Você está na página 1de 8

Retórica

Uma metodologia para o Direito?

Dario Alberto de Andrade Filho

Sumário
1. Introdução. 2. Vínculos entre Direito e
Retórica. 3. A natureza do Direito. 4. Um méto-
do para o Direito. 5. Conclusão.

1. Introdução
Relegada a um segundo plano durante
aproximadamente trezentos anos e princi-
palmente a partir do início do século XX, a
Retórica foi retomada como assunto sério
somente após a Segunda Guerra Mundial.
No caso específico do Direito – a Retórica
ou aquela corrente mais conhecida como
Nova Retórica –, as principais pesquisas
foram levadas a cabo pelo polonês naturali-
zado belga Chaim Perelman. Os trabalhos
desse autor foram uma reação contra o Po-
sitivismo Jurídico cuja tradição, sob varia-
das formas, remonta, principalmente, ao
Código Civil Napoleônico de 1804.
2. Vínculos entre Direito e Retórica
As origens da Retórica remontam às ci-
dades-estado gregas e, em especial, àqueles
que foram chamados de sofistas. Apesar da
má fama que acabaram por receber por par-
te de Platão e da posteridade, eram figuras
essenciais em uma sociedade que orbitava
Dario Alberto de Andrade Filho é Consul- em torno do debate democrático.
tor Legislativo do Senado Federal. Bacharel em Aristóteles, por exemplo, já percebera
Direito (AEUDF) e Licenciado em História que, para as questões que envolviam con-
(UNESP). trovérsias – isto é, discussões que envolvi-
Brasília a. 43 n. 172 out./dez. 2006 195
am valores –, não seria aplicável a lógica “sobre essa questão [o caráter científi-
formal. Para esses casos, seria utilizável a co do Direito] encontramos todas as
chamada lógica dialética ou retórica. respostas possíveis e imagináveis. Tal
O Direito trata, sobretudo, de questões ocorre porque, como bem evidencia a
em que valores morais, éticos e legais estão lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr., o
envolvidos. A Retórica pois, seria, em prin- vocábulo ‘ciência’ não é unívoco. Ape-
cípio, a metodologia mais adequada ao Di- sar de com ele se designar um tipo es-
reito, afinal de contas, esse campo do co- pecífico de conhecimento, não há um
nhecimento essencialmente trata de contro- critério único que determine sua ex-
vérsias sobre valores. O trabalho do advo- tensão, natureza e caracteres, devido
gado é, em grande parte, pontuado pelo ob- ao fato de que os vários critérios têm
jetivo de justificar as suas teses e enfraque- fundamentos filosóficos que extrava-
cer as idéias da outra parte. sam a prática científica. Além disso,
Ademais, há particularidades que dife- as modernas disputas sobre tal termo
renciam o Direito tanto das ciências natu- estão intimamente ligadas à metodo-
rais quanto das demais ciências humanas. logia”.
O ponto principal que diferencia o Di- Diniz (1996, p. 3) aponta, ainda, que a
reito das ciências humanas é a Decisão. Uma origem da dificuldade reside em
questão sociológica ou histórica, por exem- “... encontrar uma definição única,
plo, é continuamente discutida e muitos são concisa e universal que abranja as
os casos em que não se encontra uma solu- inúmeras manifestações em que se
ção definitiva. É claro que essas discussões pode apresentar o direito e que, assi-
são continuamente aprimoradas e se tornam nalando as essências que fazem dele
mais sofisticadas. Mas não existe um mo- uma realidade diversa das demais,
mento em que uma discussão possa ser purifique-o de notas contingentes, que
dada como encerrada. velam sua verdadeira natureza”.
O Direito, porém, exige uma Decisão, Daí, a conclusão da autora é que
uma solução para um determinado caso “Não há entre os autores um con-
concreto. Dessa forma, precisa alcançar uma senso sobre o conceito de direito. Im-
solução definitiva para uma demanda. A possível foi que se pusessem de acor-
seguir examinar-se-á, com mais cuidado, a do sobre uma fórmula única. Real-
especificidade do Direito como ciência e por mente o direito tem escapado aos
que demanda uma metodologia própria. marcos de qualquer definição uni-
Além disso, será feito um breve histórico das versal, dada a variedade de elemen-
duas correntes positivistas mais expressi- tos e de particularidades que apre-
vas: a Escola da Exegese – século XIX – e o senta; não é fácil discernir o míni-
pensamento de Hans Kelsen – século XX. Para mo necessário de notas sobre as
o Direito, por fim, conclui-se que a Retórica se quais se deve fundar seu conceito”
mostra como a metodologia mais aplicável. (DINIZ, 1996, p. 4).
