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A Imaginação Sociológica

Capítulo Um: A Promessa

C. Wright Mills (1959)

Atualmente as pessoas muitas vezes sentem como se suas vidas privadas fossem
uma série de armadilhas. Elas sentem que dentro de seus mundos cotidianos elas não
conseguem superar seus conflitos e, nesse sentimento, elas estão quase sempre
corretas. Aquilo de que as pessoas comuns estão diretamente cientes e aquilo que elas
tentam fazer é limitado pelas órbitas privadas em que vivem; suas visões e poderes
são limitados a cenas focadas em trabalho, família, vizinhança; em outros milieux,
movem-se vicariamente e permanecem espectadoras. Quanto mais cientes ficam,
mesmo que vagamente, de ambições ou ameaças que transcendem seus locais
imediatos, mais aprisionadas parecem se sentir.
Subjacente a essa noção de estar aprisionado estão mudanças aparentemente
impessoais na própria estrutura das sociedades continentais. Os fatos da história
contemporânea também são fatos sobre sucesso e fracasso de pessoas
individualmente. Quando uma sociedade é industrializada, um camponês torna-se um
operário; um senhor feudal é eliminado ou torna-se um homem de negócios. Quando
as classes ascendem ou caem, as pessoas são empregadas ou desempregadas;
quando a taxa de investimentos sobe ou desce, as pessoas reanimam-se ou
desanimam. Quando guerras acontecem, um corretor de seguros torna-se um
lança-foguetes; um balconista, um operador de radar; um cônjuge vive só; uma criança
cresce sem um dos pais. Nem a vida de um indivíduo, nem a história de uma
sociedade podem ser compreendidas sem que compreendamos ambas.
Ainda assim, as pessoas geralmente não definem os conflitos que enfrentam em de
mudança histórica e contradição institucional. Geralmente não atribuem o bem-estar do
qual desfrutam aos grandes altos e baixos das sociedades nas quais vivem. Raramente
cientes da intrincada conexão entre os padrões de suas próprias vidas e o curso da
história do mundo, pessoas comuns geralmente não sabem o que essa conexão
significa para os tipos de pessoas que estão se tornando e para os tipos de mudanças
históricas das quais podem fazer parte. Elas não possuem a qualidade de pensamento
essencial para compreender a interação entre indivíduos e sociedade; entre biografia e
história; entre si e o mundo. Elas não conseguem lidar com seus conflitos pessoais de
maneira a controlar as transformações estruturais que geralmente estão por trás deles.
Certamente não é surpresa alguma. Em que momento tantas pessoas foram tão
completamente expostas e em um ritmo tão acelerado a tais terremotos de mudanças?
Os estadunidenses não conheceram tais mudanças catastróficas como as pessoas de
outras sociedades devido a fatos históricos que agora estão rapidamente tornando-se
“meramente história.” A história que agora afeta cada indivíduo é a história mundial.
Dentro desse cenário e período, no curso de uma única geração, um sexto da
humanidade transforma-se de tudo o que é feudal e retrógrado em tudo o que é
moderno, avançado, e temido. Colônias políticas são libertas; novas e menos visíveis
formas de imperialismo são instauradas. Revoluções ocorrem; as pessoas sentem o
aperto íntimo de novas formas de autoridade. Sociedades totalitárias ascendem e são
esmagadas em pedaços — ou são fabulosamente bem sucedidas. Depois de dois
séculos de ascensão, o capitalismo é mostrado como apenas uma maneira de
transformar a sociedade em um aparato industrial. Após dois séculos de esperança, até
mesmo a democracia formal é restrita a uma porção bem pequena da humanidade. Em
todo lugar do mundo subdesenvolvido, antigos modos de vida são quebrados e vagas
expectativas se tornam exigências urgentes. Em todo lugar do mundo
superdesenvolvido, os meios de autoridade e de violência se tornam totalitários em
extensão e burocráticos em forma. A própria humanidade agora está diante de nós, a
supernação em cada polo concentrando seus esforços mais coordenados e massivos
na preparação da Terceira Guerra Mundial.
A própria formação da história agora ultrapassa a habilidade das pessoas de
orientarem-se de acordo com valores estimados. E quais são esses valores? Mesmo
quando elas não entram em pânico, as pessoas muitas vezes sentem que modos mais
antigos de se sentir e pensar colapsaram e que novos começos são ambíguos ao
ponto da estase moral. É de se surpreender que pessoas comuns sentem que não
conseguem lidar com os mundos mais amplos com os quais são tão repentinamente
confrontadas? Que elas não conseguem compreender o sentido de sua época para
suas próprias vidas? Que, em defesa da individualidade, se tornem moralmente
insensíveis, tentando permanecer indivíduos completamente privados? É de se
surpreender que se tornem possuídas por uma sensação de armadilha?
