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LENZA Pedro [et al.] OAB primeira fase esquematizado. - São


Paulo: Saraiva.  6ª ed. Saraiva. 2019.

Filosofia do Direito

Clodomiro Bannwart
Pós-Doutor em Filosofia. Graduado em Direito e em Filosofia. Professor do
Programa de Mestrado em Direito na Universidade Estadual de Londrina.
Professor no Saraiva Aprova.

Sumário
1. Matrizes do pensamento na Filosofia do Direito: 1.1. Filosofia e Direito: uma
relação de proximidade; 1.2. A contribuição da Filosofia ao Direito; 1.2.1. A
tradição judaica; 1.2.2. A tradição grega; 1.2.3. A tradição romana; 1.3. A
delimitação entre razão teórica e razão prática; 1.3.1. A razão teórica; 1.3.2. A
razão prática; 1.4. Nascimento da Filosofia e da Filosofia do Direito; 1.4.1. Razão
teórica; 1.4.1.1. Epistemologia; 1.4.1.2. Lógica, retórica e argumentação; 1.4.2.
Razão prática; 1.4.2.1. Política; 1.4.2.2. Ética; 1.4.2.3. Direito; 1.4.2.4. Razão
prática e tragédia; 1.5. No coração da ética: ensinamentos contemporâneos; 1.6.
Paradigmas filosóficos, jurídicos e sociológicos; 1.6.1. Paradigmas da razão
teórica; 1.6.1.1. Paradigma da essência; 1.6.1.2. Paradigma do sujeito; 1.6.1.3.
Paradigma da linguagem; 1.6.1.4. Síntese; 1.6.2. Paradigmas da razão prática;
1.6.2.1. Ética teleológica; 1.6.2.2. Ética teológica; 1.6.2.3. Moral deontológica;
1.6.2.4. Moral pós-convencional; 1.6.3. Paradigmas das teorias sociais; 1.6.3.1.
Paradigma da teleologia; 1.6.3.2. Paradigma da antropologia; 1.6.3.3. Paradigma
da filosofia da história; 1.6.3.4. Paradigma das sociedades complexas; 1.6.4.
Paradigmas do direito; 1.6.4.1. Jusnaturalismo; 1.6.4.2. Positivismo jurídico;
1.6.4.3. Pós-positivismo; 1.7. O nascimento da dicotomia entre legalidade e
legitimidade; 1.8. Teoria de Platão; 1.9. Teoria sofista; 1.10. Teoria de Aristóteles;
1.11. Teoria de Santo Agostinho; 1.11.1. A lei eterna; 1.11.2. A liberdade da
vontade; 1.12. Teoria de Tomás de Aquino – 2. Escolas do pensamento jurídico
ocidental: 2.1. Evolução histórica do conceito de direito natural; 2.2. Da teleologia
à antropologia: a ideia de contrato; 2.3. A lei natural: da natureza objetivada à
razão humana; 2.4. Teoria de Hugo Grócio; 2.5. Teoria de Hobbes; 2.6. Teoria de
Pufendorf; 2.7. Teoria de Locke; 2.8. Teoria de Rousseau; 2.9. Teoria de
Montesquieu; 2.10. Fundamentos históricos do positivismo jurídico; 2.10.1. Escola
histórica; 2.10.2. Escola da exegese; 2.11. Positivismo jurídico; 2.11.1.
Normativismo de Hans Kelsen; 2.11.2. A norma fundamental; 2.12. Carl Schmitt;
2.13. Realismo jurídico; 2.13.1. A teoria de Alf Ross; 2.14. Reações ao positivismo
jurídico; 2.14.1. Teoria do neokantismo; 2.14.2. Pensamento jusfilosófico brasileiro.
A teoria tridimensional do direito de Miguel Reale; 2.14.3. Gustav Radbruch; 2.15.
Variações do positivismo jurídico; 2.15.1. Herbert Hart; 2.15.2. Norberto Bobbio
– 3. Direito e moral: 3.1. Ética utilitarista; 3.1.1. John Stuart Mill; 3.2. Teoria de
Immanuel Kant; 3.3. Princípio universal do direito – 4. Direito: coação e
correção: 4.1. Direito e coação; 4.2. Direito e correção – 5. Direito e ciência: 5.1. A
ciência moderna; 5.2. Ciência do Direito como teoria da interpretação; 5.3. Crítica
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ao Direito como ciência e nova concepção de interpretação no; 5.3.1. Teoria da


jurisprudência dos interesses; 5.3.2. Escola do direito livre; 5.4. A lógica do
razoável; 5.5. Chaïm Perelman; 5.6. Racionalidade jurídica; 5.7. Hannah Arendt
– Referências.

■ 1. MATRIZES DO PENSAMENTO NA FILOSOFIA DO


DIREITO

■ 1.1. Filosofia e Direito: uma relação de proximidade


Para a compreensão da Filosofia do Direito, é fundamental notar a conexão entre a
Filosofia e o Direito, acrescida do modelo de sociedade que recepciona as ideias
filosóficas e as instituições jurídicas. A Filosofia é fruto de um contexto localizado
espacialmente e temporalmente, ao passo que o Direito é consolidado
institucionalmente em sociedades concretas.

A tarefa fundamental da Filosofia, ao longo da tradição Ocidental, foi a de servir de


reservatório conceitual explicativo às indagações colocadas pelo homem. A
matéria-prima da Filosofia é formada por conceitos, os quais permitem, mediante
atitude crítica e reflexiva, assegurar a inteligibilidade do mundo e aclarar como as coisas
são o que são (ser) e como poderiam ser (dever-ser). Sua natureza abstrata busca
compreender o mundo conceitualmente de forma desinteressada e pouco prática.
Responder a questões acerca do que é a verdade ou a justiça configura a pauta da
reflexão filosófica.
O Direito, por sua vez, possui um caráter prático, cuja aplicabilidade demanda sua
inserção em instituições sociais. A característica do Direito, ao menos na nomenclatura
atual, é a de ser uma ciência social aplicada. As instituições jurídicas têm a peculiar
tarefa de “dizer o direito”, o que implica a pretensão de fazer valer a justiça. Este
propósito do Direito, no entanto, não se realiza sem antes saber o que é a justiça. Daí a
missão teórica e prática do Direito. Para compreender a justiça, que é algo abstrato em
sua natureza, o Direito se vale da Filosofia, e, ao aplicar o justo ao caso concreto,
necessita compreender o contexto valorativo social em que o seu conteúdo normativo
está inserido.
Se a Filosofia, por um lado, contribui com o processo explicativo de teorias e, ao
mesmo tempo, com a inteligibilidade conceitual, por outro, a Sociologia, estampada em
teorias sociais, se ocupa em demonstrar teoricamente as bases das estruturas sociais que
permitem alocar as normas jurídicas. O Direito, ao pretender caminhar sozinho, sem
levar em consideração a base conceitual da Filosofia e tampouco a realidade empírica
das sociedades em que ele se situa, corre o risco de se perder no tecnicismo, girando em
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falso, sem conseguir penetrar na concretude das demandas sociais. Arruína-se em


matéria de fundamento e, igualmente, de legitimidade.
Para que o Direito não caia em um reducionismo interno que o faça caminhar míope,
é fundamental sua inserção nas reflexões produzidas pela Filosofia do Direito – que
tematiza os fundamentos normativos – e nas investigações das Teorias Sociais
(Sociologia do Direito) – que analisam a interação da normatividade social. Enfim, o
Direito se vale teoricamente da Filosofia do Direito para refletir a justiça e demais
conceitos correlatos, porém sem abrir mão da Sociologia do Direito para auxiliar na
aplicação de uma adequada concepção normativa matizada socialmente.

■ 1.2. A contribuição da Filosofia ao Direito


Na história do pensamento ocidental foram três as principais influências que
assinalaram a formação do Direito tal como o conhecemos: a tradição judaica, a
filosofia grega e a cultura romana. Cada uma dessas tradições estampa uma
palavra-chave que resume sua contribuição ao Direito.
Os três pilares do Direito no pensamento ocidental

Tradição judaica Tradição grega Tradição romana

Fé Natureza Autoridade

■ 1.2.1. A tradição judaica


Essa tradição formulou uma concepção jurídica pautada na religião monoteísta,
aspecto que a diferenciava dos demais povos, ainda politeístas. Responsável por libertar
o povo hebraico do Egito, a Bíblia diz que foi Moisés quem recebeu de Deus, no Monte
Sinai, as tábuas dos Dez Mandamentos. Para os judeus, o direito é dado por Deus, de
forma mandamental. Deus manda, cabendo aos homens obedecer. É a demonstração de
que o Deus judaico não confiava no poder de legislação dos homens. As normas eram
provenientes de uma única fonte: Deus. O elemento central que assegurava o
cumprimento dos mandamentos divinos baseava-se na fé. A aplicação dos
mandamentos e a resolução dos conflitos eram confiadas ao Sinédrio, também
conhecido por Tribunal dos Setenta, que compreendia a suprema magistratura dos
hebreus. A interpretação da lei escrita – “Torá” – não podia se afastar dos mandamentos
imutáveis dados por Deus.
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■ 1.2.2. A tradição grega


Por sua vez, a tradição grega não possuía o mesmo pragmatismo que a tradição
romana e tampouco a religiosidade monoteísta dos judeus. A originalidade dos gregos
assentava-se, sobretudo, na reflexão acerca dos fundamentos últimos das coisas.
Indagações a respeito da verdade e da justiça encontram aporte em um pensamento
sistematizado que se vale da razão e sua capacidade de arquitetar logicamente os
conceitos. O politeísmo grego impediu que os filósofos atribuíssem aos deuses do
Monte Olimpo o fundamento das normas jurídicas, até porque as divindades gregas
eram passionais como os seres humanos. A prática da democracia foi fator
preponderante para retirar dos deuses a legitimidade das leis e confiar aos humanos
a capacidade de legislar. Porém, os gregos não se ocuparam tanto com a questão da
aplicação do direito. Debruçaram-se antes a responder indagações atinentes
à legitimidade da lei, a saber se a lei que é válida e positivada no contexto das cidades
(polis) consegue expressar justiça e o que é a justiça.
Foram os gregos que primeiro tematizaram a clivagem entre a lei
(legalidade/positividade) e os seus fundamentos (legitimidade/Direitos naturais). A
referência fundamental para os gregos desenvolverem a filosofia foi
a natureza “physis”. Esta era vista como portadora de ordem “cosmos” que implicava a
realização de fins imanentes “teleologia”. A ordem da natureza fora transplantada para
a cidade (ordem social) e para o Direito (ordenamento jurídico). Os gregos nos legaram
a formulação da Filosofia do Direito.

■ 1.2.3. A tradição romana


Em sua fase imperial, a tradição romana incorpora parte da tradição judaica por
intermédio do Cristianismo e recebe a influência da filosofia grega. Mas a originalidade
dos romanos foi a construção de um sólido sistema jurídico. É reconhecido que o
direito foi o domínio da cultura romana que mais influenciou a posteridade. Não estava
no horizonte dos romanos a preocupação com a fundamentação ou conceituação do
direito, mas, sim, a sistematização do conjunto das práticas jurídicas, a construção
doutrinária e o delineamento de uma literatura jurídica. Os romanos nos legaram a
edificação e o desenvolvimento da teoria do direito. E isso permite dizer, de forma bem
resumida, que os gregos se ocuparam com a parte teórica do direito e os romanos com a
sua parte prática.
Outro aspecto a destacar é que os gregos habitavam as polis e havia uma grande
quantidade delas que os diferenciavam entre atenienses e espartanos, por exemplo. Os
romanos, ao contrário, foram cidadãos que habitaram um Império, que se pretendia
universal. Os gregos puderam experimentar a democracia e, consequentemente, as
condições propícias para o debate e, inclusive, o questionamento dos fundamentos
normativos que regiam suas cidades. Os romanos, ao contrário, se valiam de um único
chefe: o Imperador. Daí a noção de o Direito para os romanos ser decorrente da ideia
de autoridade.

■ 1.3. A delimitação entre razão teórica e razão prática


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Na tradição grega, a utilização do termo “ciência” não comportava a mesma


conotação que hoje possuímos. A melhor forma de demarcar o campo teórico do Direito
na tradição grega foi apresentada por Aristóteles ao distinguir duas importantes
estruturas da reflexão filosófica: a razão teórica e a razão prática. No quadro abaixo é
possível perceber o enquadramento do campo jurídico.

■ 1.3.1. A razão teórica


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Trata-se de parte da reflexão filosófica que se ocupa fundamentalmente em analisar


as condições de possibilidade do conhecimento humano. As indagações acerca de como
se processa o conhecimento, quais os critérios para distinguir o falso do verdadeiro, o
que é a verdade e como ela é passível de ser atingida, são questões que a Filosofia se
ocupa desde os primórdios de maneira incansável. Portanto, a investigação acerca
do conhecimento tem como fim (telos) alcançar e refletir sobre a verdade. A Filosofia
e, mais tarde, a ciência moderna buscaram alcançar, por caminhos diferentes, a verdade.
Na Filosofia, esse campo de investigação ficou conhecido por Epistemologia
(epistéme = conhecimento; logia = estudo) ou Teoria do Conhecimento. Para os gregos
e igualmente para os cientistas modernos o ponto de referência da investigação
epistemológica encontra-se dado na natureza (Physis). A Filosofia nasceu da
observação da natureza, da constatação de sua regularidade, da ordem nela inscrita e,
acima de tudo, da verificação de que a Physis é regida pelo princípio da causalidade.
O princípio causal é importante ferramenta para epistemólogos e cientistas confirmarem
suas hipóteses e assegurar um conhecimento passível de previsibilidade. A Filosofia
utiliza o princípio de causalidade sob a perspectiva lógica e a ciência moderna a
emprega como método de comprovação empírica.

■ 1.3.2. A razão prática


Por sua vez, a razão prática se ocupa em refletir a ação humana, verificando as
condições pelas quais o agir humano concretiza a justiça ou a injustiça. Em sentido
amplo, o telos de investigação da razão prática é a justiça, a correção. Na Filosofia, três
são as disciplinas que se ocupam da questão da justiça: a Ética, a Política e o Direito.
A Ética avalia a ação na perspectiva individual; a Política, na perspectiva coletiva; e o
Direito, na perspectiva normativa. Ética é a forma de mensuração da ação do indivíduo
dentro da coletividade a que pertence. Na medida em que o indivíduo se relaciona com
o outro, forma-se uma interação social, que é o campo da Política. E as normas que se
impõem politicamente sobre o comportamento da coletividade, a saber, as normas
jurídicas, são objeto de reflexão do Direito. A razão prática é, nesse sentido, complexa
ao correlacionar três campos disciplinares que partem do mesmo objeto – a ação
humana –, porém, de maneiras distintas. O ponto de referência da razão prática não
é a natureza (Physis), mas a Ética (Ethos). Ao passo que a natureza nos é dada, o Ethos
é fruto do engenho humano, cuja argamassa encontra-se na combinação de três
elementos essenciais: os valores, os costumes e as tradições. O Ethos é a representação
do Bem, aquele horizonte almejado a ser realizado pelo emprego da ação humana. O
Bem é uma projeção que, semelhante ao horizonte, exige esforço para alcançá-lo,
porém, quanto mais dele se aproxima, mais ele se distancia. É a demonstração de que a
essência do Bem necessita ser construída e reconstruída permanentemente. Importante
notar que a ação humana não se enquadra plenamente na determinação causal da
natureza. O princípio de causalidade não alcança nem determina plenamente a ação
humana, deixando uma reserva de liberdade à consecução dos atos humanos. O preço
que o homem paga pela sua liberdade é a indeterminabilidade e a imprevisibilidade dos
seus atos. Para atenuar essa imprevisibilidade, os gregos apostaram no fortalecimento
dos valores, costumes e tradições, como condição imprescindível de legitimidade da
Ética, da Política e do Direito.

