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5. Dimensões e funções do Direito: aceções, valores, princípios e fins do Direito.

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Aceções do termo “Direito”

 A palavra “Direito” pode, e é, ser usada em múltiplos sentidos.

 Uma entidade em ação, vivente em situações correntes, problemas atuais, discussões entre correntes.

Principais aceções:

1. Sentido normativo: corpo de normas, texto de leis e regras em geral, realidade do corpus iuris.

2. Sentido subjetivo: direitos, pretensões, posições subjetivas pessoais dos entes de Direito. Possibilidade de
agir individual ou coletivamente, em princípio com base no corpus iuris (sentido anterior).

3. Sentido objetivo: conteúdo do direito subjetivo. Classicamente a própria coisa justa (ipsa res iusta). Na
compra e venda o preço é a coisa vendida, por exemplo.

4. Sentido topológico: os lugares da justiça, especialmente os tribunais.

5. Sentido epistemológico: o estudo, o corpo de saberes, o Direito enquanto disciplina ou episteme.

6. Sentido patrimonial: o suum de cada um, e, mais concretamente, os bens de cada um.

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I – Dimensões e funções do Direito
1. Dimensão Jurídica – estranheza e ficção do mundo jurídico

• “É, antes de mais, evidente que a “dimensão jurídica”, qual “quinta dimensão”, constitui muitas vezes um reino
fantástico, de inusitados acontecimentos e factos. Para o Direito (em Portugal: noutros países não será bem assim),
os ovos e a lã são “frutos” (assim como os juros, aliás), é impossível alugar casas (só se arrendam, porque são
imóveis), o furto e o roubo são entidades diferentes 8este último implica violência) etc. Ao nível da teoria, o mundo
é “diferente”. Mas também no plano prático: todos sabemos que, se o mundo do crime é um universo marginal
com regras próprias, também a vida “normal” de quem venha a (culposa ou inocentemente) ser apanhado pelas
malhas da lei, se torna num nada lúcido e aprazível pesadelo. Mais ainda, o homo juridicus ideal, que soubesse
todas as leis regulamentos e ordens individuais, deveria por certo viver atormentado em permanência com o seu
cumprimento, em plena insanidade mental. Goethe, que era jurista de formação, apercebeu-se da impossibilidade,
já no seu tempo, de conhecer todas as leis… Terá mesmo dito que, se tivéssemos que conhecer todas as leis, não
restaria tempo para as violar. Disse-o no séc. XVIII. Imagine-se o que seria agora, com a permanente proliferação de
comandos de toda a ordem!”

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• “Todos sabemos como a rotação da máquina do mundo acaba por depender das pequenas inovações, que
não poucas vezes serão pelo menos de duvidosa conformidade jurídica. Há, em vários países, níveis de
conformidade e desconformidade jurídica: por exemplo, no Brasil, fala-se do “meio proibido” de “leis que
não pegam”, etc.. E em algumas ordens jurídicas começa a reconhecer-se que há pelo menos alguns grupos
sociais menos integrados no “direito do asfalto”, como diria Boaventura Sousa Santos, aos quais não pode
ser exigida a pressuposição do conhecimento cabal da lei… Começa-se por, de algum modo, tolerar a
ignorantia legis aos povos da América, mas poderá vir a alargar-se esse grupo. O que também acaba por ser
reconhecimento da falência de um ideal de cidadania. Precisamos ponderar todas estas questões.” (PFC, pp.
161-162)

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2. Da Dimensão Jurídica – habitualidade e realidade

• “Não é, todavia, esse reino jurídico de quase fantasia aquele que procuramos observar. É o mundo jurídico
normal. E este, encarado sob o olhar desarmado dos profanos e dos não-especialistas (já o vimos),
apresenta-se-nos sob diversas facetas, múltiplos ângulos, sem, contudo, se diluir no que radicalmente não é.
Ninguém confunde, apesar e tudo, o Direito com Medicina ou Engenharia. E mesmo a diferença entre um
juiz e um sacerdote, um deputado e um causídico, um moralista e jurisconsulto teórico, se revela nada
embaraçante e muito clara para o comum das pessoas.”

