mas essa formidável condensação de poderes ainda não se sente segura. Não conquistou por
inteiro os corações e mentes. O apego popular a valores religiosos tradicionais pode oferecer
resistência, ao menos passiva, à consolidação do poder. Começa a luta pela conquista da Igreja.
Enquanto o último fiel não tiver abandonado o cristianismo para aderir à “teologia da libertação”, o
processo não estará completo. Daí a insistência geral da mídia não só em equacionar as questões
religiosas segundo categorias ideológicas pré-moldadas, mas também em impor como intérpretes
máximos da doutrina as figuras espiritualmente irrisórias, se não diabolicamente caricaturais, dos
srs. Frei Betto e Leonardo Boff.
Graduando com habilidade pavloviana a engenharia do caos e a esperança falaciosa de uma ordem
salvadora, a revolução gramsciana no Brasil vai-se consolidando aos poucos, sem traumas
intoleráveis, minando as resistências pelo cansaço, legitimando-se pela força inconsciente do
hábito e avançando com firmeza tranqüila na direção do único totalitarismo perfeito, aquele que o
próprio Gramsci descrevia como um poder onipresente, insensível e invisível: o reinado das trevas,
fundado na ignorância geral da sua natureza e até da sua existência.

Entre Lúcifer e Satã


Jornal do Brasil, 23 de março de 2006

O que quer que você pense ou diga, por mais importante, elevado e bonitinho que lhe pareça, está
sendo pensado ou dito dentro do quadro da realidade e não acima dele; é somente mais um
acontecimento sucedido dentro do fluxo temporal e cósmico no qual você é arrastado como os dias,
as vidas, os átomos e as galáxias, e não uma escapada miraculosa para fora e para cima de tudo o
que existe. Ainda que o conteúdo intencional desses pensamentos se refira ao “todo”, ao “universo”,
o fato de você pensá-lo não coloca você acima do todo, como um juiz soberano e transcendente,
mas apenas imita, desde dentro da imanência, aquele aspecto limitado da transcendência no qual
você está pensando nesse momento. Nenhum ser humano julga o universo, a totalidade do real.
Quando ele inventa sentenças que parecem fazer isso, o máximo que consegue é julgar-se a si
mesmo.
Isso não quer dizer que, desde dentro da realidade sensível, você não faça a mínima idéia do que há
para além dela. O simples fato de você poder criar aqueles julgamentos, ainda que errados, já mostra
que algo, desde dentro e desde baixo, você consegue apreender do que está fora e acima. Digo
“apreender” e não apenas “imaginar”, como preferiria Kant, porque se fosse apenas imaginado seria
arbitrário e não suscetível de fiscalização racional ou confronto com a experiência; e o fato mesmo
de estarmos discutindo isso já prova que não é assim. Por isso, se sobre a totalidade você nada pode
dizer que a transcenda, a abarque e a julgue desde o além, também nada pode impedi-lo de olhar
para esse além e saber algo a respeito. Se estivéssemos totalmente presos na imanência e na
finitude, uma inteligência capaz de apreender as noções de infinito e de absoluto seria um luxo
biológico inexplicável (a hipótese de que tenhamos chegado a isso pelo acúmulo de pequenas
ampliações quantitativas da inteligência símia é simiesca em si mesma).
As duas máximas ilusões dos filósofos, ao longo dos tempos, foram precisamente essas: uns
pretenderam transcender a totalidade e julgá-la, outros decretaram que nada podemos saber sobre
a transcendência. Uns quiseram nos transformar em deuses; outros, em bichinhos inermes
separados da transcendência por fronteiras cognitivas intransponíveis.
Na Bíblia, esses dois erros fatais da inteligência humana já estavam anunciados com muita precisão.
A ilusão de julgar o mundo enquanto se está dentro dele é o “conhecimento do bem e do mal” que
a serpente promete a Eva. O muro que veda o acesso à transcendência é a “insensatez” que limita a
visão da existência à esfera do imediatamente acessível.
Esses dois erros têm nomes técnicos tradicionais, derivados da mesma raiz: gnosticismo e
agnosticismo. O primeiro promete a posse de um conhecimento impossível; o segundo inibe e frustra
a aquisição de um conhecimento possível. Correspondem a dois nomes do demônio: Lúcifer e Satã.
O demônio da falsa luz e o demônio das trevas falsamente triunfantes. O demônio do conhecimento
errado e o demônio da ignorância soberba.
Platão e Aristóteles já sabiam que a condição humana não é nem conhecimento, nem ignorância,
mas a tensão permanente entre esses dois pólos, o primeiro pertencendo aos deuses, o segundo aos
animais.
O que caracteriza a filosofia moderna como um todo é a perda dessa dialética tensional, a
proclamação alternada do conhecimento absoluto e da ignorância invencível. De um lado, a
metafísica onipotente de Descartes e Spinoza; de outro, o ceticismo radical de Hume. É verdade que
Kant quis encontrar uma via média, mas, ao limitar as possibilidades de conhecimento aos
fenômenos sensíveis e às formas vazias da razão, reduzindo à pura imaginação e à fé o acesso à
transcendência, criou a forma mais requintada e letal de agnosticismo moderno. Como que em
compensação, ergueu no horizonte a miragem gnóstica da “paz eterna”, tornando-se o profeta da
burocracia global e de um cristianismo biônico sem nenhum Cristo de carne e osso.

O império da vontade
Jornal do Brasil, 5 de janeiro de 2006

Se há um esforço inútil, embora inevitável, é o de contestar o relativismo. É inevitável porque


objeções relativistas são fáceis de aprender, fáceis de repetir e acessíveis gratuitamente a qualquer
bobão interessado em debater o que ignora. Não importa o que você diga, elas começarão a saltar
por todo lado como sapinhos histéricos, e você não terá remédio senão sair caçando uma a uma ou
admitir que teria sido melhor ficar quieto desde o início.
Não que a dificuldade de caçá-las seja notável. Superar o relativismo é a escola maternal da
filosofia (ingressar nele é o berçário). O problema é que, sendo meras combinações automáticas de
juízos, prescindindo de qualquer apreensão da realidade, elas têm uma facilidade enorme de
reproduzir-se em formatos variados, diferentes só em aparência, sem a menor chance de o
interlocutor fazer parar a proliferação mecânica de ranhetices mediante o apelo à percepção dos
fatos. É como você discutir online com um programa de computador, sem nenhuma consciência
humana para lhe responder do outro lado da linha.
Pior ainda: por serem imunes ao teste da realidade, as objeções relativistas não podem ser objetos
de crença. Crer num juízo é crer na realidade do seu conteúdo. Abstraída a realidade, a mente
opera num espaço separado onde pode haver apenas autopersuasão hipotética, como num teatro.
Não crença efetiva. No mundo real, essas objeções só podem funcionar como atenuantes de
crenças positivas, nunca tornar-se elas próprias crenças positivas. Nesse sentido, todo mundo é um
pouco relativista quando revê suas idéias (ou as alheias) e as hierarquiza segundo o grau de certeza
que parecem ter. Mas ninguém é relativista além desse ponto. Nenhum relativista acredita em
relativismo, exceto de maneira experimental e provisória. Debater com ele só pode servir para
treinamento ou diversão e para nada mais.
O corolário é incontornável: se ele insiste muito nas objeções, se as defende com o ardor de quem
acreditasse nelas positivamente, está fingindo. Ele crê em alguma outra coisa, e usa as investidas
relativistas como barreira de proteção para que sua própria crença não seja posta em exame. Todo
ataque relativista muito enfático encobre um autoritarismo secreto que mantém o adversário
ocupado na defensiva só para poder em seguida triunfar sem discussão. Reparem na presteza com
que esse tipo de relativista, ao sair do exame das opiniões adversárias para a defesa das suas
próprias, passa do discurso dubitativo às afirmações intolerantes que se ofendem até às lágrimas,
até à apoplexia, ante a simples ameaça de objeções. O relativismo militante é um véu de análise
racional feito para camuflar a imposição, pela força, de uma vontade irracional. Sua função é
cansar, esgotar e calar a inteligência para abrir caminho ao “Triunfo da Vontade”. É um método de
discussão inconfundivelmente nazista.
Se você estudar Nietzsche direitinho, verá que toda a filosofia dele não é senão a sistematização e
a apologética desse método, hoje adotado pela tropa inteira dos ativistas politicamente corretos.
Por trás de toda a sua estudada complexidade, a estratégia do nietzscheísmo é bem simples: trata-
se de dissolver em paradoxos relativistas a confiança no conhecimento objetivo, para que, no
vácuo restante, a pura vontade de poder tenha espaço para se impor como única autoridade
efetiva. Descontada a veemência do estilo pseudoprofético, não raro inflado de
hiperbolismo kitsch , não há aí novidade nenhuma. É o velho Eu soberano de Fichte, que abole a
estrutura da realidade e impera sobre o nada. É a velha subjetividade transcendental de Kant, que
dita regras ao universo em vez de tentar conhecê-lo. É o velho mestre Eckart, proclamando
modestamente que Deus precisa dele para existir. É o velho sonho alemão de ser o umbigo do
mundo, ou melhor, de fazer do mundo um apêndice do umbigo. Adolescentes vibram com coisas
assim. Só alguns deles crescem para perceber a diferença entre essas frescuras e a autêntica
filosofia.

Ateus e ateus
Jornal do Brasil, 15 de março de 2007

Há dois tipos de ateus: os que não acreditam que Deus existe e os que acreditam piamente que
Deus não existe. Os primeiros relutam em crer naquilo de que não têm experiência. Os segundos
não admitem que possa existir algo acima da sua experiência. A diferença é a mesma que há entre
o ceticismo e a presunção de onissapiência.
Acima da distinção de ateus e crentes existe a diferença, assinalada por Henri Bergson, entre as
almas abertas e as almas fechadas. Vou explicá-la a meu modo. Como tudo o que sabemos é
circunscrito e limitado, vivemos dentro de uma redoma de conhecimento incerto cercada de
mistério por todos os lados. Isso não é uma situação provisória. É a própria estrutura da realidade,
a lei básica da nossa existência. Mas o mistério não é uma pasta homogênea. Sem poder decifrá-lo,
sabemos antecipadamente que ele se estende em duas direções opostas: de um lado, a suprema
explicação, a origem primeira e razão última de todas as coisas; de outro, a escuridão abissal do
sem-sentido, do não-ser, do absurdo. Há o mistério da luz e o mistério das trevas. Ambos nos são
inacessíveis: a esfera de meia-luz em que vivemos bóia entre os dois oceanos da claridade absoluta
e da absoluta escuridão.
O simbolismo imemorial dos estados “celestes” e “infernais” demarca a posição do ser humano no
centro do enigma universal. Essa situação – a nossa situação – é de desconforto permanente. Ela
exige de nós uma adaptação ativa, dificultosa e problemática. Daí as opções da alma: a abertura ao
infinito, ao inesperado, ao heterogêneo, ou o fechamento auto-hipnótico na clausura do
conhecido, negando o mais-além ou proclamando com fé dogmática a sua homogeneidade com o
conhecido. A primeira dá origem às experiências espirituais das quais nasceram os mitos, a religião
e a filosofia. A segunda leva à “proibição de perguntar”, como a chamava Eric Voegelin: a repulsa à
transcendência, a proclamação da onipotência dos métodos socialmente padronizados de
conhecer e explicar.
A religião é uma expressão da abertura, mas não é a única. A simples admissão sincera de que pode
existir algo para lá da experiência usual basta para manter a alma alerta e viva. É possível ser ateu e
estar aberto ao espírito. Mas o ateu militante, doutrinário, intransigente, opta pela recusa
peremptória do mistério, deleitando-se no ódio ao espírito, na ânsia de fechar a porta do
desconhecido para melhor mandar no mundo conhecido.
Dostoiévsky e Nietzsche bem viram que, abolida a transcendência, só o que restava era a vontade
de poder. Aquele que proíbe olhar para cima faz de si próprio o topo intransponível do universo. É
uma ironia trágica que tantos adeptos nominais da liberdade busquem realizá-la através da
militância anti-religiosa. As religiões podem ter-se tornado violentas e opressivas ocasionalmente,
mas a anti-religião é totalitária e assassina de nascença. Não é uma coincidência que a Revolução
Francesa tenha matado dez vezes mais gente em um ano do que a Inquisição Espanhola em quatro
séculos. O genocídio é o estado natural da modernidade “iluminada”.

Duas notinhas
Zero Hora, 30 de abril de 2006

A filosofia é uma aventura espiritual extrema, na qual você não obtém nada se não arrisca nela seu
bem-estar, sua posição na comunidade e sua segurança psicológica. Mas estas são três coisas que
em geral os brasileiros prezam demais, talvez por viverem numa sociedade tão instável e precisarem
desesperadamente de muletas psicológicas.
A maior parte das pessoas que imaginam querer estudar filosofia estão apenas em busca de uma
profissão universitária, de uma identidade grupal ou de uma crença coletiva que lhes dê segurança.
Jamais pagariam o preço da solidão intelectual necessária ao genuíno exercício da filosofia.
É muito bonito, por exemplo, discursar contra as certezas, simular independência mediante a
apologia da dúvida. Isso tornou-se quase um cartão de ingresso nos círculos bem-pensantes. Mas
outra coisa totalmente diversa é estar realmente mergulhado num mar de dúvidas, sem outro pólo
de orientação senão o desejo firme de encontrar a verdade mais dia menos dia. Esta experiência é
absolutamente inacessível à geração de estudantes que, desde a primeira aula, são anestesiados por
injeções de marxismo-desconstrucionismo, uma mistura letal destinada a infundir nos cérebros a
crença dupla e paralisante de que, por um lado, a verdade não existe e, por outro, de que já a
possuem em dose suficiente para saber com precisão quais são os males do mundo, quem é o
culpado por eles e o que se deve fazer para eliminar de uma vez os males e os culpados. Viciadas
nessa dissonância cognitiva desde tenra idade, não é de espantar que as vítimas desse gabinete de
horrores que é o ensino universitário brasileiro se tornem cronicamente incapacitadas para o
exercício da filosofia e dispostas a aceitar por esse nome qualquer sucedâneo de terceira ordem que
seus professores lhes forneçam.
***
Mediante uma torção verbal bem característica da malícia comunista, a autora de um insulto brutal
e premeditado aos sentimentos religiosos dos brasileiros tem aparecido na mídia como vítima de
censura e opressão clerical. Entre as almas caridosas que oferecem sua solidariedade a esse engodo,
destacam-se o sr. Gilberto Gil – ministro de uma coisa que ele nem sabe o que é — e o criador de
uma “Coleção de Vulvas Metálicas”, expostas ao lado do pênis da srta. Márcia X, e agora, para grande
prejuízo cultural da humanidade, cobertas de luto em protesto contra a retirada daquele sublime
objeto de prazer artístico. As vulvas metálicas só voltarão a mostrar-se em público quando o pênis
expulso foi reintroduzido no saguão do Centro Cultural Banco do Brasil, Candelária, Rio de Janeiro.
Vamos deixar uma coisa bem clara: há um constante e obstinado genocídio de cristãos no mundo.
Nem por ser ocultado pela mídia ele deixa de ser uma realidade (quem quiser se manter informado
a respeito, acompanhe o site www.persecution.com). No consenso jurídico mundial, a propaganda
contra um grupo ameaçado de discriminações, perseguições e genocídio é cumplicidade moral com
o crime. O que pesa contra a srta. Márcia X é esse delito abjeto, e não a simples infração de
preconceitos moralistas. Ao apresentá-la como alvo de censura fundamentalista, a mídia porca tenta
apenas camuflar a verdadeira gravidade do ataque feroz que ela dirigiu a uma comunidade vítima de
discriminação crescente nos países ocidentais e ameaçada de extinção nas nações islâmicas e
comunistas.
Cúmplices do mesmo delito são todos os que se solidarizam com a criadora do pênis de terços. E
mais grave ainda é essa cumplicidade quando aquele que a encarna é um ministro de Estado. O fato
de o sr. Gil ser um pseudo-intelectual de miolo mole, como num momento de rara lucidez ele próprio
se admitiu, não constitui atenuante nenhum. Burrice e maldade jamais foram termos antagônicos.

A ousadia da ignorância
Jornal do Brasil, 30 de março de 2006

A convocação iluminista à “autonomia de pensamento”, condensada na palavra-de-


ordem kantiana Aude sapere! (“Ouse saber!”), é compreendida vulgarmente como um apelo a que
cada um se livre de autoridades externas e siga apenas a sua própria razão.
A liberdade iluminista opõe-se então à coerção tradicional como a discriminação prudente se opõe
à credulidade irrefletida, a inteligência ao temor irracional, o conhecimento à ignorância, a luz às
trevas.
Mas isso é só uma imagem popular, um slogan publicitário. Serve para excitar a massa adolescente,
camuflando o verdadeiro sentido do programa iluminista.
A divisa Aude sapere! associa-se intimamente a outro topos da filosofia de Kant, a “revolução
copernicana” da estrutura do saber. Kant entendia por esse termo a inversão radical da hierarquia
do conhecimento, operada com o objetivo de fazer com que a razão, em vez de se amoldar à
realidade dos fatos, assuma o comando da situação e imponha aos fatos a sua própria ordem. Esta é
conhecida mediante a análise das condições necessárias a “todo conhecimento possível”: a estrutura
da percepção e a estrutura da razão. A razão tem, por definição, validade universal, mas, por si, ela
só conhece formas gerais abstratas. Tudo o que conhecemos da realidade concreta vem filtrado pela
nossa estrutura de percepção, de modo que nada sabemos das coisas em si, mas apenas daqueles
seus aspectos – os “fenômenos” ou aparências — que passam por esse filtro. Mas, como o desenho
do material sensível é determinado pelo nosso aparato de percepção, é forçoso concluir que, fora
do que esse aparato pode captar, o mundo é apenas uma massa caótica de sinais. Essa massa adquire
forma, ordem e sentido quando passa pelo filtro da nossa percepção e em seguida é validada pelos
princípios universais da razão. Mas, se tudo o que nos é acessível vem do nosso aparato de
percepção, e se as percepções por sua vez têm de ser enquadradas nas categorias do pensamento
racional, o resultado é que nossa razão é soberana em face de todo objeto de conhecimento possível:
ela não tem de prestar satisfações a nenhuma “realidade” externa, mas, ao contrário, ela determina
as condições que essa realidade tem de cumprir para ser admitida no mundo do conhecimento.
A famosa “autonomia do pensamento”, então, não consiste essencialmente em estar livre de
autoridades clericais ou governamentais, mas em desprezar a coerção externa dos fatos. Tal é o
sentido da “revolução copernicana” no pensamento. Na ciência antiga, medieval e renascentista, a
ordem total do mundo em que vivemos era o juiz soberano do conhecimento. A razão humana não
passava de uma manifestação parcial e limitada dessa ordem total que, em nós, se reconhecia a si
mesma na medida das nossas possibilidades, restando sempre um horizonte de mistério que recuava
a cada novo avanço do conhecimento. Com Kant, a razão humana proclamava sua independência do
mundo externo, mudando radicalmente o sentido da “verdade”. Antes, a verdade consistia na
coincidência do pensado com a ordem dos fatos conhecidos. Agora, passava a ser a obediência a
uma filtragem racional predeterminada, a um método livremente concebido pela razão por meio da
análise kantiana de si mesma. O que quer que estivesse fora do método, por mais patente que fosse
sua presença, era desprezado como irrelevante, nulo e por fim inexistente. E assim é até hoje nos
círculos bem-pensantes, onde uma autoridade censória mais burra e intolerante do que todas as
anteriores recorta o mundo no formato da sua ignorância, abolindo continentes inteiros da
realidade. A sentença “Se os fatos não confirmam a minha teoria, pior para os fatos” é de Hegel, mas
ela expressa antes a quintessência do iluminismo kantiano. O sentido interior, esotérico, do “Ouse
saber”, é no fim das contas “Ouse ignorar”: entre os fatos e o método, prefira o método.
Obscurantismo é o nome secreto do iluminismo.
A glória definitiva da inépcia
Jornal do Brasil, 08 de novembro de 2007