■ 1.4. Nascimento da Filosofia e da Filosofia do Direito


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A Filosofia do Direto está intimamente ligada ao nascimento da Filosofia. No


esquema a seguir é apresentado o papel ocupado pelo Direito no corpo filosófico.
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■ 1.4.1. Razão teórica

■ 1.4.1.1. Epistemologia
A Filosofia surge, segundo Aristóteles, do thauma, traduzido por espanto,
perplexidade. A Filosofia é originária daquilo que capta a nossa atenção e nos põe a
refletir, indagar e apontar respostas. A Filosofia não nasce de um superpoder cognitivo,
mas da percepção sensorial, do olhar atento à natureza (Physis). A natureza desponta
como cosmos (o todo ordenado), manifestando, num primeiro momento, encanto e
beleza (dimensão estética). Daí o termo cosmética, associado àquilo que realça a beleza.
Num segundo momento, a natureza impõe um questionamento fundamental: qual o
princípio (arché) mantenedor dessa ordem? Essa é uma indagação que exige
conhecimento (dimensão epistemológica), e as respostas que os filósofos deram a esse
perturbador questionamento são inúmeras e inconclusas. Da natureza se depreende outra
importante observação, assinalada por Aristóteles: não há nada na natureza destituído de
finalidade; na natureza tudo concorre à realização de um determinado fim. Ou seja, a
natureza realiza um fim (telos) que lhe é imanente. Desta pauta inicial da Filosofia, três
importantes palavras devem ser registradas, pois guardam relação com o
Direito: ordem (cosmos), fim (telos/teleologia) e princípio (arché).

■ 1.4.1.2. Lógica, retórica e argumentação


É possível ainda acrescentar outra nomenclatura decorrente da natureza que é
bastante utilizada no direito. Trata-se da lógica. A natureza para os gregos se apresenta
de forma ordenada e com um modo de ser que lhe é próprio. A natureza é o que é
independente da vontade humana. Todo conhecimento é um modo de inteligir, é o
modo pelo qual asseguramos inteligibilidade à natureza. E não há inteligibilidade sem
conceitos, já que o conhecimento é processado mediante a aquisição de conceitos que,
por sua vez, revelam o modo de ser das coisas. Os conceitos expressam o modo
gramatical, a maneira pela qual as palavras revelam o sentido das coisas, não havendo
conhecimento sem conceitos, já que estes apreendem a ordem das coisas na natureza e
transferem ao intelecto. Portanto, os conceitos que repousam no intelecto humano
necessitam revelar a mesma ordem que eles conferem ao mundo ordenado fora da
mente. É preciso que se confira uma ordem conceitual em nosso intelecto, e essa tarefa
é dada à lógica ao processar a construção de um ordenamento lógico-conceitual em
nossa mente. A A expressão lógica dos conceitos que habitam o intelecto humano, seja
por meio da palavra escrita ou falada, demanda a utilização da retórica e da
argumentação, instrumentais indispensáveis ao Direito. Lógica, gramática, retórica e
argumentação compõem o campo da linguagem, área que os medievais denominaram
Artes Liberais.
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■ 1.4.2. Razão prática

■ 1.4.2.1. Política
A natureza, como vimos, é tomada como centro referencial da atividade filosófica, a
ponto de a reflexão da ordem esculpida no cosmos ser transferida ao mundo social. A
pergunta sobre a possibilidade de poder haver uma ordem social no microcosmo
da Polis, semelhante à ordem inscrita no cosmos, deu ensejo ao nascimento da Filosofia
Política.

■ 1.4.2.2. Ética
Nessa mesma perspectiva, o questionamento foi direcionado à ação humana,
indagando se esta é fruto do acaso e da contingência ou se é passível de ser enquadrada
em uma possível ordem, semelhante à ordem cósmica. O homem como parte da
natureza se impõe, nesse sentido, questionamentos de fundo existencial: qual o fim
último (telos) de suas ações? As várias ações realizadas diuturnamente visam à
concretização de que propósito e fim? A ação humana é passível de enquadramento em
uma ordem social? Tais questionamentos conduziram ao nascimento da reflexão acerca
da Ética (ethos).

■ 1.4.2.3. Direito
Levando em consideração a possibilidade de uma ordem social (política), na qual as
ações humanas se interconectam por meio de uma base comum (ethos), o Direito surge
como condição de realização da lei (nomos). A palavra nomos expressa sentido e lei. Os
gregos não utilizavam o termo auto nomos, como é empregado na Modernidade,
sobretudo a partir de Kant. Autonomia (auto nomos) é a capacidade de o sujeito dar a si
próprio o sentido de sua ação. Trata-se do duplo posicionamento do sujeito que assume
a função de legislador e de súdito das suas próprias leis. Para os gregos, o nomos é a lei
que proclama o sentido último da ação coletiva (política). Na lei está a validade
normativa extensiva a todos os cidadãos da Polis. É a lei que impõe coletivamente e,
ao mesmo tempo, expressa o núcleo comum de pertencimento assegurado pelos valores
partilhados comumente no ethos.
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■ 1.4.2.4. Razão prática e tragédia

A ação humana é o espaço em que a ordem da natureza não fixou uma economia
restrita, determinista. É o espaço em que o homem faz uso da sua liberdade para
construir uma ordem artificial, sempre com o olhar voltado à ordem natural. Ele sabe
que está abandonado à sua própria sorte. Nem a natureza nem os deuses Olímpicos o
auxiliam nessa empreitada de conferir ordem às suas ações pessoais, ordem à sociedade
e, ainda, construir um ordenamento jurídico.
A razão prática opera em uma zona de instabilidade e de permanente contingência,
completamente ausente da ordem natural e de qualquer princípio lógico. Nela impera a
liberdade, cabendo ao homem dela se valer para construir culturalmente sua ordem
social e jurídica. Antes mesmo de a Filosofia ganhar estatura e maturidade teórica,
Homero já alertava que a dimensão mais essencial do ser humano é a sua ação, porém, a
mais perigosa. Nele reside a capacidade de deliberação, escolha e decisão. E toda
decisão é um movimento de ação cindida nela própria que desperta escolhas. E escolhas
equivocadas podem transformar o homem no palco em que ele encena a sua própria
tragédia. Liberdade e tragédia rimam para os gregos; daí a necessidade de a ética, com
seus valores, costumes e tradições, corroborar na construção de uma ordem social e
jurídica capaz de afastar a tragédia.

 1.5. No coração da ética: ensinamentos contemporâneos

O núcleo essencial da razão prática recai na ética. Aqui deve haver o cuidado de não
confundir o termo ethos da tradição grega com o termo latino mores. Até por uma
questão cronológica, a expressão “mores” aparece mais tarde, cunhada por Cícero,
segundo dados bibliográficos.
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Porém, como estamos tratando do Direito na perspectiva da tradição grega, interessa-nos um


olhar mais atento e aprofundado do termo ethos. Veja o quadro a seguir. Nele é possível notar
que a referência ao ethos vem do período pré-filosófico, havendo dois importantes registros
para a caracterização do seu significado, na ótica de dois poetas (aedos): Homero e Hesíodo.

Na concepção de Homero, o ethos representa o habitat, local que se habita


coletivamente e onde se partilham comumente valores, costumes e tradições. Ethos,
nesse sentido, representa o local comum, o espaço onde se refugia, a morada protetora
daqueles que partilham valores comuns. Para Homero, o ethos tem uma
conotação social; nele são registrados os valores comuns de uma sociedade.
Na visão de Hesíodo, o ethos ganha outra acepção, significando a maneira habitual
de agir. O ethos identifica-se com o hábito primeiro adquirido e vivenciado pelo
indivíduo. A manutenção dos hábitos depende muito mais do indivíduo do que
propriamente do lastro valorativo social. Para Hesíodo, o ethos tem uma
conotação individual.
Abre-se com a explanação desses dois poetas uma visão dicotômica do ethos. Afinal,
o ethos pertence à sociedade ou ao indivíduo? Para os gregos, sobretudo com a
sistematização operada no período clássico, o ethos é visto sob a insígnia da dialética,
não sendo apenas social, tampouco restrito ao indivíduo. O ethos implica uma
relação dialética entre indivíduo e sociedade, operada por meio da ação – individual,
coletiva e normativa –, ou seja, abalizada pela razão prática.
Essa questão é fundamental, pois nela se encontra o núcleo das teorias sociais que
lidam com a dicotomia entre indivíduo e sociedade. Indaga-se se os valores sociais se
impõem ao indivíduo ou se este tem suficiente autonomia para agir independentemente
da expectativa valorativa e social.
A relação indivíduo-sociedade não é plenamente equilibrada, e, ao longo da história
do Ocidente, é possível notar períodos que superestimam o indivíduo e outros que
apreciam a sobreposição dos valores sociais em detrimento do indivíduo. A
relação indivíduo-sociedade é uma gangorra em constante oscilação e que, por isso,
afeta e condiciona a própria razão prática. Veja no gráfico a seguir como a razão prática
é condicionada à inconstância do posicionamento das teorias sociais.
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Se em determinado contexto histórico a primazia recair na base individual,


certamente haverá uma concepção de razão prática que privilegiará, do ponto de
vista moral, a autonomia do indivíduo; do ponto de vista político, uma concepção
liberal; e, do ponto de vista jurídico, a preservação dos direitos humanos.
Contrariamente, se a primazia recair na dimensão social, então, do ponto de vista
ético, será privilegiada a visão comunitarista de base aristotélica-tomista; do ponto
de vista político sobressairão visões republicanas e socialistas; e, do ponto de vista
jurídico, haverá a valorização da soberania popular. Com isso se demonstra que a
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visão de ética/moral, política e direito que se forma em determinada constelação


histórica depende do pêndulo que movimenta a relação indivíduo-sociedade.

■ 1.6. Paradigmas filosóficos, jurídicos e sociológicos


Para levá-lo ao máximo de aproveitamento e objetividade na compreensão dos
conteúdos que envolvem as Matrizes do Pensamento na Filosofia do Direito e
as Escolas do Pensamento Jurídico Ocidental, chamamos sua atenção para o quadro a
seguir.
Filosofia
Direito Teorias sociais
Razão teórica Razão prática

Ética teleológica
Ontologia Jusnaturalismo Teleologia
Ética teológica

Antropologia
Sujeito Moral deontológica Juspositivismo
Filosofia da História

Linguagem Moral pós-convencional Pós-positivismo Sociedades complexas

Antes de apresentar os autores e os temas abordados pela Filosofia do Direito é


importante entender a correlação entre Filosofia, Direito e Teorias Sociais a partir de
suas estruturas paradigmáticas. A compreensão dos paradigmas que estruturam essas
três disciplinas fornece suporte para uma visualização mais adequada do trajeto jurídico
Ocidental.
Como vimos, a Filosofia se edifica em duas grandes matrizes: a razão teórica, que se
ocupa do conhecimento; e a razão prática, que se dedica a refletir a ação humana sob a
perspectiva da ética, da política e do direito. Fundamentalmente, quase que regra no
pensamento filosófico Ocidental, a parte epistemológica influencia e condiciona a
formulação da razão prática. Por isso, analisaremos primeiramente os paradigmas da
razão teórica, que são três.
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■ 1.6.1 Paradigmas da razão teórica

Na Antiguidade, a Filosofia foi estruturada com base no paradigma da essência,


pautada na ideia de que o homem poderia alcançar o conhecimento do ser, fundamento
último das coisas, ao desvelar a sua essência constitutiva. A verdade e, também, a
justiça já estariam fixadas de forma essencial, e a tarefa de alcançá-las era missão
conferida à razão, numa exagerada confiança metafísico-ontológica. Na Idade Média, a
manutenção dos paradigmas da essência e da teleologia permanece basilar na
sustentação do fundamento teológico do mundo individual e social.

■ 1.6.1.2. Paradigma do sujeito


Importante mudança paradigmática irá ocorrer na Filosofia, por volta do século XIV,
com o Nominalismo, ao negar que o homem possa conhecer a essência do ser,
considerando que a verdade não se encontra mais na essência constitutiva das coisas, e
sim na capacidade experimental de o homem relacionar-se com a natureza. Assim, o
homem passa a ser a proeminente fonte do conhecimento, balizado não mais
pelo caráter metafísico, e sim pelo caráter experimental, aspecto que
a ciência nascente levaria adiante.
Tal mudança paradigmática, importante para a consolidação filosófica da
Modernidade, demonstra que o homem passou a ocupar lugar central na doação de
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sentido às coisas, além de fundamento do conhecimento (epistemologia) e correção de


valores e normas nas esferas da ética, da política e do direito (razão prática).

■ 1.6.1.3. Paradigma da linguagem


No século XX, diante dos acontecimentos que marcaram a sua primeira metade,
como as duas guerras mundiais, os regimes totalitários na Europa, a bomba atômica e,
mais terrivelmente, o engendramento técnico-industrial da morte produzido pelo
Nazismo, acabou por se gerar uma crise interna na própria razão Ocidental, mais
especificamente na concepção cientificista de base cartesiana. A desconfiança recaiu
sobre o paradigma da filosofia da consciência. O ceticismo em relação ao modelo de
racionalidade técnico-instrumental, levado adiante pelo paradigma da filosofia do
sujeito/consciência, e a descrença na ideia de realização de progresso culminaram com o
surgimento do terceiro paradigma sustentado com base na linguagem.
O pós-guerra descortinou, com o apoio da chamada “reviravolta
pragmático-linguística”, um novo paradigma em condições de mover a reflexão
filosófica fora do alcance dos céticos e dos melancólicos pós-modernos. Trata-se do
paradigma da comunicação ou linguagem.

■ 1.6.1.1. Paradigma da essência


Na Antiguidade, a Filosofia foi estruturada com base no paradigma da essência,
pautada na ideia de que o homem poderia alcançar o conhecimento do ser, fundamento
último das coisas, ao desvelar a sua essência constitutiva. A verdade e, também, a
justiça já estariam fixadas de forma essencial, e a tarefa de alcançá-las era missão
conferida à razão, numa exagerada confiança metafísico-ontológica. Na Idade Média, a
manutenção dos paradigmas da essência e da teleologia permanece basilar na
sustentação do fundamento teológico do mundo individual e social.

■ 1.6.1.2. Paradigma do sujeito


Importante mudança paradigmática irá ocorrer na Filosofia, por volta do século XIV,
com o Nominalismo, ao negar que o homem possa conhecer a essência do ser,
considerando que a verdade não se encontra mais na essência constitutiva das coisas, e
sim na capacidade experimental de o homem relacionar-se com a natureza. Assim, o
homem passa a ser a proeminente fonte do conhecimento, balizado não mais
pelo caráter metafísico, e sim pelo caráter experimental, aspecto que
a ciência nascente levaria adiante.
Tal mudança paradigmática, importante para a consolidação filosófica da
Modernidade, demonstra que o homem passou a ocupar lugar central na doação de
sentido às coisas, além de fundamento do conhecimento (epistemologia) e correção de
valores e normas nas esferas da ética, da política e do direito (razão prática).

■ 1.6.1.3. Paradigma da linguagem


No século XX, diante dos acontecimentos que marcaram a sua primeira metade,
como as duas guerras mundiais, os regimes totalitários na Europa, a bomba atômica e,
16

mais terrivelmente, o engendramento técnico-industrial da morte produzido pelo


Nazismo, acabou por se gerar uma crise interna na própria razão Ocidental, mais
especificamente na concepção cientificista de base cartesiana. A desconfiança recaiu
sobre o paradigma da filosofia da consciência. O ceticismo em relação ao modelo de
racionalidade técnico-instrumental, levado adiante pelo paradigma da filosofia do
sujeito/consciência, e a descrença na ideia de realização de progresso culminaram com o
surgimento do terceiro paradigma sustentado com base na linguagem.
O pós-guerra descortinou, com o apoio da chamada “reviravolta
pragmático-linguística”, um novo paradigma em condições de mover a reflexão
filosófica fora do alcance dos céticos e dos melancólicos pós-modernos. Trata-se do
paradigma da comunicação ou linguagem.

■ 1.6.1.4. Síntese (AULA DO DIA 08/07/2020)


Em síntese, o conhecimento se processa na relação sujeito e objeto. No paradigma da
essência, a verdade encontra-se no objeto. No paradigma do sujeito, a verdade está em
primeiro no sujeito. E, no paradigma da linguagem, ambos os sujeitos buscam a
verdade por meio do consenso alcançado linguisticamente.

■ 1.6.2. Paradigmas da razão prática


A razão prática se consolida basicamente em torno de quatro grandes paradigmas,
conforme se observa na imagem a seguir.
17

■ 1.6.2.1. Ética teleológica

■ 

■ 1.6.2.1. Ética teleológica


O primeiro paradigma é o da ética teleológica, sistematizado por Aristóteles. Nele, o
valor da ação é mensurado pelo fim (telos) que se almeja alcançar. O fim ou propósito é
o parâmetro que serve de critério para valorar a ação executada. A ética aristotélica não
pode ser confundida com a perspectiva da ética pragmática moderna. Na concepção
pragmática, o fim a ser alcançado é determinado privativamente pelo agente do ato, que
o obriga a selecionar estrategicamente os meios mais adequados à consecução do
propósito almejado. Para Aristóteles, o fim a ser alcançado e, ao mesmo tempo,
realizado pela ação humana é o ethos, ou seja, os valores, costumes e tradições
comumente partilhados pela comunidade política. Significa, em termos, que o
parâmetro de avaliação da ação ética é sempre coletivo, portanto, político.