Não importam aqui as demais análises
3. A natureza do Direito da obra de Maria Helena Diniz (1996). Para
este trabalho, o importante é averiguar que,
Não é exagero dizer que existe uma per- na obra citada – A Ciência Jurídica –, pode-
cepção clara das particularidades do Direi- mos encontrar uma síntese das dificulda-
to como ciência. Maria Helena Diniz (1996, des encontradas pelo estudioso do Direito.
p. 1), por exemplo, aventurou-se pelo tema Se de um lado não existem maiores dificul-
em seu A Ciência Jurídica. Nessa obra, ela dades em verificar as particulares do Direi-
afirma que to, por outro há enormes dificuldades em
196 Revista de Informação Legislativa
compreender, afinal de contas, quais são as Daquilo que Bobbio (2001) afirma, o im-
“regras” do Direito. portante é observar que o Direito cumpre
Uma primeira observação a se fazer é a uma função social de normatizar as rela-
diferenciação entre ciências naturais e ciên- ções humanas. O Direito é, portanto, um
cias humanas. Vale aqui o que diz Luis conjunto de técnicas desenvolvidas pelo
Antonio Nunes (1996, p. 14): Homem e postas a serviço da sociedade para
“Nas ciências humanas, busca-se possibilitar a resolução de conflitos entre os
igualmente explicação para os fatos e seus membros.
suas ligações. Contudo, nelas apare- Resolver conflitos, eis a chave para o
ce o homem com suas ações como ob- entendimento do Direito. Pode-se dizer mais:
jeto de investigação. As ações dos ho- o objetivo do Direito é obter uma “Decisão”.
mens e suas intrincadas relações in- O Direito, se não oferece uma decisão para
terpessoais, que trazem resultados um caso, deixa de cumprir a sua função so-
imprevisíveis, obrigam à introdução cial. Da mesma forma, os Tribunais que pos-
do ato de compreender junto ao de tergam indefinidamente uma decisão agem
explicar. É necessário, nas ciências da mesma forma como se não oferecessem
humanas, captar o sentido dos fenô- uma.
menos humanos; é preciso compreen- Direito que demora não é Direito. Isso, é
dê-lo, portanto, numa acepção valo- claro, não é pouco. As sociedades só se per-
rativa”. mitem existir, de alguma forma, se as nor-
Apesar de muitas particularidades das mas para a convivência social forem conhe-
ciências humanas serem as mesmas do Di- cidas e aceitas.
reito, este trabalho parte do princípio de que, Podemos, assim, concordar com Chaim
em razão de suas peculiaridades, o Direito Perelman (1998, p. 13) quando ele observa
tem métodos diferentes tanto das chamadas que
ciências naturais, quanto das demais ciên- “a conclusão que, desde já, tiramos
cias humanas. deste desenvolvimento é que, seja qual
Norberto Bobbio (2001, p. 25) observa, for a técnica de raciocínio utilizada
por exemplo, que em direito, este não pode desinteres-
“há, indubitavelmente, um ponto de sar-se da reação das consciências di-
vista normativo no estudo e na com- ante da iniqüidade do resultado ao
preensão da história humana: é o pon- qual tal raciocínio conduziria. Pelo
to de vista segundo o qual as civiliza- contrário, o esforço dos juristas, em
ções são caracterizadas pelos ordena- todos os níveis e em toda a história do
mentos de regras nas quais as ações direito, procurou conciliar as técnicas
dos homens que as criaram estão con- do raciocínio jurídico com a justiça ou,
tidas. A história se apresenta então ao menos, a aceitabilidade social da
como um complexo de ordenamentos decisão”.
normativos que se sucedem, se sobre- As decisões jurídicas, portanto, não exis-
põem, se integram. Estudar uma civi- tem desligadas da realidade que as cercam.