O benefício essencial da educação universitária, segundo a fórmula consagrada que nominalmente


a define, é fornecer ao estudante um ambiente highbrow onde ele possa ter uma experiência
condensada do conjunto sistêmico dos conhecimentos disponíveis, de modo a que o
desenvolvimento da sua mente individual se amolde à “forma” geral da cultura superior existente.
Ora, esse benefício é precisamente o que não se pode receber de nenhuma universidade brasileira.
As lacunas de conhecimento evidenciadas na obra dos mais afamados profissionais acadêmicos
neste país, ao menos nas áreas de filosofia e ciências humanas, são tão imensas, tão graves e tão
imperdoáveis, que o conteúdo restante tem a figura exata das produções autodidáticas mais
descabidas, provincianas e distanciadas das correntes vivas do pensamento universal.
A prova do que estou dizendo foi dada uns anos atrás pelo “Dicionário Crítico do Pensamento da
Direita”, que, por ser obra de cento e tantos dentre os mais badalados professores universitários
brasileiros, ricamente subsidiada pelo governo e por grandes empresas, refletia muito bem aquilo
que no Brasil se aceita como autoridade intelectual e prestígio acadêmico. O que nessa obra se via
era a ignorância radical de um assunto por parte daquelas mesmas criaturas que eram reconhecidas
pelo Estado e pelas classes falantes como capacitadas maximamente a ensiná-lo (v. Tudo o que você
queria saber sobre a direita – e vai continuar não sabendo). O fato de que o principal apologista da
coisa, em vez de penitenciar-se da cumplicidade com o vexaminoso embuste, se arvore ele próprio
em arquiteto e coordenador de uma portentosa summa coletiva, desta vez consagrada à política
latino-americana mas tão carregada de inépcias quanto o supracitado cartapácio, já seria por si
indício grave de que está extinta ou em vias de extinção entre nós a consciência do que possam ser
os deveres, mesmo mínimos, da probidade acadêmica. Mas que o fruto dessa impudência, em vez
de ser examinado com a severidade que a lembrança do episódio anterior recomenda, seja
afoitamente laureado com o prêmio maior da indústria livreira nacional, torna claro que a leviandade
e a torpeza se transmutaram, de puras carências que eram, em deveres positivos e em provas de
mérito socialmente reconhecidas. Se, reduzido a uma paródia grotesca em virtude dessa celebração
da estupidez, o mesmo prêmio é oferecido postumamente a Bruno Tolentino, eis algo que não posso
considerar senão uma ofensa à memória daquele que foi não somente o maior dos nossos poetas,
mas também um autêntico scholar — algo que entre os donos da opinião pública já ninguém mais
parece saber o que seja.
È inevitável, aliás, que estas minhas observações venham a ser diagnosticadas por aí como meras
efusões de “divergência política”, senão de um fanático “extremismo de direita”. A facilidade mesma
com que simples cobranças de seriedade no exercício da função intelectual sejam rotineiramente
desconsideradas em nome de pretextos ideológicos é o sinal mais patente de que a carteirinha de
identidade partidária se tornou, neste país, o critério único para a admissão nos altos postos da
educação e da cultura, pouco importando que seu portador escreva “Getúlio” com LH.
***
N. B. – Creio ter errado ao informar, no artigo anterior, que Tim Berners-Lee é católico. Leitores, aos
quais agradeço a informação, asseguram-me que é unitarista.

A lógica da destruição
Diário do Comércio, 06 de agosto de 2007

Não conheço hoje em dia um único esquerdista que consiga ler uma página inteira de Hegel, mas
na prática a conduta política e até pessoal de todos eles reflete a lógica do filósofo de Jena com
uma exatidão quase literal. O modo dialético de pensar se impregnou tão profundamente na
cultura do movimento revolucionário, que se transmite aos militantes, simpatizantes e
“companheiros de viagem” por impregnação passiva de hábitos, de símbolos, de reações
emocionais, de giros de linguagem, sem necessidade de aprendizado consciente nem possibilidade
de filtragem crítica.
Os adversários do esquerdismo, por sua vez, estão de tal modo habituados a esquemas de
pensamento lógico-formais, absorvidos seja das ciências naturais, seja da economia austríaca, seja
mesmo da formação escolástica no caso dos católicos, que tendem incoercivelmente a explicar a
conduta esquerdista em termos da coerência linear entre doutrina e prática, ou entre fins e meios,
e assim perdem de vista o que há de mais característico no movimento revolucionário, que é
justamente o aproveitamento sistemático das contradições. Só isso pode explicar que seus
repetidos sucessos no campo econômico e tecnológico sejam acompanhados de derrotas cada vez
mais espetaculares na cultura e na política.
Não posso aqui dar um resumo da filosofia de Hegel, mas há alguns pontos mínimos sem os quais
nenhuma compreensão da mente esquerdista é possível. Quem não tiver a paciência de aprendê-
los deve portanto conformar-se em ser vítima inerme e cega do processo revolucionário, sem
direito a sentir-se perplexo quando este o conduzir a um campo de trabalhos forçados ou à vala
comum dos “inimigos de classe”.
Desde que Platão enfatizou a separação entre o mundo dos entes corpóreos e o mundo das
“idéias” (ou mais propriamente “formas”), a distinção entre o absoluto e o relativo, entre o Ser e os
entes, entre o permanente e o transitório, entre estrutura e processo, se incorporou às raízes do
pensamento filosófico e científico no Ocidente ao ponto de que não é exagero resumir todo o
esforço intelectual de dois milênios e meio na busca dos fatores estáveis por trás dos fenômenos
em mudança. A idéia mesma de “leis científicas” é isso e nada mais.
O empreendimento de Hegel consistiu em introduzir nesse sistema de distinções uma confusão
profunda, geral e aparentemente insanável. Partindo da observação milenar de que o mundo dos
fenômenos é uma aparência ou manifestação do fundamento absoluto, ele dá um giro de cento e
oitenta graus na relação entre os dois mundos e reduz o absoluto ao conjunto das suas
manifestações relativas. Diz ele que o Ser, considerado em si mesmo, é idêntico ao nada; só a
sucessão das suas manifestações temporais lhe dá alguma consistência; logo, o tempo é a
substância da eternidade, o devir é a única realidade do ser. Já expliquei em outro lugar por que
essas teses são absurdas e por que não acredito que Hegel as tenha emitido por mero engano, e
sim por vigarice consciente (v. O Jardim das Aflições , São Paulo, É Realizações, 2004, pp. 168-169 e
176-179). Mas o que interessa aqui é mostrar as conseqüências metodológicas que ele tirou delas,
pois foram essas conseqüências que acabaram por moldar a mentalidade do movimento
revolucionário.
Se o devir é o Ser e se o único processo autoconsciente no conjunto do devir é a história humana,
esta se torna automaticamente o campo por excelência da auto-realização do Ser. O Espírito, o
Absoluto ou Deus é uma potencialidade inconsciente de si, que só se conhece e se realiza no
processo histórico tal como Hegel o compreende (o que implica, naturalmente, que Hegel em
pessoa seja o ponto mais alto da autoconsciência divina, modéstia à parte). Como no curso do
processo todos os momentos altos e baixos são igualmente necessários, todos eles são igualmente
portadores da verdade. A diferença entre a aparência e a realidade, que para o pensamento antigo
coincidia com a fronteira entre o transitório e o permanente, é assim sutilmente deslocada para
dentro do terreno do próprio transitório: a única verdade de cada fenômeno é o lugar que ele
ocupa no conjunto do processo (tal como Hegel entende o processo). O falso, o ilusório, é apenas o
que está isolado do processo, mas, como nada está isolado do processo, o falso não existe, é
apenas uma aparência de falsidade. A verdade, por sua vez, consiste apenas em estar inserido no
fluxo total, isto é, em ir para onde Hegel acha que as coisas vão.
Essa é a lei profunda que orienta e unifica o movimento revolucionário em todas as suas variantes
e modificações. Por exemplo, é notório que Marx ou Lênin jamais se preocuparam em descrever
como seria a futura sociedade socialista. Ao mesmo tempo, asseguram que todo o movimento
histórico vai na direção do socialismo. Mas como é possível saber com certeza que um certo
desenlace é inevitável, se não se sabe nem mesmo dizer que desenlace é esse? A resposta implícita
é a seguinte: não é a finalidade que determina o processo, mas o processo é que determina a
finalidade. Esta não é senão o processo mesmo considerado na sua totalidade. Isso implica,
naturalmente, que a finalidade conscientemente alegada em cada momento pode mudar de figura
um número infinito de vezes sem que se perca a unidade do processo. Por isso é que os
esquerdistas tanto mais se apegam à unidade do movimento revolucionário quanto mais os
objetivos pelos quais lutam em vários lugares e momentos são inconexos e contraditórios entre si.
Os militantes seguem a liderança com igual fidelidade quando ela os manda fomentar a economia
de mercado ou substituí-la pela estatização dos meios de produção; quando ela os manda
combater todo nacionalismo como expressão da obstinação reacionária ou, ao contrário, criar
movimentos nacionalistas; quando ela apóia o nazismo ou luta contra o nazismo; quando ela
condena a liberdade sexual como sinal da decadência burguesa ou quando ela fomenta a mais
extrema anarquia erótica contra o império do “moralismo burguês”. E assim por diante. O
observador alheio às sutilezas do esquerdismo vê nisso incoerências escandalosas que, a seu ver,
ameaçam a unidade do movimento revolucionário ao ponto de torná-lo inofensivo perante os
triunfos econômicos e técnicos do capitalismo. Mas é dessas incoerências que se alimenta o
processo – e o processo é tudo. Quando já no século XIX os revolucionários adotaram o uso de
designar-se a si próprios genericamente como “o movimento”, estava claro para eles que a unidade
desse movimento não estava na luta por objetivos definidos, mas na capacidade ilimitada de
comandar o processo total das transformações, pouco importando a direção para onde estas
fossem a cada momento. A ambigüidade, as manobras em zigue-zague, a incoerência mais
alucinante incorporaram-se não só à práxis do movimento revolucionário, mas à personalidade de
cada um dos seus participantes, tornando-as virtualmente incompreensíveis ao adversário que
desconheça dialética de Hegel.
Hegel acrescentou a essa concepção a idéia peculiarmente diabólica do “trabalho do negativo”. O
movimento deve reduzir ao mínimo indispensável o compromisso com objetivos definidos e
concentrar-se na destruição do existente. A destruição acabará determinando os objetivos em cada
etapa, pronta a trocá-los no instante seguinte se isto for útil à unidade do processo.
A mobilidade que esse modo de pensar confere à ação revolucionária desnorteia por completo o
adversário, que ao opor-se aos objetivos momentâneos da revolução nem imagina que pode já
estar colaborando com a próxima etapa do processo. Um dos aspectos mais perversos da mente
revolucionária é justamente que nela é impossível distinguir com clareza a ação profunda e a
camuflagem externa. O que num momento é mera camuflagem e pretexto pode se transformar em
objetivo real da ação no instante seguinte, e vice-versa. Quando o adversário imagina que
desvendou o ardil revolucionário, o ardil já se transformou no seu oposto. O governo militar
brasileiro, por exemplo, achou que perseguindo a “esquerda armada” e fazendo vista grossa às
ações aparentemente inócuas da “esquerda desarmada” estava dividindo e enfraquecendo o
movimento revolucionário. Mas a ala desarmada se aproveitou dessa mesma divisão para ir
tecendo em segredo a rede da hegemonia cultural gramsciana enquanto os soldados trocavam
tiros com Marighela e Lamarca. Quando o regime caiu, a esquerda que parecia vencida se levantou
como que do nada e rapidamente dominou o país, fazendo da derrota das guerrilhas uma vitória
política espetacular.
O movimento revolucionário, enfim, não obedece às leis da “ação racional segundo fins” conforme
as definia Max Weber e pelas quais o adversário procura em vão explicá-la. Na ação normal
humana, a distinção entre meios e fins é essencial ao ponto de que o predomínio dos meios serve
como prova de que os fins não foram atingidos. Quando, ao contrário, o objetivo é nebulosamente
indefinido e tudo quanto conta é a unidade profunda do movimento em si, os meios transformam-
se incessantemente em fins e os fins em meios e pretextos. Alguns estudiosos de Hegel disseram
que sua Lógica não é propriamente uma lógica, mas uma ontologia, uma teoria sobre a estrutura
da realidade. Acreditei nisso durante algum tempo, mas hoje vejo que não pode haver uma teoria
do ser quando se começa por dissolver a substância do ser na idéia do processo. A lógica de Hegel é
nada mais que uma psicologia, um estudo dos processos cognitivos que orientam (ou melhor,
desorientam) o movimento da história humana. Sob certos aspectos, é mesmo uma psicopatologia
– a lógica interna do desvario revolucionário.
É interessante, por exemplo, observar a imensa distância que há entre os critérios de veracidade do
revolucionário e os do intelectual ou homem de ação formado na tradição ocidental da lógica e da
ciência. Para estes últimos, a verdade é o pensamento confirmado pela experiência, de modo que
as verdades podem ser conhecidas uma a uma, articulando-se aos poucos em conjuntos maiores.
Para o revolucionário hegeliano, ao contrário, não existe a verdade dos fatos nem a verdade do ser:
a única verdade é a do processo histórico, isto é, a verdade da revolução. Cada idéia ou proposição
que se pretenda verdadeira deve portanto ser julgada tão somente pelo papel que desempenha no
conjunto do processo. Se ela o faz avançar ou fortalece, ela é verdadeira; caso contrário é falsa,
mesmo que coincida com os fatos. Vou lhes dar um exemplo local. Quando começaram a espoucar
os movimentos de protesto contra o governo Lula, a reação dos porta-vozes petistas foi
imediatamente atribuí-los às “elites”. Mas não era o próprio PT que, poucos meses antes das
eleições de 2002 e 2006, se gabava de ter (e tinha mesmo) o voto da classe mais culta, portanto
mais rica, enquanto os demais partidos exploravam a credulidade de uma multidão de pobres
analfabetos? É inútil, diante disso, acusar o petismo de hipocrisia. A hipocrisia subentende a
distinção entre a verdade conhecida e a falsidade alegada. Mas, na perspectiva revolucionária,
verdade e falsidade factuais são intercambiáveis, já que não existe verdade no nível dos fatos e sim
apenas no processo como um todo. Fortalecer o partido revolucionário é realizar a verdade do
processo, que abarca e transcende ou anula as verdades parciais e transforma as falsidades em
verdades. Ser o partido dos pobres é uma imagem que fortalece o partido revolucionário, mas ser o
partido das pessoas cultas também o fortalece. A ênfase do discurso pode portanto recair num
ponto ou no outro conforme as circunstâncias. Fatos e pretextos são apenas a matéria plástica com
que o discurso revolucionário molda a verdade do processo, isto é, a sua própria vitória.
Outro exemplo. O mesmo movimento revolucionário que criminaliza a religião, lutando para
eliminá-la por meios que vão da propaganda ao genocídio, busca se traduzir numa linguagem
religiosa que o apresenta como a mais pura e elevada expressão dos ensinamentos de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Novamente, a verdade não está nem na pregação anti-religiosa nem na
parasitagem do Evangelho: está no processo que se fortalece e se amplia pela força dessa mesma
contradição, absorvendo ao mesmo tempo a energia da crença religiosa e a do ódio anti-religioso.
Pessoalmente, já fui acusado por esquerdistas de ser um pobretão fracassado e de ser um afilhado
de poderosos, beneficiado por um fluxo abundante de verbas misteriosas. Não sou tolo o bastante
para denunciar isso como contradição. Se o processo tem de avançar seja pela afirmação seja pela
negação, seu adversário tem de ser acusado e destruído per fas et per nefas , como o cordeiro da
fábula. Isto pode nos parecer o cúmulo da canalhice, mas nenhuma canalhice em particular se
compara com a mãe de todas as canalhices, que é o movimento revolucionário em si. O militante
que o serve por meio de uma conduta moralmente impecável – segundo critérios “burgueses” de
julgamento – pode parecer mais aceitável aos observadores ignorantes do que o trapaceiro
compulsivo tipo José Dirceu ou Lula. Mas ele sabe perfeitamente que sua elevada moralidade é a
camuflagem com que o movimento encobre as ações dos embusteiros e vigaristas, tão necessárias
quanto as dele e unidas a elas por um nexo de solidariedade essencial. O “esquerdista honesto”, no
fundo, é o mais vigarista de todos. Onde o verdadeiro e o falso são intercambiáveis, também têm
de sê-lo o certo e o errado, o lícito e o ilícito.
Mas o abismo entre a mente revolucionária e a lógica do homem comum vai ainda mais fundo. Este
último acredita que pode conhecer verdades parciais por observação direta e inferência simples,
mesmo ignorando as verdades últimas e supremas. Não é preciso ser um sábio ou profeta
iluminado para distinguir a verdade e o erro nas situações imediatas. Qualquer que seja o sentido
último da existência, e mesmo supondo-se que jamais venhamos a conhecê-lo, os fatos são os
fatos, e eles julgam a veracidade ou falsidade das nossas idéias. Para o revolucionário, no entanto,
os fatos são aparências parciais ambíguas, cuja única veracidade está no “todo”, isto é, no conjunto
do processo revolucionário. É este que julga os fatos, sem poder ser julgado por eles. A diferença
de planos entre esses dois modos de apreensão da realidade é irredutível e imensurável. Os fatos
são conhecidos por intuição direta a partir dos sentidos. O “processo”, ao contrário, é uma
construção mental complexa, uma teoria. O homem comum, quando constrói teorias, as erige com
base nos fatos e testa sua veracidade pelos fatos. O revolucionário não pode fazer isso. Ele inverte
portanto a ordem racional do “dado” e do “construído”, do evidente e do hipotético, tomando este
último como verdade imediata e aquele como sinal algébrico cujo valor só a teoria, realizando o
processo num prazo incerto e por meios imprevisíveis, poderá decidir. Não há, pois, diálogo entre o
revolucionário e o homem comum. Este não entende a lógica daquele, aquele rejeita e destrói pela
violência da teoria e da práxis os critérios de veracidade em que este deposita toda a sua confiança.
Esse abismo cognitivo revela-se, a todo momento, nas análises e previsões que os conservadores e
liberais inexperientes em estudos revolucionários insistem em fazer de um processo cuja lógica
lhes escapa no todo e nos detalhes. Eles se escandalizam, por exemplo, de que o partido líder das
campanhas moralizantes tenha se transformado no mais corrupto de todos os partidos tão logo
seu chefe chegou à Presidência. Apelam até ao adágio “O poder corrompe”, explicando o contraste
pelas más companhias, sem notar as únicas más companhias visíveis no horizonte são os chamados
“neoliberais”, isto é, eles mesmos, que assim aparecem no fim das contas como os culpados dos
crimes do partido governante, com grande regozijo para as facções de esquerda que desejam se
desvincular da imagem do PT conservando intacto o mito da santidade esquerdista. Mas é claro,
para quem conhece o assunto, que não há contradição objetiva nenhuma entre o virulento
moralismo petista dos anos 90 e o festival de devassidão governamental da década seguinte.
Ambos são momentos do processo, igualmente necessários, igualmente úteis, igualmente
meritórios do ponto de vista da moral revolucionária. Ambos fazem parte do “trabalho do
negativo”: a onda de acusações indignadas destrói a confiança pública nas instituições, a corrupção
desde cima desmantela a ordem legal para que o Partido se sobreponha ao Estado e o neutralize.