• “Vimos que a pluralidade de visões sobre o Direito comungava numa unidade. Uma das explicações para tal
é a sua tridimensionalidade fenoménica e funcional. Que hoje já não é tão claramente trina, mas começou
por sê-lo.” (PFC, p. 162)

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3. Tridimensionalidade fenoménica e funcional do Direito

• “Enquanto fenómeno, o Direito é facto, valor e norma. É as três coisas e cada uma delas. Avançou-se mais
tarde um quarto elemento fenoménico, mas diferente conforme os autores (fala de tretadimensionalidade
Paulo Lopo Saraiva): num caso, remetendo para a Justiça (que, contudo, parece mais valorativo que
propriamente fenoménico), e noutro caso (que, esse sim, é de índole fenoménica) para o facto de que o
Direito será sempre texto – oral e escrito (devemos essa luz a José Calvo Gonzáles). Assim (afastandoo
elemento de Justiça não porque ela não seja importantíssima, mas pelo facto de que não parece
sistematicamente aqui enquadra-se), o Direito seria norma, facto, valor e texto. Contudo, o texto é um
veículo, um suporte (um meio), dos outros três elementos, pelo que, uma vez compreendido isto, podemos
tranquilamente continuar a falar em trifuncionalidade. Quem elevou esta teoria trifuncional, burilando-a e
universalizando-a com genialidade, à posição de mega teoria, foi o brasileiro Miguel Reale.”

• “Exerce, com efeito, o mundo jurídico fundamentalmente três funções, as quais, no fundo, são os meios
metodológicos – o que é já uma tautologia – para as funções-fins parciais referidas: liberdade, paz social,
ordenação, hierarquização, sentido do mundo, etc. Essas funções são as de medir, dirigir e decidir.

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• “Na perspetiva fenoménica, o Direito é (talvez até antes de tudo o mais) um facto. É uma realidade social,
cultural e espiritual, como sabemos. Mas não é uma pura construção abstrata da mente humana. Radica em
factos reais, naturais e/ou humanos, e cria também factos. No fundo, liga factos “não tratados
juridicamente” a factos com consequências (ou que são consequências) jurídicas. Como o rei Midas vertia
em oiro aquilo em que sucedia tocar, transforma o Direito em matéria jurídica aquilo em que mexe. Esta
metáfora de Kelsen continua plenamente válida.”

• “O Direito é um facto, lida com factos, cria factos, pressupõe factos.”

• “Ao conferir ao mundo dos factos um sentido, o jurídico é valor. Mede, valora, com um diapasão axiológico.
Vimos, porém, que o Direito, tal como o encaramos, deve ser defendido na sua especificidade e, portanto,
os valores de que curamos são os da liberdade, igualdade, paz, segurança, ordem, etc., subordinados ao
valor-fim Justiça. É com vista a esse fim e na medida desse valor que o Direito “trata” os dados, os factos.”

• “Pode parecer que a questão é banal. Mas tem muita importância prática. Desde logo porque, em regra (são
raras e determinadas as exceções), o Supremo Tribunal de Justiça só cura de matéria de direito e não de
facto. Por isso é muito importante saber o que se enquadra numa e noutra das categorias. Por exemplo: a
equidade é questão de facto ou de direito?”
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• “Falamos aqui ainda de valores de forma tópica e não organizada. Seguindo a lição da Constituição
espanhola, que (ainda que não com perfeição total) os organizou, em 1978, haverá valores jurídico-políticos
superiores (Liberdade, Igualdade e Justiça ou, numa versão mais francesa e mais axiologicamente elevada,
Liberdade, Igualdade, Fraternidade), sendo que a Paz, a Segurança, a Ordem, etc., acabariam por ser mais
princípios ou valores não superiores. A Paz, como se sabe, é obra da Justiça (não haverá nunca Paz se não
reinar a Justiça: veja-se o que ocorre, a prazo, sempre que os vencidos numa guerra são humilhados,
ofendidos, aniquilados, violados, espoliados – e tal parece ser frequente). Assim como cremos que a
segurança e a ordem só cabalmente triunfam num ambiente pelo menos mínimo de Justiça.”

• “A norma é o mais conhecido aspeto do Direito. Depois da análise dos factos e da sua valoração, surgirá,
naturalmente a norma, que é escrita, nos nossos dias. Que o Direito tem uma existência sobretudo
normativa provam-no os milhares e milhões de normas que todos os dias saem nos diários oficiais de todos
os países, e a invocação de tais normas, aos milhões e milhões nos pleitos de todos os Estados do mundo”
(PFC, pp. 162-164)

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4. As funções jurídicas de avaliar, dirigir e decidir

• “Como sabemos, Montesquieu via a lei enquanto relação. É esta uma perspetiva de grande fôlego teórico. E
Condillac, por seu turno, afirmava a identidade entre relacionar e medir. De facto, na medida em que
procura relações (e as rege, regula), o Direito frequentemente mede. E medir é uma forma de conhecer e
avaliar.”

• “Além de avaliar, há que estabelecer regras e contextos, ou seja, ordenar: recomendar ou impor, seja por
permissão proibição, etc.”

