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1
Concebe-se aqui a mediação como um processo pelo qual um ente ou uma realidade se torna num modo
de real-presença de um outro ente ou dimensão do real. Aproxima-se, por isso, do conceito rahneriano de
“símbolo real” (Cf. Karl Rahner, “Zur Theologie des Symbols”, in Schriften zur Theologie, Bd. IV,
Einsiedeln: Benzinger, 1967, 275-311). Instaura-se, portanto, uma relação de diferença e identidade, quanto
ao mundo fenoménico, entre aquilo que constitui mediação e aquilo que nela é mediado. Isso parece
corresponder à distinção inseparável de que fala Calcedónia.
2
Cf. Karl Rahner, “Theologie und Anthropologie”, in Schriften zur Theologie, Bd. VIII, Einsiedeln 1967,
43-65.
Mas esta constatação “transcendental” tem consequências “categoriais” na
elaboração concreta do trabalho teológico. Nesse sentido, a teologia – a não ser que
pretenda transformar-se num discurso superestrutural abstrato e alienante, deixando de
ser teologia cristã – terá que se desenvolver como fenomenologia da humanidade
concreta, na diversidade das suas realizações e dimensões quotidianas, assim como
hermenêutica dos contextos históricos em que ela se realiza, seja na dimensão pessoal
seja na dimensão social, incluindo a dimensão política. Nesse sentido, a teologia assume-
se como fenomenologia do quotidiano, que no contexto contemporâneo implica,
inevitavelmente, uma fenomenologia do uso quotidiano da tecnologia. Nenhuma
experiência de Deus, a qual permite que o discurso antropológico seja também teológico,
pode ser tematizada fora deste horizonte incarnado, tal como a experiência de Deus em
Jesus Cristo nunca pode ser sequer pensada sem que coincida completamente – nem mais
nem menos – com a experiência do humano Jesus de Nazaré.
2. Assumindo que a perspetiva fundamental da abordagem é antropológica, ela
terá que levar em conta a constituição do humano como sujeito, ainda que num sentido
muito genérico. Neste caso concreto, pressupõe-se que essa constituição, contudo, não é
imediata nem autorreferencial, mas sempre – ainda que não exclusivamente – mediada
em processos e ambientes que podem ser suficientemente descritos e que poderiam
denominar-se, genericamente, cultura. Nesse sentido, não é possível elaborar uma
antropologia fundamental que não leve em consideração uma antropologia cultural, sob
pena de construir um aparato abstrato que não permite compreender o humano no
quotidiano do seu dar-se real3.
3. O propósito de trabalhar questões de antropologia no ambiente digital, também
em perspetiva teológica, abre concretamente um leque quase infinito de possibilidades,
em rigor coincidentes com todos os aspetos inerentes a uma fenomenologia do humano
concreto e quotidiano. Como não podem ser tratados aqui todos os aspetos, a abordagem
opta por se concentrar numa perspetiva inspirada na leitura de uma proposta muito
concreta: a análise da “dialética” entre disponibilidade e indisponibilidade
(Unverfügbarkeit), avançada por Hartmut Rosa, sob o pano de fundo da sua teoria da
Ressonância (Resonanz)4; a aplicação da sua tese concentrar-se-á na questão da relação
3
Esta perspetiva de uma antropologia cultural do quotidiano inspira-se nas obras de Michel de Certeau,
L’invention du quotidien, : e de Begout
4
Cf. Hartmut Rosa, Unverfügbarkeit (Wien: Residenz Verlag, 2019); Id., Resonanz. Eine Soziologie der
Weltbeziehung (Berlin: Suhrkamp, 2016).
ao outro humano. Trata-se, portanto, de pensar a influência dos ambientes digitais sobre
o quotidiano da relação ao outro sujeito humano, na perspetiva da sua eventual
disponibilidade ou indisponibilidade ao si – o que, por extensão, implica também a
consideração da relação do si a si mesmo. Como alargamento da questão da
disponibilidade e com implicações mais explicitamente “religiosas”, trabalha-se depois a
relação das questões aí levantadas, nomeadamente em relação ao ambiente digital, com a
distinção avançada por Jan Patocka, retomada depois por Jacques Derrida, entre
sacralidade e responsabilidade.