Casta de malditos
Diário do Comércio, 30 de abril de 2007

Há mais de dois séculos a casta dos intelectuais ativistas espalha terror e sofrimento por toda
parte, sempre sob a desculpa de conduzir a humanidade a um reino de justiça igualitária. Não há
genocídio, não há violência, não há brutalidade que não tenha por trás a criatividade incansável
desses tagarelas iluminados, cujo maior talento é o de jogar os demais grupos humanos uns contra
os outros enquanto mantêm oculta sua própria existência de agentes históricos principais,
dirigentes máximos do processo e mandantes últimos de todos os crimes.
O intelectual ativista distingue-se do filósofo, do erudito, do cientista, do escritor, embora possa
atuar sob a camuflagem de um ou vários desses papéis sociais, confundindo a platéia. A diferença é
que, enquanto estes se esforçam para tentar compreender e expressar a realidade, ele só se ocupa
de condená-la e de tentar transformá-la em outra coisa. O homem de estudos tem diante de si um
mundo que já lhe parece complicado demais para a sua pobre cabecinha. O intelectual ativista tem
na cabeça inchada um projeto de mundo, o plano integral de uma nova humanidade, que ele acha
infinitamente superior a tudo quanto já existiu ou existe neste universo desmasiado estreito para a
sua grandiosa imaginação.
Como não se pode interferir numa coisa sem jamais pensar nela, o intelectual ativista às vezes
estuda algo da realidade, com o objetivo de alcançar prestígio num domínio especializado para
depois poder falar com uma tremenda autoridade científica sobre assuntos dos quais ele sabe
pouco ou nada e dos quais na verdade não quer saber coisa nenhuma. Voltaire ganhou fama como
expositor da física de Newton, que ele havia estudado com certa atenção, para depois posar de
guru em todas as áreas da atividade humana nas quais sua erudição era sofrível ou nula. Karl Marx
estudou razoavelmente Epicuro e Demócrito para depois entrar na história como reformador da
filosofia de Hegel, da qual ele tinha conhecimentos muito limitados e uma compreensão
barbaramente deficiente. Richard Dawkins estudou genética e saiu dando palpites sobre religiões
que ele desconhece no todo e nos detalhes. Noam Chomski dedicou alguns anos aos estudos
lingüísticos para depois poder orientar a humanidade em questões de economia, guerra, política,
direito e relações internacionais, onde seus conhecimentos se limitam àquilo que qualquer um
pode ler diariamente na mídia popular esquerdista.
A quota de atividade intelectual séria a que esses indivíduos se entregam durante a primeira parte
da vida não reflete seus interesses verdadeiros. É apenas uma fase temporária de conquista de
credenciais que depois serão usadas e abusadas fora da sua jurisdição. É por isso que eles se
chamam intelectuais ativistas e não intelectuais tout court . O objetivo de suas existências é o
ativismo. A vida intelectual é somente um meio e pretexto. Eles não querem compreender a
realidade. Querem modificá-la, e não apenas em algum detalhe que esteja ao seu alcance. Querem
modificá-la no todo, de alto a baixo, corrigindo a natureza e Deus, que tiveram o desplante de fazer
as coisas como elas são sem consultar antes a sabedoria de Voltaire, Karl Marx e Richard Dawkins.
Vejam o caso deste último. O fato de que todas as civilizações conhecidas tivessem alguma religião
pode ser facilmente explicado pela razão de que as religiões são universalmente necessárias para
dar abertura a uma dimensão da realidade que não poderia ser conhecida sem elas. Richard
Dawkins prefere atribuir a existência das religiões a um efeito residual da evolução das espécies,
que não logrou produzir ao longo dos tempos nenhuma criatura tão inteligente quanto Richard
Dawkins e por isso deixou a humanidade à mercê de crendices e superstições bárbaras.
Com o risco de afastar-me perigosamente do assunto principal deste artigo, não resisto a observar
que a simples redução da questão religiosa a uma matéria de “crença” ou “descrença” já é uma
simplificação intelectualista que jamais poderia ter-se produzido antes que um assunto tão
complicado e exigente fosse entregue ao arbítrio de palpiteiros ativistas que não têm a mínima
condição de compreendê-lo.
Desde logo, a noção de “fé” só existe nas religiões do grupo abraâmico – judaísmo, cristianismo e
islamismo. Não se fala disso no budismo, no hinduísmo, no xintoísmo ou nas religiões cosmológicas
do Egito, da Babilônia, da Pérsia, etc. Um elemento tão limitado no tempo e no espaço não pode,
com alguma razoabilidade científica, ser apontado como o traço universal definidor das religiões
em geral. Mesmo dentro do estrito domínio cristão, a fé não significa “crença”, muito menos
crença irracional, mas apenas confiança numa presença divina cujas provas iniciais tendem a ser
esquecidas na agitação e dispersão de uma vida ilusória. A fé não é “crença”, é antes a fidelidade a
uma recordação espiritual evanescente. O sujeito que não sabe nem isso deveria ser autorizado a
participar do debate religioso, na melhor das hipóteses, só como ouvinte atento e mudo.
Em segundo lugar, o religioso não se distingue do materialista só na superfície intelectual das suas
“crenças”, mas na profundidade da sua vida interior, na sua percepção da realidade. O materialista
identifica-se com o seu corpo porque não tem capacidade de abstração suficiente para conceber
sua pessoa como unidade espiritual, como “tipo” cuja estrutura essencial antecedia como
possibilidade sua existência temporal e continuará inalterada como tal depois da morte. “ Tel qu’en
lui-même enfin l’éternité le change ”, dizia Mallarmé ante o túmulo de Edgar Allan Poe: a
eternidade o transforma enfim naquilo que ele sempre foi. Esse nível de percepção de si é
inacessível ao indivíduo sensorialista, hipnotizado pelo fluxo das impressões corporais. Para ele, o
discurso espiritual não diz, nada, é vazio, porque trata de realidades que transcendem a sua esfera
de experiência. Ele só pode compreender esse discurso como seqüência de afirmativas sobre o
universo físico, as quais, não podendo ser testadas pelos meios da ciência de laboratório, só podem
ser objeto de “crença” ou “descrença”. Por trás da afetação de superioridade olímpica de um
Dawkins ou de um Daniel Dennett existe a consciência humilhante e dolorida de uma deficiência
psíquica, de um handicap espiritual deprimente. É por isso que seu “materialismo” não é só uma
teoria, é uma atitude integral, carregada de ódio às religiões e de uma vontade radical de eliminá-
las da face da Terra. O sentimento de inferioridade e exclusão que corrói as almas desses
indivíduos é ainda mais intolerável do que aquele que poderia resultar de qualquer discriminação
meramente social ou cultural: o homem privado de acesso à dimensão divina da existência sente-
se em vida um condenado do inferno, sua alma é permanentemente acossada por uma inveja
espiritual insanável e sem descanso. Ele é, literalmente, um pobre diabo.
Não espanta que tantos materialistas – explícitos ou disfarçados – venham engrossar as fileiras dos
intelectuais ativistas e explorar o ressentimento dos excluídos sociais. Incitando estes últimos ao
ódio e à revolta contra uma condição social específica que pode ser acidental e passageira, eles
buscam alívio para seu próprio sentimento de exclusão, muito mais permanente, geral e insanável.
Também não é de estranhar que muitas vezes os intelectuais ativistas gostem de ostentar o título
de “malditos”, dando a este termo a acepção de meros excluídos da sociedade. Essa acepção é
falsa, porque em geral eles não são excluídos sociais de maneira alguma, são os queridinhos do
sistema, paparicados e bem remunerados. Esse uso do termo é pura camuflagem irônica: eles
sabem que são malditos num sentido muito mais real e profundo. São malditos espiritualmente,
excluídos da experiência do divino no mundo.
É claro que muitos crentes das religiões são, nesse sentido, tão materialistas quanto Dawkins ou
Dennett: estão privados da vivência espiritual e só podem assimilar o conteúdo da religião como
“crença”, na esperança de alcançar algum dia, ao menos na hora da morte, uma percepção mais
consistente da realidade divina. Só que nessa esperança existe mais sabedoria do que num
desespero travestido de orgulhoso desprezo. O puro “crente”, que tem apenas “crença” e ainda
não a verdadeira “fé”, está no caminho da vida espiritual. Mas aquele que pensa que toda fé é
crença, esse é o mais ignorante de todos os ignorantes, que discursa com ares de certeza tanto
mais infalível quanto menos concebe a realidade de que fala.
Mas, voltando aos intelectuais ativistas, dois acontecimentos recentes ilustram da maneira mais
enfática o espírito que anima essas criaturas.
O primeiro, naturalmente, é a pressa indecente com que o prof. Roberto Mangabeira Unger
aceitou um cargo no governo que ele vinha insistentemente rotulando – aliás com razão — de “o
mais corrupto da nossa história”. Acrescentando à obscenidade o cinismo, o ex-professor de
Harvard prontificou-se a retirar suas críticas, atribuindo-as à ingenuidade de ter acreditado na
mídia antipetista, sem nem mesmo lhe ocorrer que alguém pudesse desejar saber por que o
arrependimento de tê-las publicado só lhe veio depois do convite para o ministério, nem um
minuto antes.
O objetivo do intelectual ativista é sempre e invariavelmente o poder. Sua atividade intelectual é
apenas um instrumento ou um derivativo provisório, sem qualquer significado em si mesmo. Não li
toda a obra do prof. Unger, mas a parte que li não continha uma só página de análise da realidade:
só a expressão obsessivamente insistente de projetos, de utopias, de deveres que as pessoas
deveriam cumprir se elas tivessem a felicidade de ser o prof. Unger e se o mundo não fosse injusto
ao ponto de ter feito desse profeta iluminado um simples professor universitário e não uma
reencarnação de Júlio César ou Gengis-Khan. O prof. Unger sempre discursa na clave do “dever
ser”, com profundo desinteresse pelo “ser”. Ante a oportunidade de exercer ainda que uma
migalha insignificante de poder no governo podre de um país falido, situado na extrema periferia
do mundo, ele não se fez de rogado como Jonas ante o chamamento divino. Mais que depressa,
atirou ao lixo a camuflagem de estudioso e mostrou o que é: um oportunista afoito, ávido de meios
para “transformar o mundo” à sua imagem e semelhança.
Mas, já que ele se arrependeu de suas próprias palavras, deu-me também a oportunidade de me
arrepender das minhas: qualquer coisa que eu tenha dito ou escrito em louvor do prof. Unger fica
nula e sem efeito a partir da sua nomeação. Os atos públicos de um filósofo são interpretações – às
vezes radicais – que ele dá à sua própria filosofia. Sócrates, enfrentando a morte com um sorriso,
deu o melhor esclarecimento possível sobre como se deveria interpretar sua teoria da vida eterna.
Integrando o establishment que antes ele fingia desprezar, o prof. Unger mostrou o que é sua
filosofia: mero discurso de autopropaganda, trocável por qualquer outro que sirva ao mesmo
objetivo.
O outro acontecimento foi o discurso bombástico da professora de Literatura Inglesa, Nikki
Giovanni, na noite de vigília da Virginia Tech em homenagem às vítimas de Cho Seung-hui. “Nós
somos a Virginia Tech! Nós não seremos derrotados”, exclamava ela, adornando com uma retórica
de triunfalismo retroativo o vexame da inermidade de milhares ante um agressor solitário e sendo
instantaneamente celebrada pela mídia como uma espécie de antípoda do assassino sul-coreano, a
encarnação da vida invencível da coletividade em contraste com a morte de uns quantos
indivíduos.
Nenhum outro orador seria melhor para essa farsa. Nikki Giovanni foi quem, nas suas aulas, deu
sentido e orientação prática à loucura de Cho Seng-hui, infundindo-lhe o ódio assassino aos
protestantes, aos judeus e aos brancos em geral. As duas peças de teatro, deformidades literárias
medonhas nas quais o criminoso em preparação anuncia ao mundo as intenções que lhe passavam
pela alma, são um traslado quase literal de poemas da sua professora, onde é explícito e enfático o
apelo à matança dos “honkies” – o equivalente branco do pejorativo “nigger”. Num deles, “ The
True Import of Present Dialog, Black vs. White ” (“O verdadeiro alcance do presente diálogo, negro
versus branco”), ela não deixa por menos: “ We ain’t got to prove we can die. We got to prove we
can kill ” (“Não temos de provar que somos capazes de morrer. Temos de provar que somos
capazes de matar.”) E, num convite direto: “ Do you know how to draw blood? Can you poison? Can
you stab-a-Jew? Can you kill huh? ” (“Você sabe como arrancar sangue? Sabe envenenar? Sabe
esfaquear um judeu? Você sabe matar, hein?”). Mais adiante, ela sugere ao negro urinar numa
cabeça loira e em seguida arrancá-la. Num outro poema, dedicado ao espirito das revoluções, ela
propõe um kit especial para crianças, com gasolina e instruções sobre como montar um coquetel
Molotov. Seus ensaios estão repletos de estereótipos racistas destinados a fomentar o ódio aos
brancos. Mas talvez a melhor expressão da mentalidade que ela transmite a seus alunos seja a
tatuagem que ela traz no braço, “Thug life”, (“vida de bandido”), em homenagem a Tupac Shakur,
um delinqüente raper assassinado num tiroteio por outros rapers em 1997.
A história de Nikki Giovanni, que jamais aparecerá na mídia brasileira, pode ser lida no artigo de
Steve Sailer, “Virginia Tech’s Professor of Hate” (“A professora de ódio na Virginia Tech”, publicado
na revista de David Horowitz, Front Page Magazine. Mas quem melhor a resumiu foi um dos
leitores que enviaram comentários ao blog de Sailer: “ Quantas vezes Cho Seng-hui ouviu na
Virginia Tech as palavras ‘privilégio branco’? ” Não dá para contar, mas, só no website da escola
essa expressão aparece 33 vezes.
Enfie todo esse ódio na mente de um maluco e ele só não sairá matando gente se estiver dopado. E
a própria Nikki Giovanni sempre soube que Cho não era bom da cabeça. Mas que importa? Os
intelectuais ativistas, por definição, são sempre inocentes das conseqüências de seus atos e
palavras. Se o prof. Unger disse tais ou quais coisas contra o governo, a culpa é da mídia que o
enganou, pobrezinho. Se Cho Seng-hui levou à prática o ódio anti-branco que uma professora lhe
inoculou, a culpa é dos próprios brancos, do sistema, do capitalismo, do mundo mau – de todos,
menos dela.
Essa crença do intelectual ativista na sua própria inocência e na culpa radical dos outros é uma
herança direta das heresias do fim da Idade Média, cuja continuidade nas ideologias
revolucionárias modernas é hoje uma realidade histórica bem provada.
Às vezes não é só convicção de inocência. É um sentimento de ser vítima no instante mesmo em
que se comete o crime. É uma inversão total da relação de atacante e atacado. Se querem um
exemplo, vejam o projeto de lei PLC 122/2006, que quer punir como crime toda crítica ao
homossexualismo. A desculpa é proteger uma comunidade discriminada, mas que comunidade é
mais discriminada do que os cristãos, que morrem aos milhares toda semana, nos países islâmicos
e comunistas, e que nas democracias ocidentais são cada vez mais privados do direito de expor sua
fé em público? É contra eles que essa lei iníqua se volta diretamente, numa ameaça tenebrosa aos
seus direitos mais elementares – uma perseguição aberta e cínica incomparavelmente mais temível
do que qualquer risco que os homossexuais possam ter sofrido neste país ou em qualquer outro. O
que esse projeto consagra como lei é a inversão de nomes entre o perseguidor e o perseguido,
entre o opressor e o oprimido, fazendo o primeiro de coitadinho e o segundo de criminoso.
Se a história da origem das ideologias modernas fosse contada ao público, este reconheceria
imediatamente, nessa lei, nas declarações do prof. Unger ou no discurso da profa. Nikki Giovanni, a
mesma velha pretensão demencial dos cátaros e dos albigenses à pureza intocável, coroada pelo
direito de condenar o universo.
Como ninguém conhece isso, a ordem dos tempos também fica invertida, as velhas reivindicações
de heresiarcas assassinos aparecem como o cume do progresso e das luzes, a objeção racional às
suas pretensões se torna “fanatismo” e “fundamentalismo opressor”.
***
Sobre os intelectuais ativistas, leiam, se puderem, estes dois livros:
(1) “A Traição dos Intelectuais”, de Julien Benda, trad. Paulo Neves, São Paulo, Editora Peixoto
Neto, 2007. É tradução de “ La Trahison des Clercs”, um clássico de 1927 em que o filósofo judeu,
um dos homens mais lúcidos que a França já produziu, denuncia a abdicação geral dos deveres da
inteligência por parte de intelectuais ávidos de poder. O editor Peixoto Neto foi meu aluno. Não o
vejo há muitos anos, mas não é errado um professor ter orgulho de seus ex-alunos quando estão
fazendo um belo trabalho.
(2) “Le Socialisme des Intellectuels”, de Jan Waclav Makhaïski, trad. e ed. Alexandre Skirda, Les
Éditions de Paris, 2001. Makhaïski, autor polonês que escrevia em russo, foi militante esquerdista e
conheceu bem os meios revolucionários russos e internacionais no fim do século XIX. Das suas
observações e experiências, tirou as seguintes conclusões: (1) a classe revolucionária efetiva não
eram os proletários, mas os intelectuais; (2) eles não eliminariam o capitalismo, mas o
modificariam até que ele começasse a trabalhar mais em proveito deles do que dos capitalistas.
Batata. Não deu outra.

O deus dos palpiteiros


Diário do Comércio, 18 de março de 2009

Se há um Deus onipotente, onisciente e onipresente, é óbvio que não podemos conhecê-Lo como
objeto, ou mesmo como sujeito externo, mas apenas como fundamento ativo da nossa própria
autoconsciência, maximamente presente como tal no instante mesmo em que esta, tomando posse
de si, se pergunta por Ele. Tal é o método de quem entende do assunto, como Platão, Aristóteles,
Sto. Agostinho, S. Francisco de Sales, os místicos da Filocalia, Frei Lourenço da Encarnação ou Louis
Lavelle.
Quando um Richard Dawkins ou um Daniel Dennett examinam a questão de um “Ser Supremo” que
teria “criado o mundo” e chegam naturalmente à conclusão de que esse Ser não existe, eles
raciocinam como se estivessem presentes à criação enquanto observadores externos e, pior ainda,
observadores externos de cuja constituição íntima o Deus onipresente tivesse tido a amabilidade de
ausentar-se por instantes para que pudessem observá-Lo de fora e testemunhar Sua existência ou
inexistência. Esse Deus objetivado não existe nem pode existir, pois é logicamente autocontraditório.
Dawkins, Dennett e tutti quanti têm toda a razão em declará-lo inexistente, pois foram eles próprios
que o inventaram. E ainda, por uma espécie de astúcia inconsciente, tiveram o cuidado de concebê-
lo de tal modo que as provas empíricas da sua inexistência são, a rigor, infinitas, podendo encontrar-
se não somente neste universo mas em todos os universos possíveis, de vez que a impossibilidade
do autocontraditório é universal em medida máxima e em sentido eminente, não dependendo da
constituição física deste ou de qualquer outro universo.
Se você não “acredita” no Deus da Bíblia, isso não faz a mínima diferença lógica ou metodológica na
sua tentativa de investigar a existência ou inexistência d’Ele, quando essa tentativa é honesta.
Qualquer que seja o caso, você só pode discutir a existência de um objeto previamente definido se
o discute conforme a definição dada de início e não mudando a definição no decorrer da conversa,
o que equivale a trocar de objeto e discutir outra coisa. Se Deus é definido como onipotente,
onisciente e onipresente, é desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência, e não de um
outro deus qualquer que você mesmo inventou conforme as conveniências do que pretende provar.
O método dos Dawkins e Dennetts baseia-se num erro lógico tão primário, tão grotesco, que basta
não só para desqualificá-los intelectualmente nesse domínio em particular, mas para lançar uma
sombra de suspeita sobre o conjunto do que escreveram sobre outros assuntos quaisquer, embora
seja possível que pessoas incompetentes numa questão que julgam fundamental para toda a
humanidade revelem alguma capacidade no trato de problemas secundários, onde sua sobrecarga
emocional é menor.
Longe de poder ser investigado como objeto do mundo exterior, Deus também é definido na Bíblia
como uma pessoa, e como uma pessoa sui generis que mantém um diálogo íntimo e secreto com
cada ser humano e lhe indica um caminho interior para conhecê-La. Só se você procurar indícios
dessa pessoa no íntimo da sua alma e não os encontrar de maneira alguma, mesmo seguindo
precisamente as indicações dadas na definição, será lícito você declarar que Deus não existe. Caso
contrário você estará proclamando a inexistência de um outro deus, no que a Bíblia concordará com
você integralmente, com a única diferença de que você imagina, ou finge imaginar, que esse deus é
o da Bíblia.
Quando o inimigo da fé faz um esforço para ater-se à definição bíblica, ele o faz sempre de maneira
parcial e caricata, com resultados ainda piores do que no argumento da “criação”. Dawkins
argumenta contra a onisciência, perguntando como Deus poderia estar consciente de todos os
pensamentos de todos os seres humanos o tempo todo. A pergunta é aí formulada de maneira
absurda, tomando as autoconsciências como objetos que existissem de per si e questionando a
possibilidade de conhecer todos ao mesmo tempo ex post facto. Mas a autoconsciência não é um
objeto. É um poder vacilante, que se constitui e se conquista a si mesmo na medida em que se
pergunta pelo seu próprio fundamento e, não o encontrando dentro de seus próprios limites, é
levado a abrir-se para mais e mais consciência, até desembocar numa fonte que transcende o
universo da sua experiência e notar que dessa fonte, inatingível em si mesma, provém, de maneira
repetidamente comprovável, a sua força de intensificar-se a si próprio. Dez linhas de Louis Lavelle
sobre este assunto, ou o parágrafo em que Aristóteles define Deus como noesis noeseos, a
autoconsciência da autoconsciência, valem mais do que todas as obras que Dawkins e Dennett
poderiam escrever ao longo de infinitas existências terrestres. Um Deus que desde fora “observasse”
todas as consciências é um personagem de história da carochinha, especialmente inventado para
provar sua própria inexistência. Em vez de perguntar como esse deus seria possível, sabendo de
antemão que é impossível, o filósofo habilitado parte da pergunta contrária: como é possível a
autoconsciência? Deus não conhece a autoconsciência como observador externo, mas como
fundamento transcendente da sua possibilidade de existência. Mas você só percebe isso se, em vez
de brincar de lógica com conceitos inventados, investiga a coisa seriamente desde a sua própria
experiência interior, com a maturidade de um filósofo bem formado e um extenso conhecimento
do status quaestionis.
O que mata a filosofia no mundo de hoje é o amadorismo, a intromissão de palpiteiros que,
ignorando a formulação mesma das questões que discutem, se deleitam num achismo
inconseqüente e pueril, ainda mais ridículo quando se adorna de um verniz de “ciência”.