■ 1.6.2.2. Ética teológica


O segundo paradigma é concebido pelo Cristianismo, mais especificamente por
Santo Agostinho. A fé cristã é anunciada como mensagem de redenção formulada em
discurso menos filosófico e mais teológico. A universalidade da mensagem cristã,
decorrente da influência estoica e igualmente da visão imperialista romana, é fator
preponderante para retirar a avaliação da ação humana de condicionamentos políticos,
como sustentado no paradigma anterior. A ação continua tendo um vetor teleológico,
porém, não mais amparado na horizontalidade dos valores praticados em uma
comunidade política, e sim na relação de verticalidade entre homem e Deus. O fim a ser
18

buscado pelo homem é Deus, sobretudo a realização de sua vontade. O paradigma da


ética teológica tem na vontade de Deus o critério para valorar a prática do ato humano.

■ 1.6.2.3. Moral deontológica


Na Modernidade, com Kant, ocorre a chamada reviravolta copernicana no âmbito
da razão prática. Diante da consciência da diversidade de ethos, os valores, costumes e
tradições são percebidos de forma relativizada, a ponto de não haver condições de
edificar um único modelo de ethos que sirva de padrão universal para a mensuração do
ato humano. O Ethos, ou melhor, a ética, carrega indelével a marca da cultura e da
religião, dois elementos que se relativizaram no contexto moderno. Outro aspecto a
considerar é o fato de a Modernidade ter passado por intenso processo de secularização
ao retirar a religião da base de objetivação social. Não há como sustentar uma sociedade
secularizada valendo-se de preceitos divinos para aferir a correção da ação humana.

■ 1.6.2.4. Moral pós-convencional


O quarto paradigma estrutura-se a partir do paradigma da linguagem no século XX.
A formulação da moral discursiva é levada adiante por Apel e Habermas, na Alemanha,
nas décadas de 1960 e 1970. Parte-se do pressuposto de que a ação é geradora da
interação social, sendo esta possível por meio da utilização da linguagem. O homem faz
uso da comunicação e interage com o outro, produzindo um processo interacional. A
legitimidade dessa interação e das normas que dela possam advir resulta das regras
internas que a própria linguagem confere. A linguagem possui um conteúdo normativo
próprio que se impõe como condição de possibilidade e, ao mesmo tempo, de
legitimidade da interação social. As normas fáticas que resultam do consenso linguístico
não são legitimadas por valores éticos, tampouco por uma razão solipsista, mas por
meio de consenso linguístico produzido com base em pressupostos normativos oriundos
da linguagem. Esta abordagem é o que se convencionou chamar de Ética do discurso e
que deu ensejo ao nascimento do paradigma da Moral Pós-convencional.

■ 1.6.3. Paradigmas das teorias sociais


19

■ 1.6.3.1. Paradigma da teleologia


Quanto a uma “teoria social da Antiguidade”, a compreensão da sociedade e do
próprio homem estava alinhada à noção de physis e, sobretudo, ao conceito de telos. A
ideia de que nada estaria destituído de finalidade na natureza alcançava o homem
e a sociedade. Concebia-se que o homem era portador, em sua própria natureza, de uma
peculiar tendência para realizar a sociabilidade. É como se à essência humana atribuísse
a realização da sociabilidade, de forma natural, por meio da ação ética, política e
jurídica (razão prática). Nesse ínterim, o direito não deixava também de ser teleológico
e natural, o que fortalecia a concepção do jusnaturalismo.

■ 1.6.3.2. Paradigma da antropologia


O nominalismo no século XIV traz uma nova visão à Filosofia, esvaziando a
dimensão essencialista que revestia a natureza, a ponto de desacreditar a ideia que
concebia a condição humana como portadora, em potência, da tendência natural
(essencial) de realização da sociabilidade. A sociedade passa a ser encarada como uma
experiência humana construída artificialmente e, do ponto de vista teórico, justificada a
partir de uma visão contratualista, que reposiciona o jusnaturalismo. (vide 1.6.4.1)
A estrutura antropocêntrica do paradigma filosófico da consciência conduziu, no
campo das teorias sociais clássicas da Modernidade, a substituição do paradigma da
teleologia pelo paradigma da antropologia. Teóricos sociais como Hobbes, Locke,
Rousseau e outros passaram a explicar a sociedade condicionada à visão que
antecipadamente construíam acerca do homem (antropologia). E, nesse sentido, leituras
que partiam de uma antropologia negativa chegavam a um determinado modelo de
sociedade e, portanto, a certa compreensão da ética, da política e do direito. Autores
que, ao contrário, baseavam-se em uma antropologia positiva colhiam outra concepção
de sociedade e, consequentemente, da própria razão prática (ética, política e direito).
Decorre, pois, que as teorias sociais movidas pelo paradigma antropológico sustentaram
modelos de sociedade a partir de imagens distintas que construíam do homem, seja
negativamente ou positivamente. E o direito, nesse cômputo, foi se transmutando em
um direito natural racional, desprendido da metafísica que a Filosofia havia
sustentado durante a Antiguidade e a Idade Média.

■ 1.6.3.3. Paradigma da filosofia da história


A partir do século XVIII, sobretudo com o Idealismo Alemão, o paradigma da
antropologia foi cedendo espaço às concepções oriundas da filosofia da história.
Verifica-se em autores como Kant, Hegel e Marx a ideia premente de que a história
pode realizar-se sob o comando da razão, de forma a materializar-se em instituições
sociais que imprimem, assim, um telos racional no desdobramento da temporalidade. É
a ideia de que o destino está sob o controle da razão. O destino visto como a própria
materialização da racionalidade. Essa concepção gera a convicção de que o homem, por
meio da racionalidade – já visivelmente estampada no desdobramento técnico-científico
–, conduziria o desenvolvimento histórico integrado à noção de progresso e, por
consequência, à ideia de emancipação do gênero humano. O desenvolvimento histórico
passou a ser visto como sinônimo de progresso, e o Direito, nesse contexto, firma-se
como importante instituto de realização do Estado na ótica de Kant e Hegel, e como
20

instrumento pejorativo que certifica a legalidade da dominação social exercida


estatalmente, na visão de Marx.
Contudo, no final do século XIX e, sobretudo, na primeira metade do século XX,
diante de acontecimentos contrários àqueles propugnados pela ideia de progresso e de
emancipação da Modernidade, o paradigma da filosofia da história entrou em crise. O
binômio desenvolvimento-progresso passou a ser questionado, de tal forma que não
apenas o paradigma da filosofia da história foi eclipsado como também a ideia de razão
– sustentada pelo paradigma do sujeito –, promotora de emancipação, foi colocada em
xeque.

■ 1.6.3.4. Paradigma das sociedades complexas


O novo paradigma a colocar a sociedade contemporânea sob outra ótica reflexiva –
conforme expresso por Luhmann – é o das sociedades complexas, o qual, em certo
sentido, melhor representaria a pluralidade de eticidades que convive em espaço
democrático.
É nesse novo quadrante – entre o paradigma da linguagem e o das sociedades
complexas – que o direito é conclamado a refletir sobre si mesmo e o papel que ele
exerce na sociedade, revendo, pois, os paradigmas que o sustentaram ao longo da
tradição Ocidental, seja por meio do paradigma dos direitos naturais, seja por
intermédio do paradigma positivista.
21

■ 1.6.4. Paradigmas do direito – 08/07

■ 1.6.4.1. Jusnaturalismo
A natureza é o ponto de referência para o jusnaturalismo, visto que ela é portadora de
ordem, cabendo ao homem ocupar uma posição justa dentro dessa ordem. A ordem
jurídica construída pelo homem deve espelhar-se na ordem natural. Na Idade Média,
compreende-se que a ordem que rege universalmente a natureza vem de Deus, portanto,
o fundamento é divino. Na Modernidade, a ordem natural é reconhecida na
subjetividade humana. É por meio da razão, parte essencial da natureza humana, que se
reconhecem os direitos naturais, os quais estão inscritos de forma racional na natureza
externa.

■ 1.6.4.2. Positivismo jurídico


Corrente de pensamento que se opõe ao jusnaturalismo ao negar que o direito seja
dado pela natureza. O positivismo, ao contrário, defende que o direito é construído
socialmente, não possuindo vínculos metafísicos e tão menos com os valores. Pode-se
dizer que, em relação à metafísica, o positivismo jurídico se apresenta como uma
concepção jurídica pós-metafísica. Já em relação ao valores (valor e moral são
compreendidos equivocadamente como sinônimos), o positivismo jurídico rompe com
os pressupostos valorativos e ideológicos, ao buscar demarcar uma nítida separação
entre o direito e a moral, atendo-se apenas à legalidade, enquanto quesito essencial da
reflexão jurídica.

■ 1.6.4.3. Pós-positivismo
22

Não cabe aqui discutir se o pós-positivismo consiste em uma revisão de aspectos


essenciais do positivismo ou se se trata, de fato, de sua superação. O ponto fundamental
do pós-positivismo é a defesa de que direito e moral se relacionam. Tal conexão ocorre
por meio de princípios. Entre os defensores do pós-positivismo é corrente a
compreensão de que as normas são subdivididas em regras e princípios. A utilização
de princípios seria a forma encontrada para dar conta de outro aspecto igualmente
importante para os pós-positivistas: a aplicação do direito e, sobretudo, a aplicação
referente aos casos difíceis (hard cases).

■ 1.7. O nascimento da dicotomia entre legalidade e legitimidade


Sófocles, em Antígona, apresenta uma questão fundamental que norteará a reflexão
filosófica posterior. Trata-se da dicotomia entre a lei da tradição, assegurada com base
em fundamentos religiosos, e a lei da cidade, criada e positivada pelo Estado. A
tentativa de assegurar a mediação entre essas duas formas de lei – divina (justa) e
humana (positiva) –, evitando radicalismos que concentrem o fundamento da lei ora na
tradição religiosa, ora no caráter impositivo de um mandatário de plantão, é o que
perpassará a lição de boa parte dos filósofos.
Os primeiros filósofos logo perceberam a fragilidade de fazer repousar a legitimidade
da lei nos preceitos religiosos, visto que a religião na Grécia, diferentemente da tradição
Judaica, era politeísta e antropomórfica. Havia vários deuses, os quais detinham
interferência na natureza e nas ações humanas. Habitavam o Monte Olimpo sob o
comando de Zeus. Porém, os deuses portavam as mesmas características humanas, tanto
externamente como internamente. Tinham aparência semelhante aos humanos e sob o
aspecto dos sentimentos também não se diferenciavam dos homens. Eram passionais,
rancorosos, invejosos e sentiam amor, ódio e ciúme. Com isso, os filósofos perceberam
que os deuses eram por demais arbitrários, visto que, em ocasiões coléricas ou de
ciúme, os deuses agiam de forma pouco justa, não servindo de arquétipos (modelos) a
serem imitados pelos humanos. A busca por um fundamento que permitisse à lei
expressar justiça e que este fundamento não estivesse ligado nem à arbitrariedade dos
deuses nem à arbitrariedade de tiranos é o mote que perpassa a reflexão
jurídico-filosófica.

■ 1.8. Teoria de Platão


Platão foi discípulo de Sócrates, e o seu pensamento se confunde com o do mestre. É
importante notar que Platão teve a influência de dois pensadores pré-socráticos que o
antecederam. O primeiro foi Heráclito, famoso por afirmar que o homem não pode se
banhar duas vezes no mesmo rio, pois, ao entrar no rio pela segunda vez, as águas já
não são as mesmas, e tanto o rio como o homem já foram transformados. O segundo
foi Parmênides, criador do princípio de identidade e não contradição, base da lógica.
Muitos autores afirmam que a bomba atômica começou a explodir nos poemas de
Parmênides, reforçando que o tecnicismo moderno é resultado da estrutura cientificista
proveniente da lógica. Esses dois autores inauguram duas metodologias distintas de
pensamento: a dialética e a lógica.
Ao conceder que os dois possuíam razão naquilo que propunham e buscando
preservar as duas metodologias apresentadas, Platão cria dois mundos: o mundo
sensível, onde tudo é passageiro, mutável e contingencial, portanto, dialético; e o
23

mundo inteligível, onde tudo é perene, imóvel, imutável e permanente. Este último é
o mundo suprassensível, no qual repousam os conceitos lógicos acerca da verdade, da
beleza e da justiça. Não é difícil notar que a justiça é buscada em um mundo
metafísico, no plano imutável da lógica, ao passo que o direito, enquanto conjunto de
normas e prescrições sociais, é construído e reconstruído em meio à mutabilidade
contingencial da vida. A justiça opera em uma base lógica, e o direito é produto da
dialética. Como conectar esses dois mundos e garantir a legitimidade da lei jurídica com
base na justiça?
A mediação entre os dois mundos é realizada por meio do condicionamento da lei ao
imitar a justiça essencial assegurada no mundo das Ideias. Para Platão, a lei deve buscar
sua legitimidade fora dela (mundo das Ideias), mas sem deixar de fazer referência ao
interesse da cidade (polis) e ao bem comum (ética). A cidade é vista, por um lado, como
um microcosmo da natureza que dispõe de finalidades específicas a cada coisa, e, por
outro, como ampliação da alma humana. Assim, o princípio fundamental da justiça em
Platão é dar a cada um o que é seu, de acordo com a sua natureza. A justiça torna-se
possível na medida em que cada um possa desempenhar na sociedade a atividade que
lhe é peculiar em consonância à aptidão manifesta na natureza de sua alma. Exercer de
maneira excelente a função peculiar da alma é o que caracteriza a virtude humana. A
justiça perpassa, então, a noção de virtude em harmonia com a totalidade da natureza
ordenada (cosmos).

■ 1.9. Teoria sofista

Os sofistas tiveram um papel bastante significativo na reflexão jurídica. Contestaram


a natureza (physis) como fundamento último da sociabilidade na polis. Colocaram o
homem como centro da reflexão em detrimento da superioridade da polis e, desse
modo, inauguraram, de forma inédita, o antropocentrismo na reflexão filosófica
antiga. Na relação indivíduo-sociedade, o primeiro passou a ter primazia,
expandindo a ideia de que a polis havia sido criada para servir ao homem e não o
contrário, como defendiam Sócrates, Platão e Aristóteles.

O homem assume papel primordial na sociedade, e sua capacidade discursiva e


argumentativa é valorizada e estimulada como condição de exercer livremente a
democracia. O direito natural perde força, pois as leis, para os sofistas, são produzidas
em decorrência da habilidade argumentativa empregada no debate público. A lei é,
portanto, fruto de convenção admitida como válida em razão do convencimento
discursivo e retórico. Não há justiça fora da convenção. Na própria convenção
estabelecida já está a justiça. Os sofistas fundiram a dicotomia ente legalidade e
legitimidade e foram, nesse sentido, os precursores do positivismo moderno. Em
24

linhas gerais, os sofistas impugnaram a ideia de que por trás da lei positiva encontra-se
a lei natural. Aproveitando-se da emergência da democracia no século V a.C., os
sofistas souberam priorizar o uso da palavra no debate público e o poder da retórica
como método de convencimento. Valorizaram o homem e a utilização de argumentos
racionais (logos). Se a lei é fruto de uma convenção, esta por sua vez é particular e
depõe contra a universalidade e totalidade da natureza. A expressão de Protágoras “É a
medida de todas as coisas” sintetiza bem a posição sofística.

