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Paulo Ferreira da Cunha

TEORIA GERAL DO DIREITO


Uma Síntese Crítica

A Causa das Regras

2018
Ficha técnica:
Teoria Geral do Direito: Uma síntese crítica
Autor: Paulo Ferreira da Cunha
Edição: Causa das Regras
Capa: Composição da editora com base numa estampa
recolhida da Wikiwand - Reunião de doutores na
Universidade de Paris - iblioth ue ationale, Paris. éculo
XVI.
Oeiras, Outubro 2018
ISBN: 978-989-8754-52-3

Depósito Legal: 447697/18

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem a


autorização expressa do autor e da editora.

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Parte VI
Epistemologia especial:
Ramos de Direito e Disciplinas afins.
As Ciências Jurídicas Humanísticas

Sumário:
Capítulo I
Ramos de Direito, Ciências intrajurídicas
ou Ciências Jurídicas materiais
Capítulo II
A "Magna divisio"
Direito Público/Direito Privado
Capítulo III
Ramos do Direito Público
Capítulo IV
Ramos do Direito Privado

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Capítulo I
Ramos de Direito, Ciências intrajurídicas
ou Ciências Jurídicas materiais

1.O Mito da total unidade do Direito


O senso comum, as atitudes dos não-especialistas, têm
sempre um interesse muito relevante para nos apercebermos das
imagens sociais das realidades mais profundas. Por isso, amiúde
fomos fazendo apelo (para esclarecimento próprio e dissipação de
erros difundidos e enraizados) às ideias correntes e lugares comuns
sobre o Direito.
Também no presente caso há um preconceito inveterado, a
que as pretensões totalizantes e quiçá totalitárias de alguns juristas
deram azo, mas que decorre sobretudo do desconhecimento, da
ignorância: cada profissional, em qualquer métier, considera crime
de lesa-majestade que o primeiro jurista com que topa lhe não
saiba recitar, de cor e salteado, o seu contrato coletivo de trabalho
ou a legislação parcelar a ele atinente. Os regulamentos específicos
da sua repartição ou secção atingem para demasiados funcionários
públicos a qualidade de alfa e ómega do jurídico, se não mesmo
dos arcanos da Existência. Um particular que consulta um
causídico sobre divórcio, arrendamento, impostos, ofensas
corporais, acidentes de viação, aproveitando quiçá o avolumar de
complicações para uma única (e bem recheada) consulta, fica
pasmado ante as dúvidas do advogado, e não pode crer que ele
(por norma) não saiba os artigos de cor de códigos mil vezes
desfolhados...
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Paulo Ferreira da Cunha

Quer dizer: a velha ideia de que o jurista sabe de tudo (e,


por maioria de razão, deve conhecer o seu ofício, nas suas mais
variadas perspetivas e especialidades), enfatizadas pelos violinos de
Ingres dos homens do Direito, entronizada com a sua ligação
histórica ao poder do Estado (só nos tempos mais recentes posta
em causa) e agravada com a figura-tipo do advogado generalista,
forjou na opinião (pública) a ideia em causa.
Nas outras disciplinas, na Medicina, desde logo, se há
clínicos gerais, ninguém pensa em pedir tudo a qualquer
profissional. Problemas de ouvidos nariz garganta? Vai-se a um
otorrinolaringologista. De ossos? A um ortopedista. Do aparelho
visual? A um oftalmologista. As crianças estão doentes? A um
pediatra, etc.
Mas quando tinha uma querela constitucional (coisa
raríssima, no caso, e improvável), uma incriminação penal, uma
questão com as Finanças, uma criança a adotar, um contrato não
cumprido, um trabalhador a despedir, ia o bom burguês ao
advogado da família, conselheiro de tudo, em todas as matérias
versado. E era um advogado singular, por vezes com um ou dos
sócios, com não muito mais que meia dúzia de estagiários. Era um
escritório em que se podia conhecer toda a gente, como foi, aliás,
ainda, o escritório em que fizemos estágio, na Praça da Liberdade,
na cidade do Porto, e que nos deixou as maiores saudades.
Hoje, porém, tudo se encontra muito mudado. Muito
maior, e em muitos casos impessoal, embora haja sempre quem
consiga ter atendimento personalizado.
Mesmo na velha ordem liberal uma tal tarefa generalista e
enciclopédica no mundo do Direito era imensa, desmedida. Já
então se não podia saber de tudo. Até porque o Direito sempre
viveu e se desenvolveu por diferentes áreas ou grupos, linhas de
investigação e divergentes continentes de progressão legislativa. A

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

forma de pensar de um civilista é diferente da de um criminalista, e


ambos raciocinam diversamente, preocupam-se com questões
diferentes (ou dão às mesmas coisas colorações, tonalidades
distintas) das que atormentam um constitucionalista. Claro que
todos comungam dacomum forma mentis jurídica. Leram
basicamente as mesmas obras elementares, tiveram mestres mais
ou menos comuns. Tal ocorria sobretudo entre nós, mas é
realidade que está a definitivamente acabar desde que começaram
a proliferar as Faculdades de Direito, públicas e privadas: restam
algumas autoridades nacionais e internacionais, mas o uso de só se
ler o manual da cadeira é de uma terrível clausura. De qualquer
modo, mesmo lendo hoje por cartilhas diferentes, todos
aprenderam a relação jurídica e não desconhecerão meia-dúzia de
princípios gerais. Só que as suas preocupações se especializaram. É
inevotável.
Hoje em dia, um problema de relevo se põe, numa época
de viragem, aos práticos do Direito. Por um lado, por toda a parte
se reconhece que o crescimento do saber jurídico, a vastidão das
matérias, as diferenças e especificidades de regimes, a variedade de
métodos (a exigir mesmo uma profusão de tipos de pessoas) não
mais se compadece com o generalismo. Por outro lado, estão à
vista os perigos da estrita especialização sem uma perspetiva de
conjunto. Além de que o especializar-se não pode estar ao alcance
nem do advogado “de província”, nem do debutante do foro –
ambos com não suficientes causas para se poderem dar ao luxo de
desperdiçar o que lhes caiba na sorte.
Tudo hoje tende, ao nível do progresso, para uma
especialização ponderada e não míope. No futuro, não será talvez
arriscado prever (porque já vai sucedendo) dois grandes tipos de
advogados: os generalistas, que resolvem as causas simples e fazem
a triagem para as especialidades, e os especialistas, nas diferentes
áreas. Os tribunais também caminham para a especialização: civis,

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Paulo Ferreira da Cunha

criminais, de polícia, de contribuições e impostos, de execuções


fiscais, municipais, de trabalho, de menores, administrativos,
constitucional, etc.. E, evidentemente, os juízes também se
especializam.

2.Ramos de Direito: uma nova metáfora


É precisamente sobre as especialidades do Direito (as
ciências intrajurídicas, ou ciências jurídicas materiais) que versa o
presente capítulo. Vimos as "fontes", e agora, numa nova metáfora,
vamos analisar os ramos do jurídico, da grande árvore do Direito.
A imagem orgânica e vegetal claramente nos dará uma visão
do que se trata: não são agregados desconexos, são ramos que, com
o crescimento geral da planta, vão crescendo e se vão assim
afastando do tronco, sem, todavia, se destacarem dele.
Permanecem os ramos ligados à árvore, e, como sucede nas
espécies complexas, não raro a maranha capilar, revolta de
abundante e tortuosa, contém ramos que se cruzam, e enlaçam, e,
obviamente, sub-ramos que dos mais velhos despontam. É essa
complexa "botânica" que nos cumpre agora estudar, não com a
rigidez catalogadora de um Lineu, mas decerto com rigor, aliado ao
espírito de razoabilidade dos juristas.

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Capítulo II
A "Magna divisio"
Direito Público/Direito Privado

1.Para uma pré-compreensão distintiva


Uma distinção antiga, controversa, e a que os tempos
modernos e a maranha do crescimento jurídico foram pondo um
tanto em crise, é a que separa o Direito Público do Direito
Privado. Mas que, contudo, permanece com muita razão de ser.
De uma maneira geral, não é difícil reconhecer o pendor
juspublicístico ou jusprivatístico num jurista: o primeiro mais
preocupado com o macroscópico, o segundo com o microscópico
da ciência jurídica; o primeiro mais filósofo, economista, sociólogo,
ou político (ou tudo isso ao mesmo tempo), o segundo mais
técnico (no limite preocupado com a Pessoa nas suas relações
pessoais e familiares, ou com o comércio e as empresas privadas –
e por essa via pode entrar na senda mais social também); o
primeiro mais preocupado com o Estado, o Poder e a Justiça, o
segundo com os negócios jurídicos, seus requisitos, seus vícios, etc..
Claro que se trata de estereótipos, havendo exceções à regra;
contudo, é uma tendência a observar. Complicando: há grandes
civilistas com compromisso com os Direitos Humanos, e pode
haver publicistas muito agarrados aos pormenores regulamentares e
pouco inspirados nos grandes projetos constitucionais. Embora as
áreas de estudo favoreçam e atraiam um certo tipo de jurista, não
se pode generalizar exageradamente.
Além disso, apesar da distinção entre os cultores destes dois
ramos, o critério prático para apartar as normas de um e de outro
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Paulo Ferreira da Cunha

têm-se revelado insuficientes, imperfeitos. Foram sendo tentados


vários.

2.A teoria (ou critério) dos interesses


Para uns (teoria dos interesses) haveria Direito Público
quando o fim da norma fosse de interesse público, de interesse de
coletividade, enquanto se estaria perante Direito Privado no caso
de a norma procurar tutelar interesses meramente particulares.
Esta teoria não procede, primeiro porque o Direito visa
proteger quer interesses públicos, quer privados; depois, porque há
normas de Direito Privado que têm em vista o interesse público
(vejam-se as formalidades do registo ou escritura pública de
negócios jurídicos privados — v.g. art.ºs 875.º, 413.º e 421.° C.C.);
finalmente, dado existirem normas de Direito Público que também
propiciam a proteção de interesses privado. No fundo, o "interesse
público" que é fim da Administração será muito diferente da
satisfação global, agregado de um paralelogramo “bem temperado”
de interesses individuais? A questão é, evidentemente, complexa105.
E os particulares podem recorrer, contenciosamente até, v.g. dos
atos administrativos). Nem se diga que o critério é válido
tendencialmente. Como detetar um tendencial interesse público ou
privado? Talvez ainda seja mais complicado. E, contudo,
compreende-se a preocupação deste critério...

3.A teoria (ou critério) da posição relativa dos sujeitos


Outros, procuraram ver nas relações públicas ou privadas
uma situação de posição relativa dos sujeitos, partindo assim desse

105
V. o clássico SOARES, Rogério Ehrhardt — Interesse Público, Legalidade e
Mérito, Coimbra, Atlântida, 1959.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

critério. Para estes, o Direito Público regularia as situações de


supra-ordenação vs. infra-ordenação, em que um sujeito
predominaria sobre outro, ao passo que o Direito Privado se
ocuparia dos casos em que ocorresse paridade entre os sujeitos
intervenientes.
Também não satisfaz este critério, porquanto as relações
entre Estados, ou Municípios, por exemplo, sendo de Direito
Público, podem ter-se, em princípio, como paritárias, do mesmo
modo que ao Direito Privado incumbem também situações de
desigualdade jurídica, como sucede com o poder paternal (cf. art.ºs
1877 et sq. C.C.), a tutela (cf. art.ºs 1927 .º et sq. C.C.) etc..
Neste caso, talvez se pudesse concluir por um critério
tendencial, mas, ainda assim, muito impreciso. Dizer que o critério
é apenas normalmente aplicável não basta.

4.Posição adotada: a teoria (ou critério) da qualidade dos


sujeitos
Vai ser a teoria da qualidade dos sujeitos a adotada, embora
saibamos das suas deficiências. Para esta posição, estamos perante
Direito Privado quando a norma em questão regular relações
jurídicas entre particulares, ou entre estes e o Estado ou entes
públicos, na condição de não estarem a agir dotados do seu poder
soberano, do jus imperii ou imperium. Nos casos restantes, está-se
perante o Direito Público: isto é, nas relações entre Estados ou
entre o Estado e entes públicos menores, ou entre estes últimos, e
nas relações entre quaisquer entidades públicas e os particulares se
tais entidades públicas mantiverem o seu imperium.
Assim, quando uma repartição do Estado compra (como
qualquer particular, sem quaisquer outros direitos ou prerrogativas
que este) esferográficas no quiosque da esquina para uso dos
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Paulo Ferreira da Cunha

serviços está a realizar um ato de Direito Privado. Mas quando a


mesma repartição (por exemplo, de Finanças) cobra os impostos
ao mesmo quiosque, já com ele estabelece uma relação desigual,
dotada de jus imperii, estando-se perante uma situação de aplicação
de normas de Direito Público.
Adotada pela comodidade teórica que propicia, esta teoria
vai esbarrar com vários escolhos. Importava, porém, que se
estabelecesse uma divisão, dada a relevância prática da qualificacão
privada ou pública das situações. Como sabemos, depende de tal
qualificação (e das subqualificações, de acordo com os vários ramos
do Direito Público e do Direito Privado) o percurso processual das
causas, a começar pela determinação do tribunal competente (em
razão da matéria). Um pleito entre um particular e o Estado tanto
pode v.g. ser julgado num tribunal cível como num tribunal
administrativo ou fiscal, tal dependendo da classificação da relação
jurídica e das normas que a tutelam como jusprivatística ou
juspublicística. No caso dado, das Finanças e do quiosque,
claramente mera questão levantada pelo pagamento ou bom estado
das esferográficas seria julgada por um tribunal cível, e uma outra,
devida v.g. a falta de pagamento de imposto, haveria de ser
discutida num tribunal fiscal. Também, por exemplo, a
responsabilidade civil do Estado (pelo qual se devem indemnizar
danos causados) se rege por regime diverso consoante tais danos
tenham sido provocados no exercício de gestão pública ou gestão
privada da Administração. No primeiro caso, rege lei especial de
Direito Público (Lei 67/2007, de 31 de dezembro), no segundo,
valem as disposições correntes do Código Civil (cf. art.º 501.º
C.C.).

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

5.A crescente preponderância do Estado e do Direito


Público
A intromissão cada dia mais intensa do Estado na vida e
nos negócios privados, quer (em alguns casos, já bastante escassos
pelo Mundo fora) motivada ideologicamente, quer (mais
frequentemente) com fins pragmáticos ou decorrente da simples
inércia de crescimento público, coloca sérios problemas à distinção
entre Direito Público e Direito Privado – embora essa problema
teórico seja o menor dos problemas que engendra.
Por um lado, baseados em princípios ideológicos
coletivistas e olhando a realidade do agigantamento estatal, há
quem propugne que não há senão Direito Público (era o que caso
de Lenine). Mas também há quem, insuspeito de coletivismo,
constate o fático crescimento de tudo o que é Estado, e do Direito
que lhe anda atrelado.
Por outro lado, fazem-se ouvir também vozes considerando
a distinção Público / Privado como sendo falsa, artificial e
ideológica, eivada dos preconceitos liberais de separação
Estado/Sociedade (economia).
Alguma razão terão todos estes pontos de vista. De facto,
não se pode compreender o Direito positivo algum sem atentar na
imensa e espartilhante legislação de Direito Público, que
condiciona hoje mesmo as relações entre particulares de forma
muito constringente. Mas daí a dizer que todo o Direito é Público,
vai grande distância. Tal não pode deixar de ser visto, de facto,
senão como outra posição ideológica. Não há em si mal em uma
posição ser ideológica, é preciso é que seja reconhecida como tal,
e, por isso, em geral, sujeita a contestação por parte de outros
quadrantes ideológicos...

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Paulo Ferreira da Cunha

Além disso, não há dúvida de que o liberalismo (e falamos


agora apenas do veteroliberalismo sobretudo oitocentista) e a sua
ideologia impregnou muito dos nossos parâmetros conceituais ao
nível jurídico, e também esta divisão. Contudo, ela já existia
(embora noutros termos, com diverso alcance) no próprio Direito
Romano, e sempre perdurou.
Localizada e ideológica também é, pois, a opinião segundo
a qual tudo se deve submeter ao Estado, revestido do seu
imperium. Como se não bastasse já a coercibilidade e a estatalidade
mesmas das normas jusprivatísticas, muitos pensam que se procura,
assim, impor uma espécie de totalitarismo legal. E devem estar
certos. Note-se que onde antigamente se fazia sentir a mão pesada
(nada invisível do Estado) era em questões de propriedade; hoje, o
Estado em muitos países parece ter abdicado de grandes confiscos
e intervenções direta na propriedade, para se dedicar a questões
mais sociais, culturais e afins, que podem não perturbar os mais
argentaristas, mas em alguns casos tocam a idiossincrasia mental e
existencial de alguns. Nalguns casos, com um papel altamente
positivo, de renovação de mentalidades, por exemplo. Noutros,
duvida-se que a bondade intrínseca das soluções compense a sua
não consensualidade. Noutros ainda, são apenas normas técnicas
em excesso, que aumentam as obrigações das pessoas e a sua
azáfama burocrática crescente.
Curiosamente, o advento do neoliberalismo acabaria por
não ter, em muitos países, grande impacto em real
desburocratização e alívio da pressão estatual. Traduziu-se, para
países como Portugal, em austeridade e diminuição de proventos,
garantias e regalias de muitos, a começar pelos funcionários,
economicismo de decisões, mas também não seria consequente no
funcionamento da “mão invisível”, com intervenções bancárias, por
exemplo. Privatizações e menos carinho por políticas públicas, bem
como desafeição ao Estado social e ao investimento público em

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

equipamentos sociais e afins não configuram um verdadeiro


liberalismo. Também no nosso caso se saldou por muitas
inconstitucionalidades, nomeadamente de Orçamentos Gerais do
Estado.
Em suma, o neoliberalismo não desempenhou um papel de
menos Estado no que importaria. Fê-lo em pauperização de
equipamentos públicos de interesse geral, como o Serviço Nacional
de Saúde. Em geral, pois, menos empenhamento social do Estado
e alienação de bens do Estado, assim como assunção de
compromissos ao que se diz onerosos para o Estado (como
algumas Parecerias Público-Privadas), mas que ainda estarão por
estudar com cuidado e sem sectarismo106.