Burrice indescritível
Diário do Comércio, 3 de outubro de 2008

Quando comecei meus estudos, uns quarenta e cinco anos atrás, uma de minhas primeiras
preocupações foi rastrear a bibliografia das várias disciplinas que me interessavam – especialmente
a crítica literária, a filosofia, a história, a sociologia e a ciência das religiões – de modo a obter uma
visão clara do desenvolvimento histórico de cada uma delas e a mapear assim o meu roteiro de
leituras pelos dois séculos seguintes, que era o tempo que eu planejava viver.
Só por uma curiosidade, averiguava de tempos em tempos o currículo de várias universidades nesses
campos, para comparar o avanço dos meus estudos solitários com aquilo que poderia obter numa
dessas venerandas instituições.
Não demorei a perceber que em nenhuma universidade brasileira eu poderia aquela aquela visão
global do status quaestionis em cada uma das disciplinas, bem como das suas disputas de território,
visão que, constituindo a condição indispensável para o domínio de qualquer uma delas em especial,
é, no fundo, o único objetivo dos estudos universitários. Não digo apenas que houvesse lacunas no
que se transmitia dessas disciplinas aos estudantes brasileiros. O que havia, no mais das vezes, era a
ignorância total dos problemas essenciais e do tratamento que haviam recebido ao longo da história.
Mesmo a mera consciência da necessidade de conhecer a evolução temporal das discussões era em
geral ausente, tanto nas fábricas de diplomas (autorizadas pelo Ministério da Educação como quem
legalizasse o banditismo), quanto nas instituições de maior reputação nacional, como a USP, as PUCs
de São Paulo e do Rio e a Unicamp. Isso era visível não só pelos seus programas de ensino, onde o
que se entendia por história das disciplinas era apenas uma introdução sinóptica mais adequada a
revistas de cultura popular do que ao ensino universitário, mas também e sobretudo pelos trabalhos
publicados pelos mais badalados professores, onde a ignorância detalhada dos problemas em
discussão constituia a base indispensável para o cultivo de seus mitos ideológicos provincianos mais
queridos.
Quando comecei a dar cursos e conferências, tive ao meu alcance um terceiro meio de averiguação
do estado de coisas no ambiente universitário: o nível médio de conhecimentos com que chegavam
às minhas aulas os diplomados e diplomandos das faculdades de letras, filosofia, etc. Aí aquilo que
de início me parecera um estado alarmante de miséria mental tomou as feições de uma catástrofe
cultural sem precedentes na história do mundo. Não havia uma única disciplina cuja história eles
dominassem, não havia um único problema que soubessem equacionar como estudiosos
profissionais dignos do nome, não havia entre eles, em suma, um único universitário no sentido real
do termo.
Outros materiais para a avaliação do ensino superior brasileiro vinham-me da imprensa dita cultural,
especialmente os suplementos do Globo e do Jornal do Brasil, bem como o caderno Mais! da Folha
de São Paulo, que era a vitrine oficial da USP. Parte daquilo que observei nessa documentação está
no meu livro O Imbecil Coletivo (1996), cujo título resume as minhas conclusões a respeito. Desde a
publicação desta obra, no entanto, as coisas pioraram demais, com a ascensão de uma nova geração
de tagarelas ainda mais ignorantes e presunçosos do que seus antecessores, fortalecidos na sua
autoconfiança demencial pelo sucesso político dos partidos de esquerda e pela deliciosa sensação
de poder daí decorrente, a seus olhos uma prova cabal das suas altíssimas qualificações intelectuais.
Hoje em dia a cultura superior está completamente extinta no Brasil, substituída por um falatório
subginasiano sufocantemente uniforme, que, sob o pretexto irônico de “pensamento crítico” e
“libertação”, se impõe a um amedrontado corpo discente com a autoridade irretorquível do magister
dixit.
Misto de vigarice, ignorância pétrea, fingimento histriônico e delírio psicótico puro e simples, o
arremedo de vida intelectual no Brasil de hoje é um fenômeno grotesco do qual não encontro
paralelo em nenhuma outra época ou nação. E a maior prova da sua gravidade é o fato de que,
mesmo entre aqueles que o enxergam, a tendência geral é minimizá-lo como se fosse apenas a
deterioração de um adorno supérfluo, sem maiores conseqüências para a vida real. O homem
inteligente é sensível ao menor sinal de decréscimo do seu QI; o imbecil sente-se tanto mais tranqüilo
e confiante quanto mais imbecil se torna. Como os intelectuais são os olhos e ouvidos da sociedade,
não espanta que esta última, sob a influência das hordas de miúdos vigaristas que hoje exercem essa
função, tenha se tornado incapaz não somente de acompanhar razoavelmente o que se passa no
mundo (comparar o que observo nos EUA com o que a respeito sai nos jornais brasileiros é ter
diariamente a visão de um abismo sem fundo), mas até de compreender, mesmo por alto, aquilo
que se passa no território nacional. Políticos, empresários, líderes militares e religiosos tomam suas
decisões, dia após dia, com base na ignorância radical dos fatos mais decisivos. O Brasil tornou-se
uma procissão de cegos guiados por loucos. É um fenômeno tão estranho e incomparável, que
desafia qualquer descrição. A capacidade humana de expressar em palavras a experiência coletiva
depende de que esta tenha um mínimo de luminosidade e transparência. A opacidade completa só
pode ser descrita pela indiferença e pelo esquecimento. O Brasil tornou-se uma imensa falta de
assunto.

Nós quem, cara pálida?


Diário do Comércio (editorial), 28 de agosto de 2008

A pergunta decisiva do índio Tonto, que de tonto não tinha nada, vem irresistivelmente à minha
memória sempre que me vejo exposto àquela retórica global e retumbante, tão usual hoje em dia,
que, tomando da palavra na primeira pessoa do plural, fala em nome da platéia universal sem ter-
lhe pedido a mínima autorização para isso.
Da minha parte, tomo os maiores cuidados para não abusar da palavra “nós”. Restrinjo o seu
emprego aos casos em que a coletividade referida é claramente identificável e as generalizações que
faço a respeito dela podem ser verificadas (ou contestadas) empiricamente. A moda geral, no
entanto, é eludir essas precauções, deixando o significado do pronome vago e indefinido o bastante
para sugerir, mui modestamente, que o orador é a consciência da espécie humana.
Ao celebrar seus quarenta anos de existência e anunciar entusiasticamente para 2 de setembro o
seminário comemorativo “O Brasil que queremos ser”, a revista Veja dá por subentendido que os
sonhos de cada brasileiro coincidem com os dos distintos palestrantes, entre os quais no entanto
pelo menos um, o advogado Márcio Thomaz Bastos, evoca antes uma imagem de pesadelo.
Também não entendo por que o colunista Cláudio de Moura Castro, que escreveu na
própria Veja alguns dos melhores artigos sobre educação já publicados neste país, foi posto para
coordenar o debate sobre Meio Ambiente, enquanto o painel de Educação foi deixado aos cuidados
de pessoas que nunca educaram ninguém e que, na melhor das hipóteses, só podem falar do assunto
desde o ponto de vista econômico. Ninguém, na verdade, exceto eu e mais dois ou três, verá aí nada
de anormal. Desde que me conheço por gente, só se discute a educação brasileira sob esse ângulo,
como se o conteúdo, a filosofia e os valores embutidos no processo pedagógico não fossem
problema nenhum. De fato, parece que não são: tudo a respeito já está decidido há décadas e
ninguém pode questionar a autoridade pontifícia dos Paulos Freires, das Emílias Ferreros, dos
Celestins Freinets, dos Levs Vigotskys e outros manipuladores comunistas cujas teorias são, no
entanto, a causa direta e principal não só da imbecilização maciça das crianças brasileiras, mas
também, por isso mesmo, das imensas perdas econômicas impostas ao país por essa organização
criminosa que é o Ministério da Educação.
Sob esse aspecto, aliás, há um detalhe interessante. A revista Veja vem denunciando com veemência
a doutrinação comunista disseminada nas escolas brasileiras, e com isso presta um louvável serviço
de saúde pública. Mas seria mais louvável ainda se, no seu empenho saneador, começasse por
admitir a parcela de culpa que, na produção desse descalabro, coube à própria Editora Abril. Durante
décadas as revistas da Fundação Victor Civita, “Escola” e “Sala de Aula” – depois unificadas sob o
nome de “Nova Escola” – foram instrumentos essenciais para o endeusamento dos educadores
comunistas e a adoção das suas técnicas e preceitos idiotizantes pelo sistema nacional de ensino.
Trabalhei nas duas e sei do que estou falando. Um debate sério sobre educação deveria começar
pelas idéias orientadoras, pois são estas que moldam as ações e, em última análise, geram as
conseqüências devastadoras que os testes internacionais de avaliação de estudantes não cessam de
assinalar.
Falando em idéias, alguns exemplares delas constam do site de apresentação do seminário
(www.veja40anos.com.br), elucidando de antemão o espírito da coisa. Vejam por exemplo esta
definição da “tarefa do jornalismo”, produzida por Washington Novaes e encarregada de inspirar o
painel sobre “Imprensa”:
“Sem ampliar o acesso à informação, a sociedade não terá como construir formatos de viver
‘sustentáveis’, que enfrentem as duas grandes questões do nosso tempo: mudanças climáticas e
padrões de produção e consumo insustentáveis, incompatíveis com a capacidade de reposição da
biosfera planetária… É preciso ver quais são ou serão os impactos; como evitá-los ou minimizá-los;
como atribuir os custos a quem os gera. Essa é a tarefa do jornalismo.”
Traduzido do seu estilo alusivo e escorregadio para o português claro, o parágrafo diz o seguinte:
1) O clima da Terra está mudando catastroficamente por culpa da ação humana.
2) O principal vilão é o maldito capitalismo americano (“padrões de produção e consumo
insustentáveis”).
3) A solução é, naturalmente, o imposto global obamiano (“atribuir os custos a quem os gera”), que
estrangulará a economia americana e, mediante mera decisão burocrática, transferirá o poder dos
EUA para o governo mundial instalado na ONU.
4) A tarefa do jornalismo consiste em lutar para que isso aconteça.
É uma maravilha. A maneira mais óbvia e tradicional de sonegar uma informação é fazer de conta
que ela não existe e saltar direto para a conclusão que ela impugna, fingindo que essa conclusão
jamais foi contestada por ninguém. Washington Novaes só inova ao dizer que isso é “ampliar o acesso
à informação”. Normalmente, onde há uma questão controversa, cabe aos jornalistas informar ao
público a substância das opiniões em confronto, para que ele as julgue por si. Para Washington
Novaes, ampliar o acesso à informação consiste em dar sumiço à controvérsia, fazendo como se uma
das idéias imperasse sozinha sobre o horizonte do pensamento humano. Por mais que Novaes
aprecie a explicação do aquecimento global inventada pelo IPCC (Intergovernmental Panel on
Climate Change), resta o fato incontornável de que ela foi subscrita por 2.500 indivíduos, muitos
deles meros funcionários da ONU alheios a estudos climatológicos, e imediatamente rebatida por
um abaixo-assinado de 17.000 cientistas de profissão, em nada se assemelhando portanto a um
consenso científico universal, diante do qual não restasse aos jornalistas senão sacramentá-lo com
um unânime e altissonante “Amém”.
Pelo menos dois documentários ilustram o que estou dizendo: “The Great Global Warming Swindle”
(“A Grande Patifaria do Aquecimento Global”), produzido pelo Canal 4 da TV inglesa, e “Global
Warming or Global Governance?” (“Aquecimento Global ou Governança Global?”), da Sovereignity
International. Em ambos a tese da origem humana do aquecimento global é não só contestada, mas
denunciada como uma fraude proposital. Uma das provas mais eloqüentes é que o ex-presidente
americano Al Gore exibe por toda parte um gráfico da evolução comparativa das emissões de CO2 e
do aumento da temperatura global ao longo de 400 mil anos, daí concluindo triunfalmente que o
primeiro desses fenômenos causa o segundo. Toda a credibilidade dessa conclusão advém de um
pequeno detalhe: Gore mostra as duas curvas separadamente. Quando as superpomos, verificamos
que as elevações de temperatura não se seguem aos aumentos emissões de CO2, mas os antecedem.
O espertinho simplesmente trocou a causa pelo efeito.
Esconder a controvérsia e ao mesmo tempo fazer-se de bem intencionado apóstolo da “ampliação
do acesso à informação” é trapaça, evidentemente. Mas as fraudes cientificas seriam impotentes se
não secundadas pelas fraudes jornalísticas que lhes dão credibilidade popular. Essa é a missão do
jornalismo segundo Washington Novaes.
Mas ele não está sozinho nisso. Outra frase inspiradora, no site do seminário, vem do economista
Sérgio Besserman Viana:
“O desenvolvimento atual não é sustentável. As próximas décadas serão de profundas
transformações econômicas, sociais, políticas e no pensamento humano, tendo como eixo a
construção da sustentabilidade nas relações da humanidade com os limites do planeta.”
Al Gore não diria isso melhor. A quarentona Veja, ao mesmo tempo que desanca o comunismo na
educação, parece ter subscrito alegremente o programa do burocratismo ecológico global, o qual
nada mais é senão um upgrade pós-soviético do bom e velho plano comunista do Estado mundial
controlador de tudo.
Lembro-me de, nos anos 70, ter lido numa revista cultural brasileira um ensaio de Jack Jones com o
título “O conservacionismo, uma ideologia pós-marxista?” Naquela época, em que o ecologismo
ainda atendia pelo nome de “conservacionismo”, essa transmutação do comunismo já era nítida para
qualquer estudioso atento. Entre os atuais “formadores de opinião” no Brasil, ela ainda continua
invisível ao ponto de que a mera sugestão da sua existência é repelida como “teoria da conspiração”
– objeção ao alcance de qualquer cérebro atrofiado ao qual tenha chegado notícia de um filme com
esse título.
O painel sobre Imprensa poderia salvar do inevitável mergulho na nulidade o seminário de Veja, se
Reinaldo Azevedo fosse ali designado para enfrentar o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos na questão
do controle estatal da mídia. Veja preferiu desperdiçar o valente colunista, colocando-o na posição
desconfortável e paralisante de mediador.
Dito isso, aproveito a ocasião para discordar radicalmente do meu notável colega quando ele diz, no
vídeo de apresentação do seminário, que “o Brasil tem uma das melhores imprensas do mundo”. Se
tivesse, a coluna do próprio Reinaldo seria desnecessária, pois ela existe precisamente para dizer o
que o resto da mídia não diz, isto é, quase tudo o que interessa.
Consciência limpa
Diário do Comércio, 3 de setembro de 2010

Já tendo demonstrado que Vladimir Safatle possui a quota de burrice requerida para o
preenchimento do cargo de professor de filosofia na USP (v. “Cabeça de uspiano”
em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090618dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/s
emana/090623dc.html), não me espanta que ele agora apareça clamando pela implantação de um
regime totalitário no Brasil, nem muito menos que o faça com o ar inocente de quem defendesse,
com isso, a mais pura normalidade democrática.
Não o acuso de ser fingido, hipócrita, manipulador. Ele não usa da língua dupla orwelliana para nos
enganar. Ao contrário, ele deixou-se introxicar de doublespeak ao ponto de que, em vez de usá-la, é
usado por ela, ecoando, com a inimputabilidade mecânica de um boneco de ventríloquo, o que quer
que ela lhe instile na caixa craniana. Não imaginem portanto que ele tente nos vender,
maquiavelicamente, o totalitarismo com o nome de democracia. Não! Ele acredita mesmo, com pia
sinceridade, que totalitarismo é democracia, democracia é totalitarismo. Almas caridosas podem
nutrir a esperança de que um dia ele venha a tornar-se capaz de distinguir ao menos um pouquinho
essas duas coisas, mas para tanto ele necessitará de umas mil reencarnações, e eu não acredito em
reencarnação. Safatleza não tem cura.
Em artigo recém-publicado na Folha (onde mais poderia ser?), ele critica os candidatos do PSDB por
terem se permitido, na campanha eleitoral, dizer duas ou três coisas que estão um tanto à direita da
linha oficial petista. O partido de José Serra e Índio da Costa, proclama o referido, “só teria alguma
chance se tivesse ensaiado uma reorientação programática a partir de um discurso mais voltado à
esquerda”.
Com toda a evidência, a democracia dos sonhos do prof. Safatle consiste na livre concorrência entre
vários partidos iguais ao PT. Insisto: não creio que ele tenha o intuito de ludibriar a platéia ao usar a
palavra “democracia” para designar o que é, em substância, um totalitarismo mal e porcamente
camuflado – o regime de um partido único com nomes diversos. Ao contrário, ele acha mesmo que
democracia é isso e nunca lhe ocorreu nem ocorrerá que possa ser outra coisa, tão funda, natural e
espontânea é a sua crença de que à direita da esquerda só existe o inferno. E na cabeça dele – há
indícios de que possui uma –, essa crença não é nem um pouco maniqueísta, pois maniqueísmo é
coisa da direita, não é?
Eu sempre disse que o PT não era um partido normal, que aceitasse o rodízio de poder com outros
partidos de direita ou de esquerda. O PT, repito há duas décadas, é um partido revolucionário,
totalitário, firmemente decidido a banir da vida política tudo o que não seja ele próprio ou igual a
ele próprio. O fato de que venha realizando esse programa com discrição homeopática e obstinada
lentidão, em vez de fazê-lo aos gritos e estampidos como o partido governante da Venezuela, só
torna Lula diferente de Chávez desde o ponto de vista estético: cada um é feio a seu modo. Lula é
até um pouco mais, porque à força de facadas anestésicas logrou persuadir a direita a deixar-se
morrer sem dizer um “ai”, ao passo que sua equivalente venezuelana não só continua gemendo mas
de vez em quando arranca uns gemidos do próprio Chávez. O prof. Safatle sente-se inconformado
de que a uniformização esquerdista do cenário eleitoral brasileiro não tenha alcançado aquele cume
de perfeição em que nenhuma ínfima partícula de direitismo residual pode aparecer nem mesmo
por equívoco, nem mesmo por lapso de atenção da parte de esquerdistas leais.
Tanto é assim que, ao chamar de “errática” a campanha de José Serra, assinalando a incoerência
entre a denúncia das ligações PT-Farc e os elogios concomitantes – até exagerados – do candidato
oposicionista à pessoa do sr. Presidente da República, em qual dessas atitudes vê ele um erro
imperdoável? Em acusar o criminoso com provas factuais sobrantes ou em louvá-lo com base na
mera opinião pessoal? Adivinhem. No entender do prof. Safatle, o sr. Serra, para ser um candidato
sério, honesto, consistente, deveria, ao falar de Lula, ocultar os fatos desabonadores que conhece e
mencionar somente as belas qualidades que imagina. O sr. Serra só mereceria o respeito do Prof.
Safatle caso resistisse à tentação da sinceridade e se ativesse ao nobre exercício de um coerente
puxa-saquismo.
Esse raciocínio não é nada estranho, no fundo. Um sujeito que concebe a democracia como
eliminação de toda oposição ideológica só pode mesmo chamar de honestidade e seriedade aquilo
que o restante da espécie humana entende por leviandade, vigarice e hipocrisia.
Quando digo que a mentalidade revolucionária enxerga tudo invertido, é disso que estou falando. O
prof. Safatle exemplifica-o com aquela candura perversa de quem conserva a consciência limpa
porque não tem nenhum contato com ela.