 1.10. Teoria de Aristóteles

Aristóteles foi discípulo de Platão e, ao mesmo tempo, crítico do mestre. Discordou


de Platão quanto à dualidade dos mundos – sensível e inteligível –, criticando a
separação entre a lei (positiva) e a justiça (essência). Para Aristóteles, a essência não
deve ser vista como transcendente, mas como imanente. Do contrário, deveria admitir
que a justiça da lei não está na lei em si, mas fora dela. A lei, como asseverava Platão,
era apenas a imitação da justiça ideal.
Ao introduzir os conceitos de matéria e forma, Aristóteles demonstra que todo ser é
constituído a partir da junção desses dois elementos. Uma escultura só se transforma em
obra de arte após o artista conceder forma a uma pedra bruta. A forma é a essência
constitutiva das coisas (seres). Aristóteles não abandona a ideia da relação entre direito
positivo e direito natural, apenas não admite haver entre os dois uma dicotomia que os
separa em mundos distintos como queria Platão. Assim como existe uma variabilidade
de cadeiras espalhadas pelo mundo e todas elas distintas entre si pela matéria que
possuem, jamais deixarão de ser reconhecidas como cadeiras pela forma. Esse exemplo
permite dizer que existe uma variabilidade de leis positivas, distintas entre si pelo
conteúdo, mas que conservam entre elas um elemento comum: a forma, a essência do
justo. Em Aristóteles, a forma (justiça) é imanente à lei.
Quanto à justiça, Aristóteles a diferencia em dois espaços: o ético e o legal.
25

A justiça no plano ético é resultado da deliberação que compete ao indivíduo realizar


no momento oportuno. Na esfera legal, a justa medida é a equidade, o que significa
realizar uma repartição igual, porém, não igualitária.
A esfera jurídico-política compreende, pois, duas formas de justiça:
■Justiça Distributiva (Atributiva) é a que opera no âmbito da desigualdade social
e requer uma distribuição geométrica, a saber, a distribuição dos bens deve ser
proporcional ao ofício ou honraria que a pessoa ocupa dentro da sociedade. É,
portanto, uma justiça pautada no mérito, na equidade.
■Justiça Comutativa (Sinalagmática) é a que opera no âmbito da igualdade e
requer uma distribuição matemática. É um modelo de justiça que regula as
relações de troca por meio de contratos (promessas futuras) e danos (reparação). A
justiça é comutativa quando posiciona as partes em igualdade, havendo entre elas
igual comunicação; e a justiça é judiciária quando as partes entram em litígio e
dependem de terceiros para resolução do conflito instaurado.

■ 1.11. Teoria de Santo Agostinho


Para Santo Agostinho, que viveu o período da decadência do Império Romano, a fé
Cristã era o bálsamo que tendia a apontar a verdade, a felicidade e, também, a justiça no
interior do homem. O ponto de partida do pensamento agostiniano é o homem
(antropologia) e o seu ponto de chegada é Deus (teologia). Entre homem e Deus há uma
travessia feita não apenas pela fé, mas, sobretudo, pela razão. Esta razão transcende os
seus próprios limites, na medida em que Deus a ela se revela.

■ 1.11.1. A lei eterna


A lei eterna de Deus é comunicada ao homem, impressa em sua razão. A lei imutável
de Deus está gravada na razão, fato pelo qual os homens, que são mutáveis e
inconstantes, necessitam instituir leis positivas ou temporais fundados na Lei eterna. É
preciso que a lei positiva seja fiel à lei eterna, pois só assim as leis dos homens
refletirão a justiça divina. O jusnaturalismo de Agostinho é influenciado pelo
pensamento grego, com o detalhe de que o fundamento da lei eterna está estabelecido na
vontade de Deus. Agostinho abandona a tradição racionalista grega e em seu lugar
inaugura a tradição voluntarista, baseada na vontade de Deus.

■ 1.11.2. A liberdade da vontade


O livre-arbítrio em Agostinho é decorrência da compreensão de que Deus é livre em
sua vontade. Sendo o homem criatura semelhante ao Criador, então a liberdade humana
se impõe como consequência direta. Agostinho teve o cuidado de tematizar
filosoficamente a vontade humana, esta faculdade de que o homem dispõe para escolher
e para determinar-se, sempre ciente de que pode igualmente escolher o contrário do que
fez e determinar-se de modo oposto. Apesar de Agostinho refletir acerca da liberdade da
vontade sob uma perspectiva religiosa, seu pensamento deixou importante contribuição
à distinção entre livre-arbítrio e autodeterminação.
26

■Livre-arbítrio refere-se à capacidade de escolha. Imagine-se em um self-service,


diante da variedade de pratos à sua disposição. Poderá escolher livremente, porém,
a sua liberdade estará condicionada à quantidade de pratos disponibilizados. A
liberdade é, nesse caso, limitada, parcial, unilateral, negativa. Uma limitação que é
externa ao próprio indivíduo. É possível escolher, porém, somente o que está dado.
E o critério de escolha é igualmente condicionado por fatores externos ao
indivíduo. Optou-se pelo prato C e não pelo A em razão da estética, do cheiro, do
tempero, do sabor, do aroma etc. As caraterísticas que acompanham o prato
determinam no indivíduo, de fora para dentro, a deliberação pela escolha de C.
Fatores externos influenciaram de forma heterônoma a determinação da escolha.
■Autodeterminação refere-se à capacidade de o sujeito determinar-se a si próprio,
independentemente de fatores externos. A determinação da vontade é executada
pela própria razão do sujeito, a saber, pela sua capacidade reflexiva e consciente.
Não são fatores externos que influenciam a autodeterminação do indivíduo, mas a
sua própria razão. Nesse caso, trata-se de uma liberdade plena, positiva, autônoma.
Autodeterminação identifica-se com autonomia.

Livre-arbítrio Liberdade de escolha – Liberdade negativa

Autodeterminação Autonomia – Liberdade positiva

■ 1.12. Teoria de Tomás de Aquino


Além da arte gótica, o século XIII de Tomás de Aquino viu nascer também as
Universidades e nelas a inserção de um profundo debate acadêmico que levou à
construção de novos conhecimentos, sobretudo nas áreas de Teologia e Direito. Tomás
de Aquino é um aristotélico, e a sua teologia revelou importantes contribuições ao
campo jurídico-político.
Aquino segue Aristóteles na defesa de que o Estado é condição natural e
indispensável da sociabilidade humana. Nesse ponto, ele se distancia de Agostinho, para
quem o Estado era uma instituição negativa, fruto do pecado original. Na esteira de
Aristóteles, a pretensão de Aquino é a de assegurar ao Estado um papel positivo,
permitindo a proteção e a segurança dos seus membros e, fundamentalmente, a
promoção do bem comum.
Quanto ao direito, Tomás de Aquino confiava na capacidade de o homem elaborar
suas leis, distanciando-se da visão judaica na qual Deus mandava, sem qualquer espaço
para um direito profano. Ainda que o direito seja visto como um ofício humano, a lei
humana não pode estar desvinculada da lei natural e da lei divina. Assim, Tomás de
Aquino apresenta uma hierarquização da lei distribuída em três níveis: lei divina, lei
natural e lei humana.
■A lei divina ou eterna é a própria razão de Deus, que governa toda a criação,
sendo em boa medida desconhecida pelos homens. Dela os humanos têm algumas
noções quando contemplam a obra da criação e percebem a ordem e a regularidade
da racionalidade inscrita nas coisas.
27

■A lei natural é uma decorrência da Lei Eterna e possível de ser compreendida pelo
homem, visto que o ser humano, por ser racional, participa da criação e consegue
reconhecer a ordem da lei eterna.
■A lei humana é a criada pelo homem para a regulação de sua vida na comunida
A lei humana é a criada pelo homem para a regulação de sua vida na comunidade
política ou Estado. Ao conceder ao homem o direito de legislar, Aquino chama
atenção para o fato de que a lei criada (positiva) não pode estar em desacordo com
a lei natural e a lei eterna. Portanto, se a lei eterna e a lei natural revelam a
disposição racional das coisas na ordem da criação, não pode a lei humana
expressar a vontade humana, antes deve apreender a disposição racional que
permite conferir o bem comum. Aquino vê o mundo disposto racionalmente, sendo
para ele a razão e não a vontade que deve aferir legitimidade à lei positiva.

■ 2. ESCOLAS DO PENSAMENTO JURÍDICO OCIDENTAL)

■ 2.1. Evolução histórica do conceito de direito natural


A Modernidade trará modificações profundas em relação às estruturas do mundo
greco-romano. Foram vários movimentos teóricos e filosóficos, além de importantes
acontecimentos históricos que revolucionaram a maneira de ver o mundo, de
relacionar-se com Deus e de o homem ver a si próprio e sua sociedade. O Deus cristão
que regia a ordem fixa do universo foi substituído pelo homem. Na Filosofia é
inaugurado o paradigma do sujeito, fazendo emergir a subjetividade como condição de
possibilidade da verdade, da justiça, da correção normativa e do sentido de todas as
coisas. A antropologia sedimenta-se como base de reflexão da sociedade e nela a ética,
a política e o direito. A visão que se constrói do homem – antropologia positiva ou
negativa – condiciona extensivamente a compressão de todo o resto. Da noção que o
homem é mau decorre uma certa concepção de sociedade e de direito; da percepção de
um homem bom, constrói-se outra referência de sociedade e de direito.
Alguns aspectos fundamentais devem ser levados em consideração para a
compreensão da construção moderna do direito, seja ele natural ou positivo.

■ 2.2. Da teleologia à antropologia: a ideia de contrato


A nova base para se pensar o Estado e o direito é de cunho antropológico e não mais
teleológico. No paradigma teleológico, abalizado pela concepção aristotélico-tomista, o
Estado era uma unidade social alargada, promovida a partir de uma tendência natural de
o homem viver em sociedade. A máxima aristotélica “O homem é por natureza um
animal político” fixava a convicção de que já estava dada na essência da natureza
humana, em potência, a tendência natural de constituição da vida em coletividade.
Havia um telos na natureza do homem que o destinava à realização da vida social e
política. No paradigma antropológico, com o abandono da metafísica e da ruptura
religiosa, o homem se percebe destituído de um telos ou essência que o destina à
sociabilidade. A sociedade passa a ser justificada como obra do engenho racional do
homem, sendo uma construção artificial que depende muito mais do esforço da razão
humana do que da própria natureza. E a artificialidade que a razão apresenta para
28

justificar o nascimento da vida social e civil é o contrato. O direito a partir daí passa a
ser lido, explicado e tematizado em uma perspectiva contratualista.
29

■ 2.3. A lei natural: da natureza objetivada à razão humana


No direito natural ocorre a substituição da lei natural pela racionalidade natural.

■ 2.4. Teoria de Hugo Grócio

O pensamento de Grócio situa-se entre os dogmáticos cristãos que defendiam a


vinculação do direito natural ao direito divino e os racionalistas que buscavam afastar o
direito divino da ordem jurídica. Grócio é ainda o precursor do Direito Internacional, na
medida em que concebe o Estado moderno desvinculado das duas forças medievais que,
até então, equilibravam as relações internacionais: a Igreja e o Império. O repensar do
papel dessas duas instituições permite alocar o Estado em posição de destaque,
restando, no entanto, saber quais serão os parâmetros, na ausência da Igreja e do
Império, a regular as relações entre os Estados. Grócio aponta que tais parâmetros
devem ser dados pelo direito, pois é o único capaz de fixar os princípios da regulação
internacional dos Estados. “O direito não é outra coisa senão o meio racional e natural
(porque conforme a natureza de um ser dotado de razão: o homem) de assegurar a paz”
(BILLIER, 2005, p. 136).
Grócio mantém a ideia aristotélica-tomista de que a sociabilidade é uma disposição
natural do homem, fazendo, no entanto, desta predisposição natural a condição para a
criação das relações jurídicas. A forma jurídica da sociabilidade nasce de um pacto
firmado entre os homens, pacto este que é resultado de um ato racional ao visar, em
última instância, a paz. Grócio, neste aspecto, é um pensador moderno, pois sua
construção jurídica está centrada em uma teoria contratualista que credita confiança na
30

inviolabilidade dos contratos para a permanência do lastro político e jurídico dos


Estados. Como é possível notar, Grócio é um pensador de transição entre a Idade Média
e a Modernidade.

■ 2.5. Teoria de Hobbes


Hobbes é o pensador moderno que transfere o fundamento cósmico e teológico do
direito natural para a estrutura racional subjetiva do homem. Considera inerente ao
homem o princípio da conservação de si mesmo. É em torno desse princípio que
gravitará a naturalidade do direito, ao servir de contributo à conservação do homem. A
passagem do estado de natureza para o Estado social, tido como nova ordem
político-jurídica, é mediado por ditames da razão que impõem a formulação de um
contrato social realizado por indivíduos e assegurado consensualmente, em condições
de levá-los a um modelo social por eles desejados.
Aspecto importante em Hobbes é a constatação de que o poder do soberano no
Estado social é derivado do povo. O poder do soberano deixa de ser perpetuado, a
expensas das doutrinas monárquicas que justificavam o poder dos reis, derivado de um
suposto direito divino. Hobbes rompe com essa estrutura medieval da soberania dos reis
ao ressaltar que o poder do soberano, de fato, só existe em razão do pacto acordado pelo
povo. O poder soberano passa a ser justificado com base na soberania popular. A
herança de Hobbes, segundo Gianluigi Palombella, é a “dessacralização do direito e do
poder” (PALOMBELLA, 2005, p. 15).
O contrato, como é possível notar, resulta de uma artificialidade criada pela própria
razão e tem como objetivo assegurar a soberania e a lei como condição de realização da
justiça. Evidencia, pois, que em Hobbes a lei é a condição da justiça e não o contrário. E
a autoridade do soberano não é ilimitada, pois deve estar conformada à realização dos
fins propostos pelo pacto, dentre os quais a paz, a ordem e a segurança. Ainda que o
soberano detenha o monopólio da força, não significa que no Estado Social haja a
prevalência da lei do mais forte. A lei do mais forte era, para Hobbes, a regra presente
no estado de natureza. No Estado social prevalece a autoridade do soberano legitimado
pelo pacto acordado consensualmente.
Na natureza humana está inscrita a aptidão inata de conservação, na qual todos
buscam evitar o maior dos males, que é morte. Conservar a vida é considerado um valor
absoluto para Hobbes. Desta condição natural assimilada pela razão humana é que brota
a necessidade de realização de um pacto que permita estabelecer as condições para a
preservação social da vida individual. É da lei natural – desejo de autoconservação –
que se origina o fundamento da lei positiva, assegurado pelo pacto social. Desrespeitar
o pacto (as normas positivas) é, em síntese, desrespeitar a própria lei natural.

■ 2.6. Teoria de Pufendorf


Pufendorf é um intelectual alemão da segunda metade do século XVII que reuniu em
seu pensamento ideias tanto de Grócio quanto de Hobbes. Do primeiro ele preserva a
concepção já recorrente na tradição aristotélica-tomista, segundo a qual o homem dispõe
de uma tendência natural para a vida social. De Hobbes, ele se vale do juízo segundo o
qual a sociabilidade só é possível se houver um pacto que institua o Estado para
assegurar e manter a paz, a ordem e a segurança. Na visão de Pufendorf, o direito
natural é o mantenedor das condições que permitem erigir o direito positivo.
31

■ 2.7. Teoria de Locke


Locke viveu o contexto da Revolução Gloriosa (1688), responsável pela consagração
de direitos ao povo e ao Parlamento na Inglaterra. Sua linha de pensamento passa pela
interconexão entre soberania e povo, aspecto que o distancia de Hobbes. Enquanto
Hobbes era tido por absolutista e favorável à monarquia, Locke era considerado
um liberal democrata. As diferenças entre os dois são mais acentuadas sobretudo
quando se leva em conta o ponto de partida do contratualismo moderno, a saber, o
estado de natureza.
Para Locke, no estado de natureza o homem é plenamente sociável, pois considera
que dentro do status naturae há direitos dados, de forma indisponível, que garantem a
sociabilidade. Locke enxerga no estado natural o locus dos direitos fundamentais,
como liberdade, propriedade privada e trabalho. Portanto, a passagem do estado de
natureza para o Estado Social tem por objetivo a garantia e a preservação dos direitos
fundamentais no âmbito do direito positivo. Dos direitos fundamentais aventados,
Locke destaca a liberdade como primordial, pois o objetivo do Estado Social é o de
garantir o máximo de liberdade aos indivíduos. O Estado, para Locke, antes de garantir
a segurança, como expunha Hobbes, deve servir para preservar a garantia dos direitos
individuais. Nisso repousa o liberalismo político e jurídico de Locke.
A inconteste defesa de que os direitos individuais devem ser preservados
politicamente pelo Estado faz igualmente destes direitos a base de legitimidade do
exercício da soberania que é dado a um determinado titular. Desse modo, “a violação do
pacto e do arbítrio por parte do soberano são razões justificadas para a perda do
consenso popular e para o ‘recurso ao céu’ (direito de resistência) que restitui o poder
à soberania popular e simboliza a eliminação do tirano” (PALOMBELLA, 2005, p. 32).
Em suma, o pacto para Locke se vale de uma relação de confiança, na qual o soberano
tem a obrigação de tutelar os direitos individuais, cuja somatória confere o sentido de
bem comum. Porém, havendo atitudes arbitrárias da parte do soberano, cabe ao povo o
direito de resistência (desobediência civil).
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■ 2.8. Teoria de Rousseau

matéria de fundamento e, igualmente, de legitimidade.


Para que o Direito não caia em um reducionismo interno que o faça caminhar míope,
é fundamental sua inserção nas reflexões produzidas pela Filosofia do Direito – que
tematiza os fundamentos normativos – e nas investigações das Teorias Sociais
(Sociologia do Direito) – que analisam a interação da normatividade social. Enfim, o
Direito se vale teoricamente da Filosofia do Direito para refletir a justiça e demais
conceitos correlatos, porém sem abrir mão da Sociologia do Direito para auxiliar na
aplicação de uma adequada concepção normativa matizada socialmente.

