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DIREITO ENQUANTO MODO DE VIDA

Quando um novo aluno chega ao mundo do Direito, costuma ficar impressionado com a
multiplicidade dos temas abrangidos pelo saber jurídico: do cheque pré-datado, que ele emitiu ontem, aos
dilemas da clonagem de seres humanos, narrados, quem sabe, no filme a que assistiu no último domingo. De
repente, o "calouro" do Direito percebe que a partir de questões de seu interesse (como a segurança de seu
carro no estacionamento da faculdade) ou de sua curiosidade (como uma possível obrigatoriedade da
presença de alunos negros em sua turma), o mundo jurídico, que recém lhe abriu às portas, vai formando
um cotidiano de polêmica conseqüente.

Se estiver atento, o novel acadêmico cedo notará que, para ser membro legítimo da comunidade
jurídica, terá de se disciplinar na capacidade de oferecer justificativas para as suas tomadas de posição.
Inicia-se, então, o longo caminho do rompimento com o discurso leviano ("eu acho") ou autoritário ("é
assim!"), que autorizam o indivíduo a dizer simplesmente qual a sua posição, sem a necessidade de
demonstrar sua compatibilidade com a lei, com os princípios de justiça ou com as regras do bem pensar.
Não, ele logo tomará ciência de que se embrenhar pelas carreiras jurídicas é, antes de tudo, tornar-se um
profissional do convencimento justificado, o oposto da imagem deturpada do advogado como um pedante
sofista a esconder sob um palavreado erudito seu desejo de fazer prevalecer o absurdo sobre a lógica, o
interesse mesquinho sobre a ética e a técnica fria sobre os princípios sensíveis de justiça. .

Quem quiser fazer do Direito não uma simples profissão, mas uma maneira de sentir e portar-se
diante da vida e dos conflitos humanos, deverá entender que o saber jurídico possui singularidades para seu
aprendizado e exercício. Desde o primeiro dia de aula, deve ficar claro que o Direito requer habilidade
prática, reflexão esclarecida e atitude eticamente combativa. Na ausência de tais requisitos, o Direito sai
desmoralizado (e como tem saído!) após cada demonstração de incompetência técnica, de dogmatismo
preconceituoso ou do patrocínio ganancioso da opressão por parte daqueles que mais o deveriam honrar.

Quem desenvolveu a habilidade de operar as normas e princípios do Direito tornou-se um


potencial operador jurídico; o que desenvolveu a capacidade de pensar o Direito de forma esclarecida e
conseqüente, - refletindo-o, criticando-o e sugerindo aperfeiçoamentos, - tornou-se um intelectual do
mundo jurídico. Mas só quem conseguiu conciliar a habilidade prática do operador jurídico com a amplitude
de pensamento do intelectual do Direito pode ser dito um verdadeiro jurista. E se, deixando de lado seus
próprios interesses mais imediatos, ele colocou sua condição de jurista a serviço da luta em prol da
liberdade, do combate ao oportunismo e às desigualdades aviltantes, tornou-se um procurador da dignidade
humana, um missionário do mundo jurídico.

Se os egressos das faculdades de Direito não possuírem competência técnico-operacional para


resolverem questões jurídicas práticas, reduzindo-se a serem críticos do "sistema", poderiam, sem perdas,
ser substituídos por filósofos ou sociólogos, - com mais tradição e método no ofício da crítica conseqüente.
Mas se tais egressos, lado inverso, se conformassem ao mero domínio do saber técnico-forense, poderia o
Direito ser substituído por sistemas decisórios padronizados, informatizados, em uma verdadeira engenharia
jurídica, - por certo menos ambígua, mas, com certeza, fria diante das particularidades de cada conflito
humano convertido em demanda judicial. Simultaneamente críticos e operacionais é o que devem ser os
novos operadores jurídicos.

Mas conhecer as leis em profundidade, bem encaminhar processos e ser capaz de apontar as
limitações do mundo jurídico não é tudo. Um bacharel competente, inteligente e desonesto pode fazer o
mesmo. É preciso mais. Caso os operadores jurídicos não vivenciarem uma atitude ética, que os faça dignos
de serem guardiões da lei e proponentes de seu aperfeiçoamento, correm o risco de se tornarem pessoas
socialmente perigosas, reduzidas a catadoras e produtoras de falhas legais, com as quais pretendem
patrocinar a conduta nociva dos que insistem em fugir das regras de boa convivência social.
Deve-se, pois, juntar saber técnico, postura investigativa e atitude ética para estar à altura do
Direito. Menos que isso é subaproveitá-lo, gerando o clima propício às piadas que, infalivelmente,
caracterizam os operadores jurídicos como espertalhões, desonestos e desnecessários.

Um profissional do Direito só está pronto de fato quando sua simples presença intimida as fraudes
e os abusos, cria ânimo colaborativo para a resolução de conflitos e, acima de tudo, enche de esperanças os
que clamam por justiça. Por isso, diante do conhecimento e da vida, espera-se que o novo membro desta
honrosa comunidade desenvolva a chamada atitude jurídica, cujos principais pontos estão listados abaixo:

1. Tenha boa vontade para escutar a defesa das ideias de que discorda e sabedoria para aprender
algo com elas. É improvável que a outra parte esteja absolutamente errada e você absolutamente certo. O
mundo humano é menos feito de certezas do que de diferentes versões para os mesmos fatos.

2. Não se precipite ao opinar. Permita-se a reflexão. A opinião refletida diferencia a pessoa superior
do autômato, que responde com a rapidez de quem apenas copia os preconceitos do seu meio social. É
preferível calar-se a opinar com leviandade.