Liberdade e ordem
Diário do Comércio, 15 de fevereiro de 2010

Sei que magôo profundamente os sentimentos de meus amigos liberais ao afirmar que nenhuma
filosofia política séria pode tomar como princípios fundantes as idéias de “liberdade” e
“propriedade” – precisamente as mais queridas dos corações liberais. Mas, sinto muito, as coisas são
mesmo assim.
Entendo por filosofia política séria aquela que não se constitui de meras justificativas idealísticas ou
pragmáticas para ações que se inspiram, de fato, em razões de outra ordem, quer sejam estas
ignoradas ou propositadamente escondidas pelo agente.
A missão da filosofia política não é dar uma aparência de racionalidade a opções e decisões pré-
racionais. É dar inteligibilidade ao campo inteiro dos fenômenos políticos, possibilitando que ações
e decisões tenham firme ancoragem na realidade dos fatos e na natureza das coisas. Para isso é
estritamente necessário que seus próprios conceitos tenham inteligibilidade máxima, para que não
se caia no erro de explicar obscurum per obscurius.
A liberdade, embora clara e nítida enquanto vivência subjetiva, não se deixa traduzir facilmente num
conceito classificatório que se possa aplicar à variedade das situações de fato. A noção e a própria
experiência da liberdade são de natureza essencialmente escalar e relativa. De um lado, é muito
difícil dar um significado substantivo à noção de liberdade política sem ter esclarecido primeiro o da
liberdade em sentido metafísico – uma questão das mais encrencadas. De que adianta defender a
liberdade política de uma criatura à qual se nega, ao mesmo tempo, toda autonomia real? Se somos
produtos do meio, de um condicionamento genético ou de um destino pré-estabelecido, é ridículo
esperar que a mera promulgação de leis reverta a ordem dos fatores, assegurando-nos o direito de
fazer aquilo que, de fato, não podemos fazer. Lembro-me, sem conter o riso, de uma conferência em
que o filósofo da hermenêutica, Hans-Georg Gadamer, negava toda autonomia à consciência
individual, fazendo dela o efeito passivo de mil e um fatores externos, e logo adiante reclamava dos
regulamentos da universidade alemã, que não concediam espaço suficiente à liberdade de expressão
individual. Com toda a evidência, ele exigia que a burocracia universitária revogasse mediante
portaria a estrutura da realidade tal como ele próprio tinha acabado de descrevê-la.
De outro lado, a “liberdade” é, com freqüência, nada mais que um adorno retórico usado para
encobrir a vigência de algum princípio totalmente diverso. Quando, com a cara mais bisonha do
mundo, o liberal proclama que “a liberdade de um termina onde começa a do outro”, ele está
reconhecendo implicitamente – embora quase nunca o perceba – que essa liberdade é apenas a
margem de manobra deixada ao cidadão dentro da rede de relações determinada por uma ordem
jurídica estabelecida. O princípio aí fundante é, pois, o de “ordem”, não o de “liberdade”. Isso basta
para demonstrar que a “liberdade” não é jamais um princípio, mas apenas a decorrência mais ou
menos acidental da aplicação de um princípio totalmente diverso.
Compare-se, por exemplo, a noção de liberdade com a de “direito à vida”. Esta é um princípio
universal que não admite exceções nem limitações de espécie alguma. Quando você mata em
legítima defesa, ou para proteger uma vítima inerme, não está “limitando” a vigência do princípio,
mas aplicando-o na sua mais plena extensão: a morte do agressor aparece aí como um acidente de
facto, que em nada afeta o princípio, já que é imposto pelas circunstâncias em vista da defesa desse
mesmo princípio. Nenhum raciocínio similar se pode fazer com relação à “liberdade”. Quando você
limita a liberdade de um para preservar a de outro, o que aí está sendo aplicado não é o princípio da
“liberdade”, mas o da “ordem” necessária à preservação de muitas liberdades relativas.
Do mesmo modo, não existe “propriedade absoluta”, de vez que a propriedade é essencialmente um
direito, portanto uma obrigação imposta a terceiros. O mero poder de uso de uma coisa não é
propriedade, é posse. A propriedade só surge na relação social fundada pela “ordem”. O mero fato
de que existam propriedades legítimas e ilegítimas mostra que a propriedade é dependente da
ordem, portanto não é um princípio em si. Só para fins de contraste, imaginem se pode existir um
“direito à vida” meramente relativo. Esse direito é um princípio que está na base mesma da ordem,
a qual se torna desordem no instante em que o nega ou relativiza. A própria ordem, nesse sentido,
não é um princípio (ao contrário do que imaginam seus defensores tradicionalistas e reacionários).
Se, na hierarquia dos conceitos, toda ordem se coloca acima da “liberdade”, como garantia da
possibilidade de haver liberdade em qualquer dose que seja, nem por isso a noção de “ordem
absoluta” deixa de ser impensável.
O primeiro dever de uma filosofia política séria é depurar os seus conceitos de toda contradição
intrínseca e de toda confusão categorial. Sem isso, qualquer diagnóstico de um estado de fato ou
todo fundamento que se possa alegar para ações e decisões é apenas um sistema de pretextos
retóricos destinado a enganar não só o público, mas o próprio agente. Infelizmente a maioria dos
opinadores políticos, acadêmicos ou jornalísticos, está incapacitada para essas distinções, que lhes
parecem demasiado abstratas e etéreas, quando, por uma fatalidade inerente à inteligência humana,
nunca é possível apreender cognitivamente o fato concreto senão subindo no grau de abstração dos
conceitos usados para descrevê-lo.

Ainda os filósofos
Diário do Comércio, 27 de maio de 2009

Expressar a experiência real em palavras é um desafio temível até para grandes escritores. Tão séria
é essa dificuldade que para vencê-la foi preciso inventar toda uma gama de gêneros literários, dos
quais cada um suprime partes da experiência para realçar as partes restantes. Se, por exemplo, você
é Balzac ou Dostoiévski, você encadeia os fatos em ordem narrativa, mas, para que a narrativa seja
legível, tem de abdicar dos recursos poéticos que permitiriam expressar toda a riqueza e confusão
dos sentimentos envolvidos. Se, em contrapartida, você é Arthur Rimbaud ou Giuseppe Ungaretti,
pode comprimir essa riqueza nuns poucos versos, mas eles não terão a inteligibilidade imediata da
narrativa.
Essas observações bastam para mostrar que as idéias e crenças surgidas nas discussões públicas e
privadas raramente se formam da experiência, pelo menos da experiência pessoal direta. Elas vêm
de esquemas verbais prontos, recebidos do ambiente cultural, e formam, em cima da experiência
pessoal, um condensado de frases feitas bastante desligado da vida. Se vocês lerem com atenção os
diálogos socráticos, verão que a principal ocupação do fundador da tradição filosófica ocidental era
dissolver esses compactados verbais, forçando seus interlocutores a raciocinar desde a experiência
real, isto é, a falar daquilo que conheciam em vez de repetir o que tinham ouvido dizer. O problema
é que, se você repete uma ou duas vezes aquilo que ouviu dizer, não apenas você passa a considerá-
lo seu, mas se identifica e se apega àquele fetiche verbal como se fosse um tesouro, uma tábua de
salvação ou o símbolo sacrossanto de uma verdade divina.
Para piorar as coisas, as frases feitas vêm muito bem feitas, em linguagem culta e prestigiosa, ao
passo que a experiência pessoal, pelas dificuldades acima apontadas, mal consegue se expressar num
tatibitate grosseiro e pueril. Há nisso um motivo dos mais sérios para que as pessoas prefiram antes
falar elegantemente do que ignoram do que expor-se ao vexame de dizer com palavras ingênuas
aquilo que sabem. Um dos resultados dessa hipocrisia quase obrigatória é que, de tanto alimentar-
se de símbolos verbais sem substância de vida, a inteligência acaba por descrer de si mesma em
segredo ou mesmo por proclamar abertamente a impossibilidade de conhecer a verdade. Como essa
impossibilidade, por sua vez, é também um símbolo prestigioso nos dias que correm, ela serve de
último e invencível pretexto para a fuga à única atividade mental frutífera, que é a busca da verdade
na experiência real.
A própria palavra “experiência” já costuma vir carregada de uma nuance enganosa, pois se refere
em geral a “fatos científicos” recortados a partir de métodos convencionais, que encobrem e acabam
por substituir a experiência pessoal direta. Nessas condições, a discussão pública ou privada torna-
se uma troca de estereótipos nos quais, no fundo, nenhum dos participantes acredita. É esse o
sentido da expressão popular “conversa fiada”: o falante compra fiado a atenção dos outros – ou a
sua própria – e não paga com palavras substantivas o tempo despendido. (Sempre achei uma
injustiça que as leis punissem os delitos pecuniários, mas não o roubo de tempo. O dinheiro perdido
pode-se ganhar de novo – o tempo, jamais.)
De Sócrates até hoje, a filosofia desenvolveu uma infinidade de técnicas para furar o balão da
conversa estereotipada e trazer os dialogantes de volta à realidade. Zu den Sachen selbst – “ir às
coisas mesmas” –, a divisa do grande Edmund Husserl, permanece a mensagem mais urgente da
filosofia depois de vinte e quatro séculos. Ninguém mais que o próprio Husserl esteve consciente dos
obstáculos lingüísticos e psicológicos que se opunham à realização do seu apelo. Todo o vocabulário
técnico da filosofia – e o de Husserl é dos mais pesados – não se destina senão a abrir um caminho
de volta desde as ilusões da classe letrada até à experiência efetiva. A conquista desse vocabulário
pode ser ela própria uma dificuldade temível, mas decerto não tão temível quanto os riscos de ficar
discutindo palavras vazias enquanto o mundo desaba à nossa volta. Ao incorporar-se à cultura
ambiente como atividade academicamente respeitável, a própria filosofia tende a perder sua força
originária de atividade esclarecedora e a tornar-se mais uma pedra no muro de artificialismos que se
ergue entre pensamento e realidade.

Filósofos no exílio
Diário do Comércio, 5 de setembro de 2011

O exílio voluntário ou forçado – mais freqüentemente voluntário – parece ser um destino mais
comum entre os filósofos do que entre qualquer outro grupo de intelectuais criadores. Sócrates só
não foi embora de Atenas porque achou que estava velho demais para aceitar essa oferta do tribunal
que o condenou. Preferiu a morte. Platão retirou-se para uma cidade vizinha, na esperança de que
suas idéias pudessem inspirar o governo local, e só voltou para Atenas porque o plano fracassou.
Aristóteles passou praticamente toda a sua vida ativa longe da terra natal. Descartes não escreveu
um único livro na França; tudo na Holanda, onde morou por vinte anos. Spinoza não saiu do país,
mas correu para longe de Amsterdam, onde os rabinos o haviam condenado por heresia. John Locke
escreveu sua obra principal em Paris, e David Hume foi redigir seu Tratado nas vizinhanças do colégio
de La Flèche, o mesmo do qual Descartes procurara guardar distancia. Emil Cioran, espremido numa
mansarda em Paris, implorava aos visitantes que não falassem romeno com ele, pois isso atrapalhava
o esforço insano que ele desenvolvia para se tornar o maior prosador francês do século (conseguiu).
E nem menciono a infinidade de filósofos que fugiram da perseguição comunista e nazista, indo se
instalar em Paris, em Londres, na Flórida ou na Califórnia. A lista ultrapassaria de muito as dimensões
deste artigo. Muitos deles, passado o perigo, não conseguiram se adaptar de novo no país de origem,
preferindo permanecer para sempre na pátria adotiva.
Em comparação, pintores, músicos e romancistas parecem necessitar da atmosfera nativa, longe da
qual sentem definhar sua inspiração. Quem pode imaginar Dostoievski ou Tolstói afastados para
sempre da Rússia, Dickens morando em Miami, Giovanni Verga sem a Sicília ou William Faulkner
longe do seu querido e abominado Deep South? Talvez o símbolo mais característico da ligação do
escritor com sua terra natal tenha sido George Webber, o herói de You Can’t Go Home Again, de
Thomas Wolfe, que saiu buscando sua alma no vasto mundo e só a encontrou ao voltar para casa.
Soljenitsin, liberto da opressão comunista depois de décadas de sofrimento, premiado e instalado
num hotel suíço de cinco estrelas, queixava-se de que ali não podia escrever, porque não ouvia
ninguém em volta falando russo.
Toda regra, é claro, tem exceção. Kant jamais ultrapassou as fronteiras da sua pequena Koenigsberg,
mas não sei se o faria caso tivesse saúde para isso. Benedetto Croce era tão apegado à sua Nápoles
que, comentavam os amigos, conhecia cada pedra das ruas da cidade. Os dois maiores filósofos
romenos – Petre Tsutsea e Constantin Noica – não saíram do pais: o primeiro ficou na cadeia, o
segundo em prisão domiciliar. Não sei aonde teriam ido parar se a polícia relaxasse a vigilância.
No mais, o exílio dos filósofos tem mesmo todo o jeito de ser uma constante, ou quase. Um motivo
óbvio para isso é o impulso de manter distância da cultura natal para descontaminar-se dela por
dentro e olhá-la com independência. Distância externa e interna, portanto. Toda filosofia tem
pretensões de validade universal e, se alguma inspiração obtém do meio originário, logo busca se
desvencilhar dele para entrar num diálogo com homens de todos os lugares e de todas as épocas.
O exílio filosófico também não e só espacial, mas temporal. O filósofo não pode ser um mero
“homem do seu tempo”: tem de abrir-se a influências vindas de séculos remotos, que o libertarão
da prisão mental da sua época e, através dele, lançarão as sementes de um futuro às vezes bem
longínquo. Sto. Tomas adquiriu sua formação mais de Aristóteles que de qualquer dos seus
contemporâneos. Só veio a receber a atenção universal que merecia depois da Encíclica Aeterni
Patris, de Leão XIII (1879). Leibniz deixou-se impregnar profundamente de uma filosofia escolástica
que os homens do seu século desprezavam e julgavam extinta para sempre. Graças a isso, teve
intuições cujo acerto magistral só a ciência do século XX viria confirmar. Martin Heidegger foi mais
influenciado pelos pré-socraticos do que mesmo por seu mestre imediato, Edmund Husserl (ele
próprio um exilado voluntário). E René Descartes, malgrado seus ocasionais arroubos de ineditismo,
acabou mostrando um agudo senso da supratemporalidade ao confessar: “Os antigos peripatéticos
não disseram uma palavra que não fosse nova, nem eu alguma que não fosse velha.”

Desejo de conhecer
Diário do Comércio, 10 de janeiro de 2011

“É natural no ser humano o desejo de conhecer.” Quando li pela primeira vez esta sentença inicial
da Metafísica de Aristóteles, mais de quarenta anos atrás, ela me pareceu um grosso exagero. Afinal,
por toda parte onde olhasse – na escola, em família, nas ruas, em clubes ou igrejas – eu me via
cercado de pessoas que não queriam conhecer coisíssima nenhuma, que estavam perfeitamente
satisfeitas com suas idéias toscas sobre todos os assuntos, e que julgavam um acinte a mera sugestão
de que se soubessem um pouco mais a respeito suas opiniões seriam melhores.
Precisei viajar um bocado pelo mundo para me dar conta de que Aristóteles se referia à natureza
humana em geral e não à cabeça dos brasileiros. De fato, o traço mais conspícuo da mente dos nossos
compatriotas era o desprezo soberano pelo conhecimento, acompanhado de um neurótico temor
reverencial aos seus símbolos exteriores: diplomas, cargos, espaço na mídia. Observava-se essa
característica em todas as classes sociais, e até mais pronunciada nas ricas e prósperas. Qualquer
ignorante que houvesse recebido em herança do pai uma fábrica, uma empresa de mídia, um bloco
de ações da Bolsa de Valores, julgava-se por isso um Albert Einstein misto de Moisés e Lao-Tsé,
nascido pronto e habilitado instantaneamente a pontificar sobre todas as questões humanas e
divinas sem a menor necessidade de estudo. Se houvesse lido alguma coisa no último número
da Time ou do Economist, então, ninguém segurava o bicho: suas certezas erguiam-se até às nuvens,
imóveis e sólidas como estátuas de bronze – sempre acompanhadas, é claro, das advertências
cépticas de praxe quanto às certezas em geral, sem que a criatura notasse nisso a menor contradição.
Caso faltassem os semanários estrangeiros, um editorial da Folha supria a lacuna, fundamentando
verdades inabaláveis que só um pedante viciado em estudos ousaria contestar.
Dessas mentes brilhantes aprendi lições inesquecíveis: o comunismo acabou, esquerda e direita não
existem, Lula é um neoliberal, a Amazônia é o pulmão do mundo, o Brasil é um modelo de
democracia, a Revolução Francesa instaurou o reino da liberdade, a Inquisição queimou cem milhões
de hereges, as armas são a causa eficiente dos crimes, o aquecimento global é um fato indiscutível,
os cigarros matam pessoas à distância, o narcotráfico é produzido pela falta de dinheiro, as baleias
são hienas evoluídas e o Foro de São Paulo é um clube de velhinhos sem poder nenhum.
Se continuasse a dar-lhes ouvidos, hoje eu seria reitor da Escola Superior de Guerra ou talvez senador
da República.
Longe do Brasil, encontrei enfermeirinhas, caixeiros de loja e operários da construção civil que, ao
saber-me autor de livros de filosofia, arregalavam dois olhos de curiosidade, me crivavam de
perguntas e me ouviam com a atenção devota que se daria a um profeta vindo dos céus. Por incrível
que pareça, interesse e humildade similares observei entre potentados da indústria e das finanças,
figurões da mídia e da política. Até mesmo professores universitários, uma raça que no Brasil é imune
a tentações cognitivas, mostravam querer aprender alguma coisa.
Aristóteles tinha razão: o desejo de conhecer é inato. O Brasil é que havia falhado em desenvolver
nos seus filhos a consciência da natureza humana, preferindo substituí-la por um arremedo grotesco
de sabedoria infusa.