lização do ponto de vista normativo Se um juiz decide A ou B, ele considera, em
significa, afinal, perguntar-se quais sua sentença, as implicações sociais que
ações foram, naquela determinada essa decisão terá. Dessa forma, as “regras”
sociedade, proibidas, quais ordena- do Direito são diferentes das “regras” joga-
das, quais permitidas; significa, em das por outras ciências.
outras palavras, descobrir a direção ou A pergunta, então, é: quais seriam essas
as direções fundamentais em que se regras? Qual seria o método do Direito? Uma
conduzia a vida de cada indivíduo”. possível chave para essa discussão parece
Brasília a. 43 n. 172 out./dez. 2006 197
encontrar-se nos trabalhos de Chaim diante de um caso em que o resultado da
Perelman. Esse autor, em obras como Lógica sentença possa ser a iniqüidade? Perelman
Jurídica, retoma uma tradição intelectual que (1998, p. 83) responde a essa questão ao afir-
remonta a Aristóteles. mar que
Perelman observa que Aristóteles afir- “... quando a situação jurídica torna-
mou, em especial na obra Organon, que exis- se insuportável, e a reforma por via
tem dois tipos de raciocínios ou, melhor di- legislativa afigura-se muito difícil, se
zendo, cada tipo de ciência – em razão de não impossível, acontece-lhe, para re-
sua natureza – carece de um dos dois tipos mediá-la, recorrer a mecanismos es-
de raciocínios existentes. O primeiro tipo, pecificamente jurídicos, tais como o
chamado de analítico, são “... aqueles que, recurso às presunções jurisprudenci-
partindo de premissas necessárias, ou pelo ais irrefragáveis e até, em casos extre-
menos indiscutivelmente verdadeiras, re- mos, à ficção”.
dundam, graças a inferências válidas, em Assim, mais uma vez, podemos ver que
conclusões igualmente necessárias ou váli- a lógica formal ou analítica é inaplicável ao
das” (PERELMAN, 1998, p. 1). O Direito, Direito. Não é verdadeiro, como ensinam
todavia, utiliza-se do segundo tipo de raci- alguns livros de Introdução ao Direito, que
ocínio, aquele que Aristóteles chama de di- a lei é a premissa maior; o caso concreto, a
alético. Novamente, recorremos a Perelman, premissa menor; e conclusão é a decisão.
que define esse tipo de raciocínio como Como observa Perelman (1998, p. 33),
aquele que “[diz] respeito aos meios de durante muito tempo se imaginou que
persuadir e de convencer pelo discurso, “uma vez estabelecidos os fatos, bas-
de criticar as teses do adversário, de de- tava formular o silogismo jurídico,
fender e justificar as suas próprias, va- cuja maior devia ser fornecida pela
lendo-se de argumentos mais ou menos regra de direito apropriada, a menor
fortes”. (PERELMAN, 1998, p. 2). pela constatação de que as condições
Como dito acima, o Direito se diferencia previstas na regra haviam sido pre-
das ciências em geral. Antes que se avance, enchidas, sendo a decisão dada pela
no entanto, deve-se observar em que o Direi- conclusão do silogismo”.
to se diferencia das demais ciências huma- Um exemplo claro é o ocorrido com o art.
nas. Se o Direito e essas ciências estão sub- 192 da Constituição Federal, antes de ser
metidos ao método dialético, existe uma di- parcialmente revogado pela Emenda Cons-
ferença fundamental. Enquanto nas Ciênci- titucional no 40. Se aplicada, a norma ema-
as Humanas é impossível se alcançar uma nada do texto constitucional que limitava o
solução definitiva, apenas soluções provi- percentual de juros terminaria por tornar
sórias, o Direito precisa, para ser legítimo inviável a atividade econômica nacional.
perante os olhos da sociedade, oferecer so- Qual a solução encontrada? O Supremo
luções definitivas para um conflito social. Tribunal Federal decidiu em 1989, liminar-
Essa solução definitiva é aquilo que anteri- mente, e no mérito, em 1991, que a eficácia
ormente qualificamos como decisão. do parágrafo 3o do art. 192 estaria a depen-
Evidentemente, se o Direito se legitima der da edição de norma regulamentadora.
com a decisão, essa precisa-se legitimar de A Decisão do Supremo Tribunal Federal
alguma forma perante a sociedade. Essa legi- foi não propriamente uma decisão técnica –
timação da decisão se dá quando ela é aceita isto é, puramente baseada no Direito ou no
como correta, justa, inquestionável e emitida texto legal – mas uma decisão socialmente
por uma autoridade reconhecida como tal. aceitável. Uma decisão técnica, puramente
Aí se coloca, certamente, a questão da voltada ao texto constitucional, seria a de
justiça. O que faz um juiz quando é posto aplicar de imediato a norma constitucional.