6.Ramos mais recentes e híbridos


Inegável, entretanto, é a existência de ramos híbridos, como
o Direito Social, ou os múltiplos Direitos Sociais, como o Direito
da Segurança Social e o Direito do Trabalho, além de certas visões
(quanto a nós menos corretas) do Direito Económico (para nós
apenas categoria útil enquanto Direito Público da Economia).
Trata-se de ramos com componentes de origem dupla: pública e
privada.
O Direito do Trabalho já não é tão novo assim:
autonomizou-se historicamente do Direito Privado, passando das
especialidades do simples contrato de trabalho a um ramo
autónomo, que surgia, na época, para favorecer o trabalhador, ou
melhor: para tentar alguma paridade com o poder imenso do
empregador face a quem não tem mais para vender que a sua força
de trabalho, para usar a fórmula marxista.

Sobre esta problemática, cf. os nossos livros Constituição & Política. Poder
106

Constituinte, Constituição Material e Cultura Constitucional, Lisboa, Quid


Juris, 2012; O Contrato Constitucional, Lisboa, Quid Juris, 2014; Direitos
Fundamentais. Fundamentos e Direitos Sociais, Lisboa, Quid Juris, 2014.
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Paulo Ferreira da Cunha

Ainda hoje o favor laboratoris é por muitos advogado.


Sente-se que, se não o for, este ramo se descaracteriza, deixando de
ter sentido, sobretudo ante a demolição do edifício de direitos e
garantias que o ramo tem sofrido nas últimas décadas, com pouca
recuperação ainda. Considera-se especificidade desta área
precisamente essa característica de discriminação positiva.
Outros pensam, porém, que nenhum Direito que se preze
se compadece com discriminações ou grupos privilegiados, seja em
função da raça, do género, da religião, da ideologia, ou da condição
de trabalharem por conta de outrem. Compreendem até alguns
que na época em que surgiu o Direito laboral privilegiasse os
trabalhadores, dada a sua situação de desfavor. Mas hoje tal não
faria sentido...
Em abstrato, porém, não é verdadeiramente o privilégio
destes que se está ou esteve a visar, mas a reposição da Justiça
material. Deve, pois, de acordo com uma antiga expressão a
propósito da equidade, tratar-se o igual igualmente e o desigual
desigualmente, na medida da sua desigualdade. Só nesse sentido é
que se deve entender hoje qualquer direito que vise equilibrar,
compor, evitar a sobreposição e a preponderância desconforme de
uma parte face a outra.
Note-se ainda um pormenor básico: apesar de todo o tónus
público do Direito do Trabalho, não regia ele senão as relações de
Trabalho entre particulares, ficando o trabalho da função pública
sujeito a normas de Direito Administrativo. Com o impacte
neoliberal, porém, passou também a ser aplicado a alguns
servidores públicos, traduzindo-se em regime a eles menos
favorável que o da função pública. Há algo de irónico nessa
situação, se pensarmos no favor laboratoris. Isto não significa,
porém, que a função pública seja privilegiada face ao setor privado,
em geral. Talvez se possa até dizer que esses trabalhadores que
laboram para o Estado com contratos de trabalho acabam por

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

usufruir do pior dos dois mundos: por exemplo, o seu salário não
seguirá o dos colegas do setor privado...
Além do Direito do Trabalho, também o Direito Agrário se
parece destacar do Direito Privado, pelo grande número de regras
juspúblicas que o passaram a integrar.
Há também ramos novos, mas não híbridos, que
despontam em várias áreas, como, especialmente, o Direito
Administrativo e mesmo o Direito Constitucional. Mas trata-los-
emos nos lugares próprios.
Direito à parte, não estadual, mas de algum modo com
valor transnacional e para questões decerto por norma não estatais
é o Direito Canónico (positivado no Código de Direito Canónico),
o qual tem repercussões na ordem jurídica interna nacional, por
força da Concordata com a Santa Sé (assinado dia 18 de maio de
2004 – ratificado pela resolução da Assembleia da República n.º
74/2004), e de certas normas do Código Civil (v.g. art.ºs 1625.º e
1626.º C.C.).
Também há, evidentemente, o Direito Militar, em que
avulta o Código de Justiça Militar, Lei n.º 100/2003, de 15 de
Novembro.
Por vezes, por questões didáticas ou afins, juntam-se vários
ramos tradicionais em disciplinas novas, como é o caso do Direito
Empresarial, que por vezes, no limite, chega a englobar Trabalho,
Comercial e Fiscal até, mas noutros casos tem um recorte menos
lato. Também ramos de atividade diversa levam à criação de
conjuntos de estudos e disciplinas com eles relacionados, como o
Direito do turismo, da aviação, da caça e da pesca, da educação,
universitário, médico, farmacêutico, etc.,etc..
Tendo começado pelas disciplinas de carácter público ou
privado mesclado e alguns casos especiais, atentemos agora nas
categorias em geral mais clássicas.

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Capítulo III
Ramos do Direito Público

1.Direito Constitucional ou Político


Tem o Direito Constitucional ou Político (embora haja
matizes na escolha de um ou de outro) a seu cargo a normação
fundamental do Estado, desde logo a sua organização (e as linhas
gerais da dos entes públicos menores), ocupa-se dos órgãos de
soberania, seus poderes e relações, dos princípios fundamentais de
índole política e jurídica da comunidade (desde logo a competência
e as formas de produção normativa), além de consagrar direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos. Contudo, se antigamente, no
período liberal clássico, as constituições eram políticas, limitando-
se a regulamentar a política no Estado, hoje as Constituições são
verdadeiramente de todas as Repúblicas, são, digamos, “sociais”,
abarcando as várias facetas da vida em sociedade. E daí falar-se em
várias facetas da Constituição. Começou por falar-se em
“Constituição Económica”. Mas há também a “Social”, a
“Ambiental”, etc.
Afinal, tinha razão o clássico Pellegrino Rossi, ao afirmar,
com considerável grau de visão e até profetismo, que a
Constituição contém as cabeças de capítulo (têtes de chapitre) dos
vários ramos do Direito.
Hoje este ramo de Direito tem como sede privilegiada a
Constituição (texto escrito, verdadeiro "código de Direito
Constitucional") e nas leis constitucionais extravagantes, que por
vezes se considera constituírem um “bloco de constitucionalidade”.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Mas sempre houve uma Constituição — uma ordenação político-


jurídica fundamental, que podia ser ou não escrita. Ainda hoje o
Reino Unido não possui um tal "código" de Direito Constitucional,
e nem por isso deixa de ter Constituição e o respetivo Direito.
Na verdade, mais importante e acima da Constituição
formal, a positivada, está aquela que reside no coração do Povo, e
decorre de algumas relações certamente naturais: a Constituição
material.
O Direito Constitucional hoje desdobra-se em várias
cadeiras, como os Direitos Humanos (em interface com o Direito
Internacional Público), os Direitos Fundamentais, o Direito
Eleitoral, etc. No cada vez maior diálogo com o Direito
Internacional, há Direito Constitucional Internacional e Direito
Internacional Constitucional.

2.Direito Administrativo e ramos dele derivados


Disse um grande jurista (na verdade, vários o foram
dizendo) que o Direito Constitucional passa, e o Direito
Administrativo fica. Descontado o exagero da bela frase, há aí uma
verdade: o Direito Administrativo constitui como que a
infraestrutura organizativa sobre que se apoia todo o
(aparentemente mais mutável) Direito Constitucional. Visa
sobretudo regular a estrutura e atividade da Administração Pública,
quer a do Governo agindo no desempenho da função executiva,
(porque, como sabemos, ele também legisla, por exemplo – e tal
não pode ser Direito Administrativo), quer a dos entes a ele
subordinados diretamente, quer aos órgãos e agentes das autarquias
regionais e locais.
Tendo começado sobretudo com a organização e atividade
da polícia, exército e finanças, foi-se estendendo o Direito
261
Paulo Ferreira da Cunha

Administrativo a múltiplos sectores há medida que o Estado ia


crescendo e abarcando mais domínios e funções de interesse
social.
Do Direito Administrativo se destacaram, pois, o Direito
Económico (visando a organização e atividade económica do
Estado) e o Direito Fiscal. Este último tem como objeto as normas
que fixam a incidência (ou determinação da matéria coletável), o
lançamento e a cobrança de impostos, e visa também as taxas, as
quais, ao contrário daqueles, têm uma direta contrapartida ou
contraprestação, como sucede nas propinas, taxas de portagem,
emolumentos notariais, etc. Encontra-se atualmente o Direito
Fiscal disperso por quase tantos códigos quantos são os impostos
vigentes. Direito Urbanístico e Direito do Ambiente são outros
ramos que se destacam do Direito Administrativo.
Devemos estar atentos à criação de novas disciplinas, neste
como noutros ramos, porquanto a autonomização didática costuma
ser indício certo do mesmo fenómeno ao nível doutrinal.

3.Direitos Processuais
Os Direitos Processuais são ramos adjetivos, que se
contrapõem aos respetivos ramos de direito substantivo. Não
curam propriamente do Direito que confere (ou reconhece)
direitos e obrigações independentemente da intervenção judiciária,
antes curam do modo como esta se deve processar. Referem-se,
portanto, à proteção coativa, à tutela de tais direitos e obrigações.
Regulam, pois, as ações e a sua tramitação, desde os seus
pressupostos, requisitos. etc. até ao julgamento final da causa.
Há quem pense tais direitos laterais e até enfadonhos
(alguém falava do “árido e esquálido fenómeno do processo”),
dado tratar-se de matéria que aparentemente pouco tem de ético.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Mas se é verdade que o processo é árduo, minucioso, cheio de


meandros e não costuma inflamar de paixão quem o estuda (pouco
parece importar se o prazo é de 10 ou 15 dias, se o selo é de x ou y
euros). Também o facto é que no processo se encontram
positivados princípios fundamentais de Direito (como o do
contraditório, de audição das partes em confronto, de idoneidade
probatória. etc.), cuja observância ou inobservância tem
relevantíssimas consequências.
Uma nota a acautelar ainda: muitíssimas vezes, muitíssimas
mesmo, as causas ganham-se ou perdem-se não por razões de
fundo, de Direito, mas por matéria processual. Não que sejam
sempre erros grosseiros como deixar expirar um prazo. Mas
quanto depende das provas, das testemunhas desde logo, e dos
documentos, e também de tantos pormenores técnicos que por
vezes escapam aos mais brilhantes!
Próximo dos Direitos processuais estará o Direito dos
Registos e do Notariado, que também tem função adjetiva (não
substantiva, mas sobretudo de consolidação e probatória),
positivado em múltiplos códigos – do Registo Civil, Predial, do
Notariado, etc.

4.Direito Penal ou Criminal


O Direito Penal ou Criminal (conforme se enfatize o lado
da pena ou do crime) é o ramo jurídico que estabelece legalmente
as condutas consideradas crimes e as penas (e eventualmente
outras sanções criminais, v.g. medidas de segurança) que lhes
devam corresponder.
Há quem o inclua no Direito Privado (Oliveira Ascensão),
mas a maioria esmagadora localiza-o nesta zona juspública. Trata-
se, na verdade, de um dos ramos de Direito mais apaixonantes, e
263
Paulo Ferreira da Cunha

daqueles que de forma mais vívida atraem o grande público, os


leigos. Isto, sem dúvida, porque o crime é uma conduta altamente
reprovável pela Sociedade, que fere gravemente os seus valores.
Por outro lado, é uma matéria particularmente apta a especulações
filosóficas.
O conceito legal de crime é muito simples, comparado com
a complexidade do problema ao nível material (do que seja o crime
"em si", independentemente da lei): trata-se de uma conduta
tipificada num quadro legal (tipo legal — Tatbestand), estilizada,
como tal considerada pelo legislador penal. Por isso se afirma que
o Código Penal é a Magna Charta do criminoso — realmente, só é
crime o que lá está (e na legislação penal dispersa). Nada mais.
A doutrina penal é uma fascinante filigrana conceitual, de
grande densidade teórica, para além de ser uma pedra de toque da
democraticidade de um Estado e da sua qualidade ou não de
Estado de Direito. A sua substancial constitucionalidade é também
uma qualidade importante, e igualmente uma sensitiva. As garantias
penais são essenciais107. Sem elas não há Estado de Direito.

5.Direito Internacional Público108


O Direito Internacional Público regula as relações entre
Estados e outros sujeitos do Direito Internacional, como a Santa
Sé, a Ordem Soberana de Malta, organizações internacionais, e até,
em certos casos, os próprios indivíduos agindo na ordem
internacional.

Para mais desenvolvimentos, cf. os nossos livros A Constituição do Crime. Da


107

substancial constitucionalidade do Direito Penal, Coimbra, Coimbra Editora,


1998 e Crimes & Penas. Filosofia Penal, em preparação.
Desenvolvidamente, o nosso livro Direito Internacional. Raízes & Asas, Belo
108

Horizonte, Forum, 2017, Prefácio de Marcílio Franca e Posfácio de Sérgio


Aquino.

264
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

As fontes de um tal Direito são claramente supra-estaduais


(ou em tal dimensão recebidas), aí relevando, além das fontes
convencionais (tratados – que têm uma pluralidade de designações,
nem sempre usadas com rigor), o costume internacional, e os
"princípios gerais de direito comuns às nações civilizadas" (art.º 38.º
do ETIJ).
A situação doutrinal, porém, está hoje mais complexa,
havendo críticos de cada uma das fontes, e ainda alguns que
defendem o jus cogens (novas imperativas perentórias), como fonte
até superior. Alguns estados parecem regredir ao período do total
estado de natureza em matéria internacional, o que é,
evidentemente, uma ameaça à Paz e ao progresso mundiais. É
inacreditável que, ao mesmo tempo que alguns dão grandes passos
no sentido da paz, do diálogo, da integração, outros recuam para
posições de isolacionismo, entrincheiramento, até belicismo.
Não faltavam positivistas (e anarquistas ou voluntaristas:
para os quais as relações internacionais apenas se fundam na força)
a contrariar o carácter jurídico do Direito Internacional. Aí não
haveria árbitro ou juiz, ou lei, ou polícia. A falta de estadualidade,
legalidade e coercibilidade seria, para eles, necessariamente, a
inexistência de Direito. E, contudo, a comunidade internacional
sempre se sentiu ferida no seu sentimento de Justiça (se ele não
tiver sido obnubilado por preconceitos localizados, de chauvinismo
ou ideologismo) quando um costume jurídico ou um tratado são
violados — por exemplo, por uma invasão (não meramente
defensiva, claro) de território estrangeiro.
Hoje, porém, a ordem internacional está muito mais
permeabilizada pelo Direito. E a criação de tribunais
internacionais, ad hoc e permanentes, tem para isso muito
contribuído.

265
Paulo Ferreira da Cunha

Há, de facto, Direito Internacional Público, e ele até influi


na ordem jurídica interna. Mesmo nem falando do Direito da
União Europeia (cujo documento fulcral de uma respetiva
constituição material é hoje o Tratado de Lisboa), que parece ser
um tertium genus, supranacional para os estados membros.
Vigoram na ordem interna normas não provenientes dos seus
órgãos estaduais próprios: veja-se a simples existência do Direito
Internacional Privado, que pelos vistos nunca incomodou ninguém,
mas é a prova de que as ordens jurídicas comunicam.
Assim, e muito sucintamente, valem diretamente no nosso
País as normas e os princípios de direito internacional geral ou
comum (art.º 8.º, n.º 1 CRP), fazendo parte integrante do nosso
direito interno. E, após ratificação ou aprovação válida, seguida de
publicação no jornal oficial, e enquanto vincularem o Estado
Português, valem também internamente as normas constantes de
convenções internacionais (art.º 8.°, n.º 2 CRP).Também vigoram
entre nós as normas de organizações internacionais de que façamos
parte, se tal estiver estabelecido nos tratados que as criaram (art.º
8.°, n.º 3 CRP), e finalmente o Direito da União Europeia (art.º 8.°,
n.º 4 CRP). Neste último caso, colocou-se in fine uma condição
(que hoje se vê como útil, tal a deriva autoritária geral): a condição
de que o respeito pelas normas europeias passe pelo respeito pelos
“princípios fundamentais do Estado de Direito democrático”. É
uma cautela importante, para o caso de a União Europeia poder vir
a virar para rumos antidemocráticos. Seriam a sua morte por
desvirtuação, mas nunca se sabe, e mais vale prevenir (ainda que
constitucionalmente, o que é muito platónico) do que remediar.
Vários ramos se destacam também do Direito Internacional
Público, sendo de referir o que versa especialmente sobre questões
económicas, o Direito Internacional Económico. Mas há ainda um
Direito do Mar, um Direito Diplomático e Consular, etc.