Não é apenas informação que precisam — nessa Era de Fatos, a informação
frequentemente domina a atenção das pessoas e sobrecarrega a capacidade de
assimilação. Não é somente as habilidades de raciocínio que precisam — embora seus
esforços para adquiri-las muitas vezes exaure sua limitada energia moral.
O que elas precisam, e o que sentem que precisam, é uma qualidade de
pensamento que as ajude a usar a informação e a desenvolver o raciocínio com intuito
de alcançar resumos lúcidos do que se passa no mundo e do que pode estar
acontecendo dentro de si mesmas. É essa qualidade, que argumento, que jornalistas e
estudiosos, artistas e públicos, cientistas e editores estão começando a esperar do que
pode ser chamado de imaginação sociológica.
A imaginação sociológica permite que seu possuidor entenda a cena histórica maior
em seu significado para a vida interna e carreira externa de uma variedade de
indivíduos. Ela permite que se leve em consideração como os indivíduos, na confusão
de suas experiências diárias, frequentemente têm uma falsa consciência de suas
posições sociais. Dentro dessa confusão, a estrutura da sociedade moderna é
buscada, e dentro dessa estrutura as psicologias de uma variedade de pessoas são
formuladas. Desse modo, a inquietação pessoal dos indivíduos é focada em conflitos
explícitos e a indiferença dos públicos é transformada em envolvimento em questões
públicas.
O primeiro fruto dessa imaginação, e a primeira lição da ciência social que a
incorpora, é a ideia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e
mensurar seu próprio destino localizando-se dentro de seu período, que só se pode
saber suas próprias chances na vida tornando-se ciente das chances de todos os
indivíduos nas mesmas circunstâncias que as suas. É uma lição terrível em vários
aspectos; magnífica em muitos outros. Não conhecemos os limites da capacidade
humana para o esforço supremo ou para degradação voluntária, para a agonia ou para
o contentamento, para a brutalidade agradável ou para a doçura da razão. Mas em
nossos tempos descobrimos que os limites da “natureza humana” são
assustadoramente amplos. Passamos a saber que cada indivíduo vive, de uma
geração para outra, em alguma sociedade; que ele vive uma biografia, e a vive dentro
de alguma sequência histórica. Pelos fatos desse viver, ele contribui, mesmo que
pouco, com a formação dessa sociedade e com o curso de sua história, mesmo sendo
ele feito pela sociedade e pelos seus empurrões.
A imaginação sociológica nos permite compreender a história, a biografia e as
relações entre elas dentro da sociedade. Essa é a sua tarefa e sua promessa.
Reconhecer essa tarefa e essa promessa é a marca do clássico analista social. É
característico de Herbert Spencer — túrgido, polissilábico, compreensivo; de E. A. Ross
— gracioso, escandaloso, justo; de Auguste Comte e Émile Durkheim; do complexo e
sutil Karl Mannheim. É a qualidade de tudo o que é intelectualmente excelente em Karl
Marx; é a pista para o brilhante e irônico discernimento de Thorstein Veblen, para as
multifacetadas construções da realidade de Joseph Schumpeter; é a base varredura
psicológica de W. E. H. Lecky bem como da profundidade e clareza de Max Weber. É o
sinal do que há de melhor em estudos contemporâneos das pessoas e da sociedade.
Nenhum estudo social que não retoma os problemas da biografia, da história e de
suas interseções dentro de uma sociedade completou sua jornada intelectual.
Quaisquer que sejam os problemas específicos do clássico analista social, por mais
limitadas ou amplas que sejam as características da realidade social examinada,
aqueles que têm estado imaginativamente conscientes das promessas de seus
trabalhos têm consistentemente feito três tipos de perguntas:
(1) Qual é a estrutura dessa sociedade particular em sua totalidade? Quais são seus
componentes essenciais, e como eles se relacionam entre si? Como difere de outras
variedades de ordem social? Dentro dela, qual é o significado de qualquer
característica particular para sua continuação e para sua transformação?
(2) Onde essa sociedade se posiciona na história da humanidade? Quais são as
mecânicas através das quais ela está mudando? Qual é o seu lugar e seu significado
para o desenvolvimento da humanidade por inteiro? Como alguma característica
particular que examinamos afeta e é afetada pelo período histórico em que se move? E
esse período — quais são suas características essenciais? Como difere de outros
períodos? Quais são seus modos característicos de fazer história?