198 Revista de Informação Legislativa
Portalis (apud PERELMAN, 1998, p. 24), zão que, voltando-se para si mesma,
o jurista francês do século XIX, em seus co- investiga, para descobrir na própria
mentários ao Código Napoleônico, dizia consciência, os princípios e as leis
que universais”.
“é impossível para o legislador pre- Como reação ao Jusnaturalismo, há duas
ver tudo... Um sem-número de coisas escolas jurídicas. A primeira é a Escola His-
são... necessariamente deixadas ao tórica e a segunda é a Escola da Exegese. A
império do uso, à discussão dos ho- primeira delas não nos interessa no presen-
mens instruídos, à arbitragem dos ju- te trabalho. A segunda, todavia, sob diver-
ízes... na falta de texto preciso sobre sas formas, tem sido a principal escola jurí-
cada matéria, um uso constante e bem dica ao longo dos últimos 200 anos.
estabelecido, uma seqüência ininter- A Escola da Exegese surge com a pro-
rupta de decisões semelhantes, uma mulgação do Código Civil Napoleônico em
opinião ou uma máxima acatada têm 1804. Esse Código teve grande significân-
força de lei...”. cia histórica ao unificar o Direito Civil Fran-
O que esse exemplo significa? Significa cês. A partir de sua existência, a fonte prin-
que o puro silogismo não é aplicável ao Di- cipal para os juristas tornou-se a lei, ou,
reito. Para que o silogismo judiciário fosse melhor dizendo, a intenção dos doutrina-
possível, seria necessário, nas palavras de dores dessa escola era reduzir o Direito ex-
Perelman (1998, p. 33), que clusivamente à lei. Além disso, considerava
“...o sistema de direito deveria ter to- que a lei seria um todo completo em que to-
das as propriedades exigidas de um das situações fáticas estariam previstas.
sistema formal, a um só tempo com- Dessa maneira, o juiz não se poderia deixar
pleto e coerente: seria necessário que, de emitir uma sentença, como dispunha o
para cada situação dependente da art. 4o do Código, a saber: “O juiz que se
competência do juiz, houvesse uma recusar a julgar sob pretexto de silêncio,
regra de direito aplicável, que não obscuridade ou insuficiência da lei, poderá
houvesse mais que uma, e que esta ser punido como culpado por denegação da
regra fosse isenta de toda ambigüida- justiça”.
de”. Fora isso, o início do século XIX é o mo-
mento em que as ciências naturais se legiti-
4. Um método para o Direito mam como forma de conhecimento. De acor-
do com Hespanha (1998, p. 174),
O direito, para ser aplicado, carece, pois, “a evolução das ciências naturais e a
de outros métodos, como será visto. Antes, sua elevação a modelo epistemológi-
porém, de seguirmos adiante, faremos um co lançaram a convicção de que todo
breve histórico das escolas que buscaram o saber válido se devia basear na ob-
métodos próprios e adequados para o Di- servação das coisas, da realidade em-
reito. pírica (‘posta’, ‘positiva’) (...) Este es-
A mais antiga escola do Direito é a Jus- pírito atingiu o saber jurídico a partir
naturalista, cujas raízes podem ser busca- das primeiras décadas do século XIX.
das na antiguidade. De acordo com Nunes Também ele, se quisesse merecer a dig-
(1996, p. 38), nidade de ciência, devia partir de coi-
“pode-se dizer, em linhas gerais, que sas positivas e não de argumentos de
essa escola é fundada no pressuposto autoridade (teológica ou doutoral) ou
de que existe uma lei natural, eterna e de especulações abstractas”.