Tendo em conta que a orientação do presente debate vai no sentido de
compreender os impactos antropológicos do ambiente digital, entendido este na sua
dimensão incarnada na cultura do quotidiano, procura-se trabalhar o debate sempre em
relação com a questão central da experiência do outro humano no ambiente digital,
nomeadamente naquela aplicação tecnológica em que a questão se levanta de forma mais
premente, nomeadamente o Facebook.
5
Byung-Chul Han, Im Schwarm. Ansichten des Digitalen (Berlin: Matthes & Seitz, 2013), 26
6
Salvatore Patriarca, Il digitale quotidiano. Così si transforma l’essere umano (Roma: Lit Edizioni, 2018),
93.
Esta conclusão imediata quanto à ausência do outro no Facebook corresponde a
um elemento que convém não ignorar: precisamente o da relação entre identidade e
corporeidade. Se o sujeito não pode separar-se da sua constituição corpórea, temos que
admitir que o outro sujeito não se encontra imediatamente presente na plataforma
tecnológica, pelo menos não integralmente. De facto, embora a ela não se reduza, a
dimensão da materialidade do corpo não pode ser completamente ignorada na
constituição da corporeidade humana e, nesse sentido, também na constituição da
subjetividade como identidade pessoal7. Sendo assim, podemos falar com propriedade de
uma certa ausência do outro humano no contexto do Facebook, o que parece implicar que
a afirmação da sua presença constitua em realidade uma ilusão – precisamente uma ilusão
virtual. Em realidade, a plataforma tecnológica implica uma certa “desmaterialização”,
concentrando-se na quantidade de informação, precisamente através da imagem. Não é a
plataforma que é desmaterializada – permitindo-nos falar, até, de certo “materialismo
digital”8 – mas o sujeito aí representado, seja o si mesmo ou o outro. Em rigor, trata-se
de uma transmaterialização, pois a materialização do sujeito enquanto corpo orgânico
transfere-se para uma materialização enquanto sua representação, concentrada na
dimensão da visualização, que se vai alargando a outras dimensões mediadas
tecnologicamente, como o tato e a audição.
Contudo, a questão da presença do si, mesmo na sua dimensão imediatamente
corpórea, no contexto da rede tecnológica, é mais complexa do que aquilo que uma
afirmação imediata de ausência deixa supor, pois o modo de relação com a plataforma
digital implica uma imersão que a transforma numa espécie de “extensão do si”, uma
ressonância muito própria que não é simplesmente racional ou informacional (como
extensão do conhecimento), mas que se exprime em formas próprias de toque, de visão e
de audição, as quais permitem falar em certa presença da rede no corpo e do corpo na
rede.
Permanece, contudo, a distinção entre o corpo próprio, como sujeito, e a sua
relação ao objeto tecnológico, como extensão. Ainda que se torne difícil, nesse contexto
de imersão, traçar os limites entre o si e o objeto, eles existem em princípio, o que permite
afirmar uma certa ausência do si corpóreo na plataforma digital. A questão da
desmaterialização ou da transmaterialização do si, na sua representação na plataforma,
7
Para uma leitura acentuada desta dimensão da identidade do sujeito, ver Emmanuel Falque, Triduum
philosophique (Paris: Cerf, 2015), esp. 467ss; David le Breton, L’adieu au corps, Paris: Metailié, 1999.