266
Capítulo IV
Ramos do Direito Privado

1.O Direito Civil como Direito Privado Comum


As subdivisões no Direito Privado são substancialmente
mais simples. Tal se deverá possivelmente ao facto de nele
predominar, histórica e praticamente, o Direito Civil, primeiro
ramo de todo o Direito a sedimentar-se, a ganhar consistência
teórica e apuro técnico, com o período romano clássico. É, pois, o
Direito Civil, o direito privado comum, ou seja, um direito-base,
um direito· regra. Os demais ramos do Direito Privado são direitos
especiais, “adaptações” do Direito Civil a realidades específicas,
não constituindo verdadeiros desvios (que seriam direitos
excecionais).
Por isso, o Direito Civil virtualmente abrange todo o
Direito Privado, recuando e cedendo o passo a outro apenas na
circunstância de esse outro existir, tutelando essa concreta relação.
Por isso, também o Direito Civil é direito subsidiário, aplicando-se
sempre que a lei especial para um dado caso não preveja solução.
Finalmente, é por essa razão que o Código Civil acaba por ser um
corpus juris muito mais vasto e importante no contexto geral da
ordem jurídica do que seria se nele se contivesse apenas o Direito
Civil stricto sensu. Na verdade, contém tal código (sobretudo no
seu Livro I) um complexo elaborado de disposições gerais, comuns
a todo o Direito (e não apenas ao Direito Privado) — desde as
fontes de Direito, à Hermenêutica (sob as fórmulas de
Interpretação e Integração da lei), aplicação no tempo e no espaço,

267
Paulo Ferreira da Cunha

relações jurídicas, etc. — apenas afastáveis por disposição expressa


na devida sede específica (v.g. no Código Penal, Administrativo,
etc.).
É verdade, porém que essas matérias não são,
verdadeiramente, Direito Civil. A determinação da normogénese,
da hermenêutica, etc., são antes Direito Constitucional, fazendo
parte da Constituição material, embora formalmente fora do texto
da Constituição formal (do código constitucional).
O Direito Civil comporta, entretanto, sub-ramos, a que
correspondem os restantes quatro livros do nosso Código Civil:
Direito das Obrigações — Direito dinâmico, regula em
particular a circulação de bens e serviços, as prestações, e a
reparação dos danos (responsabilidade civil, sobretudo). O seu
principal instituto (que é um negócio jurídico) é o contrato,
decorrente da instituição-coisa que é a autonomia privada (cf. art.º
405.º et sq C.C.).
Direitos Reais ou das Coisas — Contrapondo-se aos direitos
de crédito (ou das obrigações), trata-se de um sub-ramo mais
estático, com direitos tipificados (só pode haver os prescritos na lei
— sistema do numerus clausus, ao invés do numerus apertus dos
contratos), nele sobressaindo o Direito de Propriedade (art.º 1302
et sq. C.C.) (mas existindo outros direitos reais limitados — art.ºs
1403.º - 1575.º C.C.) e o instituto da Posse (art.ºs 1251 .º et sq.
C.C.).
Direito da Família – Esta área debruça-se sobre as relações
jurídicas constitutivas, modificativas e extintivas dos laços de família
(desde o casamento (art.º 1587.º et sq C.C.), a filiação (art.º 1796.º
et sq C.C.) e a adoção (artº 1973º et sq C.C.), à separação judicial
de bens ou de pessoas e bens (artºs 1767º et sq e 1794º et sq C.C.)
e ao divórcio (artºs 1773.º et sq C.C.)) bem como as relações

268
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

jurídicas intrafamiliares (poder paternal, por exemplo- art.º 1877 .º


et sq).
Direito das Sucessões – Divisão que regula o ingresso de
outrem nos bens do falecido (de cujus), através de diversos títulos
de vocação sucessória: testamentária (por negócio unilateral,
testamento, e dentro dos limites da sua quota disponível) — art.ºs
2179.º et sq C.C.; legitimária (forçosa, independente e
eventualmente contra a vontade do de cujus) _ art.º 2156.º et sq
C.C.; legítima (aplicável supletivamente: apenas na hipótese de o
autor da sucessão não ter manifestado a sua vontade de disposição,
por testamento) — art.ºs 2131 .º et sq C.C.
Direito(s) de Autor — Ainda no Direito Civil (mas com
codificação à parte) deve destacar-se o Direito(s) de Autor, que
versa sobre os direitos patrimoniais e morais dos criadores sobre as
suas obras literárias, artísticas, ou intelectuais em geral. É uma
matéria que hoje em dia anda em grande alvoroço, designadamente
sob o impacto de novos meios de comunicação social, novas
técnicas e novos hábitos de consumo da informação numa
sociedade que, para alguns, deve levar o seu nome: sociedade da
informação. A União Europeia anda também a estudar o
problema, havendo esperanças para uns e receios para outros face
aos seus esforços de uniformização jurídica nesta matéria.

2. Direito Comercial
Além do Direito Civil é ainda Direito Privado o Direito
Comercial. Nasceu pelas exigências de menor formalismo e mais
decisiva celeridade nas trocas entre comerciantes, bem como para
mais eficaz proteção (mais efetiva e mais rápida) dos credores
mercantis. Dir-se-ia, com exagero, mas alguma impressividade, que
se o Direito do Trabalho nasceu como o Direito dos operários, o

269
Paulo Ferreira da Cunha

Direito Comercial veio ao mundo como o direito dos burgueses, e


dos burgueses historicamente mais genuínos, os comerciantes.
Nasceu assim, embora algumas das suas especificidades
tenham também estendido a sua fortuna a relações não mercantis.
Foi o que sucedeu com os títulos de crédito (cheques, letras,
livranças, etc.), hoje de uso comum. Também do Direito
Comercial se forma destacando ramos como o Direito Bancário, o
Direito dos Seguros, o Direito Cooperativo, o Direito (da
Propriedade) Industrial (objeto do Código da Propriedade
Industrial), e hoje um conjunto de direitos novos, já com contornos
mesclados, como a Lex Mercatoria.
No seio do Direito Comercial propriamente dito se coloca
a normação não apenas da atividade dos comerciantes, mas
também a da indústria. E, mesmo assim, se é facto presumirem-se
como comerciais os atos que não sejam exclusivamente civis
praticados por comerciantes, salvo se do próprio ato não resultar o
contrário (subjetividade comercial — cf. art.º 2.º, 2.ª parte C.Com.),
também os não comerciantes ficam sujeitos à lei comercial quando
pratiquem atos objetivamente regulados por ela (objetividade
comercial — cf. art.º 1.° C. Com). No Direito Comercial se
estudam, assim, além dos problemas gerais da qualificação como
comerciais ou não dos atos (questão prévia a tudo o mais), as
sociedades comerciais (objeto de código próprio), os contratos
comerciais, os títulos de crédito, etc.

3.Direito Internacional Privado


Ainda no âmbito do Direito Privado cumpre referir o
Direito Internacional Privado que, além de matéria complexa (mas
fascinante), é zona de polémica. Na verdade, se há quem negue o
Direito Internacional Público por alegadamente não ser Direito,

270
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

outros recusam o Direito Internacional com o argumento de não


ser internacional. Tratar-se-ia de normas de direito interno de cada
País, destinadas a resolver conflitos de competência espacial das
diversas ordens jurídicas. Nesse sentido, não deixam os críticos de
ter boa parte de razão: a expressão internacional, neste caso, não é
tanto para as fontes do direito (embora as haja, mas seriam até mais
direito estrangeiro com aplicação em cada país, conforme normas
de conexão, essas naturalmente internas), mas para o tipo social de
relações, de índole privada, porém.
As situações tuteladas por este ramo jurídico são aquelas
em que houver conexão relevante (nacionalidade ou domicílio dos
sujeitos, localização do objeto, local da ocorrência do facto) com
mais de uma ordem jurídica estadual. Independentemente da
discussão teórica, sobre o estatuto epistemológico destes estudos, o
facto é constarem as principais normas de conflitos do nosso
Código Civil (art.º 25.º et sq.), além de se poderem reger por
Convenções internacionais concretas, muitas vezes chamadas Leis
uniformes.
Autonomizando-se, surgiu o Direito do Comércio
Internacional (ou parte do próprio Direito Económico
Internacional se dermos ouvidos a uma conceção de Direito
Económico abrangendo relações públicas e privadas — o que
julgamos inconveniente).

271
Parte VII
Geografia:
Pluralidade de Ordens Jurídicas
e Comparação de Direitos

Sumário:
1.Critérios e famílias do "Direito Comparado"
2.As Famílias Jurídicas
3.Subsistemas Romano-Germânico e da Commom Law

273
1.Critérios e famílias do "Direito Comparado"
O estudo das famílias de Direito, isto é, das afinidades e
contraposições entre diversas ordens jurídicas, é tratado, sabemo-lo
já, pela disciplina da Comparação de Direitos, vulgarmente
chama-da Direito Comparado. Em rigor, por simetria com o que
ocorre com a História, a Sociologia, a Antropologia e a Filosofia do
Direito deveria chamar-se Geografia Jurídica, mas a expressão não
ganhou ainda suficiente divulgação109.
Vamos agora expor, embora a traço muitíssimo largo, as
principais características das atuais famílias jurídicas que entre si
dividem as obediências normativas no espaço mundial. Isto é,
vamos rapidamente aperceber-nos dos conjuntos mais ou menos
vastos de ordens jurídicas com significativas afinidades entre si (tais
são as “famílias jurídicas”; também designadas por "sistemas").
Para estabelecimento de homologias e para o agrupamento
subsequente, foram ensaiados diversos critérios, todos eles falíveis
— a língua, a raça (conceito hoje desacreditado cientificamente e já
quase só esgrimido por preconceituosos ou iludidos), a ideologia, a
religião, a origem histórica.
O menos mau será o das “civilizações” (contudo também
conceito polémico), de algum modo integrador de todos aqueles.
Assim, desde logo, a grande divisão passa pela linha
demarcadora dos direitos “primitivos” (se é que de vero Direito e
não simples normatividades se pode falar) e dos direitos civilizados,
naqueles primeiros se integrando as ordens jurídicas estudadas pela

Cf., para desenvolvimento de todo este capítulo, o nosso livro Geografia


109

Constitucional. Sistemas Juspolíticos e Globalização, Lisboa, Quid Juris, 2009.


275
Paulo Ferreira da Cunha

antropologia cultural ou etnologia — direitos tradicionais,


consuetudinários sobretudo.
No âmbito dos direitos civilizados, quer o sistema de direito
chinês, quer o hindu parece terem apenas interesse histórico, dada
a sua desagregação ante o impacto do regime comunista (e da sua
evolução), o primeiro, e do colonialismo britânico e da
modernidade, o segundo.
Ainda há não muito tempo se poderia dizer haver,
consequentemente, três grandes famílias: a Ocidental, a Soviética, e
a Muçulmana. O direito estadual dos novos países da Africa negra,
ao contrário do direito normalmente vigente nos períodos coloniais
(dualista – mantendo a convivência do direito autóctone com o
ocidental), tendeu a ser monista, e foi alinhando pelos figurinos
ocidental, ou soviético, consoante os casos, tempo e lugar.
Contudo, o fim do COMECON, as modificações na União
Soviética depois da glastnot e da perestroika, certamente levaram a
que a família soviética se desagregasse, na medida até em que
alguns países do Leste europeu passaram a fazer parte da União
Europeia.
É normal que algumas reminiscências do Direito soviético
permaneçam em alguns aspetos do direito desses países. Mas o
mais importante, e perigoso, hoje, é a revivescência de
autoritarismos de sinal contrário em alguns desses Estados, o que já
motivou discussões sobre possíveis sanções da União Europeia,
como no caso da Hungria (vetadas pela Polónia). Os valores e
princípios democráticos da União Europeia não são compatíveis
com autocracias sem liberdades ou com elas visivelmente
musculadas.
Também outros países que seguiam a ideologia marxista-
leninista, como a China e Cuba, foram sofrendo transformações e

276
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

têm entre si diferenças apreciáveis, colocando-se em dúvida,


realmente, se se pode ainda falar numa família soviética.

2. As Famílias Jurídicas
A Família Jurídica Ocidental tem como pressuposto
fundamental o Homem, a sua autonomia, liberdade e dignidade
(daí o papel relevantíssimo desempenhado pela autonomia
privada). Baseia-se, afinal, nos pressupostos básicos da civilização
ocidental, com a sua tradição grega, romana, e a inspiração judaico-
cristã, a que se acrescentou o legado Renascentista e Iluminista,
com aportações capitalistas liberais primeiro, e a partir da "Questão
Social", também preocupações sociais. É, pois, uma civilização
complexa, contraditória, e muito rica, tal como o seu Direito. Este,
todavia, encontra-se em princípio laicizado religiosa e
ideologicamente, não visando objetivos políticos nem a salvação
das almas, antes se assumindo na sua especificidade. Aqui e ali,
claudica relativamente a estes princípios, mas em geral segue-os.
Já a Família Jurídica Soviética (cuja sobrevivência é, como
vimos, muito discutível), assenta em pressupostos civilizacionais
muito mais recentes e homogéneos: a sua base é a ideologia
marxista-leninista, com todas as suas consequências. O Direito
perde especificidade e autonomia para se associar intimamente ao
Estado, para se tornar num instrumento técnico deste ao serviço
dos seus fins, i.e., numa última fase da História a construção do
Comunismo ou sociedade sem classes (que, aliás, é questão muito
controversa e, para surpresa de muitos, nem sequer exclusiva desta
ideologia, que aliás mais se revelará em especificidade pelos meios
que pelos fins últimos ou escatológicos).
Trata-se de um Direito em princípio estritamente legalista,
sendo até, em alguns casos, as lacunas da lei integradas por

277
Paulo Ferreira da Cunha

princípios da política. Quanto ao conteúdo legal (e referimo-nos


agora especialmente ao Direito da URSS, matriz dos demais países
socialistas, apesar da persistência de alguns elementos de localizada
divergência, por motivos históricos) há institutos diversos dos
ocidentais, e outros que apenas comungam do nome. Tinha-se,
porém, assistido a uma tentativa de aproximação com certas
técnicas ocidentais já antes da queda do Muro de Berlim e do fim
da URSS: nomeadamente com a proscrição do uso da analogia na
incriminação penal, a ampliação dos direitos de propriedade
pessoal, e o alargamento da possibilidade de sucessão por morte.
Se a ideologia comandava a Família Soviética, o primado do
religioso faz-se sentir na Muçulmana. O Alcorão, o livro sagrado,
contém um bom número de regras jurídicas, e de acordo com ele,
em última instância, se deve fazer a interpretação jurídica. Por
vezes há flagrante incompatibilidade entre as prescrições corânicas
e as exigências jurídicas do mundo moderno.
A sociedade ocidentalizada no plano sociológico das
grandes metrópoles islâmicas vai adaptando o pensamento jurídico
muçulmano, revelando uma inventiva e criatividade invulgares. Não
raro fazendo apelo a ficções jurídicas. O divórcio e o juro, de muito
difícil aceitação à luz do Livro sagrado, encontraram acolhimento
em alguns países árabes graças à técnica do repúdio duplo e
simultâneo dos cônjuges e à ficção que equipara o juro à renda
(fruto legal) da terra.
No domínio constitucional, espera-se que o “mal árabe”
(que contudo não se identifica com “muçulmano”) consiga ao
mesmo tempo demarcar-se dos extremos do fundamentalismo
religioso, por um lado, e do laicismo militarista e ditatorial, por
outro. A Tunísia, por exemplo, conseguiu alcançar na sua
Constituição, numa constituinte majoritariamente islamista, o
milagre de um equilíbrio. Os seus dois primeiros artigos, que são
protegidos como insuscetíveis de revisão, declaram:
278
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

“Article 1 - La Tunisie est un État libre, indépendant et


souverain, l'Islam est sa religion, l'arabe sa langue et la République
son régime.
Article 2 - La Tunisie est un État à caractère civil, basé sur la
citoyenneté, la volonté du peuple et la primauté du droit”.
Infelizmente, pelo Mundo fora, fundamentalismos de todo
o tipo procuram substituir, mesmo eleitoralmente, as clássicas
formações partidárias de uma democracia formal, técnica, que tem
deixado muito a desejar, por incumprimento das suas promessas,
especialmente sociais, corrupção e afins. Mas obviamente que mais
vale a nossa democracia decaída que o poço sem fundo de tiranias
teocráticas (ou outras). Evidentemente que numa tirania, numa
ditadura, o Direito realmente não existe. Usa-se por vezes as
formas jurídicas por facilidade e hipocrisia. Mas o que impera é a
decisão do soberano, do que decide do estado de exceção, como
diria o constitucionalista alemão Carl Schmitt, que chegou a
justificar o juízo arbitrário de Hitler. Não deixando de ser uma das
maiores inteligências jurídicas, a par talvez dos Gigantes de
Weimar.

3.Subsistemas Romano-Germânico e da Commom Law


No seio da Família Jurídica Ocidental, não já por razões
civilizacionais, mas por motivos técnicos, haverá que reconhecer
duas subfamílias: a romano-germânica, romanística ou continental,
e a da “Common Law", anglo-saxónica, ou anglo-americana. Ambas
partilham os mesmos princípios civilizacionais (embora haja
diferenças culturais interessantes, naturalmente), mas separa-as uma
metodologia jurídica diversa.
Reforçando a opção pela existência de uma grande família
ocidental, encontram-se ainda ordens jurídicas algo mistas ou
híbridas, com aspetos continentais e da Common Law: são casos
279
Paulo Ferreira da Cunha

como os da Escócia, África do Sul, Luisiana, Quebeque, Israel,


Filipinas ... Mas é possível que alguns desses casos venham a ser
absorvidos, em maior ou menor parte.
A grande fonte (em sentido histórico) inspiradora do
sub-sistema romanístico é o Direito Romano. A ele se acrescentou
uma ulterior influência germânica, mas muito menos acentuada
(até na Alemanha) havendo casos de hibridismo criador (como no
sistema sucessório, aproveitando-se o testamento romano e a
sucessão não voluntária germânica).
A lei detém o primado de entre as fontes de Direito,
embora o costume também apareça (apesar de teoricamente se lhe
negar a importância que apesar de tudo ainda tem). A
jurisprudência é fonte mediata de Direito, apesar de alguns desvios
(no sentido imediatista). A doutrina, fonte mediata, alcançou uma
técnica apuradíssima, mercê de uma natural propensão continental
um conceptualismo vigoroso e da fixação normativa (apta a
ulteriores teorizações, com uma base) constituída pela lei como
primeira fonte de direito.
Apesar de o Direito Romano ter vigorado efemeramente na
Grã-Bretanha, depressa foi banido pelos povos não romanizados.
Anglos e Saxões tinham direitos diferentes. Numa tentativa de
entendimento mútuo, criou-se, com base nesses direitos
costumeiros, e por via jurisdicional, uma lei comum, a "Common
Law".
Estamos perante um sistema assente na jurisprudência, em
que Direito é sobretudo o dito, declarado pelos Tribunais. Daí
que, para haver certeza jurídica, se opte pela vinculatividade do
precedente. Um precedente fixado pelos tribunais superiores é
imperativo para os inferiores: tal precedent rule tem, ela também,
origem consuetudinária, deriva igualmente do costume. Todavia, a

280
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

eventual rigidez do sistema é suavizada pela subtileza das distinções


judicativo-doutrinais.
Os anglo-saxónicos, ao contrário dos continentais, são
pragmáticos e pouco dados à especulação pura: daí que a sua
jurisprudência e doutrina sejam sobretudo viradas para o concreto,
e não para a construção abstrata e dogmática. Há institutos
diversos, ramos de direito diferentes e, em geral, instrumentos e
técnicas conceituais distintos dos romanísticos. A lei tem uma
função ancilar, e o estudo do Direito é, a partir de um nível não
muito elevado, feito à base de jurisprudência, estudo de casos, case
method, e não pelo recurso a teorias gerais, códigos e tratados. As
fontes em sentido instrumental são, mesmo para ramos
aparentemente "pobres", pouco menos que infindas. Talvez por
isso mesmo os juristas anglo-americanos tenham sido pioneiros na
especialização e no trabalho de equipa.