imutável; ou, ainda, da natureza soci- De acordo com Nunes (1996, p. 40), “a
al do ser humano (...) é através da ra- função judicial teria, assim, uma concepção
Brasília a. 43 n. 172 out./dez. 2006 199
mecânica, como um processo lógico-dedu- chado”, isto é, seja possível encontrar solu-
tivo de subsunção do fato concreto à deter- ções dentro do sistema para todo problema
minação abstrata da lei”. que surja. De acordo com Perelman (1988,
Para o surgimento da Escola da Exege- p. 69), “se existirem obstáculos a essa assi-
se, além da influência reinante das ciências milação do direito a um sistema dedutivo, a
naturais, contribuiu, também, a Revolução saber, o silêncio, a obscuridade e a insufici-
Francesa. Essa, ao basear a sua criação le- ência da lei, a missão da doutrina será re-
gislativa na vontade do povo, tornava a lei mediá-los apresentando soluções ‘científi-
imutável e que apenas poderia ser alterada cas’ às dificuldades”.
mediante a vontade do povo. Nesse contex- Perelman (1998), é bom dizer, estabelece
to, seria inimaginável e indesejável a possi- uma periodização da Escola da Exegese.
bilidade de criação por parte do Juiz. As- Por essa classificação, a Escola entrou em
sim, o Código Napoleônico, apesar de pro- declínio a partir de 1900. Obviamente, essa
mulgado no Império, poderia ser com- periodização é arbitrária. A influência des-
preendido claramente como uma continua- sa Escola sobre os doutrinadores atuais do
ção daquilo que fora realizado pela Revolu- Direito ainda é grande. Muitos de seus con-
ção Francesa e, portanto, seria intocável. ceitos, alterados ou repensados, continuam
Hespanha (1998, p. 177) verifica que esses a ser utilizados.
dois fatores, a influência das ciências natu- A estrita vinculação do Direito à lei con-
rais e a Revolução Francesa, “contribuíram tinua, na primeira metade do século XX, com
para ... dar o ar de monumentos legislativos Hans Kelsen. Perelman(1998, p. 91) afirma
definitivos, cientificamente fundados e de- a respeito dele que
mocraticamente legitimados. Perante eles, “o positivismo de Hans Kelsen e de
não podiam valer quaisquer outras fontes sua escola apresenta o direito como
de direito”. um sistema hierarquizado de normas,
A idéia de vincular o Direito à lei não que difere de um sistema puramente
era, evidentemente, nova. Montesquieu formal pelo fato de a norma inferior
(1987, p. 176), por exemplo, defendia a tese não ser deduzida da norma superior
de que os juízes deveriam ser “a boca que mediante transformações puramente
pronuncia as palavras da lei; seres inani- formais, como na lógica ou nas mate-
mados que não lhe podem moderar nem a máticas, mas mediante a determina-
força, nem o rigor”. ção das condições segundo as quais
A Escola da Exegese, portanto, imagina- poderá ser autorizada a criação de
va que seria possível reduzir todo o Direito normas inferiores, dependendo a efi-
à lei, criando um sistema jurídico fechado e, cácia do sistema da adesão pressu-
importante, sem lacunas e capaz de resol- posta a uma norma fundamental, a
ver todos os problemas que lhe fossem apre- Grundnorm, que será a Constituição
sentados. original”.
A Escola da Exegese é caracterizada por A ambição da teoria Kelseniana era reti-
uma preocupação em tornar científico o Di- rar do Direito toda valoração. Assim, elimi-
reito. Como observa Perelman (1998, p. 69) nar-se-iam quaisquer referências à ética, à
a propósito da Escola da Exegese, “...sob a moral, à política ou à ideologia, por exem-
influência do racionalismo moderno, o di- plo. O Direito, de acordo com essa concep-
reito foi assimilado a um sistema dedutivo, ção, concentraria seus esforços em averiguar
nos moldes dos sistemas axiomáticos da a validade ou não de uma norma jurídica. A
geometria ou da aritmética”. concepção de Kelsen reinou inabalável até
Para a aplicação do método da Exegese o fim da Segunda Guerra Mundial. Uma das
ao Direito, é essencial que o sistema seja “fe- objeções mais fortes ao pensamento de
200 Revista de Informação Legislativa
Kelsen é que a Alemanha Nazista foi o exem- certo, o seu lugar. Mas esse não era
plo de que o Direito não se confunde com a o da ciência jurídica, mas sim o da
Lei. “O direito é a expressão não só da filosofia do direito ou da política do
vontade do legislador, mas dos valores direito”.