■ 2.9. Teoria de Montesquieu


Montesquieu pertenceu ao movimento Iluminista do século XVIII. Este movimento
refletia várias áreas do conhecimento humano, incluindo filosofia, literatura, política e
teoria jurídica. Seus integrantes apostavam no progresso racional da humanidade, na
consciência individual e na igualdade jurídica. A Revolução Francesa (1789) foi, em
boa medida, o registro histórico da concretização dos ideais iluministas, expressado no
lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.
O tema da liberdade política foi objeto de reflexão de Montesquieu, em sua obra O
Espírito da Leis, além de deixar importante legado à Modernidade ao retomar a doutrina
da independência dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – como forma de
garantir o equilíbrio das forças políticas em condições de conferir um governo
moderado. “Para formar um governo moderado, é mister combinar os poderes,
regulamentá-los, moderá-los e fazê-los agir; oferecer, por assim dizer, um lastro a um
para colocá-lo em condição de resistir a outro. É uma obra prima de legislação que o
acaso raramente produz” (MONTESQUIEU, 1997, p. 102).
Ao conceber a liberdade política como direito de fazer tudo o que as leis permitem,
Montesquieu demonstrou que esta liberdade só é passível de ser encontrada em
governos moderados, a saber, em espaços que não promovam a acumulação de poderes
em uma mesma entidade. “Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela
disposição das coisas, o poder freie o poder” (MONTESQUIEU, 1997, p. 200).
33

■ 2.10. Fundamentos históricos do positivismo jurídico

■ 2.10.1. Escola histórica


A escola histórica do direito e o positivismo jurídico, segundo Bobbio, não são a
mesma coisa, porém a primeira influenciou decisivamente o segundo. O historicismo
surge como um movimento que tece profundas críticas ao racionalismo moderno de
matriz cartesiana. É bom lembrar que a filosofia racionalista e iluminista deu o substrato
teórico a muitos dos conceitos-chave do jusnaturalismo moderno, tais como estado de
natureza, lei natural e contrato social. Ao criticarem a base do racionalismo
iluminista, sobretudo a forma atemporal e a-histórica que era dada a tais conceitos, os
historicistas acabaram por desaguar severas críticas ao jusnaturalismo. Produziram uma
espécie de dessacralização dos direitos naturais, o que os vinculou à alcunha de
predecessores do positivismo jurídico. Dois nomes importantes da escola histórica e
quem devem ser fixados: Gustavo Hugo e Savigny, ambos alemães e com intensa
produtividade na primeira metade do século XIX.
Nas palavras de Norberto Bobbio, “o que caracteriza, portanto, o historicismo é o
fato de ele considerar o homem na sua individualidade e em todas as variedades que tal
individualidade comporta, em oposição ao racionalismo que considera a humanidade
abstrata” (BOBBIO, 2006, p. 48). Paralelamente a essa concepção antirracionalista, o
historicismo leva em consideração que o direito positivo é o direito posto pelo Estado,
não por um Estado abstrato, mas por este ou aquele Estado particular. Assim como
existe uma variedade de línguas, valores e costumes, também há uma variedade de
direitos positivados em razão da singularidade de cada Estado. Logo, para o
historicismo, não há um direito estável e permanente que se vale de uma natureza ou
razão humana imutável. Até porque o historicismo critica o conceito de “homem” por
considerar demasiado abstrato. O que há na realidade são homens de carne e osso
distintos entre si pela raça, cultura, clima, geografia, língua, costumes e, também, pelo
período que ocupam ou ocuparam na história. O direito é resultado desse homem
construído historicamente e não do homem abstrato perquirido pelos direitos naturais. E
a história, na visão do historicismo, não é resultado de uma construção racional; é antes
de tudo o contínuo desdobramento da temporalidade matizada de forma trágica. A
história se constrói no caldo de impulsos irracionais que misturam emoções, paixões,
ações passionais, sem ou com quase nada de lógica e de racionalidade. Por isso,
o historicista, ao contrário do iluminista, é pouco confiante no progresso da
humanidade e muito apegado ao passado, o que confere a ele a marca de conservador.
O historicista, ao prezar pelo passado e pela tradição, confere aos costumes a peculiar
forma de criação do direito: o direito consuetudinário. O direito floresce e se aperfeiçoa
com a história e com os costumes de um povo, de tal modo que as normas jurídicas
positivas expressam, a cada época, o “espírito do povo” (Volksgeist).

■ 2.10.2. Escola da exegese


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À luz do código, competia aos operadores do direito tão somente procurar a solução
dos problemas jurídicos na literalidade expressa nos artigos do código, deixando de
considerar outras importantes fontes para o direito, como os costumes, a jurisprudência
e a doutrina. Norberto Bobbio ressalta que a “escola da exegese deve seu nome à técnica
adotada pelos seus primeiros expoentes no estudo e exposição do Código de Napoleão,
técnica que consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de
distribuição da matéria seguida pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a
um comentário, artigo por artigo, do próprio código” (BOBBIO, 2006, p. 83). A escola
da exegese representou, nesse sentido, uma limitação do trabalho da ciência jurídica e
teve enorme influência na primeira metade do século XIX.
Algumas características importantes a respeito da escola da exegese, na leitura de
Norberto Bobbio, e que ajudam na resolução de questões da prova da OAB, são:
a) A desvalorização dos direitos naturais. Não há uma negação explícita dos
direitos naturais por parte dos exegetas, porém eles acreditam que os direitos naturais
são formados por princípios absolutos, por demais vagos e abstratos, e que pouco
contribuem ao jurista quanto à sua aplicabilidade prática. É possível aferir relevância
aos direitos naturais somente quando puderem ser incorporados à lei, ao direito
positivo. A escola da exegese impugna a ideia corrente de que o direito positivo deve
se valer dos direitos naturais. Os exegetas, ao contrário, avalizam que os direitos
naturais são passíveis de concretização somente se assimilados a uma legislação
escrita (direito positivo).
b) Defendem a concepção segundo a qual a norma, para ser jurídica, deve ser
imposta pelo Estado. É a compreensão de que o direito é fruto do caráter
obrigatório imposto pelo Estado. Cabe ao legislador a tarefa de selecionar, dentre
tantas normas – éticas, morais, culturais, religiosas etc. –, aquelas que serão
assimiladas como obrigatórias e sancionadas pela lei escrita. A lei, em razão do seu
caráter obrigatório e estatal, deve estar acima de todas as demais normas, sendo
interpretada na estreita literalidade de seu texto.
c) Valorizam a lei fundada na intenção do legislador, ou seja, ao aplicar a lei e
esta deixar uma lacuna, a interpretação desta lacuna deve se ocupar em saber qual foi
a real intenção do legislador no momento da feitura da lei, sendo, inclusive, tarefa do
intérprete desvendar a vontade presumida do legislador. Tudo isso em respeito a este.
d) O exegeta identifica o direito com o texto da lei, tendo como máxima “os textos
acima de tudo!”. Considera como direito o que está escrito na lei, não devendo a
interpretação se afastar do texto da lei.
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e) Os exegetas enaltecem o argumento de autoridade. O discurso de autoridade foi


muito utilizado na Idade Média, tendo grande aceitação no campo teológico. A
concepção X e não a Y era admitida como verdadeira porque fora dita pelo santo tal,
pelo filósofo fulano de tal. Referendava-se este ou aquele argumento em função da
autoridade de quem o avalizava. Na modernidade, o argumento da autoridade entra
em declínio, mas, ainda assim, os exegetas o valorizam ao admitirem que no direito é
preciso que alguém diga, de forma obrigatória, o que é justo e lícito e o que não é. A
técnica jurídica necessita da autoridade para fazer valer seu caráter obrigatório e
mandamental. Além do mais, e isso vale para os nossos dias, os comentadores de
códigos são reconhecidos como autoridades no meio jurídico.

■ 2.11. Positivismo jurídico


A influência de três concepções teóricas ao longo do século XIX, com destaque
sobretudo ao historicismo (Alemanha), utilitarismo (Inglaterra) e positivismo
filosófico (França), foi decisiva para a formatação do positivismo jurídico e seu influxo
teórico, que desaguou com força no século XX. O positivismo jurídico é formado por
várias concepções teóricas que se identificam quanto à rejeição às teses do
jusnaturalismo. Neste aspecto, o positivismo jurídico é considerado uma concepção
teórica – abordada, é claro, por vários pensadores – que se diferencia do direito
positivo, a saber, das leis, decretos e decisões judiciais talhadas socialmente.
Avesso à ideia de um direito dado pela natureza, o positivismo jurídico se distancia
do jusnaturalismo, firmando um campo próprio de reflexão assentando em duas teses
fundamentais: 1) o direito é construído socialmente; 2) o direito é desconexo da
moral.
Sobressai a necessidade de o positivismo jurídico sistematizar o material jurídico,
seja escalonando as regras jurídicas entre si, seja mostrando a relação entre elas, e com
mais acuidade ainda evidenciando a vinculação do corpo jurídico a determinados
conceitos tidos como fundamentais. O que se busca, na verdade, é a construção de uma
ciência jurídica, portadora de autonomia, em que o direito possa ser pensado a partir de
sua própria estrutura jurídica, sem se ocupar com questões exógenas de ordem ética,
política, social, antropológica ou psicológica. Seguindo os ventos favoráveis do
positivismo cientificista de Augusto Comte, que prezava pela objetividade construída
no campo das ciências naturais, a edificação da ciência do direito, também lida como
teoria geral do direito, não visava outra coisa senão expurgar os elementos
extrajurídicos que minavam a objetividade e a autonomia do direito.

■ 2.11.1. Normativismo de Hans Kelsen (15/07/2020)


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Kelsen é um pensador do século XX, porém suas ideias não podem ser lidas sem o
pano de fundo do século XIX. Uma boa síntese com o escopo de introduzir o
pensamento de Kelsen fora realizada por Gianluigi Palombella. “Se o direito até
Kelsen fora inteiramente atraído para a órbita do Estado, agora o Estado é inteiramente
atraído para a órbita do direito” (PALOMBELLA, 2005, p. 166). O Estado, para Kelsen,
é considerado produto da construção jurídica.

É clara a demonstração de que o direito em Kelsen deverá buscar em sua própria


estrutura interna a pretensão de objetividade, sem se valer de uma teoria da justiça que a
remeta aos direitos naturais. E, vinculado a uma teoria normativista, Kelsen quer separar
o direito do fato, a saber, separar o direito do poder. Essa separação é fundamental e
remonta a Santo Agostinho quando este indaga o que permite distinguir os
mandamentos ofertados pelo legislador das ordens dadas por um bando de ladrões. O
projeto teórico de Kelsen não deixa de ser audacioso e cumpre em sua obra mais
conhecida, Teoria Pura do Direito, a intenção de assegurar uma base científica ao
direito.
Há uma diferenciação fundamental que seguirá o pensamento kelseniano: a
separação entre normas e fatos. O direito (norma) é distinto do poder (fato). Na relação
entre normas e fatos, Kelsen faz o peso da balança pender para as normas, o que o torna,
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nesse sentido, um normativista. O Estado deve ter sua atuação regulada por normas
portadoras de objetividade. Contudo, Kelsen não abre mão (não desiste) de entender o
direito como resultado da vontade do legislador, o que o coloca muito próximo ao
positivismo tradicional. Se a fonte do direito é a vontade e não a razão, então é preciso
justificar como essa vontade pode adquirir um caráter objetivo, sem correr o risco de a
mesma ser mera expressão da subjetividade manifesta em nome do Estado. Ou ainda,
em se tratando da aplicação do direito, evitar o psicologismo daquele que
instrumentalmente opera a norma ao caso concreto.

■ 2.11.2. A norma fundamental


Kelsen, ao defender a inexistência de conexão entre direito e moral, afirma que não
há vínculo entre “aquilo que o direito ordena e aquilo que a justiça exige, ou entre o
direito como ele é e como ele deve ser” (ALEXY, 2011, p. 3). Ao definir o direito como
“ordenamento normativo coativo”, busca firmar que a validade do mesmo se encontra
em uma norma fundamental que não é construída nem dada, mas pressuposta. É uma
norma meramente pensada. Para usar termos kantianos poder-se-á inferir que a norma
fundamental é entendida como condição de possibilidade da própria estrutura
normativa. Ela é formal e neutra quanto aos possíveis conteúdos jurídicos talhados pelo
legislador e atribuídos socialmente.
Robert Alexy afirma que para se chegar à norma fundamental basta repercutir a
pergunta “por quê” várias vezes. Por que, por exemplo, a ordem de um bandido é
diferente da ordem de um funcionário da Receita Federal, já que ambos impõem a
terceiros, como ordem mandamental, o fornecimento de certa quantia de dinheiro? A
diferença está no fato de que o funcionário público está no cumprimento de um ato
administrativo, havendo, para sua ação particular, uma autorização legal. E onde se
encontra o fundamento para esta autorização legal? Na Constituição! E a Constituição
tem seu fundamento pautado em quê? Nota-se que a imposição dos “por quês” pode
levar ao chamado “regresso ao infinito”, enfim, a um escalonamento de perguntas que
demandariam outras respostas num ciclo sem fim. A norma fundamental seria, portanto,
a resposta final a esta série de “por quês”.
Seria ela, a norma fundamental, um pressuposto “lógico-transcendental”
indispensável para o reconhecimento da validade jurídica das normas positivadas. Num
quadrante comparativo, o aspecto transcendental tematizado por Kant em sua Crítica da
Razão Pura, refere-se não àquilo que está além, mas aquém do sensível, portanto,
àquilo que torna possível a própria experiência. Transpondo comparativamente essa
base epistemológica para a dimensão normativa, a norma fundamental apresentar-se-ia
como condição de possibilidade da própria juridicidade, ou, melhor dizendo, como
condição de possibilidade da validade jurídica das normas positivadas.

 2.12. Carl Schmitt


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Se o pensamento de Kelsen é notório pela defesa do normativismo, Carl Schmitt, ao


contrário, é conhecido pelo antinormativismo. A oposição entre Kelsen e Schmitt que,
aliás, ultrapassa o âmbito teórico para aninhar-se na esfera pessoal, pode ainda ser
contrastada na polaridade entre o político e o jurídico, uma vez que Schmitt mantém o
primado do político sobre o jurídico, ao passo que Kelsen defende justamente o
contrário.
Schmitt acredita que Kelsen, ao construir uma ordem jurídica fechada em si mesma e
ancorada em uma norma (dever-ser) fundamental hipotética, não foi capaz de conceber
espaço para a política (ser). O normativismo de Kelsen teria despedido a política como
importante componente do caráter decisional, sobretudo em se tratando da aplicação
de normas.
Schmitt não concebe que a norma em si contenha as condições de sua realização e
efetivação. A norma nada realiza sem a participação de alguém que decida. A norma
não se autodefine nem se auto interpreta. A norma (dever-ser) para ter efetividade
depende de sua aplicação a uma situação concreta e de uma autoridade que decida (ser).
É possível notar que Schmitt coloca o peso da atividade jurídica no elemento decisório.
“A decisão tomada por uma autoridade torna possível a existência de uma norma, em
suma, o próprio fato da norma” (BILLIER, 2005, p. 239). Schmitt quer mostrar que
a decisão não é simplesmente deduzida da norma, como se fosse possível proceder a
uma operação analítica. A decisão (ser) não está dissociada da aplicação de uma norma
(dever-ser) ao caso concreto. Contudo, à decisão convém um certo poder discricionário,
algo impensável a um sistema jurídico lógico-formal, tal como projetado por Kelsen,
que sequer admite lacunas do direito.
Se no âmbito da aplicação das normas é necessário o caráter decisório, a mesma
regra aplica-se quando a questão é relativa ao fundamento da ordem jurídica, a saber, a
legitimidade do sistema jurídico. “No topo da ordem jurídica, não se encontra nenhuma
norma, menos ainda uma norma fundamental hipotética. No fundamento da ordem
jurídica, não se descobre senão a decisão do soberano. A ordem jurídica repousa
sobre uma decisão e não sobre uma norma” (BILLIER, 2005, p. 240).