(3) Que variedades de pessoas agora prevalecem nessa sociedade e período? Que
variedades prevalecerão? De que maneiras eles são selecionados e formados, libertos
e reprimidos, sensibilizados e anestesiados? Que tipos de “naturezas humanas” são
reveladas na conduta e no caráter que observamos nessa sociedade e período? Que
significado cada uma das características da sociedade que examinamos tem para
“natureza humana?”
Seja o ponto de interesse um grande poder estatal ou um diminuto estado de
espírito literário, uma família, uma prisão, uma crença — esses são os tipos de
perguntas que os melhores analistas sociais têm feito. Elas são os pivôs intelectuais
dos estudos clássicos de indivíduos na sociedade — e são questões inevitavelmente
levantadas por qualquer mente possuidora da imaginação sociológica. Pois, essa
imaginação é a capacidade de transitar de uma perspectiva para outra — da política
para a sociológica; da análise de uma única família para a avaliação comparativa dos
orçamentos nacionais do mundo; da escola teológica para a instituição militar; das
considerações de uma indústria petrolífera para os estudos de poesia contemporânea.
É a capacidade de transitar das transformações mais impessoais e remotas para as
características mais íntimas do ser humano — e ver as relações entre elas. De volta do
seu uso há sempre o impulso de saber o significado social e histórico do indivíduo na
sociedade e período em que se ele tem sua qualidade e seu ser.
É por isso, em resumo, que é por meio da imaginação sociológica que as pessoas
agora esperam compreender o que se passa no mundo, e entender o que está
acontecendo dentro de si mesmas como minúsculos pontos de interseção entre
biografia e história dentro da sociedade. Em grande parte, a visão autoconsciente da
humanidade contemporânea sobre si como sendo no mínimo uma forasteira, quando
não uma estranha permanente, reside em uma compreensão absorta de relatividade
social e do poder transformador da história. A imaginação sociológica é a forma mais
produtiva dessa autoconsciência. Através do seu uso, pessoas cujas mentalidades
vasculharam apenas uma série limitada de órbitas sentem muitas vezes como se
repentinamente acordassem em uma casa com a qual tinham apenas suposto estarem
familiarizadas. Correta ou incorretamente, elas passam a sentir como se agora
pudessem prover-se de sínteses adequadas, avaliações coesas, orientações
compreensivas. Antigas decisões que antes pareciam sensatas agora parecem-lhes
produtos de uma mente inexplicavelmente simplória. A capacidade de se admirarem é
revigorada. Elas adquirem uma nova maneira de pensar, vivenciam uma transvaloração
de valores: numa palavra, pela sua reflexão e por sua sensibilidade, elas percebem o
significado cultural das ciências sociais.
Talvez a distinção mais proveitosa com a qual a imaginação sociológica trabalha é
entre “os conflitos pessoais de milieu” e “as questões públicas da estrutura social.”
Essa distinção é uma ferramenta essencial da imaginação sociológica, uma
característica de todo trabalho clássico na ciência social.
Conflitos ocorrem dentro do caráter do indivíduo no âmbito de suas relações
imediatas com os outros; eles têm a ver com o seu eu e com aquelas áreas limitadas
da vida social das quais têm consciência direta e pessoalmente. Consequentemente, a
criação e a resolução de conflitos estão devidamente dentro do indivíduo como uma
entidade biológica e dentro do escopo do seu milieu imediato — o cenário social que
está diretamente aberto à sua experiência pessoal e, até certo ponto, à sua atividade
consciente. Um conflito é uma questão privada: um indivíduo sente que os valores por
ele estimados estão ameaçados.
Questões dizem respeito a assuntos que transcendem esses ambientes locais do
indivíduo e do âmbito da sua vida íntima. Elas têm a ver com a organização de muitos
desses milieux sob a forma de instituições de uma sociedade histórica em sua
totalidade, com as maneiras em que vários milieux sobrepõem-se e interpenetram-se
para formar a estrutura maior da vida social e histórica. Uma questão é um assunto
público: o público sente que algum valor por ele estimado está ameaçado. Há
frequentemente um debate sobre o que é realmente esse valor e sobre o que o
ameaça de fato. Esse debate é muitas vezes sem foco simplesmente porque é a
própria natureza de uma questão, diferente até mesmo dos conflitos generalizados, que
não pode ser muito bem definida em ambientes imediatos e cotidianos de pessoas
comuns. Uma questão, na verdade, envolve muitas vezes uma crise nos sistemas
institucionais, e também envolve muitas vezes o que os Marxistas chamam de
“contradições” ou “antagonismos.”