8
Cf.
pode, pois, colocar-se com certa propriedade. O que permitiria uma definição do
Facebook como “o dispositivo digital que faz da imagem de si (entendida em ambos os
sentidos da especificação: a imagem como objeto produzido pelo si e a imagem como
auto-representação do si) o veículo de ralação com o outro e de construção da
comunidade”9. Ou seja, a forma da presença é a imagem, que na plataforma social assume
o “lugar” do sujeito, através da sua concentração na identidade – ou mesmo nas
identidades. O si e o outro, enquanto identidades digitais – que funcionam como avatares
dos sujeitos – encontram-se precisamente no encontro das respetivas imagens. Estas
funcionam como “máscaras” da relação social, através da sua concentração na
visibilidade. “O avatar tornou-se, assim, um espaço privilegiado desta sociabilidade
digital, e a imagem não é senão uma máscara complexa, um lugar de passagem.
Simultaneamente espaço de interatividade e ligação ao textual ou a outras imagens, esta
imagem que representa a identidade digital constitui um ícone, no sentido teológico do
termo. Incarna o sujeito e formaliza as relações entre uma figura e a sua presença”10.
Dominique Cardon sugere três aspetos da identidade online, que é construída
pelos sujeitos, na sua exposição digital, mas não de forma aleatória ou completamente
individualista: em primeiro lugar, a construção da identidade corresponde a uma
“expectativa, a de ser reconhecido pelos outros”11, sendo sempre uma identidade
“construída pelo olhar dos outros... que não pertence totalmente aos indivíduos. É
consequência do espaço social no qual interagem”12. Em segundo lugar, esta socialidade
online reproduz, em grande parte, os traços da vida relacional dos sujeitos offline. Em
terceiro lugar, os sujeitos não se expõem completamente, nas redes, fazendo-o de forma
muito controlada. “A identidade digital é uma projeção de si, que procura produzir
efeito”13. Ao mesmo tempo, o sujeito cria uma distância em relação a si mesmo, como
que contemplando-se no intervalo entre si mesmo e a exposição de si. “On s’expose em
exposant son exposition”14.
A relação entre presença e ausência dos sujeitos – que assim estabelecem relação
entre si – torna-se por isso mesmo ainda mais complexa do que a confinação do sujeito
aos contornos materiais do seu corpo. Em qualquer ambiente – natural, cultural, físico,
9
Patriarca, Il digitale, 92.
10
Milad Doueihi, Pour un humanisme numérique (Paris: Seuil, 2011), 68. Cf. Antonio A. Casilli, Les
liaisons numériques (Paris: Seuil, 2010), 124 et seq.
11
Dominique Cardon, Culture numérique (Paris: Presses de Sciences Po, 2019), 178.
12
179.
13
182
14
183.
psíquico, imaginário, simbólico – o sujeito pode estar presente, sem que coincida
materialmente com uma presença no espaço e no tempo do respetivo ambiente. Por outro
lado, não é fácil definir, com precisão, os limites do próprio ambiente, pelo que se torna
complexa a definição do que significa estar presente nesse mesmo ambiente. Aliás, o
envolvimento dos corpos no encontro das identidades, é um processo em
desenvolvimento na transformação recente das plataformas – de que é exemplo a
possibilidade de partilha de identidades, pelo “toque” entre corpos, mediado pelos
aparelhos tecnológicos. Mesmo que os corpos materiais não se toquem, há um modo de
encontro corpóreo na extensão do corpo, que permite a construção de relações, na
permuta de identidades. “A temporalidade e o espaço atuais de interatividade, que
habitualmente se designam como ‘tempo real’ ou ‘fluxo’, atualizam-se ou materializam-
se não apenas nas plataformas sociais, mas também nos utensílios e no mundo de
comunicação entre os indivíduos. O tempo real, neste contexto, é um momento de
copresença numa rede social, e essa copresença é animada seja por uma imagem seja pelo
corpo dos utilizadores”15.
Depois do que foi dito, fica claro que é difícil abordar, em forma simplesmente
alternativa, a questão da presença ou ausência do si ou do outro no ambiente digital,
nomeadamente no caso do Facebook. Tendo em conta essa complexidade, não parece
indicado tomar posição por uma permanente e total presença do si e do outro na rede
social ou, em completa alternativa, pela sua ausência, sob pura aparência de presença.