2.13. Realismo jurídico

O realismo jurídico é uma corrente teórica que se posiciona como antiformalista. É


preciso, então, recordar que a teoria formalista justifica o direito como um conjunto de
regras, preceitos e conceitos deduzidos de uma norma hipotética, construída
mentalmente, e que não está adstrita a nenhuma autoridade ou influência valorativa. O
nome por excelência do formalismo, como vimos, é Hans Kelsen, que fala da norma
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fundamental como norma necessária, ainda que hipotética, para legitimar a validade
jurídica de todas as normas que formam o ordenamento jurídico. A norma fundamental
é a que assevera a eficácia não só das normas em geral, mas da própria Constituição
construída historicamente.
O realismo jurídico é, portanto, uma postura crítica ao formalismo e,
consequentemente, ao próprio Kelsen. Nos Estados Unidos, o realismo jurídico serviu
de base ao movimento que, mais tarde, na década de 1960, seria conhecido por Critical
legal studies, tendo como importante representante o brasileiro Roberto Mangabeira
Unger. Na Escandinávia, o realismo jurídico ganha projeção com o jurista dinamarquês
Alf Ross.
Em linhas gerais, os pontos mais importantes do realismo jurídico apontam para uma
concepção jurídica menos formalista e idealista e mais factual e empírica, além de
deslocaram a base do direito do legislador para os tribunais. Para o realismo, o direito
é o que é em função dos julgamentos judiciários formulados de maneira instrumental e
funcionalista para atender a políticas de governo. Os realistas voltaram a atenção para a
“natureza do raciocínio elaborado pelos juízes” na hora da decisão. Ainda que o direito
seja composto de regras que ajudam a balizar a decisão dos juízes, não significa que seja
possível esperar dos juízes decisões previsíveis. Os realistas mais céticos em relação à
decidibilidade judicial afirmam não haver critérios que permitam esperar uma decisão
objetiva; antes, ao contrário, as decisões dos tribunais se reduzem a escolhas arbitrárias
dos juízes.
E as regras jurídicas não ajudam a evitar decisões discricionárias porque elas são
construídas com o auxílio de termos vagos e indeterminados que, ao serem aplicadas
aos casos concretos, abrem um leque muito grande de escolhas ao juiz, que acaba
reverberando em arbitrariedades. “O direito, concluem os realistas, não vive nas
palavras do legislador, nem nas coletâneas da jurisprudência, mas nas ações concretas
dos tribunais e no comportamento dos juízes que fazem o direito” (BILLIER, 2005, p.
256).
Os realistas americanos, em parte influenciados pela filosofia do Empirismo
Lógico do primeiro Wittgenstein, adotaram uma posição de repúdio a toda e
qualquer metafísica, motivo pelo qual criticaram o formalismo de Kelsen como
construção teórica destituída de lastro empírico. A primazia pelo empírico colocou os
realistas próximos a uma ciência descritiva que apenas se ocupa de descrever as coisas
como elas são (ser) e não a partir de como deveriam ser (dever-ser).

■ 2.13.1. A teoria de Alf Ross


Alf Ross foi aluno de Kelsen e buscou encontrar uma posição intermediária entre seu
mestre e os realistas americanos. Em suma, ele procurou um meio-termo entre o
formalismo de Kelsen e o antiformalismo dos realistas americanos. Kelsen havia
separado o ser (eficácia) do dever-ser (validade) e valorizado o dever-ser, aspecto
normativo. Os realistas americanos, ao contrário, desconsideraram
o dever-ser (normatividade) e ficaram com o ser – a dimensão factual empírica. Alf
Ross deseja reconectar novamente ser e dever-ser, evitando a polaridade tomada tanto
por Kelsen quanto pelos realistas americanos. Sua posição é a de que a validade
empírica caminha ao lado da validade lógica.
Para Ross, o direito não se limita simplesmente àquilo que é decidido pelos tribunais,
como queriam os realistas americanos. O direito é, acima de tudo, um conjunto de
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normas que detém força obrigatória. “Um sistema jurídico nacional, considerado como
sistema válido de normas, pode consequentemente ser como um conjunto de normas
que sejam realmente operacionais no espírito do juiz, porque elas são percebidas por ele
como socialmente obrigatórias e, portanto, obedecidas” (ROSS, apud BILLIER, 2005,
p. 264).

■ 2.14. Reações ao positivismo jurídico

■ 2.14.1. Teoria do neokantismo


O pensamento do filósofo Immanuel Kant teve grande influência na delimitação
entre moral e direito. Conhecido por suas obras críticas, Kant buscou, no âmbito
da Crítica da Razão Prática, estabelecer o princípio supremo da moralidade assentado
na autonomia da vontade. A moral se vale da própria razão, na medida em que ela se
impõe à vontade, de forma categórica, exigindo que a ação se conforme aos ditames
racionais. A razão não fornece nenhum conteúdo valorativo como regra de ação.
Fornece, ao contrário, apenas um procedimento formal, que é o imperativo categórico,
expresso na seguinte formulação: “Age de tal forma que a máxima da tua ação possa se
enquadrar em uma legislação universal”. Significa que o sujeito, antes de agir, deve
confrontar sua máxima de ação (intenção de agir) com o imperativo categórico,
verificando se aquilo que ele pretende subjetivamente realizar pode ser universalizável
e, desse modo, passível de ser objetivamente realizado por todos.
O imperativo categórico é uma regra procedimental dada pela razão que serve para
discriminar máximas subjetivas de ação, verificando quais delas são passíveis de
universalização. Quando a máxima de ação é reprovada pelo imperativo categórico, não
sendo possível sua universalização, e, ainda assim, o sujeito a pratica, significa que a
ação realizada foi uma ação imoral. A ação imoral, portanto, é a ação executada
subjetivamente, porém reprovada objetivamente pelo imperativo categórico. Quando, no
entanto, o imperativo categórico aprova uma máxima de ação, ela se torna uma lei
moral, pois assume o status de ação que pode ser praticada por todos, dispondo de
objetividade e de universalidade. Contudo, o agir de acordo com a lei moral implica
uma disposição subjetiva da vontade. Quando a ação é realizada conforme a lei moral,
mas subjetivamente o sujeito a pratica motivado por interesses outros, Kant diz que
estamos diante de uma ação legal. Quando a ação é realizada conforme a lei moral e o
agente em sua subjetividade a realiza pelo estrito dever (obrigação) de cumprir o que a
lei moral determina, então se está diante de uma ação moral. Kant demonstra haver
uma distinção fundamental entre legalidade e moralidade (vide 3.2).
A separação entre moral e direito e a sua aproximação marcam boa parte do debate
no âmbito da Filosofia do Direito. Como já vimos, um dos pilares do positivismo
jurídico é a tese da separação entre direito e moral e, inclusive, os positivistas se valem
do próprio Kant para demonstrar que o estatuto da legalidade não se confunde com o da
moralidade. Porém, entre as reações contrárias ao positivismo jurídico encontra-se a
teoria do neokantismo, que retornará a Kant para justificar a tese da correlação entre
direito e moral.

■ 2.14.2. Pensamento jusfilosófico brasileiro. A teoria tridimensional do


direito de Miguel Reale
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Miguel Reale, renomado jurista brasileiro do século XX, vincula-se à corrente


jurídica que defende ser o direito composto de três dimensões: normas, fatos e valores.
É a chamada teoria tridimensionalista do direito. Há autores que enxergam estas três
dimensões do direito em separado, como é o caso do jurista alemão Gustav Radbruch.
Miguel Reale, ao contrário, analisa essas três dimensões – normas, fatos e valores –
interconectadas.
A tríade norma, fatos e valores revela que o direito não se solidifica sem a
conexão dos três. O direito é constituído primeiramente por um ordenamento jurídico
(aspecto normativo). É também o direito um fato que se constrói social e historicamente
(aspecto fático). E, por último, o direito busca aferir valor, sobretudo quando assume
a pretensão de expressar a justiça (aspecto axiológico).

Afirma Reale que, “desde o aparecimento da norma jurídica – que é a síntese


integrante de fatos ordenados segundo distintos valores – até ao momento final de sua
aplicação, o Direito se caracteriza por sua estrutura tridimensional, na qual fatos e
valores se dialetizam, isto é, obedecem a um processo dinâmico” (REALE, 2012, p. 67).
A dialética a que se refere Reale é denominada “dialética de implicação-polaridade”,
pois fatos e valores se correlacionam de forma mútua (implicação), porém sem se
reduzirem um ao outro (polaridade).
Por fim, um conceito que merece ser destacado no pensamento de Reale é o
de nomogênese jurídica. Este termo é usado para explicar o processo de criação da
norma jurídica, que, segundo Reale, tem como ponto de partida os valores que incidem
sobre os fatos. Há inúmeros fatos na sociedade e uma expressiva quantidade de valores,
dos mais diversos matizes, que buscam atribuir um significado valorativo a esses fatos.
Os valores são fortes concorrentes a produzirem proposições normativas. O poder
estatal seleciona e determina quais das proposições normativas têm aptidão para serem
transformadas em normas jurídicas.
42

Fonte: BATALHA, Carlos Eduardo; SCHAHIN, Marcos Renato. Filosofia do


Direito. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 54 (Col. Os 10+, v. 20).

■ 2.14.3. Gustav Radbruch


Pensador neokantiano da Escola de Baden, Gustav Radbruch é um jurista com
destacada participação no debate jusfilosófico da primeira metade do século XX. Ainda
jovem, Radbruch era considerado um positivista. A ascensão do Nazismo na Alemanha
e o desdobramento da Segunda Guerra Mundial, como duas experiências trágicas que
marcariam a época contemporânea, fizeram com que Radbruch tecesse vultosa crítica ao
positivismo jurídico e se aproximasse do jusnaturalismo. Denunciou de forma
veemente o positivismo jurídico pelas atrocidades ocorridas no Nazismo. Para ele, a
arbitrariedade que levou o regime Nazista a cometer um verdadeiro crime contra a
humanidade foi endossada pelo modelo de lei e pelo critério de validade fomentados
pelo positivismo jurídico.
Após a Segunda Guerra Mundial e na linha oposta ao positivismo jurídico, Radbruch
defende que a lei deve conservar um valor que a previna de ser conduzida a
arbitrariedades. O direito, para ele, deve congregar três valores: o bem comum, a
segurança jurídica e a justiça. Ao colocar a justiça no centro de sua reflexão, o autor
invoca um direito supralegal, a exemplo dos jusnaturalistas, com vistas a proteger
princípios fundamentais que vão além do direito positivo.
Radbruch aponta para a preservação de direitos fundamentais, direitos os quais foram
tematizados pelo jusnaturalismo na perspectiva de direitos naturais e na ótica
de direitos racionais. Ainda que não se alcance uma base segura para falar de tais
direitos, a experiência histórica conseguiu reuni-los, de forma segura, nas declarações
dos direitos do homem. Radbruch é um jurista que, ao refletir as tragédias da primeira
43

metade do século XX, reavivou o jusnaturalismo, defendendo a correlação entre direito


e justiça, entre direito e valores.

■ 2.15. Variações do positivismo jurídico (22/07/2020)

■ 2.15.1. Herbert Hart


Hart é um positivista que segue próximo à marca normativista de Kelsen, mas que
de certo modo introduz aspectos novos na maneira de o direito operar, sobretudo em
relação aos casos difíceis. Sua novidade consiste na colocação da ideia de textura
aberta das regras jurídicas, posicionando-se entre o formalismo do positivismo
jurídico, que reduzia a aplicação do direito ao emprego do silogismo, e o realismo
jurídico, que declarava considerável dose de ceticismo em relação às regras jurídicas.
Para Hart, as regras jurídicas devem ser confeccionadas pelo legislador, pois só a ele
cabe a legitimidade de conferir regras que se impõem obrigatoriamente. Contudo, assim
como a linguagem tem uma textura aberta que permite ampla margem de interpretação
semântica do seu conteúdo propositivo, também a norma jurídica comportaria essa
mesma textura aberta, tornando por demais complexa a aplicação do direito, já que não
seria possível dar conta plenamente do objetivo proposto pelo legislador fixado no texto
de lei.

Na visão de Kelsen, em casos difíceis cabe à autoridade aplicadora do direito fazer


uso do poder discricionário, o que acarreta, sem dúvida, a sobreposição da subjetividade
em relação ao caráter objetivo que a regra busca garantir. Hart aponta que há inúmeras
fontes, mesmo não jurídicas, que balizariam a deliberação do juiz, permitindo a ele
apresentar no contexto mais amplo da sociedade “razões plausíveis” de sua decisão.
Mesmo assim, Hart não superaria o aspecto discricionário do juiz, visto que, a cada
novo caso concreto e a cada nova decisão, o juiz correria o risco de assumir a postura de
legislador, exercendo uma atividade destituída de legitimidade para a qual ele não foi
chamado.
Hart apresenta dois modelos de regras que compõem o sistema jurídico, a saber:
regras de conduta e regras de reconhecimento.
Regras de conduta: são regras aceitas como válidas dentro do sistema de direito, as
quais devem ser obedecidas. São chamadas de regras primárias.
■Regras de reconhecimento: são regras que incidem no critério de validade das
regras de conduta, as quais devem ser reconhecidas pelas autoridades no processo
44

de criação, modificação ou revogação e aplicação das regras de conduta. São


chamadas de regras secundárias.
As regras de reconhecimento balizam a validade das regras de conduta e de
comportamento do sistema de direitos, porém elas mesmas não são mensuradas quanto
à sua validade ou invalidade. As regras de reconhecimento encontram-se no mesmo
patamar da norma fundamental de Kelsen, cuja validade não é questionada, mas aceita.
“O caráter ‘obrigatório’ das regras de reconhecimento procede unicamente do fato de
sua aceitação” (BILLIER, 2005, p. 411).
Ao passo que para Kelsen a norma fundamental é uma ficção criada racionalmente,
as regas de reconhecimento, para Hart, decorrem de um fato social, ou seja, elas
estão encarnadas socialmente.

■ 2.15.2. Norberto Bobbio


Bobbio é um positivista contemporâneo que se apropria do legado de Kelsen e, ao
mesmo tempo, em certos aspectos, dele se distancia. O ponto fundamental de Bobbio é
a sua defesa de que o direito não deve ser explicado centrado na norma, mas deve ser
compreendido à luz do ordenamento jurídico, a saber, do sistema que reúne o conjunto
de normas em determinada ordem jurídica. O direito, para ele, não se define – usando a
própria terminologia de Kelsen – a partir da norma isolada (nomostástica -
http://lex.com.br/doutrina_27058022_TEORIA_DAS_NORMAS_EM_KELSEN_NOM
ODINAMICA_E_NOMOESTATICA.aspx), mas do conjunto das normas relacionadas
entre si (nomodinâmica -
http://lex.com.br/doutrina_27058022_TEORIA_DAS_NORMAS_EM_KELSEN_NOM
ODINAMICA_E_NOMOESTATICA.aspx). A teoria do Direito de Kelsen, sendo eidética
(substantivo feminino [Filosofia]. Pertencente à essência abstrata das coisas, dos sentidos idealizados,
por oposição ao que existe realmente. [Psicologia] Pensamento segundo o qual algumas pessoas têm a
capacidade de evocar eventos passados ou imagens de coisas já vistas), busca compreender a
estrutura lógica do Direito, objetivando ordenar, no plano epistemológico, o objeto do
conhecimento da ciência do Direito, isto é, as normas jurídicas, enunciadas como
descrição analítica pelas "proposições jurídicas" (Rechtssatz) (KELSEN, 1998a, p.52).
Como positivista, Bobbio aponta a importância do poder soberano como fonte
legítima para emanar as normas jurídicas, destacando, ainda, o uso da força para o
cumprimento delas. É deste poder soberano que deriva a legitimidade não apenas da
norma, mas, sobretudo, do ordenamento jurídico.
O sistema jurídico visto como um complexo orgânico de normas impõe o conceito de
ordenamento jurídico. Este, na perspectiva de Bobbio, fornece a condição de existir do
próprio direito, o que implica dizer que as normas jurídicas existem em razão do
ordenamento jurídico, enquanto sanção organizada e institucionalizada, motivo pelo
qual as normas jurídicas são distintas de outros exemplares normativos, como as
normas éticas, religiosas etc.
O ordenamento jurídico em si constitui uma fonte de regulação. Ele regula o
comportamento social e os procedimentos pelos quais as normas são produzidas. No
primeiro caso, trata-se de normas de comportamento, e, no segundo, de normas de
estrutura. As normas de estrutura, também chamadas de normas de segunda
instância ou comandos de comandar, demonstram a complexidade do ordenamento
jurídico, pois o ordenamento não se limita a simplesmente tratar de normas de conduta,
consideradas imperativos de primeira instância.
45

Na esteira de Kelsen, a norma fundamental é mantida como pressuposto do


ordenamento jurídico. A norma fundamental não é expressa, mas pressuposta. Sem ela
não haveria possibilidade de falar em normas escalonadas e ordenadas de forma
hierárquica, nem mesmo da própria unidade do ordenamento jurídico. Mas, quanto ao
fundamento da norma fundamental, nem sequer é uma questão que deve ser colocada,
pois se ela fosse fundamentada pressuporia haver outra norma da qual ela dependeria.
Não seria, pois, a norma fundamental.
Por considerar o ordenamento jurídico uma totalidade ordenada, Bobbio recusa a
ideia de Kelsen segundo a qual a existência de normas contraditórias não invalidaria o
sistema jurídico. Para Bobbio, ao contrário, não podem coexistir normas incompatíveis
no ordenamento jurídico.
Abre-se, nesse sentido, o problema das antinomias. Bobbio distingue-as em
antinomias aparentes e antinomias reais.
■Antinomias aparentes decorrem da incompatibilidade entre duas normas e são
passíveis de solução (solúveis) por intermédio de três critérios: 1) cronológico, em
que prevalece a norma posterior; 2) hierárquico, que faz aproveitar a norma
superior; 3) especialidade, em que, havendo uma norma especial e outra geral,
dá-se preferência à norma especial.
■Antinomias reais são aquelas consideradas insolúveis, pois não haveria nenhum
critério a ser aplicado para resolvê-las. Também chamadas de antinomias
insolúveis.
Em casos de antinomia, pode o intérprete se valer de três saídas: 1) intepretação
ab-rogante, em que se eliminaria uma das normas em conflito; 2) dupla ab-rogação,
em que se eliminam as duas normas conflitivas; e 3) intepretação corretiva, em que se
busca conservar as duas normas incompatíveis entre si, fazendo valer a coerência
corretiva do sistema.