que este tem por missão promover, dentre Perelman (1998, p. 91) conclui que as
os quais figura em primeiro plano a justi- concepções modernas de Direito, isto é, aque-
ça” (PERELMAN, 1998, p. 95). las que foram criadas após a Segunda Guer-
Kelsen foi, porém, uma das fortes tenta- ra Mundial, são, essencialmente, tentativas
tivas de purificação do Direito. O objetivo de reagir contra o positivismo jurídico, tan-
do autor austríaco era depurar o Direito de to aquela concepção que ainda remete à Es-
quaisquer influências políticas, ideológi- cola da Exegese, quanto a sua versão mais
cas, morais ou sociais. De acordo com sofisticada, a de Hans Kelsen.
Kelsen, caberia ao jurista tão-somente pro- Perelman (1998, p. 138), quando afirma
duzir um discurso jurídico que não se isso, refere-se à sua própria trajetória inte-
deixasse contaminar por influências ex- lectual. Como ele próprio afirma,
trajurídicas. “.... após quase dois anos de trabalho,
Kelsen considerou o Direito como um [cheguei] à conclusão inesperada de
sistema especial de normas, cujo fundamen- que não havia lógica específica dos
to não estaria em outros sistemas normati- juízos de valor, mas que, nas áreas
vos como, por exemplo, a moral ou a reli- examinadas, bem como em todas
gião. Assim, uma norma jurídica não esta- aquelas em que se trata de opiniões
ria em vigor por ser moralmente aceitável controvertidas, quando se discute e
ou por ser legitimada pela religião, mas sim- delibera, recorre-se a técnicas de ar-
plesmente porque era uma norma jurídica gumentação. Estas têm sido analisa-
de acordo com o Direito já posto. Assim, uma das desde a antiguidade por todos
norma jurídica nova legitimar-se-ia em ra- que se interessavam pelo discurso que
zão de uma norma superior – a Constitui- visa persuadir e convencer e publica-
ção. Essa, por sua vez, legitimar-se-ia em ram obras intituladas Retóricas, Dialé-
virtude de uma norma hipotética fundamen- tica e Tópicos”.
tal que legitima a Constituição. Como anota
Hespanha (1998, p. 195), “uma norma des- 5. Conclusão
tas é auto-referencial, ou seja, aplica-se a si
mesma; e, com isso, legitima-se a si própria A Retórica, portanto, é o método utiliza-
e a todas as outras”. do quando não é possível o uso de lógica
Evidentemente o positivismo jurídico formal ou de técnicas que sejam unanime-
não se manteve o mesmo ao longo de du- mente admitidas. Os raciocínios retóricos
zentos anos. O importante é ressaltar, como são, pois, aqueles que visam a estabelecer
o faz Hespanha (1998, p. 175), que um consenso sobre temas que sejam objetos
“todas estas formas de positivismo de controvérsia ou ambigüidade.
têm em comum a recusa de quaisquer O Direito é, enfim, o terreno das contro-
formas de subjectivismo ou de mora- vérsias e a ambigüidade é própria do pro-
lismo. O saber jurídico deve cultivar cesso de construção jurídica. Desse modo, o
métodos objectivos e verificáveis, do método próprio ao Direito e as suas caracte-
gênero dos cultivados pelas ciências rísticas parece ser justamente o da Retórica.
‘duras’, deles devendo ser excluídas Nesse sentido, a Nova Retórica de Perelman
todas as considerações valorativas mostra-se, portanto, como um método que
(políticas, morais). Estes juízos de va- merece mais atenção na aplicação cotidia-
lor em matéria jurídica teriam, de- na do Direito.
Brasília a. 43 n. 172 out./dez. 2006 201
Referências MONTESQUIEU. O espírito das leis . São Paulo:
Saraiva, 1987.
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Bauru:
EDIPRO, 2001. NUNES, Luiz Antonio. Manual de introdução ao es-
tudo do direito. São Paulo: Saraiva, 1996.
DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 1996. PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica. São Paulo: M.
Fontes, 1998.
HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico
da cultura jurídica européia. 2. ed. Lisboa: Europa-
América, 1998.

202 Revista de Informação Legislativa

Você também pode gostar