• “Finalmente o Direito tem de decidir. Não apenas entre as pretensões de querelantes que vão a um juiz,
cada um querendo fazer valer as suas razões, como nos atos administrativos em que o funcionário (alto ou
baixo) da Administração Pública tem de optar por uma ou outra solução, ainda que seja apenas carimbar ou
não carimbar um documento.”

• “Em correlação com estas dimensões da ação jurídica não olvidemos que o Direito, analisado a partir do
célebre e profundo brocardo de Ulpiano constans et perpetua… é uma arte de atribuição, concreta, com
rigor, para a Justiça.” (PFC, pp. 164-165)

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II – Valores, Princípios e Fins do Direito
1. A Justiça: fundamento, princípio e fim do Direito

• “Como temos vindo a observar a Justiça é, ao mesmo tempo, princípio (ou fundamento) do Direito e sua
finalidade ou fim. Além disso, é ainda valor e virtude. Porque o Homem é livre, racional e capaz de Justiça há
Direito, tem de haver Direito; e há-o e tem de havê-lo para que seja feita Justiça. O Direito é objeto da
Justiça e caminho para ela.”

• “A Justiça é, pois, o alfa e o ómega do Direito: o seu pressuposto a sua razão de ser (…)

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II – Justiça: Valor, Princípio e Fim do Direito

• “Pela palavra Justiça se designam várias realidade, com lugares diferentes numa análise anatómica e
fisiológica do Direito, como vimos. Ela pode ser Valor e Virtude (no plano ético) e valor jurídico-político
superior, com sede nas Constituições, pode ser princípio, fim, etc.. Nem sempre se fala da mesma coisa
quando se invoca a Justiça. É, afinal, uma deusa proteiforme.”

• “Analisemos agora os princípios e fins mais concretos do Direito. Estes últimos são finalidades parciais ou
instrumentais da Justiça: os fins da segurança, do equilíbrio (isonomia), da ordem, da paz social, etc., etc. Os
primeiros, mais complexos ainda, revelam-se problemáticos na definição do seu próprio elenco, nas relações
entre si, etc.”

• “Ao contrário do que sucedia com as funções-meios do Direito, muito estilizadas e globais, os princípios
jurídicos tendem a concretizar-se um tanto mais. E para isto terá contribuído o Direito Internacional Público,
que, à falta de legislação comum entre os Estados (é até chocante ver e ouvir na televisão falar em “lei
internacional”: qual o Parlamento Mundial? Qual o Governo universal?), quando é chamado a decidir dos
litígios entre estes, com frequência apela, para as suas concretas decisões, para tais conceções supremas de

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juridicidade. E certos direitos nacionais, como o brasileiro (na lei de Introdução ao Código Civil, art.º 4.º),
preveem até o recurso aos princípios gerais do Direito em caso de integração de lacunas.”

• “Há, contudo, alguma divergência – muito natural, aliás – a propósito de que possam e de quais possam ser
os ditos princípios. E também há divergências quanto aos fins.”

• “Contudo, os grandes autores dão em geral sínteses de grande valia. É o caso de Michel Villey, no seu
Manual de Filosofia do Direito:
“O Direito não persegue a utilidade, o bem-estar dos homens, a sua segurança, o seu
enriquecimento, a ordem, o progresso, o crescimento; pelo menos tal não é o seu objeto próximo,
direto, imediato. Distinguiremos a arte do Direito da Política e da Economia. O Direito é medida da
partilha dos bens (…), o papel do Direito é o de atribuir a cada um o que é seu.”
Essa atribuição, a constante e perpétua vontade de fazer essa atribuição, é a Justiça. Parece que
andamos em círculos, mas não importa muito, se sempre encontrarmos a Justiça.
(PFC, pp. 167-168)

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3. Princípios doutrinais e princípios essenciais ou fundamentais

 Os princípios apresentam-se como sendo duas coisas distintas:

1. São “decantações dogmáticas, doutrinais, generalizações ou similares que, a partir de normas, se


produzem intelectualmente pelos labores da doutrina.

2. São “grandes ideias-força carregadas de juridicidade que vêm ser encarnadas, sob diferentes formas, em
regras concretas, dependendo do tempo e lugar o seu modus circunstancial, mas referindo-se sempre a
tal inspiração básica.

 Os primeiros, só têm interesse de organização metodológica, sistematização, e importância didática.

 Os segundos, são os que realmente polarizam grandes ideias de Justiça, para além da decantação a partir
das regras concretas, e, pelo contrário, funcionando como inspiração e imposição do alto da sua auctoritas
axiológica superior.