Parece ser mais fértil abordar a relação entre presença e ausência dos sujeitos no ambiente
digital através da sua articulação como relação entre disponibilidade e indisponibilidade
dos mesmos, seguindo as propostas de Hartmut Rosa e de Salvatore Patriarca. O primeiro
propõe que “o momento cultural impulsionador daquela forma de vida que denominamos
moderna, é a ideia, o desejo e a ânsia de tornar o mundo disponível”. O tópico é, por isso,
mais vasto do que a sua aplicação ao ambiente digital. No entanto, pode encontrar aí um
campo de verificação significativo. “O si encontra-se, na era digital, disponível para ‘o
mundo’ de um modo historicamente sem precedentes, não apenas no sentido de
acessibilidade comunicativa, mas também no que respeita a imagens, dados e
informações acessíveis digitalmente” 16. No nosso contexto e formulada de modo simples,
a questão seria a seguinte: no Facebook, ou outro e o si estarão mais ou menos disponíveis
(ou indisponíveis) que noutros ambientes não digitais? Ou seja, a rede social acrescenta
15
Doueihi, Pour un humanisme, 71.
16
Rosa, Unverfügbarkeit, 8.
algo significativo ao projeto moderno de tornar o mundo disponível, sobretudo através da
disponibilidade do outro humano?
Para uma aproximação à questão, é importante perceber o que acontece com as
identidades e com a respetiva relação, no contexto das redes sociais. Sendo o princípio
fundamental dessas redes a possibilidade – e mesmo a necessidade, pois é isso que as
define – da partilha sem entraves, essa partilha acontece através da visibilidade. Nesse
sentido, pressupõe um sistema em que a socialidade se realiza pela visibilização, como
modo de presença. “A identidade deve ser, ao mesmo tempo, presente e visível”17. Aliás,
como vimos, a sua presença coincide com a sua visibilidade na imagem. Esse é o processo
que permite às redes sociais, por um lado, uma simplicidade eficaz na sua implementação
e, por outro, uma uniformização dos modelos, pela pura concentração na relação de
amizade, como base da dinâmica relacional e social. Essa simplificação e uniformização
origina o princípio da disponibilização total das identidades – através da sua recondução
à imagem visível de si mesmas – como base de uma partilha ao mesmo tempo aberta,
livre e exigida. Esse princípio não resulta de opções individuais no tempo e no espaço, de
acordo com situações determinadas, mas resulta da própria configuração tecnológica da
rede. Constitui, pois, um pressuposto incondicional da própria sociabilidade que aí
acontece. É quase uma condição “transcendental” das redes sociais digitais, enquanto
princípio de disponibilidade. “A presença na rede social é a própria demonstração de uma
disponibilidade aberta, de uma disposição ao outro que apenas se enche de si mesma,
como se fosse uma pura intenção de relação”18.
Esta disponibilidade significa, antes de tudo, uma exposição do si, na sua imagem
construtora de identidades, à rede, o que significa a outros, seja aos “amigos”, seja
potencialmente a todos. A máscara da identidade – tal como a roupa que se veste fora da
rede – é que permite essa exposição identitária e, nela, a disponibilização do si ao
ambiente19.
É claro que, com o outro – enquanto um outro si – acontece o mesmo, o que
significa que a sua disponibilidade para o si deve também ser completa na sua máscara
identitária. Mas, para além disso, a disponibilidade do outro para o si tem também o efeito
17
Doueihi, Pour um humanisme, 67.
