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Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 1, pp. 34-43, 2015.

Michel Foucault e o conceito grego de parresia


Michel Foucault and the greek concept of Parrhesia

Luiz Celso Pinho

Professor Associado I do Departamento de Filosofia da UFRRJ. Pesquisador do CNPq. E-mail:


luiz.celso@pq.cnpq.br

Resumo:
De janeiro de 1982 a março de 1984, as investigações histórico-filosóficas de Michel Foucault
vão gradualmente se aprofundando na problematização do conceito grego de parresia, cujo
emprego se verifica no período que se extende desde a antiguidade greco-romana até os
primórdios da cultura cristã. A partir daí Foucault pretende retratar a obrigação de o indivíduo
falar a verdade a respeito de si mesmo no mundo ocidental. Além disso, do ponto de vista ético, o
imperativo do dizer-verdadeiro pode ser detectado inicialmente tanto no aconselhamento pessoal
(na relação Mestre-Discípulo) quanto, de modo mais amplo, no projeto de transfigurar o governo
de si e dos outros.

Palavras-chave: Parresia. Verdade. Ética. Política.

Abstract:
From January 1982 to March 1984, Michel Foucault’s historical-philosophical research had
gradually deepened into the problematization of the Greek concept of parrhesia. The use of this
concept has been verified since the Greco-Roman Antiquity until the early Christian culture.
Foucault intends in this way to portray the obligation an individual has to speak the truth about
oneself in the Western world. Therefore, in an ethical point of view, the imperative of truth-
telling can be detected originally as much in personal counseling (master-disciple relationship) as
broadly in the project of transfiguring the government of self and others.

Keywords: Parrhesia. Truth. Ethics. Politics.

I
Ao longo de seus três últimos anos de vida, Michel Foucault se interessou
progressivamente pelo conceito grego de parresia [παρρησία]. Os primeiros esboços se verificam
no curso A hermenêutica do sujeito (1982), quando, dentre as doze aulas proferidas, apenas na

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décima, ocorrida no começo de março, se detém exclusivamente em situações parresiásticas.1


Aproximadamente um mês depois, realiza uma única palestra na Universidade de Grenoble em
que não apenas dá continuidade à referida aula como também esboça novas hipóteses de trabalho,
sendo que algumas ou serão aprofundadas, ou modificadas, ou mesmo deixadas de lado. No ano
seguinte, excetuando a aula inaugural, as nove restantes apresentações do curso O governo de si e
dos outros, como de praxe se estendendo no período de janeiro a março, abordam o exercício
público e, consequentemente, político dos discursos de cunho parresiástico. Nos meses de
outubro e novembro profere seis conferências na Universidade de Berkeley (EUA). Delas
obtemos uma síntese das aulas do primeiro trimestre do ano. Mas já permitem vislumbrar alguns
aspectos éticos que serão desenvolvidos mais adiante. Finalmente, em 1984, no derradeiro curso
no Colégio de França – A coragem da verdade –, que, pela primeira vez, tem início em fevereiro,
ocorrem nove aulas dedicadas ao estudo da atitude parresiasta a partir de sua dimensão ética
(embora a última delas acabe a situando no campo religioso).
Apesar da brevidade dessa trajetória, que foi subitamente interrompida com a morte
de Foucault; do caráter acentuadamente exploratório de suas aulas-conferências, onde nem todas
as hipóteses apresentadas permanecem inalteradas (algumas serão inclusive descartadas); e do
fato de que todos os registros acima mencionados resultam da transcrição de gravações realizadas
de forma independente pelos ouvintes (ou seja, não chegaram a passar pelo crivo de Foucault,
apesar de reproduzirem quase fielmente suas palavras, exceto pela ocorrência de lacunas
esporádicas), é possível extrair um aparato teórico consistente no qual destacam-se alguns
elementos-chave. Mais do que simples pistas ou um amontoado de questões que permaneceram
inconclusivas, a problematização da parresia se faz a partir de núcleos bem delimitados: partindo
do amplo campo das relações filososófico-pedagógicas entre Mestre e Discípulo, as análises
foucaultianas se desdobrarão em pelo menos quatro direções básicas nas quais o funcionamento
do discurso parresiástico será elucidado no âmbito da Filosofia (em contraposição à Retórica), da
Política (enquanto condição de possibilidade do regime democrático), da Ética (dentro de uma
leitura norteada pelo imperativo da Arte de Viver) e da Religão (transparência da alma em
relação a Deus).
II