A onipotência da tagarelice
Diário do Comércio, 21 de outubro de 2010

Os signatários do recente manifesto de acadêmicos em favor da candidatura Dilma Rousseff


apresentam-se, com modéstia exemplar, como “professores e pesquisadores de filosofia”. Não
ousam denominar-se filósofos porque no fundo sabem que não o são nem o serão jamais, mas
também porque esperam que a mídia, por automatismo, lhes dê essa qualificação imerecida ao
publicar a porcaria com o nome de “Manifesto dos Filósofos”, conferindo-lhes o título honroso no
mesmo ato em que os dispensa do vexame de atribuí-lo a si mesmos.
A filosofia surgiu na Grécia como um esforço de apreender e dizer o “ser” das coisas. A palavra “ser”
implica o reconhecimento de uma realidade objetiva estruturada, inteligível, comunicável de homem
a homem. O empreendimento filosófico voltava-se diretamente contra uma tradição de ensino para
a qual o ser e a realidade objetiva não contavam, podendo ser livremente inventados pela força da
palavra e da persuasão. Essa tradição denominava-se “sofística”.
Decorridos vinte e cinco séculos, a denominação inverteu-se. O que se chama de filosofia em muitas
universidades, especialmente no Brasil, é a convicção de que não existe realidade nenhuma e tudo
é construído pela linguagem. Quem ouse praticar a filosofia no sentido que tinha em Sócrates, Platão
e Aristóteles, é marginalizado como reacionário indigno de atenção. A sofística, com o nome de
“desconstrucionismo”, é o que hoje ostenta nos documentos oficiais o nome da sua velha inimiga, a
filosofia.
Atribuindo psicoticamente à fala humana o poder criador do Logos divino, Martin Heidegger,
militante nazista aposentado e um dos ídolos do establishment acadêmico, declara: “A linguagem é
a morada do ser” – como se o ato de falar existisse fora e acima da realidade, e não dentro dela.
No mesmo espírito, Ernesto Laclau, no livro “Hegemonia e Estratégia Socialista” – talvez a proposta
política mais influente nos meios esquerdistas das três últimas décadas – ensina que o partido
revolucionário não precisa representar nenhum interesse social objetivo e nenhuma classe existente:
pode criar esse interesse e essa classe retroativamente, pela força do discurso e da propaganda. O
PT, que surgiu como partido de estudantes e socialites, gabando-se por isso de ser a voz das pessoas
mais inteligentes (v. o estudo feito em 2000 pelo cientista político André
Singer: http://epoca.globo.com/edic/20000717/brasil3a.htm), criou com dinheiro do governo a
classe pobre que o apóia, e passou desde então a ser o partido dos desamparados e analfabetos,
condenando os outros partidos como representantes da elite letrada. Na mesma lógica, a
“democracia”, segundo Laclau, é um “significante vazio”, ao qual o partido revolucionário pode
atribuir o sentido que bem lhe convenha. O PT designa com esse nome a aliança entre o governo e
as massas alimentadas com dinheiro dos impostos, aliança montada em cima da destruição de todos
os poderes intermediários, a começar pela mídia. Que essa aliança e essa destruição, historicamente,
tenham sido a estratégia essencial de todos os regimes tirânicos do mundo (leiam Bertrand de
Jouvenel, “Do Poder: História Natural do seu Crescimento”), é um detalhe irrisório: o “significante
vazio” admite todos os conteúdos – com a vantagem adicional de que o eleitorado, ao ouvir a palavra
“democracia” nas bocas dos próceres petistas, imagina que se trata de democracia no sentido
tradicional do termo, porque não leu Ernesto Laclau e não sabe que eles a usam como palavra-código
de duas caras, com um significado esotérico para os iniciados e outro, exotérico, para enganar os
trouxas.
Não espanta que os servidores das duas maiores mentiras do século XX – o comunismo e o nazismo
– tenham acabado por aderir maciçamente à teoria da onipotência criadora das palavras. Essas
ideologias juravam basear-se numa descrição completa e objetiva da realidade, capaz de
fundamentar a previsão acertada e científica do curso da História. Quando a História as desmentiu
da maneira mais acachapante, os adeptos de ambas as correntes, em vez de penitenciar-se de seus
erros e crimes, preferiram redobrar o blefe: apelaram ao desconstrucionismo e proclamaram que a
realidade não existia mesmo, que tudo era uma questão do jeito de falar.
Também não espanta que, nessas condições, os inimigos de ontem se tornassem amigos, unidos no
mesmo projeto sublime de trocar os fatos por uma ficção verbal eficiente. É por isso que tantos
comunistas e socialistas amam de paixão os nazistas Martin Heidegger e Paul de Man. Nada une as
pessoas mais apaixonadamente do que um projeto solidário de ludibriar todas as outras.
O Manifesto, por exemplo, declara que “Dilma Rousseff tem sido alvo de campanha difamatória
baseada em ilações sobre suas convicções espirituais e na deliberada distorção das posições do atual
governo sobre o aborto.”
Em que consiste a “campanha difamatória”? Em dizer que a candidata petista defende a liberação
do aborto. E a “deliberada distorção das posições do atual governo sobre o aborto”? Consiste em
dizer que o governo quer liberar o aborto.
Desde quando publicar verdades bem documentadas é “campanha difamatória”? A lógica dessa
rotulação é a mesma que o conhecido “professor e pesquisador de filosofia”, João Carlos Quartim de
Moraes, seguiu quando se gabou de ter cumprido pena de prisão pelo assassinato do capitão
americano Charles Chandler e em seguida saiu posando de difamado ao ver que, iludido por essa
declaração, da qual não tinha motivos para duvidar, eu o qualificava de assassino político condenado
pela Justiça. Segundo Quartim de Moraes, acreditar em Quartim de Moraes é crime. Mudar de
significado no dia seguinte é um dos mais deliciosos privilégios da mentira.
Do mesmo modo, quem assista ao vídeo http://www.youtube.com/watch?v=TdjN9Lk67Io, e ali veja
e ouça Dilma Rousseff expressando seu apoio irrestrito à liberação do aborto, se tornará
automaticamente um difamador se acreditar que ela disse o que disse.
No mesmo espírito do manifesto, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos jura: “O PNDH-3 não
trata da legalização do aborto. Sua redação sobre o tema é: ‘Considerar o aborto como tema de
saúde pública, com garantia do acesso aos serviços de saúde’.”
Todo leitor no pleno uso de suas faculdades mentais compreende imediatamente que “garantir o
acesso ao serviço de saúde” é até mais do que legalizar o aborto: é sustentá-lo com dinheiro público.
Mas compreender o sentido originário do texto é crime, porque, segundo a escola de pensamento
dominante, nenhum texto tem sentido originário nenhum: o que vale é o sentido retroativo que a
parte interessada lhe atribui quando vê nisso alguma vantagem. Os signatários do Manifesto foram
educados na mentalidade “desconstrucionista” que apaga a realidade e o sentido para lhes substituir
a “vontade de poder” (além de Heidegger, eles adoram Nietzsche) e a estratégia da tagarelice
onipotente. É compreensível que, nessas condições, desejem ardentemente passar por filósofos,
mas, no íntimo, se sintam um pouco inibidos de declarar que o são.

Credibilidade zero
Diário do Comércio, 14 de agosto de 2012
Praticamente tudo o que se lê na mídia brasileira sob o rótulo de “análise política” não passa da
elaboração apressada de fatos que o comentarista extraiu da própria mídia. É a imagem popular do
mundo maquiada na linguagem do manual de redação. Nada mais.
Não é uma coisa séria. É show business, é diversões públicas, é circo. Não existe para orientar o leitor,
mas para mantê-lo satisfeito com um estado habitual de desorientação no qual ele se sente
informadíssimo e repleto de certezas.
Análise política séria supõe informações ao nível dos melhores serviços de inteligência, trabalhadas
por uma consciência longamente adestrada na meditação da História, da filosofia e da ciência
política.
Isso está tão acima das possibilidades do comentarista vulgar que, confrontado com algo do gênero,
o infeliz se sente perplexo ante o inusitado e reage com aquela típica irritação neurótica da burrice
humilhada.
Em tal circunstância, exclamações de “teoria da conspiração!” emergem da sua boca quase que por
reflexo condicionado.
Chamar uma idéia de “teoria da conspiração” não é refutá-la, é apenas xingá-la. Xingar é o que você
faz quando chegou ao último limite da sua capacidade e não conseguiu nada. (Favor não confundir
xingamento com palavrões humorísticos usados para fins de sátira nos momentos apropriados.)
Diagnósticos de paranóia, de visão delirante, aos quais também muitos recorrem nessas ocasiões, só
valem quando embasados em algum conhecimento de psicologia clínica, que invariavelmente falta
a quem usa desses termos como descarga de um sentimento de inferioridade insuportável.
Não por coincidência, análises sérias, tão escassas nas páginas de política, não faltam naquele setor
especializado do jornalismo que se dedica à economia e aos investimentos. É que o público dessa
seção é exigente, conhece o assunto, paga bem e quer opiniões sólidas. Não é um bando de sonsos
em busca de alívio.
Nenhum empresário ou investidor aceitaria como analista econômico um amador que tivesse como
única ou predominante fonte de informações a própria mídia popular na qual escreve. Mas o amador
assim descrito é a própria definição do que se entende por “analista político” no Brasil. É um sujeito
que não conhece os clássicos da filosofia política, não lê revistas científicas da sua área, não tem a
menor idéia de como funcionam os serviços secretos dos diversos países, não pesquisa fontes de
informação discretas, e, enfim, acredita que o mundo é realmente como sai na mídia. Pratica, em
resumidas contas, aquilo que um jornalista de verdade, Rolf Kuntz, chamava de autofagia jornalística:
escreve nos jornais aquilo que leu nos jornais.
Quando digo que isso é “praticamente tudo”, e não “tudo”, é porque, descontados dois ou três
sobreviventes do jornalismo às antigas, há ainda um segundo grupo de exceções notáveis: são os
desinformantes profissionais ou agentes de influência. Pagos por organizações partidárias, por
governos estrangeiros, por elites bilionárias ou por organizações revolucionárias internacionais
(fontes que às vezes se mesclam e se confundem), mentem mais que a peste, mas mentem com
método, segundo um plano racional, às vezes sofisticadíssimo, que o analista habilitado discerne nas
entrelinhas e que é, por si, informação fidedigna, às vezes da mais alta qualidade.
Esses profissionais da desconversa são raros, mas não inexistentes na mídia nacional. É preciso muita
prática para distingui-los da massa dos seus papagaios e clones, que aceitam as mentiras deles por
hábito e as repassam por automatismo. Quando uma informação falsa se tornou de domínio público,
é quase impossível rastrear-lhe a fonte, a qual só aparece, quando aparece, na rara hipótese de um
agente arrependido dar com a língua nos dentes, quase sempre trinta ou quarenta anos depois de a
coisa ter perdido toda importância estratégica.
A ocorrência desses casos permite medir a confiabilidade média do jornalismo político, quase
matematicamente, pelo tempo decorrido entre o engodo inicial e o reconhecimento público do
engano quando o autor da façanha, ou a revelação de documentos reservados, finalmente fornece
à classe jornalística os meios de corrigir-se.
Por exemplo, a onda de pânico da mídia européia ante a “ameaça neonazista” na Alemanha cessou
quando, com a reunificação do país, os documentos da Stasi vieram à tona, mostrando que os
principais movimentos neonazistas na Alemanha Ocidental e até alguns nas nações vizinhas eram
fantoches criados e subsidiados pelo governo comunista da Alemanha Oriental para despistar
operações de terrorismo e assassinatos políticos (o atentado ao Papa João Paulo II foi um caso típico:
leiam The Time of the Assassins de Claire Sterling e Le KGB au Coeur du Vatican, de Pierre e Danièle
de Villemarest).
E no Brasil? Foi em 1973 que o ex-chefe da inteligência soviética no Rio de Janeiro, Ladislav Bittman,
confessou ter sido, em 1964, o inventor e disseminador da lenda de que o golpe militar fôra tramado
e subsidiado pelo governo americano. Como, decorridos vinte e oito anos da revelação, ninguém na
mídia tupiniquim desse o menor sinal de desejar corrigir o engano geral, escrevi um artigo em Época
para lembrar aos colegas que antes tarde do que nunca
(v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/sugestao.htm). Mais onze anos se passaram desde
então, e até hoje a conversa de que “o golpe começou em Washington” ainda reaparece nos nossos
“grandes jornais”, a intervalos regulares, no tom de verdade consagrada. Credibilidade, neste país, é
isso.

Coerência e integridade
Diário do Comércio, 28 de fevereiro de 2012

Meu artigo anterior poderia dar ocasião a inumeráveis outros, tantas são as conseqüências que
anuncia e as perguntas que sugere. Uma destas é: qual a importância da lógica na formação do
filósofo? De certo modo essa pergunta já foi respondida pelo próprio desenrolar dos fatos históricos:
existiu filosofia, e grande filosofia – a maior delas –, uma geração antes de que Aristóteles formulasse
pela primeira vez as regras da lógica. O pensamento lógico é, decerto, uma capacidade natural do
ser humano, e desde os tempos mais remotos a especulação filosófica faz uso dele quase que por
instinto, mas a lógica enquanto técnica explícita só apareceu quando a filosofia, sem ela, já havia
alcançado seus mais altos cumes, nunca ultrapassados pela evolução posterior. Quando Arthur N.
Whitehead disse que a história da filosofia não passa de uma coleção de notas de rodapé aos escritos
de Platão, incluía nisso, é claro, a filosofia inteira de Aristóteles. Assim como esta é apenas a
exploração avançada de sendas já abertas pelo platonismo (e o filósofo de Estagira é o primeiro a
reconhecê-lo, ao referir-se a si próprio como um de “nós, os platônicos”), a tekhne logike não passa
de um ramo especial da filosofia aristotélica, que a transcende infinitamente e não é de maneira
alguma determinada por ela nem na sua forma expositiva, nem no seu sentido íntimo.
A coerência do discurso, objeto da lógica, é decerto importante, mas apenas como expressão
exteriorizada de uma coerência mais profunda: a consistência da percepção do mundo,
manifestação, por sua vez, da unidade e integridade da alma – o equilíbrio interno do spoudaios, o
homem maduro e maximamente desenvolvido, consciente de si, dominador do seu universo interior,
capacitado a buscar, se me permitem citar-me a mim mesmo, “a unidade do conhecimento na
unidade da consciência (cognitiva e moral) e vice-versa”.
Separado desse fundo, o culto do discurso coerente torna-se apenas um fetichismo, hipnoticamente
atraente como todos, arriscando erguer as mais sofisticadas construções intelectuais em cima de
uma base perceptiva pobre ou deformada. Que tantos filósofos notáveis pelas suas contribuições à
lógica tenham descido ao nível da mais acachapante puerilidade quando abandonaram os domínios
do puro formalismo e se aventuraram a tratar de problemas substantivos da história, da moral, da
religião e da política (Wittgenstein e Russell são casos exemplares), não é um detalhe marginal das
suas biografias, mas o sinal de que a busca da integridade do discurso pode ser às vezes a
camuflagem usada para encobrir uma consciência fragmentária e dispersa, incapaz de responder por
si mesma ante as realidades da vida.
Aristóteles sempre esteve consciente de que o discurso lógico não surge no ar, mas se ergue em cima
de todo um caleidoscópio de percepções e recordações que não cede ao impulso da formalização
lógica senão após uma série de depurações muito trabalhosas, que vão passando da linguagem
poética (muitíssimo bem definida por Benedetto Croce como expressão de impressões), através das
escolhas retóricas e confrontações dialéticas, até o formalismo da demonstração lógica, incapaz de
abranger senão um fragmento mínimo da experiência humana (escrevi um livro inteiro sobre isso e
não preciso me repetir). Quando se perdem de vista as raízes que o raciocínio lógico tem nas
modalidades menos abstratas de discurso (e estas na complexidade da alma vivente), os progressos
da formalização arriscam tornar-se pretextos de uma irresponsabilidade cognitiva quase demencial,
tanto mais danosa quanto mais adornada de perfeições técnicas imponentes.
Não por coincidência, as escolas filosóficas que privilegiam acima de tudo a análise lógica
concentraram-se no idioma padronizado das ciências e na “linguagem cotidiana” (muitas vezes
constituída de frases banais inventadas ad hoc pelo próprio filósofo, do tipo “a vassoura está atrás
da porta”), fugindo de enfrentar a linguagem da grande literatura e da revelação, as únicas em que
se expressam as potencialidades máximas da fala e, portanto, nas quais transparece a verdadeira
natureza da linguagem. Foi por isso que, nos seus célebres confrontos com Ludwig Wittgenstein, o
genial crítico literário F. R. Leavis, que só enfocava a linguagem com base em exemplos reais colhidos
na complexidade da trama social e da herança literária dos séculos, acabou por se definir como um
“antifilósofo”. No sentido grego, seria um filósofo até maior do que aquele seu amigo e antagonista.
Num ambiente de filósofos “profissionais” apegados ao formalismo lógico, só podia ser mesmo um
“anti”.
Uma certa dificuldade no aprendizado da lógica moderna (nada, no entanto, que não se possa
superar com um pouco de paciência) ameaça dar ao estudante a impressão de que ali se encontra o
máximo de “seriedade” que a inteligência humana pode alcançar. Mas a integridade do discurso
lógico só é verdadeiramente séria quando arraigada na integridade de uma visão pessoal
responsável, de uma percepção abrangente e madura da realidade, estendida para muito além das
possibilidades acessíveis da prova lógica.
A disciplina do pensamento lógico não é, definitivamente não é o padrão máximo da honestidade
filosófica, ela é apenas a sua expressão mais externa, mais “visível” e menos essencial. O filósofo que
descura da disciplina da alma e capricha ao máximo na coerência lógica é como um capomafioso,
que, vivendo da jogatina, da exploração do lenocínio e do assassinato dos concorrentes, se achasse
muito honesto por manter seus livros de contabilidade na mais perfeita ordem.