281
Parte VIII
Sociologia:
O Direito e a sua Circunstância:
História, Ordens Sociais Normativas, Política, Estado

Sumário:
1.O Direito e a sua Circunstância
2.Ordens Sociais Normativas
3.Direito, Política, Ideologia, Poder, Estado

283
1.O Direito e a sua Circunstância
O universitário mais clássico, depurado na sua atividade
(embora possa haver sempre híbridos de grande qualidade), não se
metia em política direta e ativamente (ou só o faria
excecionalmente em casos de grave crise e como que em estado de
necessidade), mas não podia, contudo, deixar de estar atento ao
que se passava à sua volta, e portanto, também, à evolução da res
publica.
Portanto, via, ouvia e lia, e assim não podia ignorar (como
no poema de Sophia de Mello Breyner), e não pode impedir-se de
pensar. Mas, na realidade, por muito que tenha essa tentação, uma
coisa é o cientista e outra coisa é o político: ganha-se sempre em
reler Max Weber e os seus Politik als Beruf e Wissenshaft als
Beruf110.
Hoje o paradigma do universitário informado mas recatado
e dedicado sobretudo à Universidade encontra-se de algum modo
em crise. Há muitos, mesmo jovens, que se envolvem desde cedo
na política ativa e partidária até, fazendo mais próxima de si e da
Universidade essa circunstância política.
O panorama que envolve a academia, e que a influencia, e
mesmo condiciona não é famoso, pelo contrário, é deveras
preocupante, em muitos países. Até em países que poderiam
placidamente estar longe de mais graves problemas, parece que os
procuram, e alguns deles mesmo visando retrocessos educativos e
especificamente universitários. Outros chegam a retrocessos

WEBER, Max — O Político e o Cientista, 2.ª ed. port. com introdução de


110

Herbert Marcuse e trad. de Carlos Grifo, Lisboa, Presença, 1973.

285
Paulo Ferreira da Cunha

civilizacionais, e mesmo está em perigo a democracia, a curto ou


médio prazo, noutros ainda.
Em geral, há sinais de alarme. É triste o espetáculo de
guerra civil verbal que em crescendo vai ocupando a agenda em
diversas sociedades, hoje.
O Direito não pode pura e simplesmente ceder à força, ao
poder, à inércia, ao hábito, nem à rua, ao clamor. Bolinha de papel
entre a raquete do preconceito conservador, tradicionalista e
reacionário e a dos novos preconceitos (de vocação totalitária)
modernos e politicamente corretos (em si mesmos contraditórios,
aliás), o Direito não será senão uma técnica de coação sem
racionalidade própria. É verdade que o Direito não pode ser uma
ideologia, mas exige-se-lhe alguma autonomia, que é a do bom
senso do mínimo denominador comum social, o qual, pelo menos
para já, não é extremista e totalitário, nem sequer autoritário, mas
pluralista e democrático.

2.Ordens Sociais Normativas


Temos vindo a defender a especificidade do Direito e dos
valores jurídicos, sem embargo das relações que necessariamente
estabelece com as demais realidades. É inegável que, numa
sociedade pré-técnica, pré-científica, arcaica ou de aborígenes, o
jurídico, o moral e o religioso são de muito difícil destrinça.
Ofensas religiosas têm punição pelo “braço secular" (quando haja a
distinção), faltas aparentemente de Direito fundam-se em preceitos
de crença. Mesmo no Direito Romano, nos seus primórdios, é
inegável uma origem religiosa do jurídico. Isto, porém, não deve
fazer-nos cair no sincretismo parificador. Hoje, cada vez mais vai
ficando claro tratarem-se de realidades diversas, embora
relacionadas.

286
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

A religião preocupa-se com os problemas do sagrado (o


sagrado é mesmo a sua especificidade) e da relação do Homem
com este e a Divindade ou a Transcendência. A moral estabelece
normas de comportamento, por vezes ancoradas naquela, mas
também passíveis de laicização. Comungando eventualmente (e
claramente em certos casos mais importantes — v.g. no Direito
Penal) de valores e princípios daquelas duas, o Direito tem,
todavia, um valor autónomo, o da Justiça.
Justiça que, por seu turno, também pode ser objetivo (mas
noutros termos) da ideologia, ou da utopia, ou da política, mas que,
para o Direito, tem um outro sentido. A Justiça destas realidades
(muitas vezes chamada 'Justiça Social') visa reordenar ou legitimar a
sociedade com base num qualquer princípio-chave. Aí, a "Justiça" é
um instrumento, não é um fim. Fala-se, por exemplo, da dita
"Justiça Social" como forma de obter a "igualdade" ou a eliminação
da pobreza, ou, pelo menos, minorar os problemas sociais mais
graves, etc.
Pensou-se (e alguns ainda pensam) que todos estes
objetivos, por muito louváveis que pudessem ser (dependendo das
opções político-ideológicas de cada um) não seriam fins jurídicos.
Por isso, também não o seriam os Direitos do Homem, e mesmo
os direitos constitucionais não diretamente aplicáveis. Até porque
seriam contraditórios entre si (esquecendo o princípio da unidade
da Constituição e o da concordância prática), além de que seriam
utópicos. Contudo, a conversão à necessidade de o Direito não ser
alheio a essa dimensão foi-se fazendo. Hoje muitos dos que antes
comungavam dessas ideias excessivamente rigoristas para a
determinação do jurídico consideram que não pode haver Direito
sem Justiça Social, sem Estado Social, etc.
É verdade que a religião quer santos, a moral bons
samaritanos, a política e a ideologia, bons cidadãos ou ativos
militantes. O Direito quer homens razoáveis que cumpram os
287
Paulo Ferreira da Cunha

velhos preceitos romanos — que vivam honestamente, não


prejudiquem ninguém, e deem o seu a seu dono. Mas só pode
haver Justiça numa sociedade minimamente justa e sã.
Uma outra questão bastamente debatida é o
relacionamento Direito/Moral.
O Direito também não se confunde com a Moral. Alguns
adiantaram a teoria de que o mundo jurídico seria o de um
"mínimo ético", subconjunto do conjunto mais vasto da Moral. Mas
este critério não consegue explicar várias normas jurídicas de
simples ordenação, amorais porque afinal técnicas, ou apenas
"morais" na medida em que regulam e a ordem parece ser
eticamente preferível ao caos. Contudo, talvez nem assim
resolvêssemos o problema porque há dois tipos de ordens — a
natural (cosmos) e a criada (táxis), e só a natural parece ser, para
muitos, válida e "boa". O Direito, assim, tem intersecções
complexas com a Moral, o que complica mais uma teoria geral das
relações recíprocas.
Alguns enfatizam o carácter social e de alteridade do
Direito, em contraposição à hipotética não intersubjetividade
moral. E citam de bom grado o caso de Robinson. Mas, como se
sabe, e com o devido respeito, não parece terem-no lido
apressadamente: Robinson Crusoe tem deveres jurídicos, não
meramente morais.
Apesar de no limite erróneas, estas aportações de
subconjunção e alteridade são aproximações com valia, a ter em
conta enquanto tais: não como última palavra, mas enquanto
focalizações que vão lançando luz sobre o problema.
Na realidade, tinham razão os Romanos ao afirmarem non
omne quod licet honestum est: eles, afinal, nos dão conta do
verdadeiro lugar do Direito face à moral. Se, como dizem, nem

288
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

tudo o que é permitido é honesto, então, tanto pode ser desonesto


como indiferente à moral, o que comporta vantagem face à
teorização do "mínimo ético".
Há, por outro lado, ainda dois aspetos a sublinhar. O
Direito, embora arranque de uma força interior, antiquíssima e,
dir-se-ia, da espécie, deduz-se sempre de objetivações, de atos
justos ou não. Já a moral pode considerar reprovável um ato
juridicamente irrepreensível, embora praticado por cálculo ou de
má vontade. Ela é ainda mais radicada no foro íntimo de cada um.
Por último, os valores morais são múltiplos — e por vezes
bem difíceis de compatibilizar: por exemplo, virtudes como a
prudência e o heroísmo. Englobam decerto a justiça, mas fazem-na
conviver com a caridade, a magnanimidade, o perdão, ou outras
ainda. O Direito, esse, se nos seus fins e nos seus meios esbarra
com imensas dificuldades e antinomias, não se pode propor outra
coisa que a simples Justiça. Evidentemente que não a justiça "cega"
de inflexível, mas a justiça justa, a justiça équa, a autêntica Justiça.

3.Direito, Política, Ideologia, Poder, Estado


Importa, num mundo onde a política tende a absorver tudo
(a tudo volver, como na distinção de Carl Schmitt, em "amigos" e
"inimigos"), e o Estado a engolir o resto, precisar o carácter não
instrumental do Direito face ao Poder, e a sua autonomia frente a
tais realidades.
Só há liberdade e Estado de Direito quando, precisamente,
o Direito e o Estado reservam para as pessoas normais (não
simplesmente para uma minoria de nobres, burocratas, ou
empreendedores ricos) uma considerável área de autonomia, e se
abstêm de se intrometer em muitos aspetos das suas vidas e
atividades. Ao mesmo tempo que protegem todos os cidadãos, na

289
Paulo Ferreira da Cunha

segurança pública e na segurança social... Pelo contrário,


totalitarismos ideológicos ou religiosos (teocracias) querem
submeter as pessoas em todas as áreas da vida. Não pretendem
cidadãos, mas dóceis cordeirinhos da sua utopia (na verdade uma
utopia infernal, distopia).
Se a maioria das normas jurídicas são hoje de origem estatal
(e normalmente política), isso nem sempre foi assim, nem tal
significa que o Direito seja apenas uma técnica ao serviço dos
eventuais titulares do poder em cada momento concreto. O facto
de, legitima ou ilegitimamente (não importa agora), todas as
revoluções (ou quase) se fazerem em nome do Direito e dos
direitos aí está para atestar que a comunidade e a sua consciência
axiológico-jurídica guardam sempre a ideia de Justiça que, essa sim,
é capaz de aferir e julgar os atos do poder.
É daqui que decorre também a questão da lei injusta e da
tirania, mesmo a fundada em título legítimo (um tirano
descendente de um rei, ou eleito pelo povo), e de como o Direito
Natural é aqui juiz também.
Por outro lado, muitas decisões e atos jurídicos do poder
correspondem a uma política legislativa. Esta pode ser meramente
reguladora (ética e juridicamente indiferente em si, mas benéfica se
regular o que deve sê-lo e prejudicial se pretender regular o que
deveria ser deixado à livre disposição das coisas), variável e plural,
mas justa, ou injusta. As relações de concordância, tolerância ou
tensão entre um Direito normativo, com valores, e a política e o
Estado dependerão, afinal, do matiz concreto de tal política.
Apesar de haver fanáticos devotos de algumas capelinhas
teóricas, não se sente o hálito de vazio e do nada por sobre as mega
teorias jurídicas? Apoteose do processualismo, triunfo das
fórmulas, mas falta absoluta de grandes narrativas de Justiça. Ou
então, e descredibilizando-a(s), discursos demagógicos, folclóricos,

290
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

repisando argumentos com pouca força, pouca pertinência, pouco


nexo, e muito, excessivo sentimentalismo e subjetivismo, sob o
peso e ideologias antigas e modernas.
Lyotard tinha profetizado o fim das metanarrativas111. E foi
por muitos levado a sério. Mas não cremos que essa morte
anunciada seja positiva. Se a vai havendo, é um apocalipse que
nada revela, é a apoteose do Nada.
Será que é desta que o positivismo legalista pedestre ao
serviço de qualquer poder vai cantar a sua Vitória? Não, morte,
não cantarás tua Vitória!112 O triunfo do legalismo puro e simples é
a morte da Justiça. Mas esta tem cavado a própria sepultura com o
subjetivismo (mais ou menos ideologizado) e manipulação dos
princípios... Evidentemente que sempre há ideologia e política.
Mas a elevação epistémica (e o corte epistemológico) do Direito
ocorreu precisamente por conseguir um isolamento suficiente e um
discurso legitimador convincente desse isolamento, Isolierung113.
Urge ressuscitar a Justiça no Direito, e traçar bem claras (ou
pelo menos parâmetros compreensíveis) as fronteiras com a Moral,
a Religião e a Política114. A manipulação do Direito por qualquer
destas ordens sociais normativas é uma calamidade, não apenas

111
LYOTARD, Jean-François — A Condição Pós-Moderna, trad. port. de José
Navarro, revista e apresentada por José Bragança de Miranda, 2.ª ed., Lisboa,
Gradiva, 1989.
112
Paráfrase pro domo de 1 Cor, 15: 55.
113
THOMAS, Yan — Mommsen et ‘l’Isolierung’ du Droit (Rome, l’Allemagne et
l’État), Paris, Diffusion de Boccard, 1984.
114
Cf., por todos, FASSÒ, Guido — San Tommaso giurista laico?, in “Scritti de
Filosofia del Diritto“, org. de E. Pattaro/ Carla Faralli/ G. Zucchini, Milão,
Giuffrè, vol. I, 1982; VILLEY, Michel — Théologie et Droit dans la science
politique de l'Etat Moderne, Rome, Ecole française de Rome, 1991 (separata).
Sobre Jesus e a Política, recentemente, v. algumas esclarecedoras linhas do
Cónego PINHO, Arnaldo de — Jesus, um fio de sedução, Leça da Palmeira,
Letras e Coisas, 2015, p. 31.

291
Paulo Ferreira da Cunha

para o Direito (que tem de ter alguma autonomia) como para a


Sociedade.
Um Direito moralista, de cunho religioso, ou joguete nas
mãos da política não é, nunca será, verdadeiro Direito. Temos
exemplos já de moralismo (sanha puritana anti-arte que não
respeite padrões de um certo decorum obviamente não
consensual), teocracia (peso enorme de grupos religiosos na
política e tentativas de legislação em conformidade), excesso de
voluntarismo político, não respeitando a autonomia do jurídico
(poder pelo poder e para o poder). E o risco é muito grande,
porque em tempos de nuvens carregadas e obscurantismos
revivalistas, os três cavaleiros desse apocalipse jurídico, fugindo do
que é a sua função própria, específica, e metamorfoseados
totalitariamente, irrompem e investem contra a tranquila (e mais
modesta) senda do Direito e da Justiça. E muitos pactuam e muitos
olham (e assobiam) para o lado, e muitos mesmo são coniventes
nesse desvirtuamento.
Temos proposto um novo paradigma: o Direito Fraterno
Humanista. Mas é necessário que muitas boas vontades se
dediquem a esse trabalho de repensar o Direito. Boas vontades e
inteligências e imaginações prudentes. Porque o pior que poderia
suceder a uma ideia generosa e inovadora seria perder as raízes e
os pés no chão, e ser levantada como bandeira de insensatos.
O Direito tem obviamente um ADN político, moral (e
mesmo religioso), a que não pode fugir. Mas precisa de se superar
e se afirmar com autonomia. Como se vê cada vez mais na
afirmação em democracia e república de elementos
antidemocráticos e monocráticos, do mesmo modo se
compreenderá que muitos confundirão a necessária politicidade e
moralidade mínima do Direito com moralismo armado e correia
de transmissão partidária. Não são nada a mesma coisa.