1
Há diversas menções esparsas ao termo durante o curso.

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Não se pode atribuir ao termo parresia uma tradução inequívoca.2 Seu significado
literal e elementar corresponde a tudo-dizer. O próprio Foucault apresenta diversas soluções para
retratar seu teor efetivo: falar-francamente, liberdade de palavra, dizer-verdadeiro, além de
outras variações. Outro fator a ser levado em consideração é que sua aplicação se dá nos registros
os mais diversos: mitologia trágica; tratados filosóficos e políticos; Velho e Novo Testamentos
etc. Estamos diante de uma noção ao mesmo tempo “rica, ambígua e difícil” (FOUCAULT,
2008, p. 43). Sua riqueza se deve aos diversos significados que acumula durante o passar das eras
– do século V A.E.C. (Antes da Era Corrente) até o século III, nos primórdios do cristianismo
medieval, o que corresponde a um período aproximado de oitocentos anos. Além disso, se se
pode falar em ambiguidade, isso de deve ao tipo de circunstância na qual ela pode ser exercida,
ou seja, tanto numa situação pública, diante de uma plateia, quanto em relações pessoais. Por fim,
a dificuldade de caracterizá-la reside nos elementos que constituem a cena parresiástica (o papel
do Outro, por exemplo, varia com o decorrer do tempo, pois oscila entre a obrigação de falar ou
de se calar).
No entanto, ela sempre envolve o imperativo de “tudo dizer da verdade, dizer a
verdade sem mascará-la, para quem quer que seja” (FOUCAULT, 2009, p. 12). De modo geral,
trata-se de uma prática discursiva marcada pela ousadia de se expressar livremente, pelo uso
destemido da palavra, por seu ímpeto provocativo, em suma, pela coragem de falar-a-verdade.
Esse ato corajoso implica necessariamente colocar em risco a própria existência de quem se
manifesta. A fala do parresiasta conduz para fora dos limites de uma zona de conforto e
segurança, pois tem um efeito inquietante sobre seu interlocutor, podendo tanto romper o vínculo
entre ambos quanto gerar reações violentas por parte de quem ouve. Daí Foucault ressaltar – e ele
está ciente do aspecto dramático de suas palavras – que “os parresisastas são aqueles que, no
limite, aceitam morrer por ter dito a verdade” (FOUCAULT, 2008, p. 56).
No que diz respeito ao que vem a ser esse verdadeiro que permeia o discurso
parresiástico, cabe ressaltar ainda que não se trata de uma problemática que envolva discussões
de cunho Lógico ou Epistemológico. Foucault vai além de uma investigação filosófica voltada
para a determinação da estrutura formal das “palavras” e das “coisas” no intuito de refletir sobre
as “práticas” que permitem o aprimoramento de um tipo de conduta diante da vida. Tem-se,

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Até porque se trata de uma palavra que abrange um “território amplamente inexplorado” (MOMIGLIANO, A.
Freedom of Speech in Antiquity, p. 252).

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assim, de um lado, a tarefa de determinar a veracidade de uma proposição; de outro, uma


preocupação desontologizada. Abrem-se, com isso, duas vertentes distintas, mas não mutuamente
excludentes, na História da Filosofia: uma voltada para o “plano da intelecção ou do
conhecimento (...) o âmbito das teorias (...) a ordem da representação (...) [E outra referente] ao
plano das atitudes, ao âmbito do olhar, à ordem das práticas, que constituem todo um modo de
existência” (MUCHAIL, 2004, p. 9). O discurso verdadeiro tanto se faz necessário no plano da
Teoria, da sistematização do pensamento, quanto no contexto de uma ação simultaneamente Ética
e Estética.
É nesse sentido que o dizer-a-verdade do parresiasta retrata “uma arte da vida”
(FOUCAULT, 2004, p. 51), ou seja, modalidades de estilização da conduta. Essa postura em
nada se assemelha a um interesse estritamente pessoal, seja ele individualista, narcisista ou
autossufiente, que excluiu a presença dos demais. Daí A hermenêutica do sujeito subordinar a
parresia a uma “abertura de coração (..) à possibilidade de dois parceiros de nada esconderem um
do outro a respeito do que pensam e de conversarem francamente” (FOUCAULT, 2001a, p. 132).
As análises foucaultinas destacam, assim, num primeiro momento, a importância do vínculo do
filósofo com seu aprendiz, ou ainda, do Mestre com o Discípulo. E Isso fica patente no caso da
educação epicurista, na qual “o sábio (...) exorta [os discípulos a] praticarem a liberdade de
palavra (...) inspirados na benevolência” (GIGANTE, 1969, p. 207).3
Não se pode deixar de assinalar que Foucault se interessou significativamente pelo
que os diversos sistemas de pensamento ético na antiguidade greco-romana entendiam por
“aconselhamento espiritual”. Seu intuito consistiu em investigar como se constituem “jogos de
verdade” nos quais se deve “utilizar o que é pertinente para a transformação, a modificação, o
aperfeiçoamento do sujeito” (FOUCAULT, 2001a, p. 232). Tal procedimento não requer
propriamente um conhecimento, mas uma incitação e incorporação (cf. GABILONDO, 2004, p.
28), ou seja, uma interação dialética que, de acordo com o curso de 1984, pode ter como uma das
partes envolvidas “um filósofo, um professor, um homem comum, um amigo pessoal, um
amante, um guia provisório, um conselheiro permanente” (FOUCAULT, 2009, p. 7). Notamos,
contudo, que na conferência La parrhêsia, apesar de estar solidamente ancorada na aula de 10 de
março de 1982, Foucault ainda está interessado em abordar o estreito vínculo entre instituições

