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Sociologia Geral (41100)

Texto de apoio ao estudo do tema 1


C. Wright Mills, A imaginação sociológica

Charles Wright Mills (1916-1962) foi um dos sociólogos mais originais do século
XX. Na obra A imaginação sociológica, publicada em 1959, Mills apresenta a sua posição
sobre o que a sociologia é ou, em rigor, do que a sociologia deve ser. Para isto, ele traça
um panorama da sociologia sua contemporânea nos Estados Unidos da América,
criticando de forma veemente as orientações sociológicas dominantes, nomeadamente,
a abstracção e falta de originalidade do estrutural-funcionalismo (a que Mills chama
“Grande Teoria”) e a tecnocracia desprovida de teoria da corrente quantitativa inspirada
por Paul Lazarsfeld.
No primeiro capítulo de A Imaginação sociológica, com o título apropriado “A
promessa” (da sociologia), Mills apresenta de forma lúcida e sintética a sua posição. Para
Mills, o que confere especificidade como campo do conhecimento à sociologia é aquilo a
que ele chama a “imaginação sociológica”. Esta não é um exercício de inspiração súbita
que torna os sociólogos em escritores de ficção. Antes, a imaginação sociológica é uma
capacidade (e uma vontade) de, permanentemente, ligar as biografias individuais às
estruturas históricas mais vastas no seio das quais as primeiras se desenvolvem. Muitas
vezes, os sujeitos sentem-se desorientados no mundo por não conseguirem
compreender o que se passa à sua volta de forma clara ou rigorosa. Concomitantemente,
os sujeitos, por vezes, não conseguem compreender lucidamente o que está a ocorrer
nas suas próprias vidas. A imaginação sociológica é, precisamente, o que permite
clarificar, em simultâneo, o sentido das vidas individuais e das estruturas sociais.
Para Mills, é impossível compreendermos indivíduos e estruturas de forma
separada. Apenas os podemos entender em conjunto, explorando as múltiplas ligações
entre eles, i.e., a forma como os indivíduos criam estruturas sociais ao interagirem uns
com os outros, dando um sentido ao processo histórico, e a forma como as estruturas
condicionam o que os indivíduos pensam, agem e são. Em locais diferentes e períodos
históricos diferentes, tanto os indivíduos quanto o tipo de sociedades são diferentes. Ao
longo do tempo, os indivíduos mudam porque as sociedade se alteram e vice-versa. A
tarefa da sociologia (e a sua promessa) é, precisamente, entender estes processos.
A imaginação sociológica implica colocar três tipos de perguntas: (1) quais são os
tipos de estruturas sociais que caracterizam uma sociedade concreta?; (2) como é que

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esta sociedade se enquadra no processo histórico de desenvolvimento humano mais
vasto?; e (3) que tipos de indivíduos são prevalecentes nesta sociedade?
Colocar estas questões implica que o uso da imaginação sociológica pressupõe
uma capacidade de relacionar permanentemente diferentes escalas analíticas (o micro e
o macro), objectos analíticos (o indivíduo e a sociedade) e espaços-tempo (a sociedade x
nos momentos 1 e 2, ou as sociedades x e y no momento 1). Ao praticar a imaginação
sociológica, os sociólogos têm de, constantemente, oscilar entre a análise de
características políticas gerais (das estruturas sociais) e de características psicológicas
íntimas (dos indivíduos), bem como entre a análise de tipos de estruturas variadas.
Deste modo, a imaginação sociológica é, simultaneamente, uma capacidade
estimulante e trágica: ela é uma postura que, por um lado, reencanta o mundo ao
ampliar e descobrir novas perspectivas e relações entre os fenómenos sociais e, por
outro lado, desencanta totalmente o mundo com a sua lucidez analítica, desfazendo as
ilusões que os indivíduos tinham sobre si mesmos e sobre o contexto sócio-político em
que vivem.
A imaginação sociológica é tanto uma questão académica quanto política. Ao ligar
biografia e história, ou biografia e estrutura, a imaginação sociológica desempenha um
papel político crucial pois permite ligar problemas privados e questões públicas, assim
transformando os primeiros nas segundas. Problemas privados são aqueles que dizem
respeito às biografia individuais, afectando um sujeito concreto. Questões públicas são
aquelas que afectam diferentes indivíduos numa mesma sociedade e num mesmo
momento histórico, influenciando a forma como cada um deles e, logo, todos eles em
conjunto, podem (ou não podem) viver as suas vidas. Sem imaginação sociológica, muitas
vezes, os indivíduos são incapazes de se aperceber das ligações das suas experiências
biográficas às estruturas históricas em que estas se desenvolvem, levando a que cada um
deles compreenda, erradamente, uma questão pública como sendo apenas um problema
privado. Enquanto que os problemas privados podem, pelo menos, em princípio, ser
solucionados através de estratégias individuais, o mesmo não ocorre com as questões
públicas. Não há respostas individuais para questões sociais. Se um fenómeno resulta
das características estruturais de uma sociedade, então, só alterando algo nestas
características estruturais é possível modificar esse fenómeno.
Um dos exemplos dados por Mills é o do desemprego. Se, numa sociedade
concreta num dado momento, um indivíduo está desempregado, isso é um problema
privado. O desemprego deste sujeito condiciona as suas possibilidades de vida, diminui