292
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

O Direito procura também estruturar a sociedade, criar


regras que conduzem à sua organização a vários níveis, a começar
pelo político. Previnamo-nos, desde já, de que o Direito não é
política, nem serventuário desta. Tem fins próprios, e a vizinhança
que com ela se foi estabelecendo não significa, de modo algum,
identificação. Seja como for, de cada vez que vamos votar para a
Assembleia da República, o Presidente da República, ou para as
Autarquias Locais, o Direito está aí. Cada vez que o Governo ou a
Assembleia elaboram um Decreto-lei ou uma Lei, temos também a
tendência para crer que produzem Direito. E o mesmo se diga de
um Despacho de um Ministro, ou de uma Postura camarária (estes
últimos, Direito Administrativo). Definindo a existência, com
posição, funções, etc. de tais órgãos, não só estabelecendo quem
pode votar como, onde, quando... mas, mais fundamentalmente
ainda, elegendo um dos modelos pensáveis para a estruturação de
uma comunidade, para a decisão acerca de quem deve deter o
poder, há normas jurídicas. Estas, contudo, dão forma a opções
políticas. E o problema que se poderia pôr seria este: seria ainda
Direito um sistema de escolha, uma opção sobre o poder que,
fosse como fosse, postergasse os princípios da Justiça, embora
dotado da mais refinada técnica pretensamente “jurídica”?
O problema é deveras complicado, mas não há dúvida de
que existe, instrumental ou não, um Direito Político ou
Constitucional. Quando falávamos dos estatutos e papéis de pai e
de professor, imediatamente associámos o que o Direito deles
espera e a "máscara" que, como atores sociais, naturalmente
pensam (e se pensa) deverem usar. Tal parece derivar da
natureza das coisas – nos elementos mais fundantes; noutros casos,
são meras construções sociais.
Já no que toca ao Direito Político, mais dificilmente se
encontra uma tal afinidade, decorrendo as opções de fundo de
pressupostos ideológicos. O Direito Constitucional, impondo

293
Paulo Ferreira da Cunha

deveres, atribuindo poderes, encontra-se numa zona


particularmente sensível da sociedade e do real, e está dotado de
grande especificidade.
Invoca-se a Constituição, sem dúvida, para muitas e
legítimas causas. Ainda bem, porque é prova de que ela está viva e
é material simbólico reconhecido. Mas tal é feito também,
frequentíssimas vezes, mais em nome de um mito do que com
bases jurídicas. Isto prende-se com o tipo particular de "comandos"
constitucionais: muitos deles, sobretudo dirigidos aos órgãos de
soberania, e não ao comum dos cidadãos — normas sobre
poderes, funções, etc.; outros, de carácter muito geral (e vago), e
durante muito tempo impossíveis de concreta demanda judicial. Na
verdade – dizia-se – nenhum desempregado pode processar o
Estado por não ter ele garantido o direito ao trabalho, nem um
doente vai de muletas ou de maca peticionar o seu direito à
saúde, nem, no limite (brincava-se), os mortos (ou os seus
herdeiros) reivindicam o direito à vida.
Quer dizer, grande parte dos direitos constitucionais são
políticos ou morais, e não jurídicos115. Porque, como dizíamos, não
há direito sem ação. Não havendo esta, não há possibilidade
daquele.
Porém, o entendimento sobre a aplicação dos Direitos
Sociais (os demais sempre foram invocáveis diretamente) foi
mudando. No Brasil, por exemplo, o ativismo judicial deu voz a
quem por eles clamava, em muitos e muitos casos. Mesmo entre
nós, não será impossível que venha a haver alguns julgados nesse
sentido mais amigo do Estado social. É que não parece estar escrito
nas estrelas que os Direitos Sociais não devem ser levados a

Cf. Michel VILLEY — Philosophie du Droit, 3.ª ed., Paris, Dalloz, 1982,
115

vol. I, máxime p. 150 et sq, et passim.

294
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

tribunais... Por outro lado, já se considera que certos adquiridos


civilizacionais podem nem sequer ser encarados pelo lado destes
direitos, mas, simplesmente, como manifestações da dignidade da
pessoas humana. Há uma dignidade económico-social. Assim
como há uma dignidade ambiental. Não se trata apenas das
liberdades clássicas. Mas também não se podem esquecer estas.
Essas liberdades clássicas, ou seja, os direitos, liberdades e
garantias (e os direitos de personalidade, também presentes no
Código Civil), sempre (desde que consagradas) foram consideradas
tuteláveis judicialmente.

295
Livro III
TEORIA GERAL
DA NORMA JURÍDICA
E HERMENÊUTICA

Sumário:
Parte I. A Norma e o Direito
Parte II. Classificação das Normas Jurídicas

297
Parte I
A Norma e o Direito

Sumário:
Capítulo I
O Direito e as Normas
Parte II
Classificação das Normas Jurídicas
Capítulo I
Classificação de normas: dificuldades e precauções
Capítulo II
Classificações segundo as características
Capítulo III
Categorias

299
Capítulo I
O Direito e as Normas

1.O Direito para além da Norma


Como fomos já detetando ao longo destes primeiros
contactos com o Direito, este não se trata de uma realidade
exclusivamente composta por normas jurídicas. É até algo bárbaro
(mas é, de qualquer forma, muito impreciso) identificar sem mais o
Direito com "um conjunto de normas". É-o, como vimos, porque
nem todas as normas são jurídicas, mas também porque o Direito
vive não apenas de regulamentações, mas também de decisões, atos
e teorias, de muito diverso tipo de agentes (apenas no sentido de
agirem), a que hoje se gosta chamar “operadores jurídicos”116.
Os Atos Administrativos são Direito e contudo não são
normas, tal como as sentenças pronunciadas pelos Tribunais e a
doutrina elaborada pelos jurisconsultos. A teoria tridimensional do
Direito (que Miguel Reale elevou a megateoria com virtualidades
reprodutivas só ultrapassadas por idêntica processo levado a cabo

116
Expressão que confunde os juristas, tratando-os como se fossem
manobradores de guindastes ou afins (com todo o apreço e respeito pelos
próprios, claro; mas que fazem outras funções), e um há alguns anos “atores
jurídicos”, como se o Direito fosse uma peça de teatro (comédia, tragédia,
tragicomédia, farsa?). Talvez estes últimos, afinal, tivessem mais razão. Há uma
investida generalizada e em muitos aspetos da vida para que falemos uma
linguagem politicamente correta que vira o mundo do avesso – e muitos,
seguindo a moda, nem disso se dão conta. Também os trabalhadores passaram a
ser simples “colaboradores”: logo, pelas próprias palavras, e sem necessidade de
lei (!) dando a ideia de que são fungíveis e descartáveis... Pois apenas
colaboram...
301
Paulo Ferreira da Cunha

por Montesquieu com a também já anterior separação dos


poderes) igualmente nos fala de outras realidades além da norma:
os factos e os valores. Falamos já, também, na importância do texto
como realidade de suporte do Direito.
Tudo isto (e mais, que a brevidade impõe se não diga) nos
dá a ideia de um Direito em ação, plural, partícipe de múltiplas
formas e usando diversas vias de manifestação e concretização.
Além disso, sabemos que a redução teórica do Direito às
normas ajuda à conceção que o reduz a normativismo, e este outra
coisa não é que um apoucamento da juridicidade em técnica da
coação, ao serviço do voluntarismo político que faz e desfaz o justo
ao sabor da sorte, ou seja, do arbítrio ou do capricho de quem
manda. Ora, precisamente, o Direito foi criado, em Roma, para
evitar a dependência fugaz e ventosa do justo e do injusto (e suas
consequências para os cidadãos) da roda da fortuna da política.
Evidentemente que um Direito com uma pura
racionalidade própria, com uma total autonomia, é uma ficção: o
Direito que se quer menos político é por vezes o que o é mais
(como sublinhava Orlando de Carvalho). Porém, uma coisa é um
Direito com respeito por si próprio e com independência, em que,
por um exemplo, um juiz tem orgulho em julgar, pela Justiça,
mesmo contra os interesses da ideologia ou do partido com que se
identifica, e esse é o modelo ideal de isenção; outra coisa é o não
se saber onde começa a jurisdição e onde acaba o serviço a poderes
ou partidos.
E mais ainda: outra coisa ainda é a terra de ninguém de
nem sequer haver Direito como entidade epistemológica e
institucionalmente separada, e se viver numa amálgama sem lei
(lato sensu) de ideologia, poder, religião, moral e normatividade,
como é o caso de alguns totalitarismos, uns laicos (ou

302
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

aparentemente laicos, porque a ideologia se pode transformar em


religião) ou teocráticos.
Importa, assim, compreender que o Direito está para além
da Norma. Mas perante tantas ameaças à legalidade, tantas
violações mesmo, que têm aparentemente crescido nos nossos dias
(pelo menos delas se vai sabendo mais – e que escândalo, embora
por vezes comece a haver habituação), cabe legitimamente
sublinhar que ao mesmo tempo há que fazer uma defesa da
legalidade. Não de um legalismo estrito, estreito, tacanho. Mas tem
de se compreender que o respeito pelas leis é ainda o grau zero do
Estado de Direito (é o estado de legalidade). Se não se respeitam as
normas, se as próprias entidades públicas e jurídicas não derem
esse exemplo, caímos na barbárie. Nisso sendo simétricos dos
“agelastas” que nada veem além do comando, neste caso legal…

2. Importância e sentido da Norma e da sua Teoria Geral


Reforcemos: as normas não podem ser descuradas.
Decorrendo de valores que se reportam a factos e visando factos
sob a influência de valores, as normas têm uma função reguladora
primordial. Por isso, vamos de seguida estudar a Teoria Geral da
Norma jurídica, corolário do que aprendemos sobre o Direito e
suas características e ponte para as matérias mais técnicas,
designadamente da Hermenêutica.
Matéria de transição, pois, mas fundamental, onde se
aplicarão os conhecimentos e testarão as posições teóricas
assumidas, e se começará já o treino para o convívio mais direto
com os normativos legais positivos dos nossos códigos (maxime o
Código Civil), numa tarefa preliminar da interpretação e aplicação
ao caso concreto de uma bateria conceitual que obriga a muita
atenção e muito rigor.

303
Paulo Ferreira da Cunha

3.Estrutura das normas jurídicas


Vamos estudar de seguida a classificação das normas
jurídicas, isto é, vamos interpretar normas e aprender a agrupá-las
consoante diversos critérios. Porém, antes dessa tarefa, cumpre
recordar o que no fundo já sabemos sobre estrutura e
características das normas jurídicas.
Muito sucintamente, as proposições legais mantêm uma
estrutura muito semelhante, fazendo corresponder a um facto um
outro, que dele é consequência jurídica.
Assim, o primeiro facto é a hipótese, facti species ou
previsão, e o segundo a estatuição ou efeito jurídico. Obviamente,
não pela ordem por que aparecem no texto, mas consoante a sua
sequência lógica. O texto pode trocar as voltas...
De uma maneira geral o esquema é, pois: se A, então B.
Ou será B se A. Sendo, portanto, A a hipótese e B a estatuição.
Na negativa, procede-se da mesma forma. Se não A então
B. Ou será B, se não A. A e B continuam a representar,
respetivamente, os papéis de facti species e efeito jurídico.

4.Características da norma jurídica


Tendo rejeitado a visão conceptualista do Direito, como
entender a razão de ser de uma análise dos elementos de um
conceito que negámos ou, pelo menos, preterimos? É que não se
trata, para nós, de dissecar agora os requisitos do Direito (em
sentido normativo), antes de analisar as alegadas características das
normas jurídicas. Porque estas são os elementos indiciadores
fundamentais de estarmos perante Direito.

304
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Daí que seja importante distinguir as normas jurídicas das


normas de outra índole, de cortesia, de moral, religiosas, etc. E só
assim se estará a determinar o que é e o que não é "Direito" —
vendo, indiretamente é certo, os ditos "elementos" do conceito
“Direito”. Aliás, como decerto já se compreendeu, todos estes
estudos iniciais são algo redundantes; e não poderiam deixar de
sê-lo: observam a mesma — multímoda e fugaz — realidade em
várias manifestações e por diversos prismas.
É neste fechar do círculo, com todas as sobreposições
implicadas pelo sabor permanente da incompletude, que estas
magnas questões sempre nos deixam, que se pretende não encerrar
a compreensão problemática e problematizante, mas
decididamente deixá-la em aberto — como ela efetivamente se
encontra. O Direito tem, em grande medida, muitas questões de
impasse, de redundância, de círculo vicioso (e virtuoso), de aporia.
As normas jurídicas estão dotadas de várias características,
que podem ser divididas em dois planos, radicalmente distintos:
- plano externo — o mais comummente referido na doutrina;
relativo à forma e valor externo, aparente, das mesmas;
- plano interno — o mais fundante (embora não podendo
prescindir do primeiro, o externo), na medida em que se trata do
elemento efetivamente caracterizador do Direito enquanto tal, a
sua autêntica diferentia specifica.

5.Elementos das normas jurídicas — Plano externo


- Imperatividade — ao contrário da lei científica, a norma
jurídica exprime uma diretiva, uma ordem, com base em juízos de
valor e não, de realidade, ou de existência. Mesmo ao permitir, a
norma impõe essa permissão.

305
Paulo Ferreira da Cunha

- Generalidade — a norma dirige-se não a uma concreta


pessoa, mas a todas quantas possam praticar atos ou encontrar-se
na situação hipotética à qual a estatuição determinada corresponde.
Se qualquer A faz X, então a reação jurídica é y.
- Abstração — muito ligada à última característica, a
abstração é a qualidade da norma se não prender ao caso concreto,
à situação especial (ou à pessoa em causa), tratando por igual o
leque de casos subsumíveis na sua previsão (hipótese). Dada a
situação R, então Z.
- Coercibilidade — a norma é suscetível de tutela. A sua
violação acarreta para o violador uma sanção jurídica. A força é
sempre uma espada de Dâmocles sob a cabeça do destinatário da
norma.
- Violabilidade — contudo, ninguém é irresistivelmente
forçado a cumprir a norma. Sujeitando-se à sanção, pode o seu
destinatário arriscar-se a não a cumprir.

6.Elementos das normas jurídicas. Plano interno: os Juris


praecepta
Proibição do abuso do direito — honeste vívere — não
abusar dos seus poderes.
Limitação do uso do direito — alterum non laedere — não
prejudicar ninguém.
Imposição do respeito pelos direitos dos outros — suum
cuique tribuere — atribuir a cada um o que é seu.
Todos os preceitos se consubstanciam na Justiça, dela
partem e para ela caminham. No fundo, é o Direito Natural (ou
306
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

algo similar, que lhe faça as vezes...) que domina o plano interno,
através dos juris praecepta, e da ideia de Justiça.
Como sabemos — fomo-lo vendo já, ao longo dos capítulos
anteriores —, as características internas são negadas pelos juristas de
pendor positivista, e cada uma das externas contém em si múltiplas
exceções pontuais, além de a crise teorética ter invadido este
domínio, não havendo característica completamente segura. Todas
elas já foram postas em causa, por norma sob o impacto de novas
teorizações que generalizam o papel das exceções e o enfatizam ao
ponto de a regra deixar de o ser, mas também recuperando ideias
mais velhas e esquecidas.
Uma nova construção das características das normas,
omnicompreensiva, global, teria muito interesse, mas revela-se cada
dia mais difícil, ante a variegada selva em que o mundo jurídico se
tornou, comportando normativos de tipos múltiplos. Trata-se de
tarefa muitíssimo árdua, e a tentar com ponderação especial, não
sendo obviamente este o lugar nem o autor os indicados para tal.
Sabida da contestação e da desadaptação, é, apesar de tudo,
ainda uma bússola orientadora esta catalogação dos elementos da
norma jurídica. O Norte fica noutro lado, sabemo-lo. Mas usando
de forma combinada as duas informações, talvez não nos
venhamos a perder demasiado.

307
Parte II
Classificação das Normas Jurídicas

Sumário:
Capítulo I
Classificação de normas: dificuldades e precauções
Capítulo II
Classificações segundo as características
Capítulo III
Categorias

309
Capítulo I
Classificação de normas: dificuldades e precauções

1.Normas (propriamente) jurídicas e normas exteriormente


jurídicas
O primeiro problema a pôr-se neste contexto é
precisamente o de saber quando e se se está perante uma
verdadeira e própria norma jurídica. Como sabemos, não bastam
as características externas, mas deverá do conteúdo da norma (ou
da proposição: à partida nem se saberá se será norma) desprender-
se uma clara significação jurídica, de Justiça.
Assim, haverá, sem dúvida, certo tipo de normas, gerais,
abstratas, coativas, imperativas, violáveis ..., adaptadas segundo os
trâmites legalmente prescritos (due process of law) mas para as
quais se não encontra uma base justa no hic et nunc em que
deveriam vigorar. Perante estas normas que, se fossem jurídicas,
estariam obviamente sujeitas a toda a malha de classificações
juridicamente aceite, haverá apenas que qualificá-las como
falsamente jurídicas, ou aparentemente jurídicas, normas afinal
dotadas de simples juridicidade externa. Chamar-lhes-emos normas
exteriormente jurídicas.
Insistindo, com Santo Agostinho e São Tomás de Aquino,
que a norma (ou lei) injusta não é norma (ou lei). Mas sempre
prevenindo que a demagogia e a incultura, o interesse e a
boçalidade normalmente consideram injusto tudo o que não se
curva perante o seu simples interesse e preconceito. Perante a
possibilidade do julgamento bárbaro das normas, é óbvio que se

311
Paulo Ferreira da Cunha

preferiria o positivismo mais estrito... Contudo, num tempo e lugar


civilizados, a opção nem se deve colocar...

2.Carácter não substancial das classificações


Afastadas estas do nosso horizonte — delimitado, pois, o
nosso objeto às normas totalmente jurídicas (interna e
externamente) — novo problema se nos depara. Trata-se de saber,
de entre as diversíssimas focalizações possíveis, quais as que
efetivamente interessam. Há, antes de mais, que prevenir-se quanto
ao carácter não substancial das divisões deste tipo. Primeiro está a
norma, com o seu fim, a sua razão, o seu texto. Depois, num
trabalho ulterior de catalogação, de aproximação de normas por
semelhanças e diferenças, só depois é que vêm as classificações.
Ora, deste facto decorre que estas últimas derivam em boa parte
das intenções e predileções organizadoras da doutrina. Daí que
variem as perspetivas por que este problema é encarado, quase de
manual para manual, de autor para autor. Seria também
absolutamente possível — e nem sequer muito árduo —, quer
compilar, quer procurar compatibilizar as diversas teorizações
existentes, quer ainda propor novas fórmulas.
Tal não é o nosso escopo. Visamos apenas apresentar
algumas classificações, sem a pretensão da exaustividade,
sublinhando o carácter falível e algo aleatório destas malhas
conceituais, e preferindo a concisão raciocinada, ao
enciclopedismo taxinómico de pura memorização. Todavia, sob
pena de sincretismo estéril, estas convenções são para saber, e
sobretudo para saber aplicar.

312
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

3.Critério ou focalização predominante


Toda a norma jurídica é suscetível de ser classificada de
acordo com vários critérios, que valorizam em especial dada ou
dadas características que possua. Tal facto, atesta mais uma vez o
carácter não substancial das classificações, tornando óbvio que a
mesma norma pode (e, numa perspetivação global, deve) ser alvo
de diversas qualificações simultâneas. Contudo, muitas vezes
sucede que, numa norma, ressalta em especial um aspeto, o qual
deixa na sombra os demais, e com estes as correlativas
classificações.

4.Norma única ou várias normas?