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O problema:

 Abuso de invocação de princípios: dignidade da pessoa humana e necessidade, adequação e


proporcionalidade;

 Ativismo judicial despeitador (separação de poderes).

 A origem dos princípios: lógico-construtiva e comparatística, jusnaturalismos.

 “O exagerado uso dos princípios, porém, não anula a necessidade de os ter em alta conta na hermenêutica
jurídica. Apenas, aqui como em tantos outros assuntos , se requer uma aplicação segundo o bom senso. Não
um bom senso mitificado como meias-tintas ou mediocridade, mas um bom senso que compreenda
realmente as realidades em presença e atue com prudência. A prudência é, com a Justiça, alta virtude dos
Juristas.” (PFC, p. 169)

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• Retemos, porém, os seguintes princípios fundamentais na ordem jurídica portuguesa:

“Vigora entre nós um princípio geral de Justiça e o princípio geral positivo-regulador do abuso do direito (cf.
Art.º 334. CC). Em síntese, talvez se possam referir como princípios fundamentais de Direito (Natural, mas
positivado – tendo, por isso aplicação, e aplicação superior: e muito menos sujeita a discussão), os seguintes
(agrupados por ramos jurídicos):

1. Direito Constitucional: “antes de mais, o mega princípio do respeito pela dignidade da Pessoa Humana; os
princípios do Estado Constitucional (Estado de Direito democrático, social e cultural, etc.) neles ressaltando,
desde logo, os princípios constitucionais liberais (essenciais) – direitos fundamentais (liberdades e
garantias); separação de poderes e equilíbrio dos poderes (não concentração tendencial do poder nos
mesmos titulares, órgão, etc. e independência do poder judicial); princípio do Estado Social (donde resulta
o direito a um mínimo de subsistência digna, e princípios de garantia de uma saúde, segurança social,
educação, justiça, etc. consentâneas com o modelo social europeu).

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2. Direito Administrativo e Fiscal: “legalidade dos atos da administração (atuação da Administração Pública,
com vista ao interesse público, dentro do quadro da lei); contenciosidade (recorribilidade ao poder
judicial) dos atos da administração.”

3. No Direito Fiscal: “além dos princípios da legalidade, igualdade (de todos perante a lei), etc.,
fundamentalmente os da proporcionalidade (não cobrança de impostos ou taxas senão na medida das
necessidades públicas) e da não retroatividade do lançamento de tributos (todavia questionados).”

4. Direito Penal: “legalidade e tipicidade da incriminação e da punição (insusceptibilidade de haver crime ou


pena sem a existência de prévia lei incriminadora; insusceptibilidade de incriminação ou penalização
retroativa); dependência da pena da culpa (não pode haver pena sem culpa, sendo esta a medida
daquela).”

5. Direitos Processuais: “princípio da jurisdição (possibilidade de tutela dos direitos, recurso ao tribunal,
obrigação do juiz decidir); princípios da audiência das partes em litígio; princípio do recurso (para outras
instâncias); princípio do caso julgado; princípio da independência do poder judicial.”

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6. Direito Social e do Trabalho: “o carácter isonómico do Direito social (de proteção do mais fraco, que nunca terá
o sentido de o tornar o mais forte, desequilibrando de novo, mas de parificar as partes, permitindo-lhes uma
autêntica liberdade contratual); o princípio coletivo (vários sujeitos contratantes, tipificação contratual, carácter
normativo – geral – do conteúdo dos contratos coletivos); o princípio da colaboração ou participação dos
trabalhadores na vida empresarial; o princípio da liberdade sindical; o princípio da humanização do trabalho,
designadamente com o direito ao salário, ao horário de trabalho, a pausas, a férias, a aposentação ou reforma,
etc..”

7. Direito Privado: “os princípios da personalidade e capacidade jurídica e direitos de personalidade como
próprios de todas as Pessoas; princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual, princípio da
responsabilidade civil, princípio da boa fé como pressuposto de toda a conduta jurídica, e contratual em
particular; princípio do cumprimento das obrigações assumidas: pacta sunt servanda; princípio do equilíbrio
contratual (proscrição dos pactos leoninos, enriquecimentos sem causa, etc.); princípios da proscrição dos
negócios impossíveis, contrários à lei, aos bons costumes, à ordem pública, etc.; princípios da proteção da
formalização do crédito; princípios do reconhecimento e proteção da propriedade privada a par de outras
formas de propriedade constitucionalmente previstas; princípio da autonomia da família, sua liberdade de
constituição, etc.; princípio da igualdade e não discriminação jurídica entre os cônjuges, etc.; princípios da
sucessão por morte, etc.”

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