18
Patriarca, Il digitale, 94
19
Ver os níveis de Empatia em Thomas Fuchs, Verteidigung des Menschen, 119ss. Embora o modelo de
Fuchs esteja orientado para a mediatização, enquanto simulação da realidade, mais do que para os processos
próprios das redes sociais, quanto à questão da imediatez corpórea e da imaginação virtual há algo de
semelhante ao que acontece com a presença nas redes.
de que a sua presença é essencial na construção da identidade do si. Os amigos do
Facebook, as suas reações na rede, a interação com o si, constituem elementos essenciais
na elaboração de cada avatar, ou seja, da identidade do si, que marca o meu modo de
presença na dinâmica social.
Patriarca chama a este processo de relação digital entre o si e o outro,
nomeadamente no Facebook, um processo de “rispechiamento”. Tendo em conta a
dimensão “espetacular” do mostrar-se na visibilidade da máscara, enquanto base da
identidade na rede social, estamos perante uma forma “especular” da construção da
identidade, nomeadamente através da relação. “No espelho digital o si convence-se de ser
aquilo que aparenta e conta relata Nello specchio digitale il sé si convence di essere quello
che appare e racconta”20. Na rede social, o sujeito vê-se espelhado e, desse modo,
disponível a si mesmo – e, nessa disponibilidade reflexa, disponível aos outros.
Mas este processo “especular” tem também efeito sobre a presença do outro na
rede. Este é assumido como precisamente o espelho do si, que está disponível, na medida
em que serve a identidade social do si. “O outro é um espelho poliédrico no qual se
encontra aquilo que se quer. Nesse encontro, que é sempre um encontrar-se, o diálogo é
simples, o acesso imediato L’altro è uno specchio poliédrico nel quale il sé ritrova quello
che vuole. In tale ritrovare, che è sempre um ritrovarse, il dialogo è semplice, l’accesso
imediato”21.
O resultado desta disponibilidade especular – através de certa “simplicidade” dos
processos relacionais – é precisamente a tendência uniformizante das redes, através de
uma anulação da diferença: as identidades são todas o espelho de todas, num círculo
imanente à rede, porque nela disponíveis. A experiência comunitária, como sociabilidade
digital, baseia-se na igualdade, não apenas de oportunidades, mas também de modelos de
identidade22. E há uma raiz tecnológica para essa igualdade, que é a própria plataforma e
o correspondente algoritmo, condição invisível da experiência de comunidade na
visibilidade das identidades idênticas. Só assim essas identidades poderão estar
permanentemente disponíveis.
20
Patriarca, Il digitale, 99.
21
Patriarca, Il digitale, 100.
22
Ver o paralelismo com a noção de “amizade” segundo Aristóteles, que tem na igualdade a sua base de
distinção em relação a outros modos de relacionamento (cf.
Mas será o princípio da disponibilidade uma realidade totalizante, seja para as
identidades na rede seja para os sujeitos analógicos que estão envolvidos nessas
identidades e na respetiva permuta?
23
Han, Im Schwarm, 75.76.
24
Rosa, Unverfügbarkeit, 120.
complexa entre o ambiente digital e o ambiente não digital, que pode permitir desenvolver
uma perceção de uma não coincidência entre sujeito e identidade construída digitalmente
– mesmo que esta tenha, evidentemente, reflexo no sujeito.
A própria rede digital vai reagindo contra a superficialidade uniformizante que lhe
é própria, precisamente com a inserção de características do sujeito, que conjugam a
identidade digital visível na imagem e nos dados com experiências de vida extra-digitais.
É o caso das “histórias”, que recuperam a narrativa como fonte de identidade; é o caso da
expressão de estados de espírito, que relacionam a identidade com a emotividade não
digital do sujeito, etc. Aí exploram-se as diferenças que constituem a singularidade dos
percursos pessoais e que revelam a sua indisponibilidade fundamental.
Os limites das experiências no ambiente digital também podem provocar o
interesse e a procura da experiência analógica, nomeadamente no campo do
relacionamento. Mesmo que articulados sempre com os recursos digitais, há experiências
de indisponibilidade externas às redes sociais que são muito valorizadas, precisamente
como experiências imprevisíveis, incontroláveis, reveladoras de outros modos de ser e
estar. Nalguns casos, a reação conduz mesmo ao abandono das redes sociais – abandono
que, por sua vez, se exibe explicita e visivelmente nessas redes, para marcar posição.