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os recursos a que ele tem acesso, perturba-o emocionalmente, mas é um problema
individual. Contudo, se, na mesma sociedade e momento, 20% da população está
desempregada, então, isto é uma questão pública, mesmo que, para cada um dos
indivíduos afectados, ela possa ser sentida como individual. Neste último cenário,
usando a imaginação sociológica, torna-se possível compreender as ligações entre o
problema privado de cada um dos indivíduos afectados pelo desemprego e as
características estruturais dessa sociedade que provocam uma tal taxa de desemprego,
assim tornando possível que estes vários problemas individuais, que têm várias
semelhanças sociológicas apenas de serem sentidos individualmente, se tornem uma
questão pública aos olhos dos indivíduos.
Porém, devemos ter em mente que o que define uma questão pública não é
somente a sua extensão quantitativa. Os sociólogos Norbert Elias e John Scotson, na
obra Os estabelecidos e os outsiders, destacaram que a significação estatística e a
significação sociológica dos fenómenos não são a mesma coisa, podendo um fenómeno
social ser estatisticamente significativo sem que o seja sociologicamente e vice-versa. C.
Wright Mills rever-se-ia nesta posição de Elias e Scotson. Para que um fenómeno seja
uma questão pública, mesmo ainda sentida como uma série de problemas individuais por
falta de imaginação sociológica, logo, para que seja sociologicamente relevante, este
tem de ser politicamente relevante, i.e., tem dizer respeito às características estruturais
de uma sociedade e condicionar as possibilidades de vida dos seus membros.
Se 80% da população preferir mostarda a ketchup, isto é estatisticamente
significativo, mas é, possivelmente, política e sociologicamente irrelevante. Por outro
lado, se 1 milhão de portugueses estiver ao mesmo tempo confinado nos seus domicílios
devido à covid-19, isto é um problema sociologicamente relevante pois, para além do
mal-estar individual de cada um dos afectados, é indissociável das características
estutruturais da sociedade em que este fenómeno ocorre (como lida com isto o sistema
de saúde, que formas de interacção promovem o contágio, que estratégias
governamentais inibem ou fomentam o aumento do número de casos de covid-19, que
efeitos tem isto sobre o rendimento dos membros dessa sociedade, etc.).
Tal como no tempo de Mills, a imaginação sociológica é hoje uma necessidade
fundamental. Praticá-la contribuirá para combater a irrelevância de muito do
conhecimento que é produzido actualmente (incluindo em alguns estudos que se
afirmam sociológicos) sobre os mais diversos assuntos. E contribuirá também para
combater a transformação continuada de questões públicas em problemas privados,

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assim indicando os aspectos problemáticos das características estruturais das sociedades
contemporâneas.

A leitura deste texto não substitui o estudo da bibliografia obrigatória desta unidade
curricular. Para proceder ao estudo deste ponto do programa desta unidade curricular,
deverá ler o texto disponibilizado na sala de aula virtual, cuja referência bibliográfica se
encontra de seguida.

Mills, Charles Wright (1982), “A promessa”, in idem, A imaginação sociológica. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 9-32. Edição original 1959.

Este texto foi preparado por João Aldeia como apoio ao estudo dos/as estudantes do
ano lectivo 2021/2022 da unidade curricular Sociologia Geral (41100) da Universidade
Aberta. O autor não autoriza a sua utilização para outros fins.

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