Cigarras e formigas (Meus caros críticos


II)
Mídia Sem Máscara, 4 de fevereiro de 2012

Num post dedicado a exaltar a memória do filósofo britânico Sir Michael Dummett (1925-2011), o sr.
Júlio Lemos aproveita a ocasião para sublinhar a diferença entre os pensadores mais afins à literatura
e às ciências humanas e aqueles que se inspiram antes na lógica matemática, na física e, de modo
geral, nas chamadas “ciências duras” (v. http://www.dicta.com.br/michael-dummett-1925-2011/).
Ele rotula os dois grupos, respectivamente, de “cigarras mágicas” e “formigas engenheiras”,
ressaltando que somente estas fazem trabalho sério. O desprezo com que o sr. Lemos fala do outro
grupo leva-me a esperar que ele nos brinde com a publicação das suas grandes e inexistentes obras
de filosofia, infundindo assim alguma razão de ser no seu sentimento de superioridade ante Georg
Simmel, Karl Jaspers, Benedetto Croce, Xavier Zubiri, Eric Voegelin e outros tantos incapazes de
elevar-se às alturas da exatidão matemática que ele exige de um filósofo para admiti-lo entre os
santos da sua devoção.
Curiosamente, ele coloca entre estes últimos o autor do Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig
Wittgenstein, que se notabilizou pelo seu ódio insano à ciência, que ele considerava a raiz de todos
os males modernos, e pela precariedade dos conhecimentos de matemática e lingüística com que se
meteu a enfrentar os problemas da linguagem filosófica. Ninguém melhor que Wittgenstein se
enquadra na categoria das “cigarras mágicas” que, segundo o sr. Lemos, “defenderam teorias
grandiosas, capazes de explicar tudo — e por isso inspiraram uma fidelidade quase religiosa”. Nada
poderia ilustrá-lo mais claramente do que a indignação histérica, intolerante, com que o próprio sr.
Lemos e outros devotos reagem ante qualquer coisa que se diga contra o personagem.
Também é um tanto cômico que o sr. Lemos, após sua apologia das “formigas engenheiras” da escola
analítica e similares, prodigalize elogios a Michael Dummet por haver trazido de volta “os problemas
(filosóficos) realmente importantes: a natureza do ser, Deus, o livre arbítrio, as ‘leis lógicas’ do
pensamento, os limites do conhecimento”. Com exceção dos dois últimos, esses foram precisamente
os problemas que os analistas lógicos fizeram o possível para excluir da lista das preocupações
filosóficas. Se algum mérito não se pode negar a Dummet foi justamente o de voltar o feitiço contra
os feiticeiros, adaptando os métodos deles ao tratamento de questões que eles rejeitavam (ainda
que não alcançasse nisso nenhum resultado espetacular).
Muito menos creio que o amor devoto às “formigas engenheiras” seja um sentimento homogêneo
que se possa estender uniformemente a todas elas, como parece sugerir o sr. Lemos. Não tem
cabimento, por exemplo, admirar por igual Ludwig Wittgenstein (supondo-se que seja realmente
uma “formiga”) e Gottlieb Frege. Quando este tentou ler o Tractatus, confessou que não conseguia
ir além das primeiras páginas, porque nada daquilo fazia o menor sentido. Se lesse um pouco mais,
encontraria trechos que faziam muito sentido, já que tinham sido praticamente copiados de suas
próprias obras – sem menção à fonte, como era do hábito de Wittgenstein.
Qualquer que seja o caso, o deslumbramento ante as sutilezas da lógica e especialmente da lógica
matemática é, por si, prova de imaturidade filosófica. Embora algum estudo dessas disciplinas seja
indispensável, a contribuição delas à grande filosofia é bem irrisória. O próprio criador da ciência
lógica, Aristóteles, fez pouquíssimo uso dela em suas investigações, preferindo a confrontação
dialética, tecnicamente inferior porém mais rentável como logica inventionis, “lógica da descoberta”
em oposição à lógica da prova. No século XX, Arthur N. Whitehead foi autor, com Bertrand Russell,
de um dos mais importantes tratados de matemática de todos os tempos. Quanto disso se reflete na
sua obra filosófica máxima, Process and Reality? Quase nada. Susanne K. Langer começou a carreira
escrevendo uma introdução à lógica matemática, mas alcançou o cume da sua especulação filosófica
com estudos de arte e simbolismo que nada devem a isso. Ademais, como assinalou Mário Ferreira
dos Santos, muitas aparentes conquistas da lógica matemática moderna já estavam formuladas – e
várias delas impugnadas – nas obras dos grandes escolásticos, especialmente ibéricos. Maravilhar-
se diante de Russell e Wittgenstein sem ter dedicado alguns anos à lógica medieval é uma espécie
de provincianismo histórico que denota antes devoção à moda do que qualquer seriedade
intelectual. Se o amor às matemáticas fosse prova de honestidade, como julga o sr. Lemos, as
grandes fraudes financeiras seriam quase impossíveis.
Aliás o que me libertou da admiração juvenil às “formigas” foi o haver constatado a freqüência com
que os cultores da “exatidão analítica” incorriam em bobagens pueris sempre que abandonavam o
terreno seguro do formalismo lógico, acessível a qualquer nerd filosófico com algum talento
matemático, e se aventuravam em questões substantivas da realidade humana e histórica, que
exigem cultura, maturidade, honestidade e bom senso. Wittgenstein, sem ser doutrinariamente
comunista, deixou-se hipnotizar pelo sex-appeal de Stálin ao ponto de querer emigrar para a URSS
(desistindo quando a oportunidade se materializou). Bertrand Russell, que um dia propusera
singelamente o bombardeio atômico preventivo da URSS, terminou seus dias como advogado dos
vietcongues, passando da direita à esquerda sem nada perder da babaquice originária. Hans
Reichembach foi bobo ao ponto de servir de garoto-propaganda para os ativistas estudantis da
Universidade da California.
Por duas vezes a filosofia tentou transformar-se numa profissão acadêmica altamente técnica: na
escolástica medieval e no meio universitário anglo-saxônico do século XX. Nos dois casos um começo
promissor foi seguido de uma queda duradoura na mais acachapante esterilidade. Qual seria, então,
o mérito excelso das “formigas engenheiras” se não o de parasitar o prestígio popular das ciências,
fonte aliás de tantos desastres filosóficos? Sem contar o fato de que, ao menos na América, o
predomínio da escola analítica nas universidades não se deveu a nenhuma superioridade intelectual,
mas à politicagem pura e simples, da qual foram vítimas, entre outros, Eugen Rosenstock-Huessy,
William Barrett e Richard Rorty.
Definitivamente, Harry Redner estava certo ao afirmar que o aperfeiçoamento da razão formal
muitas vezes se faz em prejuízo da razão substantiva.
Mas o sr. Lemos, cuja filosofia tem a admirável qualidade de jamais ter existido, não pode ser
acusado de parasitar ciência nenhuma. Nem mesmo de parasitar os parasitas. Tudo o que ele faz é
macaquear-lhes a pose, acreditando que isto lhe confere autoridade para roer, de passagem, o
prestígio alheio. Mais precisamente, o meu. Entre as ocupações de segunda ordem que, segundo ele,
marcam os filósofos indignos de admiração, encontra-se a de “denunciar conspirações no seio do
Foro de São Paulo”. Como não há na praça nenhum outro autor de livros de filosofia que tenha feito
algo do gênero, é evidente que ele se refere à minha pessoa, embora, como bom poltrão que é,
prefira fazê-lo por meio de uma indireta sem nome de destinatário. (Duplamente poltrão, aliás, já
que, após esse sussurro de fofoqueiro, se apressou em suprimir retroativamente a menção ao Foro
de São Paulo, tornando a insinuação ainda mais vaga e evanescente.)
Ao mesmo tempo, ele elogia Dummet por sua luta contra a discriminação racial, entendendo,
naturalmente, que juntar mais uma voz ao coro universal da mídia, em prol de uma causa desprovida
de inimigos intelectualmente significativos, é mérito superior ao de denunciar, sozinho e contra
todos, a aliança de revolucionários e narcotraficantes que, sob a proteção do silêncio geral, chegou
a dominar todo um continente. Nem com muita lógica matemática será possível dar algum arremedo
de fundamento à hierarquia de valores aí subentendida.
Logo em seguida, ainda sem citar nomes, o sr. Lemos reincidiu no vício das intrigas de comadre.
Baseado no fato de que eu mencionasse a fascinação de Wittgenstein pela ditadura estalinista e, de
passagem, aludisse também à sua afeição pelas meditações budistas, disse ser altamente
vergonhoso que “uma figura bem conhecida” atribuísse ao filósofo, ao mesmo tempo, convicções
socialistas e budistas. Nunca afirmei que Wittgenstein fosse socialista. Mesmo que ele o fosse, não
há contradição nenhuma entre socialismo e budismo, já que o próprio Dalai-Lama, vítima de
perseguição comunista, se derrama em loas ao marxismo, com notável despudor. De um lado, o que
eu disse foi que Wittgenstein tinha sido um entusiasta do estalinismo em particular, sem nenhum
compromisso explícito com o pensamento marxista em geral. Colaborando com o sr. Lemos, um
garoto intrometido veio, em mensagem ao fórum do Seminário de Filosofia, esfregar na minha cara
o argumento de que Wittgenstein era tão pouco simpático ao regime soviético que chegara a recusar
duas belas ofertas de emprego acadêmico na Universidade de Kazan. E, dizendo isso, brandia diante
do meu nariz a biografia do filósofo por Ray Monk, livro que ele obviamente não lera, pois se o lesse
saberia que o governo da URSS fizera os convites a Wittgenstein por julgar constrangedor e um tanto
suspeito que o filósofo, no seu entusiasmo romântico pela sociedade soviética, se oferecesse para
fazer lá humildes trabalhos voluntários, sendo este também o motivo pelo qual ele veio a recusar em
seguida as ofertas lisonjeiras. Saberia também que, segundo Monk, o amor de Wittgenstein ao
regime estalinista era tão intenso que não arrefeceu nem mesmo diante dos escandalosos Processos
de Moscou, que provocaram a primeira onda de defecções no movimento comunista internacional.
De outro lado, as analogias entre a filosofia de Wittgenstein e o zen-budismo são tão patentes que
chegaram a inspirar um livro inteiro do mais famoso escritor zen-budista americano, Alan Watts (livro
para o qual escrevi um prefácio, indevidamente laudatório a Wittgenstein, anos antes de o sr. Lemos
ter nascido; como se vê, o wittgensteinismo é uma espécie de sarampo filosófico, ao qual eu mesmo
não escapei na idade apropriada). Que há diferenças também, não é preciso dizer, já que analogia,
por definição, é síntese de semelhanças e diferenças.
Por desprezíveis e covardes que sejam essas fofoquinhas, nas quais o sr. Lemos imagina ver provas
de grande honestidade intelectual, elas não vieram desacompanhadas. Quase ao mesmo tempo, um
colega dele, o sr. Eduardo Wolff, publicou no Facebook um post no qual informa a seus estupefatos
leitores que fui “internado em manicômio, com camisa de força e tudo”. Enquanto aguardo do sr.
Wolff novos e emocionantes detalhes quanto a esse capítulo desconhecido da minha biografia,
pergunto-me se esses sujeitos realmente não enxergam que aquilo que fazem é apenas sintoma da
miséria intelectual e moral brasileira. Será que querem mesmo arrancar suas máscaras provisórias
de intelectuais respeitáveis e exibir-se ao mundo como os mexeriqueiros subginasianos que sempre
foram e sempre serão?
Mas, no fundo, nada tenho contra o vício ou obsessão anti-olavista que leva tantas pessoas a dar a
tapa as suas bisonhas carinhas. Com críticos desse calibre, que se desmoralizam a cada palavra que
esboçam, a impressão que fica é que o Olavo de Carvalho é inatacável, lindo, um santo ou profeta
iluminado no qual só loucos e idiotas poderiam enxergar alguma imperfeição. Não há dinheiro que
pague o benefício imerecido que essa gente me faz. Mil puxa-sacos juntos não me elevariam a tais
alturas.

A cólera dos imbecis


Diário do Comércio, 26 de janeiro de 2014

Depois das investidas ferozes contra o meu “O Imbecil Coletivo”, em 1997, nas quais só
conseguiram exemplificar o que eu dizia no livro, os mais destacados intelectuais de esquerda
preferiram entrar num mutismo preventivo, para não se expor a novos e mais catastróficos vexames.
O único dentre eles que voltou a tocar no assunto OIavo de Carvalho foi o Ricardo Mussi, mas veio
falando de mim num tom respeitoso que revelava algum bom-senso e contrastava com a presunção
louca daqueles primeiros e desastrados críticos. Depois, vendo que a intelectualidade nacional não
podia me fornecer um antagonista à altura, decidiram importar um, o prof. Alexandre Duguin, que
também não conseguiu se sair muito bem mas teve ao menos a hombridade de reconhecer que o
debate fôra “duríssimo”, contrastando, nisso, com a empáfia histriônica daqueles que saiam com o
bumbum esfolado jurando que haviam batido com ele no meu pé.
Até hoje a situação está mais ou menos assim. Quem tem alguma reputação evita arriscá-la num
confronto que se revelou letal para seus antecessores Leandro Konder, Emir Sader, Carlos Nelson
Coutinho, Alaor Café e muitos outros. Só quem ainda ousa falar de mim com ares de superioridade
desafiadora são precisamente indivíduos que não têm reputação nenhuma e que esperam angariar
alguma por meio de uma disputa suicida, como jovens pistoleiros desmiolados nos filmes de
faroeste.
Esses saem vencedores de algum modo, porque são tão numerosos que se torna impossível
responder-lhes a todos, de maneira que sempre haverá um ou outro que passe a ostentar no seu
currículo imaginário a glória de ter afugentado o oponente mais velho que lhe recusou uma resposta
ou não chegou nem mesmo a tomar ciência do desafio.
“Derrotar o Olavo de Carvalho” tornou-se, entre milhares de estudantes universitários – e, horresco
referens, alguns professores –, uma obsessão incurável e a glória máxima a que aspiram.
Lamentavelmente nunca sugerem alguma questão específica a ser debatida, preferindo conceder-
me a dupla honra de ser ao mesmo tempo debatedor e assunto dodebate.
Mas, precisamente porque aquilo que os move é o ódio ao oponente e não o interesse genuíno por
algum tópico de discussão, quase todos entram em campo contestando algo que imaginam que eu
disse, e não o que eu realmente disse. O empenho guerreiro que colocam em furar as bolhas de
sabão que eles mesmos sopraram é a reprodução exata da fúria com que um peixinho beta investe
contra sua própria imagem no espelho.
Não é que apenas me julguem sem ter lido meus livros. É que se recusam terminantemente a lê-los
e consideram mesmo ofensiva a sugestão de que deveriam fazê-lo antes de me julgar. É como se
vissem nesses livros uma ameaça sinistra da qual devem fugir por todos os meios, um poder de
persuasão diabolicamente irresistível, de cujo contato devem preservar suas almas para não
corromper — vade retro! — a pureza da sentença condenatória que já assinaram.
Na verdade, a adivinhação paranóica de poderes malignos já evoluiu para a conjeturação de como
me enviar para a cadeia, não importa por qual crime inexistente ou impossível. O sr. Sebastião Nery
sugeriu, tempos atrás, “falsidade ideológica”, porque dou cursos de filosofia sem possuir “diploma
de filósofo”, ainda que, em vez de ostentar um título falso como o fez a nossa presidenta (ver aqui),
eu me gabe publicamente de não possuir nenhum nem havê-lo desejado jamais. O sr. Paulo
Ghiraldelli informa a um estupefato mundo que meus alunos vêm à minha casa não para estudar, e
sim para satisfazer os meus instintos lúbricos de velho sátiro, e até pagam para isso, tão irresistíveis
são as minhas artes de sedução. Um tal sr. Alexandre Melo, cuja página do Facebook acabou aliás
sendo fechada por isso, raciocina na mesma direção e insinua que se trata de crime de pedofilia,
infelizmente sem explicar aos perplexos leitores como se pratica esse delito com pessoas adultas.
São só três exemplos no meio de centenas. Sob os risos de inumeráveis leitores, cada um se degrada
e se esculhamba entre gemidos de prazer masoquista, afogando-se mais e mais na latrina onde
pretendia me depositar.
Como explicar essa descida voluntária da inteligência esquerdista até abismos de autodestruição
onde o próprio Satanás teria alguma dificuldade de respirar?
A hipótese que me ocorre é a seguinte. Até os anos 60 a esquerda era uma minoria insatisfeita em
luta contra o establishment acomodado. Tinha, por isso, alguma mobilidade intelectual, seguia o
debate cultural mais amplo e, no mínimo para se posicionar contra, lia atentamente os livros de seus
adversários locais e internacionais.
À medida que foi se concentrando na luta e depois no exercício dopoder, fechou-se em si própria,
numa busca obsessiva de autoconfirmação e na reiteração de chavões necessários ao adestramento
da militância animalizada, e simplesmente perdeu o pé no mundo da alta cultura. Já não entende o
que se fala fora dos seus círculos internos, e, não entendendo, reage com a impulsividade cega e
louca de quem nada tem a dizer, só a maldizer. O melhor que tem a objetar ao autor de alguma idéia
que lhe desagrada é ensejar que vá preso ou morra.
Não tenho dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, passarão dodesejo à ação, como sempre fizeram
em todos os países que governaram e fazem ainda naqueles em que mandam.
Georges Bernanos já dizia que nada no mundo se compara à cólera dos imbecis.

O método para não entender nada


Diário do Comércio, 3 de dezembro de 2013

Richard Rorty diz que, não havendo nenhuma verdade a ser encontrada acima das divergências de
opinião, a filosofia se reduz a um puro divertimento, no qual, em vez de procurar saber se tal ou qual
filósofo tinha razão, você deve tentar apenas “pensar como ele”, como quem assiste a um drama –
ou o escreve — e se identifica com os pontos de vista dos vários personagens sem chegar a conclusão
nenhuma. Ele ia até mais longe e afirmava que a mesma tolerância e abstinência de julgamento
deveria ser praticada com os grandes agentes históricos, não havendo razão nenhuma para que
algum escritor não produza uma biografia de Hitler desde o ponto de vista do próprio Hitler,
representando mentalmente e sentindo, sem julgá-lo, o ódio anti-semita que o movia.
O primeiro desses conselhos é um bom método para começar a estudar filosofia, mas não
constitui uma filosofia de maneira alguma, assim como o segundo é um bom meio de iniciar uma
investigação histórica, mas não de concluí-la.
É evidente que, quando você estuda as doutrinas de um filósofo, deve absorvê-las como se
fossem as suas próprias antes de poder julgá-las. Se você salta essa etapa, as idéias dele permanecem
um corpo estranho e ao julgá-las desde fora você não as atinge, apenas desliza sobre elas. Mas, se,
após ter feito um esforço para pensar como se fosse Descartes ou Nietzsche você não é capaz de
voltar a ser você mesmo e julgá-los desde o seu próprio ponto de vista, fica também impossível julgar
Descartes desde o ponto de vista de Nietzsche, ou vice-versa, isto é, toda comparação se revela
inviável e a filosofia se reduz a uma coleção de discursos separados e inconexos, um diálogo entre
quem não ouve e quem não fala.
Em segundo lugar, para “pensar como” fulano ou beltrano, você precisa saber o que eles
sabem. Mas será possível e necessário, também, ignorar o que eles ignoram? Por exemplo, algo que
se descobriu depois que eles morreram, e do qual você está bem informado. Se o mapa da sua
ignorância não coincide exatamente com o de um outro indivíduo, você jamais poderá pensar
exatamente como ele. Você pode, é claro, fingir que ignora o que ele ignora, mas esse fingimento é
algo que não estava no pensamento dele e que você está introduzindo nele desde fora. Se, ao
contrário, você realmente ignora o que ele ignora, então não é da ignorância dele que se trata, e sim
da sua própria, que só por acaso coincide com a dele. E é loucura imaginar que a coincidência fortuita
de duas ignorâncias seja um bom método para compreender o que quer que seja.
Chega a ser inacreditável que um filósofo de grande reputação como o prof. Rorty não
percebesse, de imediato, a completa inviabilidade do método que sugeria.
O que cabe fazer em filosofia, o que no fundo todo estudante acaba fazendo sem nem mesmo
ter a intenção clara de fazê-lo, é tentar pensar como o filósofo que você está estudando e depois,
confrontando o que ele sabia com o que você sabe, criar a sua própria opinião sobre as opiniões dele.
(É claro que existem maus estudantes — muitos deles, decerto, professores — que já criam a sua
própria opinião a respeito antes de deixar o filósofo terminar de falar, e alguns até antes de que ele
comece a falar. Mas “non raggionam da lor”.)
Quanto aos personagens históricos, é claro que devem também ser estudados desde suas
próprias intenções e valores, “sine ira et studio”, mas é impossível fazê-lo sem levar em conta que
competiam com as intenções e valores de outros personagens e que tanto as intenções e valores de
uns quanto as dos outros se recortavam sobre um horizonte de consciência (e de inconsciência) que
não é o do historiador que os está estudando. Este, portanto, nada compreenderá do drama histórico
se, desde os dados à sua disposição, não puder distinguir, entre os personagens históricos, quais
viam a situação mais apropriadamente que os outros. Posso, por exemplo, tentar me colocar no lugar
de Hitler e “sentir” imaginariamente o ódio que ele sentia aos judeus, desde as razões que ele se
apresentava para tanto. Mas devo levar essa tolerância relativista ao ponto de ter de ignorar o que
ele ignorava? Devo fazer de conta que não sei que ele acusava os judeus de crimes que eles não
haviam cometido e enxergava neles defeitos de constituição cerebral que eles não têm de maneira
alguma? Posso até fingir isso, mas aí já não estarei pensando como Hitler e sim como um dramaturgo
que inventa um personagem chamado “Hitler” sem ter em conta o Hitler da História. Pior ainda, se
após mergulhar no horizonte de consciência de Hitler não saio fora dele para julgá-lo de cima, como
posso distinguir se Hitler acreditava mesmo naquelas coisas ou apenas as fingia, por sua vez, para
tirar delas proveito político?
Tanto em filosofia quanto em historiografia, o método do prof. Rorty só pode levar a um
resultado: uma confusão dos diabos. Não espanta que, havendo-o praticado por anos a fio, ele
próprio chegasse a concluir que nenhum problema tem solução e que a única coisa que o filósofo
tem a fazer é entregar-se ao divertido empreendimento de não entender nada.
Muito menos espanta que um seu discípulo local, um tipo folclórico que se denomina “o
filósofo da cidade de São Paulo” – como se não tivessem sido da capital paulista os maiores filósofos
que o Brasil já teve, Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva e Vilém Flusser
–, após ter absorvido as idéias do mestre, acabasse acreditando que a pedofilia é uma coisa boa e
que, historicamente, a prática generalizada do coito anal antecedeu a do coito vaginal…