Nesses termos, consideremos o desemprego. Quando, numa cidade de cem mil
habitantes, apenas um está desempregado, isso é um conflito pessoal seu, e para sua
resolução, olhamos para o caráter do indivíduo, suas habilidades e suas oportunidades
imediatas. Mas quando numa nação de 50 milhões estão empregados, 15 milhões de
pessoas estão desempregadas, isso é uma questão pública, e nós não podemos
esperar encontrar a solução dentro do espectro das oportunidades abertas a qualquer
indivíduo. A própria estrutura das oportunidades entrou em colapso. Tanto a declaração
correta do problema e a gama de possíveis soluções exigem que consideremos as
instituições econômicas e políticas da sociedade, e não meramente a situação pessoal
e o caráter de um punhado de indivíduos.
Consideremos a guerra. O problema pessoal da guerra, quando ela acontece, pode
ser como sobreviver a ela ou como morrer com honra; como lucrar com ela; como
escalar até a mais elevada segurança do aparato militar; ou como contribuir com o
término da guerra. Resumidamente, de acordo com os valores de cada um, encontrar
um conjunto de milieux e dentro dele sobreviver a guerra ou tornar a morte de alguém
significativa. Mas as questões estruturais da guerra têm a ver com suas causas; com
os tipos de pessoas que ela coloca no comando; com seus efeitos sobre instituições
econômicas, políticas, familiares e religiosas; com a irresponsabilidade desorganizada
de um mundo de Estados-nações.
Consideremos o casamento. Dentro de um casamento um casal pode passar por
conflitos pessoais, mas quando a taxa de divórcios durante os primeiros quatro anos de
casamento é de 250 em cada mil tentativas, isso é um indicativo de uma questão
estrutural relacionada às instituições de casamento, de família e outras instituições que
pesam sobre eles.
Ou consideremos a metrópole — a horrível, bela, feia, magnífica expansão da
cidade grande. Para muitos membros da alta sociedade a solução pessoal para “o
problema da cidade” é ter um apartamento com garagem no coração da cidade e a 60
quilômetros dali, uma casa projetada por Henry Hill, com um jardim por Garrett Eckbo,
em 160 quilômetros quadrados de propriedade privada. Nesses dois ambientes
controlados — com alguns empregados em cada e um helicóptero particular para a
conexão — a maioria das pessoas poderia resolver muitos dos problemas de milieux
pessoais causados pelos fatos da cidade. Mas tudo isso, por mais esplêndido que seja,
não soluciona as questões públicas que a realidade estrutural da cidade apresenta. O
que deveria ser feito com essa monstruosidade? Quebrá-la inteiramente em unidades
espalhadas, combinando residência e trabalho? Renová-la da maneira que está? Ou,
após evacuação, implodi-la e construir novas cidades de acordo com novos planos em
novos lugares? Quais deveriam ser esses planos? E quem é que decide e põe em
prática qualquer que seja a decisão tomada? Essas são questões estruturais;
confrontá-las e solucioná-las requer que consideremos questões políticas e
econômicas que afetam inúmeros milieux.
Visto que uma economia organiza-se de tal forma que crises ocorrem, o problema do
desemprego vai além da solução pessoal. Uma vez que a guerra é inerente ao sistema
do Estado-nação e à industrialização desigual do mundo, o indivíduo comum em seu
milieu restrito será impotente — com ou sem ajuda psiquiátrica — para solucionar os
conflitos que esse sistema, ou falta de sistema, impõe a ele. Enquanto que a família,
como uma instituição, transforma mulheres em queridas pequenas escravas e homens
em chefes provedores e aleitados dependentes, o problema de um casamento
satisfatório permanece além da solução puramente pessoal. Considerando que a
superdesenvolvida megalópole e o superdesenvolvido automóvel são características
intrínsecas da sociedade superdesenvolvida, as questões da vida urbana não serão
resolvidas pela engenhosidade pessoal e riqueza privada.
O que vivenciamos em vários e específicos milieux, notei, é frequentemente
causado por mudanças estruturais. Dessa forma, para entender as mudanças de
muitos milieux pessoais devemos olhar além deles. E a quantidade, e variedade de tais
mudanças estruturais aumentam conforme as instituições dentro das quais vivemos se
tornam mais abrangentes e mais complexamente conectadas umas às outras. Estar
ciente da ideia de estrutura social e usar isso com sensatez é ser capaz de traçar tais
ligações em meio a uma grande variedade de milieux. Ser capaz de fazer isso é
possuir a imaginação sociológica.

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