Mas há ainda uma outra dimensão da indisponibilidade, que ocupará a parte final
destas considerações. Hartmut Rosa termina o seu ensaio sobre a disponibilidade com um
breve capítulo que intitula, muito sintomaticamente, “o regresso do indisponível como
monstro”. A coexistência de uma disponibilidade de princípio com uma indisponibilidade
prática é típica das sociedades da modernidade tardia. Essa dinâmica revela-se, entre
outros campos e aspetos, também nos ambientes digitais, nomeadamente através da
“incontrolada dinâmica interna aos media e às redes sociais”25.
Essa forma de indisponibilidade revela-se, já, na própria complexidade de
elaboração da sociabilidade no Facebook. A relação que aí se estabelece entre sujeito,
corpo, imagem e identidade, com repercussões na complexidade da relação entre presença
e ausência, como vimos, é manifestação de que, apesar da simplicidade e uniformidade
de fundo, nos encontramos perante uma espécie de indisponibilidade ou opacidade
fundamental de tudo o que aí acontece.
Depois, há a acrescentar aquilo que Armin Nassehi denomina “excesso de
sentido” ou de “comportamento”, o que o leva a considerar a “técnica digital uma técnica
25
Rosa, Unverfügbarkeit, 128.
que significa sempre mais do que aquilo que superficialmente faz”26. Isso faz com que
“aquilo que se realiza nos meios sociais em rede não seja transparente para os
utilizadores... O que os utilizadores fazem constitui, em certa medida, apenas a ocasião
para recolher dados, com os quais se tornam possíveis negócios e com os quais se pode
manipular o comportamento dos utilizadores”27. É precisamente nesse excesso de sentido,
indisponível ao utilizador, que Nassehi – de forma talvez demasiado radical e unilateral
– situa o nervo central da sociedade digital, e não propriamente na utilização quotidiana
dos ambientes digitais, que para ele são apenas manifestações secundárias do significado
profundo da digitalização da sociedade e das relações. Pelo contrário, Salvatore Patriarca,
ao valorizar precisamente o significado do uso quotidiano como primeiro, considera os
Big Data um epifenómeno da transformação digital.
Portanto, para além da indisponibilidade escondida, como intenção, nas práticas
quotidianas em ambientes digitais, existe uma outra forma de indisponibilidade, que
poderemos denominar a indisponibilidade dos códigos, mesmos para os detentores dos
dados. Trata-se de uma espécie de reedição da ideia da “mão invisível”, aplicada à nova
sociedade digital. Isso conduz-nos a uma dimensão de “sacralidade”, em relação à qual
seria necessário distinguir a dimensão teológica (eventualmente como dessacralização ou
crítica do religioso enquanto sacralidade mágica). “No fim de contas, as teorias clássicas
criaram o constructo da tecnologia e da religião como domínios que se excluem
mutuamente, enfatizando o papel da ciência e da tecnologia e marginalizando e
expulsando a magia e a religião. A sacralização da tecnologia digital… perturba esta
‘divisão moderna’ cuidadosamente construída: tecnologia e religião não só se revelam
compatíveis como a primeira se torna ela mesma um locus de salvação religiosa”.28
Mesmo sem levar em consideração, porque não cabe no contexto desta reflexão, a
dimensão salvífica atribuída à digitalização do real29, manifesta-se aqui uma dimensão da
indisponibilidade que acaba por reconstruir uma experiência da transcendência digna de
ser questionada. O que leva Hartmut Rosa à exposição da tese central do seu ensaio: “O
26
Armin Nassehi, Muster. Theorie der digitalen Gesellschaft (München: C. H. Beck, 2019), 264.