■ 3. DIREITO E MORAL

■ 3.1. Ética utilitarista


O berço do utilitarismo é a Inglaterra e o precursor desta corrente teórica é Jeremy
Bentham (1748-1832). A indicação geográfica do nascimento do utilitarismo é
importante porque o associa, já de saída, ao empirismo inglês. O empirismo de
Bentham o leva a rejeitar toda e qualquer metafísica, motivo pelo qual ele tece críticas
ao jusnaturalismo, sobretudo à ideia de que o direito se funda na natureza humana.
Para um empirista, a pergunta inevitável é a respeito do lastro empírico do conceito
“natureza humana”. Não havendo dados empíricos que definam a “natureza
humana”, o conceito é qualificado como metafísico. Bentham chegou, inclusive, a
criticar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão por avocar os direitos
naturais e ser, por esse motivo, demasiadamente metafísica (BOBBIO, 2006, p. 93).
Referente à ética, Bentham acredita ser possível fundamentar uma ética objetiva,
cujas normas tenham validade a todos os seres racionais. Nesse aspecto, Bentham se
aproxima de Kant, que também buscava um fundamento para normas de validade
universal. O ponto norteador da reflexão de Bentham é o princípio da utilidade,
pautado na ideia de que todos os homens buscam a própria utilidade. É, portanto,
46

uma ética teleológica, mensurada pelos fins, na medida em que estes fins são buscados
em função da utilidade que possuem.

Essa regra confirma o utilitarismo como uma ética de base empírica e


consequencialista, que também lhe permite ser chamada de consequencialismo ético. O
utilitarismo é aplicado tanto à ética quanto ao direito. No aspecto jurídico, é considerada
justa a lei que for capaz de promover o bem-estar (prazer ou felicidade) ao maior
número possível de pessoas (maioria).
John Rawls, crítico contemporâneo do utilitarismo, dirá que a realização do
bem-estar da maioria não é um critério adequado de justiça, visto que pode
desconsiderar ou preterir os direitos individuais ou de minorias. O bem-estar da maioria
pode aniquilar ou desrespeitar o bem-estar individual.

■ 3.1.1. John Stuart Mill


John Stuart Mill leva adiante o pensamento utilitarista de seu antecessor, Jeremy
Bentham. Em sua obra Sobre a liberdade, de 1859, Mill reflete a respeito da relação
entre independência individual e controle social, relação esta que foi cobrada no XXI
Exame de Ordem Unificado/FGV. Ainda que tenha delineado, em uma base liberal,
forte defesa do indivíduo, Mill reconhece a necessidade do controle social, porém
afirma que este não deve ser ilimitado. Como então conciliar a relação indivíduo e
sociedade? (Vide 1.5.)
Ao refletir sobre a liberdade, Stuart Mill não se detém em discorrer sobre a liberdade
da vontade em sentido estritamente filosófico, mas trata da liberdade civil, aquela que
busca proteger o indivíduo contra a tirania dos dirigentes políticos, da autoridade
opressiva, de costumes e valores sociais despóticos, e da própria opinião pública
desvirtuada.
A Constituição de 1988, ao dispor sobre os direitos e garantias fundamentais,
elenca diversas acepções da liberdade que convêm ao indivíduo. A Constituição
resguarda, dentre outras, a liberdade de pensamento (CF, art. 5º, IV), a liberdade de
consciência e crença (CF, art. 5º, VI), a liberdade de expressão (CF, art. 5º, IX) e a
liberdade de associação (CF, art. 5º, XVII). Em SOCIEDADES ANTIGAS, destaca
Mill, a liberdade individual era quase sempre confrontada com a autoridade e a tirania
dos governos. NA MODERNIDADE ocorreu o reconhecimento de certas imunidades
que limitaram a ação dos governantes, visando salvaguardar a liberdade individual. Em
sociedades democráticas, como é a nossa, o Estado passa a ser o guardião da
liberdade e dos direitos individuais. Para isso, no entanto, é indispensável que o poder
47

exercido pelos governantes esteja em consonância com a vontade do povo. E aí nasce o


nó górdio para Mill: a representação popular não constituiria uma nova forma de
tirania, fundada em uma opinião pública homogênea e uniforme? Não correria o
perigo de o indivíduo se tornar refém da tirania da opinião da maioria? A liberdade do
indivíduo, nesse caso, deve ser protegida tanto em relação ao poder do Estado quanto
em relação às pressuposições majoritárias ostentadas na sociedade. A opinião
majoritária enfrenta a tentação de governar todos os aspectos da conduta humana, o que,
na reflexão de Mill, é bem típico das religiões quando formatam estruturas de
comportamento moldadas no atacado, sem apreço por discussões no varejo.

Há, contudo, um único princípio que justificaria a interferência na liberdade de


outrem: a autoproteção. “Pois o único propósito para o qual o poder pode ser
legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada,
contra sua vontade, é evitar danos aos outros” (MILL, 2016, p. 22). No tocante ao
indivíduo, Mill o defende em sua soberania absoluta. Posiciona-se, desse modo, em
meados do século XIX, como importante defensor dos direitos e das garantias
individuais.

■ 3.2. Teoria de Immanuel Kant


Kant é considerado um dos pensadores mais influentes da MODERNIDADE. Sua
reflexão no campo da razão prática destaca-se por promover a busca do princípio
supremo da moralidade, que, segundo ele, encontra-se na autonomia da vontade. A
moralidade, para Kant, é revestida de um valor incondicionado, e o conceito de “boa
vontade” é o ponto-chave de sua reflexão. Diz Kant: “Praticamente bom é, porém,
aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por conseguinte
não só por causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer, por princípios que são
válidos para todo ser racional como tal” (KANT, 1998, p. 48). A boa vontade está
intrinsecamente relacionada à capacidade de a razão determinar a vontade.
Kant, na verdade, se distancia do utilitarismo, negando que o valor das ações esteja
na utilidade ou na realização da felicidade. Caso a finalidade dos seres humanos fosse a
felicidade, diz Kant, muito mal teria agido a natureza, dando-nos a razão para a
consecução de tal fim. A razão, nesse caso, não seria senão um instinto mais apurado a
conduzir a ação humana à realização das forças naturais, que pouco ou quase nada nos
distinguiria dos animais.
O formalismo da moral kantiana consiste basicamente em apresentar a razão
enquanto princípio que determina a vontade para agir, isenta de qualquer pressuposto
natural ou valorativo. A ideia é apresentar a razão como detentora da capacidade de
48

determinação da vontade, segundo uma lei que a razão dá a si mesma de modo a priori.
Essa lei dada a priori pela razão é o imperativo categórico. “Age de tal forma que
máxima de tua ação possa se enquadrar em uma lei universal”; isso significa, segundo
Kant, que a vontade, como faculdade humana, ao agir determinada pela razão,
estará em condições de concretizar a ação moral.
Porém, a vontade humana não é perfeita, uma vez que em nós, humanos, não há uma
identificação perfeita entre vontade e razão. A vontade humana é subjetivamente
contingente e só age em consonância à determinação objetiva da razão mediante
obrigação (caráter deontológico). A mediação do imperativo categórico, enquanto
princípio objetivo e obrigante para uma vontade, consolida o perfil da vontade humana,
que não é perfeita, mas está a caminho desta. Certamente que o imperativo categórico
somente adquire sentido tendo por base a imperfeição da vontade humana. A
incompletude desta proporciona condições para que se argumente a favor da coerção
racional da vontade como caminho necessário para a realização de uma ação moral
(vide 2.11.1).

■ 3.3. Princípio universal do direito


Como visto acima, a moral em Kant é fruto do constrangimento que a razão, por
meio do imperativo categórico, exerce objetivamente sobre a dimensão subjetiva da
vontade. Kant coloca o homem no meio do caminho entre Deus (Divino) e os animais
(natureza). Deus dispõe de uma vontade perfeita, na qual vontade e razão se
identificam. Os homens têm uma vontade imperfeita, em que a relação entre vontade e
razão se dá mediante obrigação. E os animais são seres arrastados pelo instinto de
conservação, que visam aumentar o prazer e diminuir a dor. Kant constrói sua reflexão
sem conceder demasiado ao céu (idealismo) e sem restringir tudo à terra (empirismo).
O homem fica, pois, no meio-termo entre o empirismo e o idealismo. E é nesse
meio-termo que também se encontra o direito. Assim como a moral só faz sentido por
meio da liberdade plena – autonomia da vontade –, também o direito somente terá
significado entre pessoas livres. Essa reciprocidade pela liberdade não é empírica, mas
ideal. É por intermédio da liberdade que se asseguram as condições de possibilidade
para a realização dos fatos jurídicos (empíricos).
No âmbito da moralidade, o imperativo categórico assegura as condições para o
exercício pleno da liberdade – manifestada na determinação racional da vontade –, que
Kant chama de autonomia. No direito, a questão é “como assegurar o máximo de
liberdade com um mínimo de restrições” (BILLIER, 2005, p. 154). Esse é o papel
imperativo do direito. Se a moral é uma obrigação imperativa interna da consciência, o
direito, ao contrário, é uma forma de obrigação que se impõe externamente, mediante a
coação. A obediência às leis jurídicas não é senão o cumprimento da legalidade, o que
pode ser feito sem nenhum compromisso moral, uma vez que a moral impõe autonomia
e o direito requer o cumprimento de uma norma heterônoma. Como bem destaca
Norberto Bobbio, o direito para Kant é “o meio para garantir a coexistência das esferas
de liberdade externa de todos os cidadãos” (BOBBIO, 2006, p. 151).

■ 4. DIREITO: COAÇÃO E CORREÇÃO (AULA DO DIA


20/07/2020)
49

■ 4.1. Direito e coação


Uma das formas de caracterizar o positivismo jurídico é aquela que defende o
binômio direito-coação. Assumir que o direito é uma ordem de coação significa ligar o
direito ao poder e, de imediato, ao poder estatal. Logo, a coação é o termo-chave que
vincula o direito ao Estado em uma perspectiva que associa a filosofia do direito à
filosofia política. Pensar o Estado, na Modernidade, é pensá-lo sob a ótica dos autores
contratualistas, que o caracterizaram sob o pano de fundo do estado de natureza.
Assegurar o cumprimento de um dever mediante o poder ou o uso da força tem
significados distintos no estado de natureza e no Estado civil. No estado de natureza, o
indivíduo pode até fazer uso da própria força para garantir o que lhe é devido, mas não
deixaria de cometer um ato de violência. No Estado civil é recomendável que se busque
o Estado para que este use a força e obtenha a justa reparação nas relações individuais,
não sendo a ação estatal considerada violenta, pois é revestida de uma espécie de
“coercibilidade lícita”.
O direito moderno assenta-se em dois aspectos fundamentais: sua positividade e, ao
mesmo tempo, sua pretensão de aceitabilidade racional. Em Kant, as normas do
direito são perspectivadas como leis de coerção (comportamento conforme a
legalidade) e leis da liberdade (reconhecimento do dever moral da lei). Isso demonstra
que a tensão entre facticidade e validade em Kant está colocada na relação interna entre
coação e liberdade, a saber, na autorização do uso da coerção legitimamente exercida
pelo Estado e na coexistência das liberdades dos arbítrios de todos aqueles que estão
sob a proteção da norma jurídica.
Enfim, Kant enxerga o direito como portando as condições de garantir a coexistência
da liberdade de todos os cidadãos, sem, no entanto, abrir mão (renunciar)do seu caráter
peculiar, que é impor a obrigação de forma coativa.
Jürgen Habermas expressará a dualidade kantiana em termos de validade social
(fática) e legitimidade. A validade social ou fática é determinada pelo grau de aceitação
da norma jurídica no contexto da sociedade. A aceitação normativa não é amparada pela
tradição de valores ou costumes, como era comum em sociedades tradicionais, mas pela
imposição de sanções aplicadas pelo Judiciário. Resta à legitimidade normativa medir
sua força por meio do resgate discursivo de sua pretensão de validade, o que implica
dizer que a legitimidade não depende de a norma conseguir impor-se tacitamente, nem
se vale de coerção, valores, costumes ou qualquer pretensão metafísica, mas tão
somente do resgate discursivo operado em instância processual legislativa, desde que as
condições da sua justificação possam perpassar a formulação de discursos assegurados
em uma esfera democrática.
A positividade não significa outra coisa senão a criação de uma artificialidade
normativa consentida para dar conta de um fragmento da realidade. Via de regra, tal
preceito artificial pode ser modificado ou até mesmo revogado. Eis o porquê de
Habermas afirmar que “o pathos do positivismo jurídico alimenta-se desse voluntarismo
da pura criação” (HABERMAS, 1997, p. 60). Ainda assim, a validade do direito
exercida sob o caráter impositivo e coercitivo do Estado demanda um processo que o
torne racional, isto é, legítimo no sentido de garantir a liberdade de todos os sujeitos de
direito no contexto de um Estado que se propõe democrático.
50

As duas propriedades – coerção e correção – figuram “numa relação tensa, de tal


forma que se for acentuada a propriedade da coerção – como faz o positivismo –, o
direito tende a ser servil ao poder, e se for acentuada a validade, o direito tende a ser
servil à moral – como nas teorias do direito natural” (DUTRA, 2008, p. 22). O direito
vive em uma permanente tensão entre a política e a moral. Quando o peso da balança
pende mais à coerção, sobressai a posição positivista; quando, ao contrário, o peso
pende mais à moral, a concessão é dada ao jusnaturalismo e, também, ao
pós-positivismo.
É importante notar que a teoria da coação se subdivide em clássica e
moderna. Thomasius, Kant e Jhering são vistos como integrantes da teoria clássica –
que enxerga a coerção como meio necessário para fazer valer as normas jurídicas. Em
outras palavras: na teoria clássica, a validade (eficácia) das normas jurídicas se dá por
meio da coerção. A teoria moderna, que tem entre seus defensores Kelsen e Alf Ross,
defende que a coerção é inerente às normas jurídicas, a saber, “o direito é um conjunto
de normas que regulam o uso da força coativa” (BOBBIO, 2006, p. 155). Nesse caso, a
coerção, como condição própria do direito, cumpre a tarefa de regulamentar o uso da
força dentro de uma sociedade, evitando, assim, o retorno ao estado de natureza.