Na problemática geral das qualificações de normas, há
ainda a observar um último cuidado: o facto de se individualizar
um artigo de um diploma legal, ou até um número ou parágrafo,
ou mesmo alínea de entre este, não quer automaticamente dizer
que estejamos perante uma única norma jurídica; não raro mais
que uma norma se encontra nessas singulares disposições.
Importa, pois, ao classificar uma norma jurídica, antes de
mais, como vimos, ver se ela o é, e depois, certificarmo-nos de que
se trata de uma única norma. O critério-regra a ter presente quanto
a esta última questão parece-nos não poder deixar de ser o da
estrutura da norma jurídica. Deste modo, e nos limites da razoável,
sempre que, ao invés de uma hipótese e de uma estatuição,
tenhamos diante de nós várias hipóteses e várias estatuições, parece
que, em princípio, teremos tantas normas completas quantos os
pares em presença.
Porém, há casos em que a unidade intrínseca e a vocação
de um conjunto de normas, nomeadamente de um diploma legal (é
o caso da Constituição, desde logo – não nos esqueçamos que ela é
313
Paulo Ferreira da Cunha

norma117), aconselham a que se possa também tratar todo o


clausulado como uma norma. Insiste-se: nada destas questões é
substancial, ontológico. Tudo funciona por convenção, dirigida à
melhor aplicação do Direito.

5.Norma completa ou incompleta (hoc sensu)


Não olvidemos, todavia, um elemento que, aqui, pode
contribuir para complicar a questão: nem sempre estes elementos
estruturais e naturais da norma jurídica se nos apresentam pela
forma expressa; uma boa dose de interpretação é aqui requerida —
especialmente para subentender o que figure tão-só de forma tácita.
Se na individualização do objeto de análise "norma jurídica"
houve de fazer este recurso à estrutura da norma (óbvio cuidado a
ter em consideração, em se querendo decantar o quid em estudo,
separando-o, identificando-o com clareza), também na malha
classificatória das normas, naturalmente se terá de apelar para um
outro elemento prévio e basilar que com a classificação tem não
despiciendo relacionamento. Trata-se, com efeito, dos atributos ou
características das normas jurídicas.

GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo — La Constitución como norma juridica,


117

in “Anuario de Derecho Civil”, Série I, n.º 2, Madrid, Ministerio de Justicia y


Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, p. 292 et sq..
314
Capítulo II
Classificações segundo as características

1.Sentido da enfatização teórica desta relação


É um aspeto que não tem sido expressamente enfatizado,
mas de todo o modo crucial: todas as classificações de normas mais
ou menos acabarão por perspetivá-las na mira das suas
características — parece até tautológico de tão evidente. Assim,
algumas classificações irão debruçar-se em particular sobre a
generalidade e a abstração, outras sobre a coercibilidade ou a
violabilidade, outras sobre a imperatividade, etc. Com estas ou
aquelas roupagens designatórias, o que sempre acaba por se visar é
o grau e o tipo de fidelidade de cada norma aos paradigmas
estabelecidos pelas suas características definidoras.
Tendo-se detetado esta preocupação, torna-se secundária a
polémica sobre as designações classificatórias, as quais passam a ser
tidas como simples aproximações, tentativas de captação dessas
situações de diversificada adequação da norma aos seus arquétipos
definitórios.
Assim esclarecida a questão nas suas mais importantes
afinidades e relevantes pressupostos, vejamos algumas possíveis
classificações, integradas já no âmbito das características das
normas jurídicas com que mais intimamente se relacionam.

315
Paulo Ferreira da Cunha

2. Esquema Geral da Relação Características/Critérios


I - Características ligadas ao lado externo das normas
jurídicas:
1. Características de generalidade e abstração:
a) - critérios do âmbito espacial de vigência
b) - critérios dos interesses predominantemente tutelados
c) - critérios do âmbito de frequência e normalidade
2. Características de imperatividade
d) - critérios da força vinculativa (autónoma ou heterónoma)
no conjunto da ordem jurídica
3. Características de coercibilidade e violabilidade
e) - critérios quanto às consequências da violação
II — Características relacionadas com o lado interno das
normas jurídicas:
f) - critérios quanto à fonte de Direito causante (que pode
ser plúrima e não exclusivamente legal)
g) - critérios quanto à eticidade ou juridicidade imediata
das normas (sem integrar nas normas a norma injusta, mas fazendo
apelo apenas a normas prima facie não éticas, v.g. os sentidos do
trânsito; distinguindo as prescrições materiais das jurídicas).
h) - critérios quanto à inovação trazida pelas normas
III — Características relacionadas com a completude
(presença simultânea da totalidade das características jurídicas
numa norma) das normas:

316
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

i) - critérios quanto à importância e causação das


normas entre si
j) - critérios quanto à autonomia, completude ou
transferência normativas.

3.Designações mais frequentes


Por comodidade e para simplificação da exposição,
optaremos por algumas designações mais correntes na
especificação, identificando, grosso modo, cada grupo de critérios
com uma ou outra das designações-base.
Assim:
a) Âmbito espacial de vigência:
normas universais, gerais e locais
b) Interesses predominantemente tutelados:
normas de interesse (e ordem) pública ou privada
c) Âmbito de frequência e normalidade no conjunto da
ordem jurldica:
normas gerais, especiais e excecionais
d) Força vinculativa:
normas imperativas (ou injuntivas) e
normas facultativas (ou dispositivas hoc sensu)
e) Consequências da violação:
normas plus quam perfectae, perfectae, minus quam
perfectae, imperfectae.

317
Paulo Ferreira da Cunha

f) Fonte de Direito causante:


normas consuetudinárias, jurisprudenciais, "doutrinárias (ou
científicas)", legais e negociais.
g) Eticidade ou juridicidade imediata:
normas éticas e normas técnicas; normas de estatuição
material e normas de estatuição jurídica.
h) Inovação
normas inovadoras e normas interpretativas
i) Importância e causação relativas: normas principais e
normas derivadas (ou primárias e secundárias)
j) Autonomia, completude ou transferência:
normas autónomas e não autónomas,
normas completas e incompletas,
normas diretas e indiretas (v.g. as remissivas)

4.O perigo conceptualista, relatividade e falibilidade


classificatória
Uma vez enquadradas as designações das diversas categorias
de normas propostas quer na problemática global das
características da norma jurídica, quer na identificação dos tipos de
critérios que procuram consubstanciar e através dos quais encarar a
realidade das concretas normas em análise, convém fazer ainda um
reparo prévio. Antes de entrarmos na explicitação, sucinta embora,
destes grupos de categorias, importa sublinhar que quanto mais
longe, quanto mais pormenorizadamente, se levar a estrutura
318
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

classificatória, maior o perigo de conceptualismo, de


distanciamento do real para se entrar no reino do puro pensar
catalogador.
É preciso, pois, novamente chamar a atenção para a
limitação das classificações, e particularmente agora assinalar que,
em vários casos, não apenas as categorias por vezes se revelam
inaptas a abarcar a totalidade das situações, como também podem
suceder emaranhados classificatórios. Sendo a imaginação do real
bem mais luxuriante e prodigiosa que a da doutrina, não se
estranhará mesmo que, no limite, o sistema ou sistemas propostos
se revelem inadequados, e em autêntico curto-circuito teórico
quando confrontados com a subtileza deste ou daquele mais
inusitado caso concreto. Não esmoreçamos, porém, ante tais
dificuldades, na verdade extremas, e não mais que confirmações da
multivariada floresta de normativos.
Sabendo, pois, que as classificações também podem
coincidir, revelar-se estreitas ou sobejantes, ou ainda duplicar-se
quando pareciam mutuamente exclusoras, partamos, finalmente,
para a tabela classificatória, prevenidos sim, mas não derrotados.
Na maioria larguíssima dos casos, as duas ou três distinções básicas
— as mais frequentes — bastam e revelam-se coerentes, ressaltando
aos olhos ao primeiro esforço de séria e detida interpretação. O
demais, poderá ser preciosismo bizantino, incompatível com o
carácter elementar do nosso presente estudo, por um lado, ou
mesmo com a razão de ser da classificação das normas jurídicas,
que deveria ser sempre agrupar de forma a potenciar o
entendimento, e não o contrário.

319
Capítulo III
Categorias

1.Normas universais, gerais e locais


Importa, para esta linha de abordagem, saber do valor
territorial de uma norma.
Em princípio, a Constituição vale para o todo do Estado,
bem como os códigos principais, a começar pelo Código Civil, e o
valor de uma postura camarária não excede o âmbito territorial
dessa autarquia. Há, porém, casos mais complexos, e tanto mais
quanto for descentralizado o poder, e o Estado, de unitário e
centralista, se for fragmentando em regionalizações, e, no limite, se
se federalizar, decompondo-se em vários, federados ou
confederados.
Em Portugal, o problema tinha acuidade na época colonial
(com as províncias ultramarinas, que tiveram ao longo dos tempos
vários nomes), e volta agora a pôr-se com as perspetivas (embora
sempre adiadas) de regionalização (e já com as regiões autónomas
da Madeira e dos Açores). Com efeito, alguns já desesperam que o
imperativo constitucional da criação de regiões (arts. 255.º et sq da
CRP) se venha a concretizar, tal o centralismo intrínseco do poder
entre nós, qual “síndrome do Terreiro do Paço”, transversal, ao
que parece, aos vários partidos que têm governado.
É claro que, por outro lado, alguns receiam
(justificadamente) com isolacionismos despesistas e populistas, que,
multiplicados pelo País, o tornariam ingovernável e quiçá
caricatural, tratando-se de um território tão pequeno e no limite da

320
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

má sorte partilhado, na hipótese da regionalização, por demasiados


líderes locais demagógicos e sem sentido da unidade do Estado.
Mas muito mais complexo parece ser o problema em
ordens jurídicas federais (embora de federalismos muito
diferentes), como o Brasil ou os EUA. Como se sabe, mudando
leis importantes nestes últimos, de Estado para Estado, não é fácil
ao jurista exercer a sua profissão na terra vizinha, e, no limite, há
formas de fraude à lei pelo vaivém entre Estados, num saltitante
exercício jurídico de fuga à alçada da Justiça. Por outro lado, bem
complexo se torna compreender e aplicar o jogo de competências
entre o poder central e os vários entes aos diferentes níveis.
De todo o modo, e para o que nos importa, normas gerais
são as que vigoram em todo o território continental — e são uma
grande parte das normas legais; normas universais, vigoram na
totalidade do território nacional, isto é, também nas regiões
autónomas insulares – e, no presente, ainda constituem a grande
maioria da legislação; normas locais — têm aplicação restrita ao
local da sua edição, normalmente uma autarquia, e, na verdade,
não são normas legais stricto sensu, tratando-se mais de "atos
regulamentares", sob a forma de deliberações municipais (cf. art.ºs
241.º e 112.° CRP).

2.Normas de interesse (e ordem) pública ou privada


O problema agora em causa é o de saber que tipo de
valores pretende em especial tutelar uma certa norma: se os
públicos, se os privados. Esta decisão classificatória teria a
vantagem, quiçá, de esclarecer possíveis diferendos em sede
interpretativa tout court, podendo contribuir para dar mais razão a
uns ou a outros dos intervenientes em causa, o Estado ou o
interesse público, os particulares, ou os interesses privados ...

321
Paulo Ferreira da Cunha

Mas é deveras ingrata a tarefa classificatória, nestes casos.


Como vimos, a propósito da distinção entre Direito privado e
Direito público, o critério dos interesses encontra-se em franco
declínio. Na verdade, já não é prestável a qualquer dilucidação
deste género. E isto pela simplicíssima razão de que os interesses se
mesclam, se hibridizam, e uma radical contraposição
público/privado, se faria sentido para a cosmovisão liberal clássica
(veteroliberal, a que podemos chamar “o grande liberalismo” –
infelizmente hoje assumido por muito poucos), não é doravante
mais possível, com cidadãos que beberam Estado e sobretudo
burocracia no leite materno, com subsídio-dependentes e
pseudoliberais que adoraram (ou adorariam) viver à custa de
subsídios e apoios de fundos estaduais e supranacionais e já não
acreditam na mão invisível quando ela levaria alguns dos grandes à
falência.
A única dúvida, nesta sede, será ainda esta: dever-se-á
abandonar pura e simplesmente a divisão, por obsoleta, ou mantê-
la, provisoriamente, como resquício do passado e, de qualquer
forma, apenas com valor episódico (para um ou outro caso, de
ainda patente aplicação) e somente tendencial (não como corte
absoluto entre categorias)? Como o Direito, mesmo o vigente num
certo tempo e lugar, é um aglomerado de camadas de diferentes
proveniências e épocas, e o passado deixa sempre sulcos não
descuráveis na doutrina e nas representações coletivas, não pode
haver dúvida de que a contraposição, se difícil hoje, se diluída
agora, permanece como quadro mental, pano de fundo de vário
raciocinar jurídico. Banir a distinção por completo seria, talvez,
fazer perder ao pensamento jurídico uma dimensão importante.
Mantemo-la, pois, com todas estas prevenções e cautelas,
sublinhando que, hic et nunc, é mais um problema para meditar
que uma grelha em que, com precisão e facilmente, venham a
caber os objetos em apreço — as normas jurídicas de hoje.

322
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

3.Normas gerais, especiais e excecionais


Estamos agora perante uma das classificações mais
relevantes e daquelas que mais impressivamente costumam
ressaltar quando comparamos normas entre si. As consequências
práticas destas distinções são bem significativas — este um bom
argumento para o afinamento teórico dos conceitos em causa.
Há aqui, porém, um problema: é o caráter relacional de
todas estas três categorias. A generalidade que aqui se visa é diversa
da generalidade espacial ou territorial, e também é, todavia, uma
questão de maior ou menor abrangência. Trata-se, de facto, de
saber se as soluções impostas por uma norma têm um campo mais
ou menos lato de aplicação, ou se, na mesma área normativa, vai
haver disposições que contrariem, ou complementem com alguma
variação de prescrições, a estatuição de tal norma.
Quando uma norma dispõe para um leque diversificado de
situações dentro dessa área de abrangência possível, sendo,
portanto, o direito-regra, o direito comum ou normal, está-se
perante uma norma geral. Num caso de simples desvio, adaptação
ou complementação específica desta norma para casos técnica ou
realmente algo diversos dos normalmente tuteláveis pela norma
geral, temos as normas especiais. E, por último, consumando uma
verdadeira subversão do estipulado, consagrando um regime
jurídico em absoluto oposto ao geral, mercê certamente da
inadequação do mesmo a verdadeiras situações de exceção,
encontram-se as normas excecionais.
Na relação entre normas gerais e especiais, a diferença será
de grau; entre aquelas e as excecionais, o que está em causa é já um
problema de qualidade.
De uma maneira muito geral, pode dizer-se que a
sistematização, dita "de Parte Geral" do nosso Código Civil propicia

323
Paulo Ferreira da Cunha

abundantemente a verificação destas distinções. Assim,


tendencialmente, do art.º 1.º ao 396.° (Parte Geral) se encontram
normas gerais, as quais depois serão objeto de restrição e desvio
em matérias mais especializadas nas partes subsequentes do
Código. Mas a especialização é sucessiva. No Livro II do Código,
por exemplo, os Contratos (art.ºs 405.º et sq.), especialização do
negócio jurídico (art.º' 217.° et sq.), têm também uma parte geral e
uma especial (cf. art.ºs 405.º et sq. com art.ºs 410.º et sq), e ainda,
mais especial que tudo isto, temos os contratos em especial (art.ºs
874.º et sq.), os quais, por último, se encontram, cada um,
divididos em parte geral e especial (cf. v.g. art.º 940.º et sq. e art.º
948.º et sq.). Entretanto, os contratos comerciais são direito
especial face aos seus congéneres de Direito Civil (cf. Livro II do
C. Com.).
Além desta estrutura piramidal, podem-se fazer
comparações caso a caso. Assim, por exemplo, o art.º 219.º C.C.
constitui um regime geral de consensualidade para os negócios
jurídicos, não fazendo depender a validade de declaração negocial
de qualquer forma especial. Tal é infirmado por disposições
excecionais, como as dos art.° 875.º, 1143.º, 2126.º, etc., que
estipulam formas especiais para dados negócios jurídicos concretos.
A mais imediata das consequências práticas desta distinção
(na verdade, do que lhe subjaz, da diferença radical de normas que
vem apenas mostrar) é bem plausível: se de normas gerais e
especiais, para casos análogos, é possível a aplicação analógica, já
tal não é comportável pelas normas excecionais. A razão do
preceito parece, de facto, muito clara: se do normal ou do pouco
anormal (do mero desvio pontual àquele) se podem, com todos os
cuidados, extrair princípios aplicáveis a casos semelhantes, porque
a estatuição facilmente se lhes adaptará pela homologia básica de
situações, já não parece curial que se vá tirar uma regra da exceção,
que se use por analogia a prescrição apenas útil para o caso

324
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

anormal. Todavia, já a simples interpretação extensiva (forçando


um tudo-nada o texto de uma norma excecional para nele poderem
caber situações de muito próximo parentesco), já tal interpretação é
admitida. Tais são as imposições do nosso C.C., no seu art.º 11.º.