Fugindo da filosofia
Diário do Comércio, 10 de setembro de 2012

Na universidade brasileira – e refiro-me somente às mais prestigiadas –, a lógica e a filologia foram


consagradas como os refúgios convencionais da impotência filosófica. Ambas constituem, é claro,
domínios autônomos, com seus objetos e métodos respectivos, que às vezes podem ser
freqüentados indefinidamente sem nenhum suporte filosófico especial, mas que, como todas as
demais ciências, podem suscitar problemas de ordem filosófica para os quais não encontram solução
dentro dos seus critérios e terrenos próprios.
Nenhuma das duas é a filosofia, embora ambas prestem a ela os serviços de ciências auxiliares
freqüentemente indispensáveis.
A lógica está para a filosofia como a gramática está para a literatura. Idealmente, espera-se que
tudo o que um escritor escreve seja compatível com as regras consagradas da gramática, seja por
segui-las em sentido estrito, seja por transcendê-las criativamente, seja por transgredi-las em
detalhes menores amplamente compensados – ou até justificados — pelo valor do conjunto. O que
não se espera nunca é que um escritor sacrifique a vivacidade direta das suas intuições estéticas às
exigências de algum gramático ranheta. Do mesmo modo, espera-se que aquilo que um filósofo diz
resista ao teste da consistência lógica, mas não que ele próprio forneça a cabal demonstração lógica
de tudo o que disse.
Isso é assim por dois motivos. Primeiro: em filosofia não há cabal demonstração lógica de
praticamente nada. Todas as teses filosóficas podem ser recolocadas em questão à medida que se
descobrem nelas novas nuances insuspeitadas à primeira vista ou que o desenvolvimento das
ciências traz à luz novos aspectos dos seus objetos. Segundo: o trabalho de demonstração lógica
exaustiva só é possível em questões filosóficas já longamente elaboradas por uma tradição de
interpretações e debates, quando as dificuldades de expressão foram superadas e os conceitos
estabilizados. Acontece, por fatalidade, que essa condição quase nunca é cumprida pelas grandes
filosofias. O que caracteriza essas filosofias – acima de tudo a de um Platão, a de um Aristóteles – é
que desbravam continentes desconhecidos, para os quais não há ainda uma linguagem consagrada
nem conceitos descritivos prontos. A busca da perfeita (ou mais perfeita) consistência lógica é antes
ocupação de continuadores e epígonos que dos espíritos criadores. Na exploração do desconhecido,
uma certa margem de imprecisão e nebulosidade é inevitável. Prova-o acima de qualquer
possibilidade de dúvida o fato de que, decorridos dois milênios e picos, ainda se discute o sentido
preciso de tais ou quais termos nos escritos daqueles dois filósofos.
É aí, precisamente, que entra a filologia. Sua tarefa é reconstituir a forma e, se possível, o sentido
originário dos textos antigos – ou não tão antigos –, de modo a que o estudioso deles tenha em mãos
um material confiável, de onde se depreenda com clareza máxima o pensamento dos autores, bem
como o seu encadeamento histórico e os seus nexos com o ambiente social e mental das épocas
respectivas.
Com isso chegamos um pouco mais perto da filosofia. Estudar e compreender os escritos dos grandes
filósofos já é, de algum modo, tomar parte numa atividade filosófica. Tanto que aqueles que a
praticam se consideram filósofos. Alguns até acreditam que nisso e somente nisso consiste a filosofia.
O prof. José Arthur Gianotti declarou peremptoriamente ser a filosofia, em essência, “um trabalho
com textos”. Não lembro se a expressão foi bem essa, mas essa era a idéia.
Essa idéia tem o mérito de demarcar precisamente a diferença entre a filosofia e o que dela se
transmite, na melhor das hipóteses, aos estudantes das universidades brasileiras. Estes ocupam-se
de textos (quando se ocupam de alguma coisa). Os grandes filósofos, ao contrário, não se dedicavam
eminentemente ao estudo de seus próprios textos, nem mesmo ao dos seus antecessores,
contemporâneos e concorrentes, mas ao estudo de objetos que existiam antes, fora e
independentemente da filosofia: Deus, a vida após a morte, a constituição dos Estados e governos,
a sociedade e os costumes, a conduta moral ou imoral dos seres humanos, os sonhos e emoções, a
ordem do universo material, a estrutura da realidade. Nenhum desses objetos foi inventado pelos
filósofos. Estes os encontraram prontos na experiência da vida (que inclui, é claro, uma parcela de
herança filosófica), e fizeram um gigantesco esforço de compreendê-los. Desse esforço sempre fez
parte, é claro, a meditação do que os filósofos anteriores – ou os homens cultos em geral – haviam
dito a respeito. Aristóteles diz mesmo que o exame das opiniões inteligentes é bom começo de
investigação filosófica; e esse começo, decerto, exige a leitura dos textos. A diferença é que
Aristóteles os lia para encontrar, justamente, o que não estava neles: o objeto enquanto tal, que só
muito parcialmente, e não raro impropriamente, transparecia nas opiniões estudadas. Dito de outro
modo, ele usava os textos como perspectivas auxiliares para enriquecer, às vezes por contraste, a
sua própria experiência direta dos objetos. Foi nesse sentido que Eric Voegelin aconselhava a seus
alunos: “Não estudem a filosofia de Eric Voegelin. Estudem a realidade.”
A transmutação da realidade em conceito filosófico requer uma técnica apropriada, a técnica
filosófica, elaborada ao longo de milênios de experiência, que descrevi breve e toscamente no livro A
Filosofia e seu Inverso. Essa técnica é especificamente diversa da lógica e da filologia e não pode ser
adquirida pelo estudo exaustivo, ou mesmo maníaco, dessas duas disciplinas.

Ilusões democráticas (I)


Diário do Comércio, 14 de agosto de 2015
Um “princípio”, em filosofia, é uma afirmativa auto fundante e universalmente válida, que portanto
não depende de nenhuma outra nem é limitada por quaisquer considerações externas.
Um mecanismo bem conhecido da mente humana, no entanto, faz com que as afirmativas mais
débeis e incertas sejam tomadas como princípios absolutos justamente porque os seus
propugnadores não sabem fundamentá-las nem são capazes de atinar com as consequências da
sua aplicação. Despida de toda conexão lógica e de toda ligação com a realidade da experiência, a
ideia solta paira no ar como uma divindade indestrutível, tanto mais hipnoticamente persuasiva
quanto mais idiota.
Todos nós gostamos de viver numa democracia. No mínimo, acreditamos, como Churchill, que ela é
o pior dos regimes, excetuados todos os outros. Quando vemos a facilidade com que ela se
autodestrói, cedendo lugar a toda sorte de tiranias, ficamos consternados e imaginamos que isso
se deve à concorrência desleal de concepções antagônicas. Mas essas concepções não teriam o
poder mágico de obscurecer as vantagens óbvias de viver numa democracia se esta mesma não
sofresse de alguma debilidade intrínseca que a torna vulnerável, mesmo aos ataques mais
grosseiros e imbecis.
A debilidade principal da democracia reside, segundo entendo, no fato de que, sendo uma
excelente ideia prática e nada mais, ela buscou desde o início escorar-se em fundamentos teóricos
falsamente absolutos que a colocam num estado permanente de autocontradição e têm de ser
diariamente negados, relativizados ou atenuados para que ela possa continuar funcionando. A
democracia vive de expedientes antidemocráticos e sorrisos amarelos.
O primeiro e o mais capenga desses fundamentos é a noção de que o ser humano nasce investido
de “direitos inalienáveis”. Um direito, como demonstrou Simone Weil no seu majestoso livro
L’Enracinement, não é nada senão uma obrigação de alguém mais. Se digo que as crianças têm o
direito à alimentação, significa que alguém tem a obrigação de alimentá-las. Um direito não é algo
que exista em si, é apenas o efeito da obrigação.
Proclamar um direito sem definir o titular da obrigação correspondente é cuspir bolhas de sabão, é
fingimento histérico. Foi por isso que Deus ditou a Moisés Dez Mandamentos, dez obrigações, não
dez direitos. Mas, quando o Rei Luís XVI disse que A Declaração dos Direitos do Homem nada seria
sem uma Declaração dos Deveres, cortaram-lhe a cabeça. A democracia começou tomando uma
consequência como princípio e matando quem percebesse a inversão.
Isso não quer dizer que os direitos fossem errados, na prática. O problema é que nenhuma
sociedade pode sobreviver sem impor obrigações. Como as obrigações foram banidas da esfera dos
princípios, a incumbência de defini-las acabou cabendo à legislação comum, donde resultou a
criação desse monstrengo que é o Poder Legislativo permanente, uma corporação de centenas de
pessoas que passam o tempo todo criando obrigações e proibições para todas as outras. Milhares,
centenas de milhares de obrigações e proibições. Leis em quantidade inabarcável por qualquer
cérebro humano.
Era preciso ser muito sonso para não perceber que por essa via o Estado logo se tornaria o
mediador onipresente de todas as relações humanas, estrangulando a liberdade em nome da qual
os direitos foram proclamados.
[Continua]

A ambição filosófica
Diário do Comércio, 14 de outubro de 2014

Não existe filosofia modesta. Toda filosofia é uma intervenção de longo prazo e larga escala no
mundo dos acontecimentos humanos. Enquanto os decretos dos governantes passam e se
desfazem em pó no esquecimento, as filosofias permanecem ativas e influentes decorridos séculos
ou milênios do falecimento de seus criadores, afetando ou modelando o curso das discussões
científicas, morais, políticas e religiosas. Revelam uma força auto-revigorante quase miraculosa.
Milhares de biografias de Napoleão e Júlio César não trariam de volta os seus impérios, mas às
vezes basta um debate erudito ou um ensaio de reinterpretação para que uma filosofia que parecia
esquecida ressurja das cinzas e, adornada ou não do prefixo “neo”, venha interferir na vida
contemporânea como se tivesse sido publicada ontem.
Não imaginem que esse fenômeno se deva só ao zelo de admiradores e discípulos tardios que, à
revelia e sem a mínima participação de seus mestres e inspiradores mortos, não deixam que a
chama se apague. Ao contrário, foram esses mesmos mestres e inspiradores que, concebendo
metas de longo prazo e colocando a serviço delas as mais complexas e poderosas estratégias
cognitivas, deixaram aberta ou fomentaram conscientemente a possibilidade de sucessivos
renascimentos.
Em algumas filosofias a meta ambicionada é tão evidente que não precisa nem ser declarada.
Ninguém pode duvidar de que Sto. Agostinho, Sto. Tomás ou Pascal sonhavam apenas em expandir
o domínio hegemônico da Igreja Católica e converter, se possível, a humanidade inteira. Isso
transparece em cada linha que escreveram. Os três divergem somente nas estratégias intelectuais
com que planejam realizar esse objetivo, as quais escapam ao assunto deste artigo.
Em outros casos – Marx, por exemplo, ou Nietzsche –, o objetivo é tão enfaticamente reiterado
que basta citar esses nomes para que venha imediatamente à memória a imagem da utopia
socialista ou a do Super-Homem que emerge soberanamente livre no deserto do nada após a
destruição de todos os valores.
Porém mais interessante é o caso daqueles filósofos que sussurram seus objetivos tão
discretamente, quase em segredo, que estes podem passar despercebidos ou ser negligenciados
durante décadas ou séculos por estudiosos que nada mais vêem nas obras deles senão a poderosa
arquitetura dos meios, chegando a tomá-la como o fim.
A mais mínima hesitação do filósofo em colocar a declaração de fins bem visível no pórtico ou no
topo da sua filosofia pode levar a esse resultado. Porque os fins, em si mesmos, são por assim dizer
anteriores à filosofia e, determinando-lhe a forma de conjunto, não são por ela afetados exceto no
que diz respeito aos seus meios de realização.
Os fins de uma filosofia não são exclusivos dela: podem ser compartilhados por uma multidão de
não-filósofos que talvez nem tenham o vigor intelectual necessário para entendê-la.
O exemplo mais didático, nesse sentido, é o já citado de Agostinho, Tomás e Pascal. Eles queriam
expandir o cristianismo? Sim. É esse o objetivo que norteia todo o seu esforço filosófico? Sim. Mas
quantos homens não queriam o mesmo sem ser filósofos?
O que caracteriza e distingue a filosofia no meio de tantos outros empreendimentos humanos é a
peculiar sofisticação, riqueza e precisão dos meios intelectuais que ela põe a serviço do seu
projeto. Enquanto outros pregam os fins e tentam realizá-los na prática ou morrem por eles no
campo de batalha, o filósofo se empenha em remover os mais árduos obstáculos cognitivos que se
interpõem entre a humanidade presente e a consecução desses fins, erguendo novos arcabouços
intelectuais que a viabilizem.
Esses obstáculos podem consistir de crenças do senso comum, erros de percepção ou de raciocínio,
doutrinas religiosas, científicas ou mesmo filosóficas equivocadas, símbolos inadequados ou mal
interpretados que bloqueiam a imaginação, fraquezas da psique humana etc. etc.
Josiah Royce distinguia, com razão, entre o “espírito” de uma filosofia e a sua “realização técnica” –
o ideal inspirador e a forma acabada da sua cristalização em obra filosófica. Tão ampla é a esfera
dos problemas envolvidos na “realização técnica”, tão árdua a tarefa de resolvê-los, tão complexo
o equipamento intelectual que tem de ser usado (e às vezes criado) na sua construção, e não raro
tão dificultosa a sua absorção pelo leitor, que, se não advertido quanto aos fins e ideais
subjacentes, este pode prolongar o exame da maquinaria indefinidamente até o ponto de tomá-la
como se ela fosse a finalidade de si mesma. Sem contar, é claro, o prazer vaidoso que o pedantismo
erudito pode extrair do destrinchamento interminável de miudezas técnicas, em que as questões
fundamentais são adiadas para o dia de são nunca em nome de uma aparência de “rigor”.
Para piorar as coisas, muitos elementos da “realização técnica” têm mesmo um valor autônomo,
que permite integrá-los em outros projetos filosóficos alheios ou hostis aos fins originários a que
serviram. Não é preciso ser tomista nem marxista para tirar proveito de parcelas inteiras do
tomismo ou do marxismo.
É claro, no fim das contas, que o desvio de foco se comete menos facilmente com os filósofos que
declararam abertamente os seus fins, ou com aqueles onde estes são auto-evidentes, do que com
os tipos ambíguos e escorregadios que, por medo do escândalo ou por aversão a polêmicas,
preferiram ser mais discretos ou obscuros.
Cometem-se menos desatinos por fuga do essencial na interpretação de Marx, de Sto. Tomás de
Aquino ou de Pascal que na de Maquiavel, Kant ou Descartes.

As filosofias e sua estrutura


Diário do Comércio, 9 de outubro de 2014

A estrutura de uma filosofia é o que ela tem de mais patente e de mais oculto ao mesmo tempo.
Patente, porque está presente em todas as suas partes, mesmo as mais ínfimas e humildes, as
quais nada são fora dela. Oculto, porque só está presente no fundo, como chave de travamento do
conjunto, e jamais como parte ou tema explícito em qualquer das partes.
O filósofo que tomasse como tema a estrutura da sua própria filosofia, para discorrer sobre ela, já a
estaria assim, nesse mesmo momento, inserindo como parte numa estrutura maior.
Uma das consequências disso é que a estrutura não pode ser revelada por nenhuma “análise de
texto”, por mais meticulosa e bem cuidadinha que seja, a qual só leva à estrutura da exposição, ou
da obra escrita, cuja relação com a estrutura da filosofia propriamente dita é variada e ambígua. O
método para apreender a estrutura de uma filosofia tem de partir dos seguintes princípios:
(1) Toda filosofia, por abstrata e desinteressada que pareça, é uma intervenção no curso dos
negócios humanos. Visa sempre a modificar ou reforçar o estado de coisas na sociedade, na
cultura, na ciência, na religião, nos costumes, ou mesmo na condição humana em sua totalidade.
(2) Para esse fim, procede a um exame em profundidade dos obstáculos, cognitivos ou de qualquer
outra ordem, que impedem ou dificultam sua consecução, tentando criar os meios intelectuais e
práticos para removê-los.
(3) Sua estrutura, portanto, define-se como uma articulação de fins e meios. Qual a meta histórico-
cultural proposta e qual a estratégia, a um tempo cognitiva e persuasiva, usada para legitimá-la e
viabilizá-la?
Dito de outro modo, a estrutura de uma filosofia só se revela quando o discurso em que ela se
expressa é examinado não como um puro sistema de idéias e doutrinas, mas como uma ação
humana, a intervenção de um indivíduo intelectualmente privilegiado na vida dos seus
semelhantes supostamente menos dotados dispostos a ouvi-lo.
Ora, o exame de um discurso como modalidade de ação humana é o campo especializado dos
estudos retóricos, da arte da persuasão. Para apreender a estrutura de uma filosofia, a articulação
dos seus fins com os seus meios, é preciso portanto examiná-la desde o ponto de vista retórico,
considerando-a como esforço de persuasão destinado a produzir, através de modificações na
esfera cognitiva, determinados efeitos na vida histórico-social ou até na vida humana em geral.
O que faz com que essa obviedade seja frequentemente esquecida é que a exposição das idéias
filosóficas se faz em geral por meio de um discurso lógico-dialético que despreza o apelo à
persuasão retórica e pretende situar-se no campo da demonstração estrita, das certezas
intelectuais imunes aos atrativos da oratória.
Acontece que esse discurso, enquanto tal, não é “a” filosofia, mas apenas o conjunto ou sistema de
meios intelectuais pelos quais ela busca realizar os seus fins. Se o examinamos “em si mesmo”, sem
subordiná-lo aos fins a que deve servir, perdemo-nos numa infinidade de “problemas filosóficos”
ou acidentes de percurso, sem jamais atinar com a estrutura da filosofia em questão, a qual
estrutura consiste precisamente na articulação dos fins com os meios.
No empenho de discernir essa estrutura, é necessário compreender o discurso lógico-dialético
como parte e instrumento de um esforço de persuasão, isto é, de um empreendimento que, visto
no conjunto, não é e não pode ser senão de ordem retórica.
O método, pois, para descobrir a estrutura de uma filosofia, reside na análise retórica do seu
discurso, discernindo nele os quatro elementos que nos tratados clássicos definem todo discurso
retórico: a “situação” de discurso, isto é, o quadro histórico, social, cultural e psicológico onde ele
emerge e no qual pretende intervir; o “juiz”, isto é, o público em especial a que se dirige e sobre o
qual pretende influir; o “objetivo” ou meta, isto é, a modificação específica que pretende introduzir
no quadro; e por fim o “discurso” mesmo, isto é, o conjunto de meios de argumentação, prova e
persuasão colocados em ação para realizar esse fim.
Felizmente, o objetivo ou meta – o “para quê”, em última análise, o filósofo está fazendo o que faz
– vem explicitamente declarado na maior parte das filosofias. Basta procurá-lo.
A dificuldade reside em que nem sempre ele consta das partes consideradas mais importantes ou
mais nobres da obra filosófica – às vezes só aparece em cartas pessoais ou trabalhos menores –, de
modo que o estudioso, especialmente quando adestrado numa tradição de ensino que privilegia a
análise dos textos enquanto tais e se concentra nos de maior prestígio, pode se perder num
emaranhado de dificuldades de percurso e não chegar jamais a perguntar-se para onde, afinal, o
filósofo o está levando. É assim que a mais requintada sofisticação dos meios de análise pode se
tornar uma apurada técnica de não entender nada.
Embora eu não conheça nenhum caso em que o objetivo tenha permanecido totalmente oculto, o
filósofo pode ter um bom motivo para mantê-lo discreto, quando o considera perigoso ou
revolucionário demais para poder, sem escândalo, ser exibido em público nas partes mais nobres e
vistosas da sua obra escrita. Neste caso é necessário procurá-lo em escritos menores e de ocasião,
cuja importância estratégica no conjunto escapa à atenção do analista vulgar, deslumbrado ante o
prestígio das “grandes obras”. É esse, precisamente, o caso de Immanuel Kant (na ilustração), de
Descartes e de Maquiavel.

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