■ 4.2. Direito e correção


A questão da correção envolve a relação entre direito e moral. É sabido que essa
relação constitui um dos pontos fundamentais do debate que demarca a fronteira entre
positivistas e não positivistas. O positivismo defende a tese da separação entre direito e
moral, resguardando que não haveria qualquer vínculo que demonstrasse a necessidade,
nem lógica nem factual, da implicação entre direito e moral. A alegação que há uma
conexão entre direito e moral é sustentada pelos não positivistas. Robert Alexy, por
exemplo, é um autor que defende a conexão entre direito e moral e reputa que a
justificativa para esta defesa se pauta na exigência de correção ao direito. Assim diz: “A
pretensão de correção é necessariamente erigida em todos os sistemas jurídicos. Se ela
não é erigida, o sistema em questão não é um sistema jurídico” (ALEXY, 2014, p. 53).
Se há uma pretensão de correção que justifica a existência do próprio direito, então a
defesa da conexão entre direito e moral seria um passo consequente. A questão, no
51

entanto, é saber se a pretensão de correção é empírica, conceitual ou normativa? Se a


correção for uma decisão empírica, então ela não se sustentaria como uma necessidade.
A correção se impõe como necessidade em um patamar mais abstrato de reflexão. E isso
se dá na medida em que se espera que os atos jurídicos praticados dentro de um sistema
de normas sejam corretos. No caso, por exemplo, de uma decisão judicial, espera-se que
ela, enquanto ato jurídico, esteja correta tanto do ponto de vista substancial quanto do
ponto de vista procedimental. Em tal decisão, além da correção, espera-se que ela possa
ser justificada com base em razões e argumentos e que, igualmente, tenha aceitação, ou
seja, que atenda à expectativa de comportamento. Então um ato jurídico, na visão de
Alexy, deve ser correto, justificável e aceitável.
Seria, no mínimo, questionável uma sentença que prolatasse a seguinte decisão: “o
acusado é condenado por meio deste ato à prisão, apesar de a presente decisão ser
incorreta, pois o direito válido foi interpretado incorretamente” (ALEXY, 2014, p. 50).
Aparentemente o juiz da decisão incorreu em uma contradição performativa, uma vez
que a pretensão de correção inerente ao ato jurídico foi negada de forma explícita ao
proferir a decisão. Houve da parte do julgador o descumprimento das regras
convencionadas no direito vigente? Foi um mero erro de intepretação das normas ou ato
declarado de desonestidade? Parece que em todo ponto de vista conceitual há uma
conexão entre correção e direito, a menos que se diga que o direito é meramente
expressão de poder, vontade e subjetividade. Nesse caso já não se falaria mais em
pretensão de correção, mas em pretensão de poder, o que, aliás, são coisas bem distintas.
“Abrir mão (renunciar a) da pretensão de correção é abandonar a prática que é
definida pelas distinções entre o correto e o incorreto, a verdade e a falsidade, a
objetividade e a subjetividade e entre a justiça e a injustiça” (ALEXY, 2014, p. 51).
Abandonar a pretensão de correção é demitir o próprio direito e passar a regular as
interações humanas com base no arbítrio, no poder e em decisões subjetivas. Sem o
direito, não haveria coordenação de ações e tampouco a cooperação social regulada
por normas legítimas. Alexy diz que “a decisão entre a pretensão de correção e sua
alternativa é uma decisão existencial” (ALEXY, 2014, p. 52). Se é uma decisão
existencial querer ou não a regulação pelo direito, então o liame entre direito e correção
não deixa de apresentar-se como uma conexão conceitual que correlaciona direito e
moral. A pretensão de correção tem, pois, uma implicação existencial, uma decisão
ética, por assim dizer, ao passo que a pretensão de coerção que acompanha o direito
tem sua necessidade referendada por uma exigência instrumental de fazer prevalecer
a segurança jurídica e a eficiência do próprio sistema jurídico.

5. DIREITO E CIÊNCIA
Na Antiguidade grega, o direito era visto como área de reflexão situada no âmbito da
razão prática, e o discurso acerca da esfera jurídica era um discurso prático associado à
ética e à política. A ação ética, assim como a ação jurídica, eram muito mais
dependentes de orientações prudenciais do que propriamente de reflexões teóricas.
No contexto romano, o direito passou a ser visto como técnica de resolução de
problemas, havendo a compreensão de que seria necessário um estudo mais
aprofundado dos textos legais, assegurando-lhes coerência e, ao mesmo tempo,
autoridade para que pudessem se impor socialmente. O direito deixa de ser mera
conduta de prudência e se converte em um saber dogmático.
52

Na Modernidade, o direito se aproxima da ciência e passa a requerer que o conjunto


de suas leis, normas, doutrina e jurisprudência seja constituído na forma de um saber
científico. O positivismo jurídico se enquadra neste terceiro momento ao considerar que
os fatos jurídicos produzidos socialmente são semelhantes aos fatos que o cientista
observa na natureza.
Assim como o cientista mantém uma postura de observador em relação à natureza e
descreve suas descobertas de forma neutra, objetiva e avalorativa, o positivismo jurídico
também requer ao estudo do direito as mesmas caraterísticas do pesquisador das
ciências naturais. A primeira consequência dessa postura é a distinção entre fatos e
valores, devendo, pois, o fenômeno jurídico ser analisado despido de qualquer conteúdo
valorativo. O direito deve se ater aos fatos, deixando de lado a ética e os juízos de valor.
O positivismo jurídico impôs de maneira radical a separação entre direito e moral. A
segunda consequência refere-se à validade do direito, que deve se valer da própria
estrutura formal jurídica (formalismo jurídico) e não da disposição de valores para a
sua legitimidade social.

■ 5.1. A ciência moderna (22/07/2020)


A Modernidade, em seu projeto inicial, havia determinado como meta principal a
realização de uma civilização instaurada na razão, que fosse capaz de efetivar o sentido
emancipatório da vida humana. O domínio da natureza, que constituiu a expressão
teórica da ciência moderna, engendrou-se (desenvolveu-se) como forma de
conhecimento que visava contribuir para a concretização de uma sociedade livre de
superstições, delegando ao homem a posição de senhor da natureza e dono de seu
destino. O conhecimento científico e a apropriação da técnica por meio do positivismo
de Augusto Comte suprimiram a aspiração ao conhecimento teórico do mundo, em
benefício, quase que exclusivo, de sua utilização técnica.
A objetivação metódica da natureza foi alcançada graças à combinação da
matemática com a atitude instrumental, que, por meio da experimentação de seus
objetos disponíveis, passou a dispor da natureza para fins de exploração e de
manipulação. Desse modo, a ciência moderna, guardiã do estatuto epistemológico,
acabou por conceder o status de conhecimento somente ao conteúdo passível de
enquadramento aos requisitos científicos.
A decorrente tecnificação do mundo moderno impôs, também no campo da
sociabilidade jurídica, uma racionalidade de índole instrumentalizada que converteu as
questões de ordem prática (ética, política e direito) ao âmbito das decisões de ordem
técnica. O positivismo jurídico nasceu do esforço de aproximar a investigação jurídica
dos padrões operados nas ciências naturais, com uma racionalidade quantificadora de
índole técnica.
Atualmente, as correntes que se aproximam do Pós-positivismo destacam que o
modelo técnico-instrumental da razão não foi capaz de responder satisfatoriamente aos
problemas emergidos do âmbito social, mas acabou por reduzi-los à mesma lógica
instaurada no exercício de controle e dominação da natureza. O direito busca uma nova
reconciliação com a moral, porém, agora, amparada em princípios, e com uma
preocupação mais voltada à questão da aplicação (vide 1.6.2.3 e 1.6.2.4).

■ 5.2. Ciência do Direito como teoria da interpretação


53

Para Bobbio, “o fato novo que assinala a ruptura do mundo moderno diante das
épocas precedentes é exatamente representado pelo comportamento diverso que o
homem assumiu perante a natureza” (BOBBIO, 2006, p. 135). E o direito, à medida
que se aproximou da ciência, acabou por incorporar ao seu sistema a pretensão de que
as normas jurídicas obtivessem correspondência ao âmbito lógico, epistemológico e
metodológico. A utilização da lógica científica aplicada à metodologia das ciências
sociais, como é o caso do direito, foi uma ideia corrente no século XIX. O positivismo
jurídico foi o sustentáculo dessa experiência ao pretender que uma sentença judicial, por
exemplo, fosse resultado de um procedimento mecânico, matematizado, lógico e,
portanto, científico. Caberia ao juiz partir do texto de lei e realizar uma operação
lógico-dedutiva para alcançar o caso concreto, encaixando-o à norma, em um processo
denominado subsunção (Do ponto de vista jurídico a subsunção é quando o caso
concreto se enquadra à norma legal em abstrato. É a adequação de uma
conduta ou fato concreto (norma-fato) à norma jurídica (norma-tipo)).
A aplicação da lógica formal ao direito remonta à composição silogística de
Aristóteles e implica, ademais, considerar o direito um sistema formal, cujas normas são
estruturadas por princípios lógicos, destituídos de qualquer aspecto valorativo. Essa
concepção formalista de direito consubstanciou alguns parâmetros de
interpretação.
■Interpretação gramatical é a utilização das regras gramaticais para extrair
o significado do texto de lei.
54

■ 5.3. Crítica ao Direito como ciência e nova concepção de intepretação


Na medida que o Direito passa a ser criticado por fazer uso da lógica formal como
metodologia que não é peculiar à sua essência, aos poucos ocorre seu distanciamento
perante a ciência. Começa a ser notado, de forma crítica, que a atividade jurídica
não coaduna com a atividade científica, e que a certeza físico-matemática não se
identifica com a condição de probabilidade que acompanha, por exemplo, a intepretação
e a decisão judicial a respeito de um caso particular.
Instaura-se a compreensão de que o direito não pode estar vinculado à lógica, mas,
sim, aos fatos que são produzidos pela vida.
Contra o culto da lógica, que pensa fazer da ciência jurídica uma matemática do
direito, Jhering afirmava que, na verdade, são os conceitos que existem por causa da vida
(OLIVEIRA, 2012, p. 123).

Duas correntes teóricas seguiram essa linha pragmática do direito:

■ 5.3.1. Teoria da jurisprudência dos interesses


Entende o direito como resultado da disputa dos diversos interesses que entremeiam
a sociedade.

■ 5.3.2. Escola do direito livre


Compreende o direito como fruto de emoções, intuições e pressões daqueles que
decidem, ou seja, dos juízes que atuam nos tribunais constitucionais.

■ 5.4. A lógica do razoável


O espanhol Luis Siches é outro nome a confirmar que a lógica formal, amplamente
utilizada pelas ciências naturais, é insuficiente para dar conta dos problemas originados
na sociedade, aqueles produzidos pela ação humana. Para contrapor a lógica formal
entalhada na ideia de verdade, Siches cria a lógica do razoável, atrelada à ideia
de equilíbrio, harmonia e moderação de valores. Desse modo, há uma clara tentativa
de se afastar daquele procedimento formal do positivismo jurídico que se limita a
subsumir fatos a normas gerais. “A lógica do razoável apoia-se na antropologia
filosófica de Ortega y Gasset, segundo a qual a vida humana pertence ao reino da ação,
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que não se confunde com o campo do puro conhecimento” (OLIVEIRA, 2012, p. 132).
(Vide 1.3.1 e 1.3.2.)
Siches entende que o direito se forma entremeado aos pressupostos valorativos, os
quais se impõem historicamente. Significa afirmar que os valores são modificados com
o tempo e transformam a carga semântica das normas jurídicas. Assim, as normas serão
sempre passíveis de mudanças e transformações que as deixam reféns do processo
dialético da vida, ao mesmo tempo que as circunstâncias fáticas são distintas entre si.
As normas não podem estar desprendidas do contexto social e valorativo a que servem,
tendo ainda de ser adaptadas aos casos singulares, particularizando-se na peculiaridade
de cada caso concreto.
A aplicação da lógica do razoável necessita levar em consideração o contexto
histórico e valorativo que o direito opera, analisar os valores implicados nos casos
fáticos, suas possibilidades e limites, mensurar a relação dos valores aos fins
propostos, enfim, fazer uma interpretação construtiva que privilegie o caso concreto,
colocando-o como elemento referencial diante da norma.

■ 5.5. Chaïm Perelman (22/07/2020)


Perelman é um importante pensador do século XX, com formação em filosofia e em
direito, o que lhe permitiu discutir com propriedade o conceito de justiça e, também, os
critérios para a tomada de decisão. Tendo como avaliação a impossibilidade de alcançar
um conceito universal de justiça, destacou os modelos teóricos de justiça colhidos na
tradição Ocidental, avaliando seus aspectos positivos e negativos. Destaca a justiça
como: igualdade absoluta; igualdade distributiva; igualdade comutativa; igualdade
como caridade; igualdade aristocrática e igualdade formal (CASTILHO, 2016).
Retoma a retórica de Aristóteles, fazendo uma análise sistemática com o objetivo de
recolocar o papel da argumentação no processo decisório e evitar o caráter restritivo da
lógica formal que havia prevalecido no positivismo jurídico. Perelman é considerado
um pós-positivista.

■ 5.6. Racionalidade jurídica


Partindo do pressuposto que o direito é um sistema normativo e está vinculado à
regulação das ações produzidas no plano social, a justiça somente se realizará, de fato,
se estiver conexa a um caso concreto. Como assegurar que a racionalidade presente na
norma jurídica – que dispõe de uma validade geral, extensiva a todos os sujeitos de
direito – também se faça presente no caso concreto? Diante da variabilidade dos casos
concretos, torna-se praticamente impossível estabelecer uma regra geral que seja capaz
de regular a aplicação da norma geral ao caso particular. Esse problema foi enfrentado
de maneira distinta pelas correntes teóricas a seguir: hermenêutica jurídica; realismo
jurídico; positivismo jurídico; e pós-positivismo.
■Hermenêutica jurídica. Aponta que a aplicação do direito, a saber, a relação que
se faz entre a norma jurídica e o fato concreto, já está inserida em
uma pré-compreensão de valores e costumes albergados no contexto
histórico-social em que o sistema de direito está localizado. O problema da
hermenêutica, segundo Habermas, por exemplo, é que a racionalidade da decisão
estaria adstrita aos valores éticos, não sendo compatível com um modelo
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de sociedade complexa, como a atual, que comporta uma expressiva quantidade


de valores éticos. A racionalidade da decisão judicial ficaria reduzida ao caráter
preferencial de valores.
■Realismo jurídico. Compreende existir uma variabilidade de posições ideológicas
e políticas, além de interesses diversos dentro da sociedade, o que afetaria a
racionalidade da decisão, visto que, a depender da posição ideológica dos juízes,
os resultados fatalmente serão diferentes. Em regra, os realistas são céticos quanto
à racionalidade das decisões judiciais.
■Positivismo jurídico. Afirma que o direito é um sistema normativo, com regras e
conceitos formais próprios, que permitiria elaborar uma decisão judicial
independente de fatores extrajudiciais, tais como valores éticos (Hermenêutica) e
posições ideológicas e políticas (Realismo). A racionalidade da decisão seria
decorrência do procedimento formal e sistêmico do direito. Porém, em casos
difíceis, não resolvidos com a subsunção do caso concreto às normas, o
positivismo jurídico abre o expediente da discricionariedade do juiz.
■Pós-positivismo. Destacamos Dworkin, que critica as três correntes anteriores e
busca ir além delas. Na concepção de Dworkin, as normas são subdivididas
em regras e princípios. As regras são elaboradas pelo legislador e possuem
um caráter binário: válido e inválido. Os princípios são comandos
normativos que se impõem motivados pela justiça e a moral. Dworkin defende
que a formulação do sistema de direito incorpora pressupostos deontológicos
(justiça), não sendo o sistema todo ele condicionado à ideologia, interesses,
valores ou restrito ao formalismo sistêmico. O direito é um processo construtivo e
deve ser apreendido como um todo por aquele que o opera e a partir dele efetua a
decidibilidade.
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■ 5.7. Hannah Arendt


Hannah Arendt (1906-1975) destacou em suas obras importantes reflexões sobre a
política e o direito. Em As origens do totalitarismo, sobressai a expressão “o direito a
ter direitos”. A autora infere a necessidade de todo ser humano ter o direito de
pertencimento e de ser acolhido em um grupo humano. Ninguém poderá ser
arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de alterá-la. A
nacionalidade é o vínculo político-jurídico de fidelidade existente entre o Estado e o
cidadão. Esse liame garante ao cidadão as condições de dispor de direitos e de garantias
convencionados no direito pátrio, inferindo daí a importância de o homem pertencer a
uma comunidade política e ter o direito de ter todos os demais direitos.
Arendt reposta-se a uma cidadania ativa, em que o pertencimento a uma comunidade
politicamente organizada permite que o cidadão atue de forma participativa. Isso
significa, em termos, que a cidadania é resguardada quando se tem acesso pleno a uma
ordem jurídica que garante o direito a ter direitos. A privação de direitos políticos obsta
a liberdade de o ser humano ser tratado com respeito e igualdade pelos seus
semelhantes. A política é, nesse sentido, a experiência do pertencimento a um grupo
social e de poder gozar de direitos partilhados comumente. É na comunidade política,
estruturada juridicamente, que se encontram resguardadas as garantias dos direitos civis
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e políticos, os quais protegem o indivíduo de todo e qualquer ataque que possa diminuir
ou anular a sua dignidade.

■ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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