27
Nassehi, Muster, 268. Byung-Chul Han encontra nesse excesso de sentido não apenas uma
funcionalidade pragmática correspondente a uma estrutura social, mas a expressão de um “inconsciente
coletivo”, que o leva a falar de um “inconsciente digital”, na medida em que é a expressão, em dados, de
um modelo coletivo de comportamento, não acessível a cada indivíduo. É com base nessa leitura que ele
considera estarmos na era da “Psicopolítica” e não da “Biopolítica” (cf. Han, Im Schwarm, 100-101)
28
Stef Aupers & Dick Houtman (Ed.s), Religions of Modernity. Relocating the Sacred to the Self and the
Digital, (Leiden/Boston: Brill, 2010), 19.
29
Cf. Mark Alizart, Informatique céleste (Paris: PUF, 2017); João Manuel Duque, El Dios ocultado
(Salamanca: Sígueme, 2017), cap. 5.
programa de tornar disponível o mundo ameaça conduzir-nos, no final, a uma radical
indisponibilidade, que é categorialmente diferente e pior do que a indisponibilidade
original, na medida em que, perante ela, nos sentimos impotentes, sem qualquer
capacidade de resposta, sem qualquer possibilidade de estabelecer uma relação de
assimilação transformadora”.30
Ou seja, o novo modo de indisponibilidade não possibilita a relação de
ressonância, assente na dinâmica da “escuta” e da “resposta”, uma vez que essa dinâmica,
pressupondo um momento de afetação do sujeito pelo mundo que lhe é externo, pressupõe
também um momento de resposta livre desse sujeito. Em rigor, o paradigma da
ressonância pode ser interpretado, nomeadamente neste contexto concreto, como
paradigma da responsabilidade, enquanto responsividade fundamental31.
Ora, o paradigma da responsabilidade – que articula equilibradamente
disponibilidade com indisponibilidade – pode ser contraposto ao paradigma da
sacralidade que torna o sujeito disponível a uma indisponibilidade fundamental, anulando
assim a sua liberdade. Essa alternativa é explorada por Jan Patocka de forma exemplar.32
Essa é também a proposta de Jacques Derrida, inspirada explicitamente em Patocka: “Il
y a religion, au sens propre du mot, à partir de l’instant où le secret du sacré, le mystère
orgiaque ou démonique seraient sinon détruits, du moins dominés, intégrés et enfin
assujettis à la sphère de la responsabilité. Le sujet de la responsabilité serait le sujet qui a
pu s’assujettir le mystère orgiaque ou démonique… La religion est responsabilité ou elle
n’est pas. Son histoire n’a de sens que dans un passage à la responsabilité”33.
Para ajudar a compreender melhor a aplicação desta distinção ao assunto que nos
ocupa, podemos partir da distinção entre amizade e proximidade, através precisamente
da relação entre disponibilidade e indisponibilidade (ver Ricoeur, socius e próximo)34.
Um primeiro aspeto da distinção pode relacionar-se com a própria diferença entre philía
e agápe. Ser amigo do amigo e amar o próximo não são realidades coincidentes. “Si
insinua cioè il sospetto che l’amicizia sai, in fondo, il sentimento in cui si compiace se
stessi nell’altro, ebbrezza senza serietà, elezione senza dono; l’amore richiesto al cristiano
30
Rosa, Unverfügbarkeit, 129.
31
Cf. Jean-Louis Chrétien, Repondre...
32
Jan Patocka, Essais hérétiques sur la philosophie de l’histoire (Paris: Ed. Verdier, 1999),162. Um
paralelo desta distinção pode encontrar-se na distinção entre o Sagrado e o Santo: Cf. Emmanuel Levinas,
Du Sacré au Saint. Cinq nouvelles lectures talmudiques (Paris: Ed. de Minuit, 1977).
33
Jacques Derrida, Donner la mort (Paris: Galilée, 1999) 16-17.