3. Evite comentar publicamente temas de processos cujos autos você desconhece. Dos processos
famosos, em que a causa se encontra muito longe de nós, ordinariamente, só temos acesso às versões da
imprensa, que costumam ser parciais e interessadas em desfechos espetaculares, em função dos quais fatos
bizarros e de pouca importância processual ganham uma importância indevida, ofuscando a essência da
questão. Um processo judicial, por mais que entre suas partes haja "celebridades", não pode seguir a lógica
do espetáculo. A justiça requer sobriedade na mesma proporção em que a vingança pública reivindica
destempero.

4. De vez em quando, dedique-se ao saudável exercício de teatralizar a defesa de posições


contrárias às suas. Em geral você se surpreenderá com o grande número de bons argumentos que
encontrará para defendê-las. Tal expediente, além de expandir seu repertório argumentativo, o livrará da
contraproducente e criticável postura de "causa ganha".

5. Além da formação prático-intelectual, procure uma identificação emocional e estética com o


Direito. Assista a filmes e leia romances cuja trama envolva situações da vida jurídica. Aprenda com
romancistas, diretores e atores não apenas a emocionar o público com os dramas humanos convertidos em
peças processuais, mas, acima de tudo, procure sentir o Direito pulsando em você como uma vontade de
fazer prevalecer a justiça contra os abusos de qualquer natureza.

6. Leia os clássicos do Direito. Clássicas são aquelas obras que por representarem modelos
exemplares de entendimento e argumentação marcam não só uma época, mas adquirem validade
indeterminada. Quem lê os clássicos se alimenta nas mais puras fontes do saber humano, amplia seu
pensamento e nunca mais será o mesmo: os clássicos nos reconstroem para melhor, enquanto seres
pensantes. Clássicos jurídicos "internacionais, como Kelsen (Teoria pura do Direito), Ihering (A luta pelo
Direito), Bobbio (Teoria do ordenamento jurídico), Zaffaroni (Em busca das penas perdidas), Fuller (O caso
dos exploradores de caverna), ou "nacionais", como Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do
Direito), Sampaio Ferraz (Introdução ao estudo do Direito), Bandeira de Mello (O conteúdo jurídico do
princípio da igualdade) e muitos outros pagam em benefícios duradouros a dificuldade que sua leitura traz.
São difíceis? Em geral são, e é por isso que representam um desafio para poucos, somente para os que
querem uma formação jurídica consistente e imorredoura. Aqueles que se formam apenas com base em
"resumos" conseguirão exatamente o que procuram: uma mente resumida.

7. Leia os clássicos da literatura universal. Um operador do Direito que só conheça o próprio Direito
mostra um precário entendimento da área em que atua. O Direito não é técnica, mas um modo humano de
equacionar conflitos igualmente humanos. Como entender a essência de tais conflitos? Aprendendo com
aqueles que os expuseram como ninguém. Quanto de direito se há de aprender lendo o Mercador de
Veneza? Como mergulhar melhor no inferno passional a que pode levar o ciúme senão lendo Otelo? Mas
não só Shakespeare nos apresenta com maestria a natureza humana. Crime e castigo (de Dostoievski),
Angústia (de Graciliano Ramos) ou O Estrangeiro (de Albert Camus), entre centenas de outros, também nos
levam a ter que encarar os seres-humanos em sua conflitiva inteireza. Lê-los é ampliar-se em entendimento
e sensibilidade. O profissional do Direito que só lê livros "técnicos" corre o risco de passar longe dos reais
interesses dos seus clientes - quando não de seus próprios.

8. Em qualquer circunstância, faça valer a presunção de inocência de quem está sendo acusado. O
direito de explicar-se em um processo legal e razoavelmente conduzido foi uma das maiores lições de
confiança em si mesma que a humanidade se concedeu. Aparências, indícios, provas e mesmo evidências
são traiçoeiras e não podem, de per si, anular a mais humana de todas as características: a capacidade de
escutar a verdade alheia e a partir dela, eventualmente, mudar de opinião.

9. Servindo como testemunha, advogado, juiz, promotor, policial ou como formador de opinião,
lute para que não haja condenações errôneas. Equívocos em condenações – morais ou jurídicas - têm sido
comuns e provocam abalos, freqüentemente irreparáveis, na vida psíquica e social da vítima, além de
arranharem profundamente as instituições encarregadas de administrar a justiça.

10. Defenda o direito de todos ao exercer os seus. Como ensinou Rudolf Von Ihering, quando
alguém exerce um direito não o faz apenas para si. Enquanto realiza sua luta privada pelo direito que julga
lhe pertencer, reafirma, para todos, não só a existência do direito específico que pleiteia, como também
vivifica a ideia de direito em geral, pondo limites à sua usurpação.

11. Tenha consciência de que o que torna uma causa relevante, a ponto de justificar uma demanda,
não é seu valor econômico. Pode-se brigar por um milhão e fazê-lo por mera impertinência ou por dez
centavos para conservar a auto-integridade cidadã. Não confunda o valor monetário da causa com o seu
valor moral.

12. Contribua para o aumento do senso de justiça das pessoas à sua volta, já que nossa única
garantia contra os tiranos é uma população a eles avessa.

13. Tenha uma atitude de não servilismo intelectual, ético e profissional ao exercer suas funções.
Atitudes servis desvalorizam a classe profissional e seus integrantes. Mas não caia no extremo da arrogância:
apenas os mitológicos seres imortais e os ridículos podem, legitimamente, considerarem-se acima dos
demais.

Se pelo menos parte dos novos acadêmicos abraçarem o Direito nessa digna inteireza, tornando-o
seu modo de vida, a sociedade há de colher inúmeras vantagens no que agora teme: o crescimento
acelerado da oferta de vagas nos cursos jurídicos.

(Sandro César Sell)

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