4.Normas imperativas (ou injuntivas)


e normas facultativas (ou dispositivas hoc sensu)
Como há momentos para o problema da generalidade, que
podia causar confusão pelo facto de haver (pelo menos) três
"generalidades" em causa (a das normas jurídicas, a espacial e a
relativa, internormativa), pelas mesmas razões pode provocar
alguma perplexidade esta nova classificação. Pois não são todas as
normas "imperativas"? Vimos já que a característica "imperatividade"
para as normas jurídicas é discutível. O mais adequado, neste como
em tantos outros casos, é apercebermo-nos dos problemas fulcrais
efetivamente em jogo.
Assim, se é certo que a questão da imperatividade geral e
liminar das normas jurídicas se imiscui, sem dúvida, na presente
análise, não há dúvidas acerca do mais relevante: as normas
jurídicas não são simples produto do voluntarismo do "quero,
posso e mando" legal ou estatal, antes podem derivar (como
veremos infra) de outras fontes normativas; e mesmo as normas
legais nem sempre contêm comandos impositivos ou proibitivos,
havendo-as também facultativas, permissivas, etc.
Ora é esta validade, afinal limitada, da característica
"imperatividade" o "X" do problema em apreço. Há normas que
proscrevem e normas que acolhem, fazem apelo ou suprem o
silêncio do exercício livre da autonomia privada dos cidadãos.
Quer dizer: umas normas são efetivamente imperativas ou
injuntivas, indicam caminhos a trilhar necessariamente
325
Paulo Ferreira da Cunha

(preceptivas), ou sendas de todo interditas, para cujos caminhantes


cominam sanções (proibitivas); outras normas não curam de impor,
imperativamente, pela ação ou pela omissão necessárias
(facultativas ou dispositivas hoc sensu). Talvez a melhor designação
fosse, para estas últimas, a de não-imperativas, na medida em que
as suas subespécies podem trazer problemas de compatibilização
designatória.
De facto, de entre as normas não preceptivas e não
proibitivas, nem todas serão, rigorosa e logicamente, facultativas. As
normas interpretativas, que se destinam precisamente a fixar
sentidos de outras disposições, mormente assinalando definições
legais, impõem na verdade um sentido, prescrevendo
imperativamente um comportamento (interpretativo, jurídico), e
implicitamente proscrevendo (proibindo) os contrários.
É certo que, no nosso sistema classificatório, preferimos
encarar as normas interpretativas sob a ótica da inovação,
subtraindo-nos algo a este problema. Mas tal terá de ser
considerado se, como é frequente, se pensarem tais normas na
perspetiva da imperatividade. Fica ainda claro que tal tipo de
normas, versando sobre outras normas, é de "segundo grau". E por
aqui se fica a ver, breve e exemplificativamente, como as várias
classificações se imbricam, e devem, na verdade, ser enquadradas
de forma compreensiva, sob pena da tarefa classificatória se
transformar em mera charada sem sentido, de simples gozo
intelectual (se é que tal pode ocorrer em questões tão áridas).
Posto de lado o problema das normas interpretativas (que,
por sua vez, hão de distinguir-se das leis interpretativas), algumas
categorias menos problemáticas para o que ora nos importa se
quedam ainda.
Quando a ordem jurídica deixa na disposição dos
particulares a possibilidade de escolher vias de solução dos seus

326
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

problemas com atinência jurídica, quando lhes permite fazer ou


não fazer testamento, contratar ou não contratar nos termos gerais
da liberdade contratual, escolher um regime de bens em convenção
antenupcial, etc. está não a desinteressar-se da regulação jurídica de
tais problemas, mas a assumidamente remeter para os atores sociais
a conformação concreta do seu papel, homologando-o,
sancionando-o à partida. Quer dizer: assim escolham os
particulares, assim o Direito tratará como boa a sua opção.
Por vezes, as possibilidades para exercer as predileções e
interesses pessoais são taxativas (numerus clausus dos regimes de
bens, por exemplo), outras, satisfeitos certos requisitos de base, tem
apenas a barreira da própria imaginação dos contraentes (numerus
apertus dos contratos possíveis, por exemplo). Mas sempre se está
perante uma faculdade, na disposição dos particulares, que a
escolhem ou não, e, por vezes até, segundo um de vários modelos.
Trata-se aqui das normas dispositivas.
Imaginemos, porém — e não é difícil imaginar o que sucede
tão correntemente — que o velho avarento (um descendente,
decerto, daquele do poema de Bocage que trocava um olho por
dez moedas), moribundo, não quis ou não pôde, à hora da morte
(nem com o vagar dos anos maduros) redigir o seu testamento, ou
que os noivos, jovens e estouvados, nem sequer tomaram
conhecimento de tal coisa, material e pouco romântica, como os
regimes de bens, ou que, na fremente absorção do negócio,
olvidaram os empresários estabelecer o lugar do cumprimento do
contrato. Vai o Direito deixar sem tutela estes três casos?
Obviamente que não. Podiam todos eles ter estipulado, de entre o
leque de soluções admissíveis, aquela que mais lhes conviesse; não
o tendo feito, entram em funcionamento as "válvulas de segurança"
jurídicas para estes casos — as normas supletivas. As quais, como o
seu próprio nome indica, se encontram congeladas, de reserva, à

327
Paulo Ferreira da Cunha

espera que a falta de opção dos particulares as leve a entrar em


cena, como "suplentes".
Vejamos agora alguns exemplos. Tomemos o caso da
cessão de créditos (art.º 577 .º et sq C.C.).
A admissibilidade de cessão de créditos é acolhida, nos
termos do art.º 577.º C.C.: "O credor pode ceder a terceiro uma
parte ou a totalidade do crédito ... ". Trata-se de uma norma
facultativa ou não imperativa, dispositiva hoc sensu. Mas, além das
limitações da segunda parte do aludido artigo, não pode ceder os
direitos litigiosos, nem por si, nem por interposta pessoa. É o que
prescreve o art.º 579.º C.C.., o qual, proibindo tal negócio e
impondo para tais cessões a sanção de nulidade, contém normas
proibitivas, que são uma espécie das injuntivas ou imperativas. Já
antes, porém, se fixava o regime de créditos hipotecários sobre
imóveis quando não realizada por testamento (art.º 578.º, n.º 2
C.C.): esta deve constar obrigatoriamente de escritura pública. Ora,
tal imposição configura a existência de uma norma preceptiva, a
outra espécie do género das normas injuntivas.
Voltemos ao art.º 579.º No seu n.º 3, é-nos dada a definição
legal de direito litigioso — e tal é aquele que "tiver sido contestado
em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado".
É patente ser esta uma norma interpretativa, a qual, fixando o
sentido da expressão, nos parece, como referimos, mais imperativa-
preceptiva que facultativa. O n.º 2 do artigo em causa contém
igualmente uma norma interpretativa.
O artigo 582.º n.º 1 C.C. dá-nos um exemplo de norma
supletiva. Pode-se convencionar outra coisa, mas, se tal não for
feito (e, a sê-lo, está-se no exercício de uma norma dispositiva hoc
sensu, facultativa), a cessão do crédito implica que para o
cessionário se transmitam aquelas garantias e outros acessórios do
direito transmitido, desde que não tenham carácter pessoal,

328
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

inseparável da pessoa do cedente. O não exercício dessa faculdade


convencional (1.ª parte do n.º 1), implica a entrada em ação de
uma norma supletiva (2.ª parte).

5. Normas "plus quam perfectae", "perfectae"


"minus quam perfectae", "imperfectae"
A distinção entre normas "plus quam perfectae", "perfectae",
"minus quam perfectae" e "imperfectae" é uma distinção muito
antiga, e que visa agrupar as normas consoante as sanções que
cominam para a sua infração.
"Mais que perfeitas" (plus quam perfectae) são as normas
que, no topo da escala, piores ou mais gravosas consequências
acarretam para os seus violadores. Por um lado, os efeitos e
consequências de uma hipotética dimensão jurídica do ato violador
do Direito ficam apagados juridicamente da ordem jurídica. E tal
ocorre desde o momento da prática do ato violador, isto é, fica tal
ato ferido de nulidade (não simplesmente anulabilidade que é uma
sanção mais leve).
Por outro lado, não se fica por aqui: cumulativamente,
impõe-se uma sanção da índole da pena. Ao sacrifício de se ver
sem efeitos o ato praticado acresce, pois, um autónomo sacrifício
(pecuniário ou pessoal, v.g. privação da liberdade, pela prisão) de
índole punitiva. Este é o caso, por exemplo, da usura criminosa
(art.° 284.º C.C.) ou de qualquer negócio contrário à lei (cf. art.º
280.º, n.º 1 C.C.) que caia sob a alçada penal-sancionatória (cf.
C.P., Parte Especial).
"Perfeitas" (perfectae) são as normas que, impondo a
nulidade do ato violador, contudo prescindem da imposição de
uma pena. Aqui se encontra a maioria das nulidades de Direito

329
Paulo Ferreira da Cunha

Civil. Voltando ao art.º 280.º, parece que será de incluir aqui


alguns negócios física ou legalmente impossíveis, ou contrários à
ordem pública e aos bons costumes, desde que não entrem em
molduras criminais cuja estatuição correspondente seja uma pena.
As normas "menos que perfeitas" (minus quam perfectae)
são normas que, ao contrário das últimas, se impõem uma pena,
deixam ainda válido (não nulo ou anulável) o ato violador.
Muitas vezes tal sucede em vista da proteção de terceiros:
um comerciante que vende depois do horário não vê o seu
contrato invalidado (isso seria uma penalização exagerada para o
comprador, que não tem culpa nenhuma da atitude do vendedor),
mas certamente deverá pagar uma multa.
Outras vezes, há proibições de comportamentos que, uma
vez produzidos, não podem ser apagados no Tempo. "Não pise a
relva", mais ainda que a norma hoje tanto em desuso "É prohibido
(sic) afixar cartazes aqui" não envolve nenhum negócio, mas apenas
uma ação. Consumada a infração, apenas a repreensão ou a multa
se oferecem à ordem jurídica como reação. Prisão será obviamente
demais... e mesmo a multa, proporcionada, deveria ser aplicada
mesmo só em casos muito graves, sendo preferível a repreensão,
que quando os cidadãos têm brio na sua reta atuação, será
certamente mais que suficiente. O problema é quando há pessoas
que desprezam as leis e se riem da ordem, cuidando poder fazer
tudo o que lhes apetece. Essa é também uma consequência do
amoralismo e do individualismo feroz em que somos hoje
educados. Os quais decorrem, realmente, de falta de educação.
Finalmente as normas "imperfeitas" (imperfectae), que
alguns creem dever questionar se serão verdadeiras normas
jurídicas, estão desprovidas de todo o elemento sancionatório, não
estatuindo nem pena nem invalidade do ato. Mas podem
realmente ser consideradasjurídicas, porque o Direito não implica

330
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

necessariamente sanções. Pode ser apenas uma direção, um


comando, ou até mesmo uma recomendação ou indicação
persuasiva pelo peso pedagógico da ordem jurídica (o Direito tem
essa função ainda, não pode é ser um anti-Direito).
A maioria das prescrições constitucionais de índole
programática encontram-se neste caso, apesar dos mecanismos de
inconstitucionalidade, nomeadamente de inconstitucionalidade por
omissão (art.º 283.º CRP).
Por outro lado, não serão apenas as normas constitucionais
programáticas a padecer desta "incompletude"; mesmo algumas de
tipo organizatório. No âmbito da atual Constituição, mas ainda não
revista, Baptista Machado considerava integrar-se nesta hipótese a
norma do n.º 3 do art.º 198, que impunha ao Presidente da
República a dissolução obrigatória da Assembleia da República no
caso de recusa da confiança ou aprovação da censura ao Governo,
determinando assim, por qualquer destes motivos, a substituição
do Governo. De facto, se o Presidente da República o não fizesse,
que sucederia? A disposição desapareceu na revisão constitucional
de 82, mas suspeitamos haver outras normas de índole semelhante
escondidas nas dobras das leis.

6.Normas consuetudinárias, jurisprudenciais,


doutrinais (ou científicas), legais e negociais
O problema agora é o da proveniência das normas. É certo
(e tal, bem investigado e ponderado, lançaria luz sobre boa parte
desta matéria) que as hoje tradicionais teorias classificatórias das
normas foram cunhadas sobre o modelo da lei, tal como os
iluministas e depois os liberais a encaravam (daí as suas
características: generalidade, abstração, imperatividade,
coercibilidade...). Todavia, se o impacto de tal reducionismo do
331
Paulo Ferreira da Cunha

Direito à lei ainda hoje se faz sentir, e muito118, a verdade é que há


normas jurídicas que não são leis.
E mais: cada vez com maior acuidade se vai fazendo notar
que mesmo os diplomas que tal nome ostentam em muito boa
medida e em grande número não mereceriam tal nome à luz dos
princípios referidos, pois lhes faltam as aludidas características.
É assim que importa também classificar as normas de
acordo com as fontes de Direito de onde brotaram.
Tais fontes são, como sabemos, essencialmente a lei
(designando agora não a lei abstrata, arquetípica, racional, mas toda
a produção normativa editada por órgãos legislativos no exercício
da função respetiva, ou outros órgãos no exercício de tal função —
v.g. o Governo, neste caso entre nós editando “decretos-lei”), a
jurisprudência (as decisões dos tribunais, as sentenças), o costume
(usos repetidos a que se junta a convicção de tais práticas
constituírem deveres jurídicos) e a doutrina (as opiniões dos
estudiosos do Direito, dos tratadistas, a opinio doctorum). E, não
se esqueça, no domínio do Direito Internacional Público, os
Tratados.
Mais recentemente, surge a ideia de que certos contratos
são autêntica fonte de direito de eficácia relativamente geral (no
âmbito dos interessados) — é o que se passa, nomeadamente, com
os contratos coletivos de trabalho. Mas, na verdade, todos os
contratos, todos os negócios jurídicos mesmo, criam normas para
os seus específicos destinatários. No plano das fontes de Direito,

118
E positivismos se encarregariam sempre de fazer perdurar. Os
neoconstitucionalismos e ativismos judiciais, contrários ao legalismo, em certo
sentido vieram até a levar água ao moinho de um novo legalismo (por vezes de
antilegalistas convertidos), porque em muitos casos foram longe demais num
direito “livre”, a que alguns, em casos pontuais, acusam de subjetivismo e afins,
fazendo lembrar a velha máxima francesa que teme a equidade dos tribunais. É
sempre preciso moderação e bom senso na aplicação de qualquer teoria, ou
então cai-se em extremismos.
332
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

como vimos, é muito discutível a aceitação de fontes negociais; mas


agora trata-se apenas da origem de disposições concretas.
Assim, as normas serão consuetudinárias se a sua origem
direta for o costume, jurisprudenciais se tiverem causa próxima nas
decisões dos tribunais (o que ocorria muito mais frequentemente
quando os Assentos eram plenamente considerados
constitucionais, o que deixou de ocorrer), etc.
Contudo, no atual estado de coisas, não vivendo nós de há
muito no clima jurídico da doutrina como fonte imediata de
Direito, que era o da Roma do jus publice respondendi, não parece
de admitir normas doutrinais quanto à origem. Para existir uma
norma jurídica positiva é preciso que ela tenha vigorado, ao menos,
e sabemos que a entrada em vigor de normas, hoje, não depende
da opinião dos sábios, mas da vontade dos políticos, e o mais que a
doutrina pode assim, fazer, é ir clamando no deserto de um ruído
cada vez mais geral119. Note-se que agora há uma opinião pública,
nomeadamente em redes sociais, que altissonantemente se
manifesta em questões jurídicas (grande parte das vezes sem
possuir nenhuma formação jurídica). Isso é mais um fator de ruído.
Fonte apenas mediata, a doutrina não origina diretamente
normas, que requerem contributo de outras fontes para virem à
vida. Há, porém, muitas normas doutrinais, mas não no nosso
sentido: normas de lege ferenda, de jure constituendo, isto é,

119
Ou então passará a ser acarinhada pela política se conseguir, normalmente
pela comunicação social, cair nas boas graças da “opinião”. Há trabalhadores de
doutrina que raramente são citados, e outros que contam com a permanente
curiosidade mediática. Por vezes nem se sabe o que será melhor, porque muitas
vezes alguns dos consultados aparecem, nos meios de comunicação, não só com
o seu pensamento muito truncado, como por vezes até distorcido. Não é fácil a
doutrina falar e ser ouvida pela comunicação social, em muitos casos em busca
de declarações bombásticas, polémicas, de sangue e escândalo. Faz muita falta
jornalismo verdadeiramente rigoroso e conhecedor do Direito, com o desejo de
informar com competência e isenção.

333
Paulo Ferreira da Cunha

direito que ainda não é, mas se pretende que venha a ser, no


fundo, projetos, propostas de normas; e normas de outro tipo, de
índole sistemática, construtiva, regras ou leis "científicas" do Direito,
vigente ou não, mas mais gerais ou abrangentes.

7.Normas éticas e normas técnicas;


normas de estatuição material e normas de estatuição
jurídica
Como temos vindo a observar, todos estes problemas se
misturam, e surgem de novo questões que nos pareciam elucidadas
(se não mesmo esgotadas) há umas boas páginas atrás. Vimos que a
norma jurídica, e o Direito em geral, se distinguem da norma ética
ou moral. A que propósito, então, "normas éticas" no plano do
jurídico? E está já a ver-se claramente uma questão semelhante a
outras já aqui colocadas: à da imperatividade, por exemplo.
Na verdade, o Direito não se identifica com a Moral, e
sabemos como as tentativas de o transformar em simples correia de
transmissão desse (ou de outros, na realidade) tipo de valores levou
ao contrário dos objetivos generosos dos partidários de tal erro.
Mas, por outro lado, há um valor que também é Moral e que
constitui a especificidade do jurídico (é o valor tipicamente
jurídico) — a Justiça. Há, portanto, pontos de contacto, como
sabemos. Ora, se todo o Direito é (ou deve-ser) motivado pela
Justiça, nem todas as suas concretas prescrições têm um direto
conteúdo de Justiça, neste caso poderíamos dizer "ético". Não se
trata de normas alheias ao justo, ou amorais, nem (muito menos)
injustas ou imorais. São comandos de ordenação, de regulação,
arbitrários (ou, de todo o modo, não únicos, não necessariamente
aqueles), mas, todavia, imprescindíveis ao bom funcionamento
social, ou à harmonização inter-órgãos ou inter-normas.