34
Correspondente também à distinção entre “próximo” e “socius”, proposta por Paul Ricoeur,
è invece ‘comandamento’ e, come tale, riguarda ogni prossimo, senza preferenza ed
elezione”35
Isso significa, no nosso contexto, que a amizade estaria sempre conotada com
certa disponibilidade da relação ao outro, precisamente na medida em que o outro, como
amigo na rede digital, estaria ao serviço da construção da identidade do si e, nesse sentido,
já predeterminado por um modelo de identidade. Ao contrário da amizade, a proximidade
implica um modo de relação ao outro que não o torna disponível para a construção do si,
de acordo com escolhas e preferências – ainda que sejam produzidas por algoritmos –
mas o reconhece incondicionalmente na sua alteridade indisponível. E essa é,
precisamente, a forma da sua presença interpelante. Se é certo que a relação de amizade,
como base da sociabilidade digital, implica um alargamento do horizonte – em rigor, da
disponibilidade – por comparação com a relação de parentesco ou de sangue, mais típica
de sociedades mais antigas36, também é verdade que a relação ao próximo, tal como
descrita em contexto bíblico, ainda alarga mais o modo de conceber o outro e a nossa
relação à sua alteridade37. Este aparece na sua nudez, anterior a qualquer roupagem ou
máscara identitária, como momento interpelador que origina a subjetividade,
precisamente na resposta incondicional e livre. Nas palavras típicas de Emmanuel
Levinas: “No dizer da responsabilidade – que é exposição a uma obrigação em que
ninguém me poderá substituir – sou único. A paz com o outro é, antes de tudo, tarefa
minha. A não-indiferença – o dizer – a responsabilidade – a aproximação – é a realização
do único responsável – de mim... Eu coloco-me na passividade de uma convocação
indeclinável – em acusativo – si”38. A nudez do outro, presente como próprio, origina o
si também como nudez que responde, antes de qualquer identidade construída, seja com
base em modelos egocêntricos, seja com base em modelos sociais, eventualmente
elaborados por algoritmos uniformizadores.
Pode estabelecer-se uma analogia entre este modo de relação ao outro e a
modalidade da ressonância proposta por Rosa. Essa pressupõe, sempre, um momento de
afetação, na medida em que o sujeito é atingido pelo outro – mesmo enquanto mundo
exterior – numa atitude de escuta daquilo que não é ele próprio; e um momento de
resposta ativa, precisamente como base da responsabilidade que o constitui.
35
Stefano Zamboni, Teologia dell’amicizia (Bologna: EDB, 2015), 13.
36
Cf. Doueihi, Pour un humanisme, 58.
37
Cf. João Manuel Duque, O próximo e a comunidade, L
38
Emmanuel Levinas, Autrement qu’être et au-dela de l’essence (Paris: Grasset, 1974) 217.
“Responsividade ou capacidade de ressonância torna-se precisamente a ‘essência’ não
apenas do humano, mas de todas as possíveis relações com o mundo”39.
Conclusão
39
Rosa, Unverfügbarkeit, 38; cf. Rosa, Resonanz, esp. 281ss. Uma manifestação da tentativa de recuperar
esta capacidade de ressonância, na relação ao outro como próximo, pode ser vista nas experiências de
recuperação das pequenas comunidades (commons) como resistência a um modelo uniforme de relação,
típico das redes sociais, mas também das grandes metrópoles. Aí se articula uma possibilidade de
experiência da subjetividade como exposição ao outro, para além da rede de identidades construídas e
disponíveis. Por isso, alguns analistas preferem falar já de uma cultura “pós-digital”. Cf. Felix Stalder,
Kultur der Digitalität (Frankfurt: Suhrkamp, 2016), 18ss.
Facebook – terá que passar por uma fenomenologia dessas relações, no horizonte de uma
eventual crítica a estes dois possíveis extremos e de uma proposta equilibrada de relação
ao próximo mediada digitalmente.
Bibliografia