334
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

O exemplo clássico é, sabemo-lo, o dos sentidos do


trânsito. Não importa se se anda pela direita ou pela esquerda,
desde que, numa dada ordem jurídica, haja uma norma técnica a
impor um único sentido. A norma ética é outra, primária,
subjazendo a essa norma secundária. E tal dirá (subentendemo-lo)
algo como: é preciso que haja um sentido do trânsito, seja ele qual
for; deixando assim às ordens jurídicas a disposição sobre qual o
sentido a escolher, mas não contendo norma supletiva.
Fica, portanto, esclarecido que as normas técnicas visam
regular aspetos de não imediata relevância "moral" ou jurídica, de
flagrante eticidade imediata, ao passo que as normas éticas estão
propostas a esse objetivo, sendo, de entre elas, de destacar o papel
altamente ético das normas de Direito Penal. Embora, com o
andar dos tempos, se não se verificar uma ponderada e vigilante
revisão das normas, possa acabar por existir um descompasso entre
as conceções éticas vigentes numa sociedade e o seu Direito.
Diríamos que tal pode ocorrer de formas diferentes: pode ser que
a sociedade nuns casos tenha perdido sensibilidade ética (ficando a
eticidade no Direito), e pode ocorrer também que, noutros casos, o
Direito tenha ficado ultrapassado, já não permaneça depositário de
grandes valores.
Como é sabido, nem sempre é patente o conteúdo das
normas para esta classificação. As normas processuais ou
procedimentais, à primeira vista iniludivelmente técnicas,
encerram, não raro, princípios éticos (ou antiéticos – pense-se num
processo inquisitorial, ou de uma polícia política num Estado
totalitário) relevantíssimos. Veja-se, v.g., as que instituem a
audiência dos arguidos ou interessados, o princípio do
contraditório, etc. É preciso, pois, o maior cuidado na distinção. As
normas foram feitas para o Homem, e não o Homem para as
normas – este é um princípio fulcral, muito especialmente para os

335
Paulo Ferreira da Cunha

casos de normas técnicas. A burocracia que nos manieta deve


obedecer e ser preterida em função de normas mais altas.
No exemplo clássico, se o regulamento hospitalar
determina que se ministre aos doentes em estado pós-operatório
um tranquilizante intramuscular de x em x tempo, com o único fito
de colocar os pacientes em sonolência analgésica, não vai a
enfermeira de serviço, Norma, acordar o senhor Morfeu, que
dormia o sono dos justos a essa mesma hora, sob pretexto de lhe
dar a injeção da praxe.
O fim da norma é fundamental. Há que ter entretanto em
consideração que se as normas técnicas poderão, em casos
contados (como o narrado) ser preteridas, já o não poderão ser as
éticas. Essas servem o Homem mas de forma diferente; não o
concreto indivíduo (que pode ser hedonista, e com elas se
incomodar), mas a humanidade do Homem.
Ainda nesta ordem de questões, deve falar-se nas normas
quanto aos seus diferentes tipos de estatuição, o que faz de novo
pensar sobre o que é ou não é jurídico.
De facto, há normas jurídicas mais ligadas ao mundo
jurídico propriamente dito, e normas mais votadas à regulação do
universo extrajurídico (embora se saiba claramente, desde Kelsen,
que o Direito tende a transformar em algo de jurídico tudo aquilo
em que toca: qual rei Midas fazia todo tornando oiro). Umas, têm
como destinatários potenciais todos os membros da comunidade
jurídica enquanto meros cidadãos, na sua vida normal, e dizem
coisas simples como "não matarás" ou "não roubarás", ou v.g.,
entregarás ao dono o que de perdido achares (art.º 1323.º C.C.) —
são as normas de estatuição material. Outras, visam sobretudo
efeitos jurídicos, e, portanto, destinam-se às pessoas enquanto
sujeitos de direito. De entre estas, desde logo se destacam as
normas sobre a aquisição e perda da personalidade jurídica, da

336
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

capacidade jurídica, etc. Dizem-nos quando e como podemos lidar


com o Direito. Claro que, em última instância, estas últimas, de
estatuição jurídica, acabam por se referir a questões materiais, só
que não o fazem diretamente. Estabelecem normalmente
condições e pressupostos (v.g. a maioridade cf. v.g. art.º 122.° C.C.
a contrario; art.º 123.º C.C.) para que outras normas, desse outro
tipo, venham a entrar em ação.

8.Normas inovadoras e normas interpretativas


Já falamos muito brevemente das normas interpretativas a
propósito da questão da imperatividade, e, mais especificamente,
da facultatividade normativa. De facto, estas são as que esclarecem
o sentido de outras normas, quer do mesmo diploma, quer de
diplomas anteriores ou ulteriores. Nisto (nesta abrangência) se
distinguem das leis interpretativas, as quais só visam leis passadas,
e, aliás, têm eficácia retroativa (art.° 13.° C.C.).
Nesta classificação fica em causa mais uma dessas
características tidas como "das normas jurídicas", em geral, mas que,
na verdade, fora cunhada sob o impacto e à luz da visão liberal da
lei. Esta não se confundia com qualquer ato de autoridade, ou
qualquer ato normativo: era algo de inovador. Os atos
administrativos e os regulamentos, por exemplo, não inovando
(neste sentido — aplicando, executando, leis anteriores) não eram
lei — claro.
Admite-se hoje sem problemas que possa haver normas de
carácter menos inovador — ou até não inovador senão na própria
entrada em vigor (v.g. decisões repristinatórias — em que se vai
novamente pôr em vigor uma lei anteriormente revogada, e que,
por isso mesmo, já fora vigente).
Mas o que especificamente nos ocupa aqui é a
contraposição entre os casos de inovação jurídica — em que ex
337
Paulo Ferreira da Cunha

novo se prescreve uma nova regulamentação (diferente da vigente,


por norma prévia expressa; ou tutelando pela primeira vez matérias
que se encontravam praeter legem, para além da lei) — e as
situações de retorno a um clausulado, ou remissão para um
clausulado, fixando-lhe o sentido ou auxiliando a tal fixação.
Se a esmagadora maioria das normas é de carácter
inovador, há também diversas situações de normas interpretativas.
No fundo, tais normas podem ter uma interpretação explícita ou
implícita. Podem referir-se ao conteúdo de outras normas mais em
particular (e aí estaremos muito próximos das já aludidas leis
interpretativas), normalmente através da técnica normativa das
remissões expressas (assim, o n.º 2 do art.º 657.º envia para o art.º
717.º, o n.º 2 do art.° 507.º para o n.ª 2 do art.° 497.º, etc.). Ou
então, meramente pode-se fazer uma interpretação tácita, como
quando se definem termos jurídicos (e, nesse sentido, trata-se
claramente de normas de estatuição jurídica). Os nossos Códigos
têm muitas definições, embora definir muito seja perigoso para a
lei (à doutrina deve caber tal tarefa), porque manietante.
Quase definições (são mais enumerações), as normas sobre
Fontes imediatas do Direito, por exemplo, não nos dão uma ideia
sistemática e clara do problema (cf. artºs 1.º e 2.º C.C.), como
tivemos já oportunidade de ver.
Mas o Código Civil contém muitas verdadeiras e próprias
definições. Folheemo-lo ao acaso: o artº 122.º define, afinal, quem
é menor, o artº 202.º n.º 1 (não com muito rigor, é verdade) dá-nos
a noção de coisa, e se o 204.º nos fornece a lista das coisas imóveis,
já os artºs 205.º a 212.º nos vão definindo coisas móveis,
compostas, fungíveis, consumíveis, divisíveis, acessórias, futuras e
frutos. Mais adiante, o livro III, abre com abundantes definições
legais: Posse (art.º 1251.º), e suas espécies (1259.º et seq.), etc..
Em conclusão: na norma interpretativa explícita,
normalmente uma remissão, ela é interpretativa na medida em que

338
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

obriga a um elemento concreto de interpretação a respeitar – a


norma para que remete; já na norma interpretativa implícita,
normalmente uma definição, ela é interpretativa porquanto sempre
que noutra norma haja referência ao aí definido, se deve considerar
feita a remissão para a norma definidora, interpretando-se de
acordo com o sentido nela fixado.

9. Normas principais e normas derivadas


Ao longo da nossa "tabela", fomos já por várias vezes
aludindo a esta espécie de hierarquia genética das normas, a esta
situação de umas normas virem primeiro, e outras depois, o que
sucede por diversas razões. Normalmente, chamamos-lhes normas
"primárias" e "secundárias". É uma distinção que existe em muitos
domínios da cultura. Veja-se, por exemplo, a distinção entre cores
primárias (básicas) e secundárias (compostas).
Na diferenciação entre as nossas duas categorias entra
usualmente mediador lógico. A regra principal é dada, e dela
logicamente se inferem novas regras. Tal é o que sucede, na
interpretação enunciativa (quem permite o mais, permitirá o
menos; proibido este, será proibido aquele, etc.) Porém, como aliás
tivemos já ocasião de ver, a propósito das normas éticas, pode
suceder igualmente o inverso. De uma norma mais concreta
(técnica, normalmente), também será possível inferir a mais geral
(ética, por via de regra). Esta última, será ainda a secundária, e
aquela a primária. Ou seja: esta a derivada e aquela a principal,
embora uma seja expressa e a outra tácita.
Ou deveríamos considerar sempre norma primária a mais
eticamente fundante, ainda que derivando da técnica? O problema
reside, antes de mais, no que, no caso, signifique “derivar”. Terá
sido a norma técnica pretexto ou motivo para se descobrir a ética?
Ou mais que isso? Matéria para ulteriores discussões... já não nesta
obra.
339
Paulo Ferreira da Cunha

10.Normas autónomas e não autónomas;


normas completas e incompletas: normas diretas e indiretas
Anda agora envolvida aqui, mais expressamente, uma
presença que, nos demais problemas postos apenas se pressentia
ou esboçava. As normas não são prescrições derivadas de hipóteses
que vivam justapostas a se stante sem interligações e sem referência
ao sistema geral de Direito em que se inserem. É a ideia de sistema
que agora vem interferir, por fim, na nossa análise.
Todas as normas dependem, ao menos virtualmente, das
demais. Quem tem uma questão de águas pode parecer alheio ao
normativo do Direito Económico do Orçamento, mas decerto
deverá ter em atenção ao Direito Penal, dadas as ofensas corporais
não raro emergentes de tais querelas de propriedade. No limite, o
Direito, como quadro institucional muito lato, muito envolvente,
acaba por se encontrar, em cada vez maior número de casos da
vida, à beira da omnipresença. Assim, cada norma jurídica se sente
na vizinhança das demais e lhes sofre a influência, tantas vezes por
osmose interpretativa… Há, na verdade, um sistema jurídico na
ordem jurídica.
O facto de as normas se não encontrarem isoladas, permite-
lhes certas lacunas, certos subentendidos, que o ordenamento
jurídico saberá tutelar. As normas sobre interpretação e integração
das lacunas são autênticos cirurgiões regeneradores de tecidos
normativos não raro esburacados. A velha ideia da plenitude lógica
do ordenamento jurídico continua, sob várias formas, a permitir
que o Direito não deixe de fora nenhuma das questões que como
tal se lhe ponham e ele considere com dignidade jurídica. Muito
cuidado, porém, é necessário para o Direito não se intrometer na
zona livre de Direito (há redutos de liberdade e intimidade que não

340
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

podem ser devassados e constrangidos pela juridicidade120), sob


pena de se instituir um Estado totalitário. Afigura-se-nos, por
exemplo, que nenhuma autoridade escolar poderia impor o seu
poder obrigando crianças a responder a inquéritos sobre as suas
“orientações sexuais”. Temos até muitas dúvidas que seja lícito
perguntar coisas que podem levar a discriminações, como
perguntas que peçam “cor”, “raça”, religião, ou mesmo condições
económicas. Dizia-se (em tempo de menos rumores e em que a
expressão fake news não tinha sido ainda inventada) que na antiga
República Democrática Alemã se conseguiria identificar as famílias
dissidentes ou não fidelíssimas ao regime pedindo às crianças, nas
escolas, que desenhassem a mira técnica da sua televisão. Se
desenhassem a da República Federal da Alemanha haveria muitas
suspeitas imediatamente...
Quanto mais sabem de nós, mais podem controlar-nos e,
de houver uma ditadura (o que não está definitivamente afastado:
hoje é claro) perseguir-nos ou eliminar-nos. Depende de a quem
agradarmos ou não. Por vezes até há intromissões com intuitos de
proteção. Mas podem facilmente ser desvirtuados.
Voltemos à sistematização. Cada norma não vai dizer tudo.
O recurso a outras normas revela-se cada vez mais indispensável, e
não apenas em sede da interpretação sistemática.
De entre os vários casos de diversa autonomia, completude
e transferência normativas, analisemos muito brevemente apenas
três.
Quando de uma norma validamente se possa retirar um
sentido completo, sem o recurso explícito e direto a outras normas,

120
Parece haver obsessão com pássaros, por exemplo. Foi noticiado há anos que
uma municipalidade nos EUA proibira que cantassem após determinada hora.
Não se sabe se multarão os animais ou os seus donos: provavelmente estes, que
terão dificuldade em fazer cumprir a norma. Em 2018, foi noticiado que a
Tailândia planearia impor penas de prisão para quem alimente pombos em
áreas de grande concentração desses bichos.
341
Paulo Ferreira da Cunha

estaremos perante uma norma autónoma. Caso contrário, i.e., se


necessitamos de esclarecer o sentido, a razão de ser ou o alcance
da norma através da consulta e da interpretação de outros
normativos paralelos ou próximos, regulamentações de casos
semelhantes ou simétricos, ou v.g. outros artigos, prévios ou
posteriores do mesmo diploma, então diremos tratar-se de uma
norma não autónoma. Como sabemos, porém, estas classificações
são tendenciais, na medida em que o elemento sistemático de
interpretação impõe sempre um enquadramento da norma nos
diferentes círculos normativos em que se insere, e, no limite, nos
parâmetros gerais da ordem jurídica.
O problema da completude das normas põe-se já não tanto
em termos de interpretação-aplicação, como da simples lógica
estrutural: tem ou não uma norma, em si e por si, os elementos
naturais de toda a norma jurídica?
Se os não tiver em absoluto, não poderá ser considerada
como tal. Todavia, poderá tê-los pressupostos, ou seja, só
detetáveis pelo recurso ao conhecimento de outras normas que,
assim, a venham complementar. E o problema é sobretudo
verificável ao nível da estatuição (também dita sanção, hoc sensu,
como se sabe).
Quando, pois, uma norma não apenas delimita os
contornos de uma hipótese, mas prescreve por inteiro a respetiva
consequência jurídica, estamos, naturalmente, no âmbito das
normas completas. Se, ao invés, temos necessidade de indagar das
consequências ou das repercussões da hipótese em outra ou outras
regras, é certo tratar-se de uma norma incompleta. A tabuleta que,
no jardim público, prescreve ser proibido pisar a relva, ou o
letreiro que, na sala de aula, num táxi, ou num gabinete prescreve
ser vedado o fumo, são normas incompletas, ou, pelo menos, uma
expressão incompleta de normas eventualmente completas (podem
— como é normalmente o caso — apenas transcrever o comando
proibitivo). Já quando nos transportes coletivos urbanos se lê
342
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

"sujeita-se a pesadas multas ao Estado quem não usar título de


transporte válido" estamos perante a ameaça de uma sanção, mas
ainda pouco precisa. A norma seria, pois, semi-completa. Por
vezes, nos mesmos dísticos aparece o montante, pelo menos o
montante mínimo. É o que sucede para as multas anunciadas por
cartazes idênticos nos comboios — prescreve-se como multa, por
exemplo, o dobro do valor do bilhete, num mínimo de multa de x.
Aí a norma está completa. Dizer o montante exato, além de
exagero, seria prescindir de todo o poder de determinação
concreta da sanção pelo julgador competente ...
Como se vê, quando o Código Penal prescreve penas para
crimes, facilmente se deteta no texto dos seus artigos a hipótese (ou
previsão) e a respetiva estatuição (ou sanção). Mas quando se nos
dão legalmente definições, temos que esperar pelas normas que
apliquem tais definições para ficarmos a saber do alcance e
implicações da norma definitória, que funciona assim um tanto
como hipótese (embora a sua estatuição — pode figurar-se — seja:
considera como x — o conceito — a situação y — a hipótese).
As normas — temo-lo visto — não se aplicam senão muito
raramente a todos. Todos somos, por princípio e pelo valor
superior da Igualdade, iguais perante a Lei, a lei que se nos aplica
concretamente. Embora a comunicação social nos traga, por vezes,
situações noutras latitudes (não conhecemos os pormenores,
apenas as notícias) de discriminação deste ou daquele, destes ou
daqueles, e até determinada por autoridades. E eventualmente
determinada pelas leis (obviamente leis injustas).
Cada lei, cada norma, tem um âmbito pessoal de alcance
mais ou menos delimitável, como sabemos. Um dos aspetos
significativos de tal situação (e que já algo vimos, sob outro prisma,
quando falamos de normas de estatuição material ou jurídica) é o
facto de certas normas terem como destinatários todos os sujeitos
de direito, para resolução direta dos seus problemas jurídicos
(normas diretas), enquanto outras apenas visam resolver questões já
343
Paulo Ferreira da Cunha

de si jurídicas, tendo, por isso, aplicabilidade indireta (normas


indiretas).
Umas vezes este carácter indireto regula a aplicação da lei
no tempo, ou seja, o âmbito temporal da aplicabilidade. Mas,
noutros casos, trata-se de puras normas de transferência — normas
que dizem qual a regra a aplicar. Tais os casos das normas de
conflitos (desde logo do Direito Internacional Privado), e as
remissões, presunções e ficções. São também deste tipo as normas
("remissivas") negativas, as quais, porém, proíbem a remissão,
interditam a aplicação de um certo regime aparentemente aplicável.

11.Objetivos da categorização ensaiada


Não terminámos, obviamente, o jamais encerrável
problema da teoria da classificação das normas; mas, na
complexidade inegável da questão, e dada a extensão não irrazoável
que nos propúnhamos conferir ao tema, esperamos sobretudo
poder alcançar cinco objetivos: 1) não ter simplificado
abusivamente o que é vasto e não linear; 2) não ter complicado,
pela via da banalização, tornando o tema árido e apenas apto à
memorização; 3) ter sugerido a relacionação da matéria com
diversas outras, do maior interesse; 4) dar uma panorâmica geral
das questões e da sua razão de ser; 5) fornecer os instrumentos
teóricos imprescindíveis a uma consciente e raciocinada aplicação
prática, que saiba as fraquezas e forças do seu instrumentarium
conceitual.

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