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Foucault se inspira bastante nesse texto nas aulas-conferências de 1982.

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eclesiásticas medievais e uma moderna “ciência do sexo” norteada por dispositivos confessionais
nos quais se verifica um longo e insidioso processo de interiorização da culpa.
III
Em O governo de si e dos outros, e parte signficativa de A fala destemida,4 Foucault
prioriza o exame de uma parresia exercida publicamente, nas assembleias populares, abertas a
todos os homens livres. Toma como paradigma Péricles, cujo jogo parresiástico “se exercia com
relação à cidade como um todo e num campo que era diretamente político” (FOUCAULT, 2008,
p. 279). Retrata, assim, o direito facultado a todo cidadão por nascimento de tomar a palavra,
habilitando-o consequentemente a “exercer seus privilégios no meio dos outros, em relação aos
outros e sobre os outros” (FOUCAULT, 2009, p. 34). Deste modo, o foco das análises recai no
espaço da tribuna, onde “cada um e todos” podem “dizer qualquer coisa”: “discursos verdadeiros
e falsos, opiniões úteis ou nefastas e prejudiciais (FOUCAULT, 2009, p. 36). Tal polaridade
serve de base para explicar o que vem a ser “a boa” e “a má” atitude parresiástica.
Devemos levar em conta que, a rigor, Foucault não está investigando as “origens”
daquilo que modernamente denominamos de “liberdade de expressão”. É certo que na
democracia grega se podia distinguir três direitos específicos: o do livre uso da palavra (isegoria),
o da igualdade perante a lei (isonomia) e a parresia que, apesar da grande proximidade entre tais
noções, designa “algo além do puro e simples estatuto do cidadão”, e também se mostra
“diferente do exercício puro e simples do poder” (FOUCAULT, 2008, p. 98): ela deve ser
entendida como o uso livre e corajoso da palavra e os riscos decorrentes dessa ousadia.
Ainda no ano de 1983, ocorrem seis conferências nos Estados Unidos, nas quais
Foucault apresenta diversas modulações da noção de parresia. Primeiro, a contextualiza a partir
de temáticas-chave como: franqueza, verdade, perigo, crítica, dever, retórica, política e filosofia.
Em seguida, remonta às tragédias de Eurípides para elucidar “quem tem o direito, o dever e a
coragem de falar a verdade” (FOUCAULT, 2001a, p. 27). Por fim, se detém nas formas de
estilização da existência na antiguidade greco-romana, notadamente tomando como referência o
Epicurismo, o Estoicismo e o Quinismo.5 Com A fala destemida temos um quadro abrangente do
modo como a prática do dizer-verdadeiro não apenas “modela as relações específicas que os

4
Na quarta, quinta e sexta conferências a tônica recai na parresia ética.
5
Empregamos o termo Quínico para evitar associações inadequadas com o Cínico moderno.

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indivíduos mantêm consigo mesmos” como também indica o solo onde “nossa própria
subjetividade moral está, pelo menos em parte, enraizada” (FOUCAULT, 2001a, p. 106).
IV
O curso de 1984 é exclusivamente dedicado ao tema da parresia. Ele pode ser
dividido em pelo menos cinco momentos-chave: contrastes entre fala parresiástica e outras
modalidades de dizer-verdadeiro (primeira aula); parresia e democracia (segunda aula); apologia
da parresia socrática (terceira e quarta aulas); parresia quínica (da quinta à ultima aula); parresia
cristã (parte final da nona aula).
No que diz repeito à leitura apologética de Sócrates,6 cuja presença é marcante deste
1982, verifica-se um aprofundamento, pois a parresia socrática envolve uma missão que não
pode ser jamais abandonada, que deve ser exercida até o fim da vida (cf. FOUCAUT, 2009, p.
78). Daí ter sido evocada a imagem “não do sábio que intervem de tempos em tempos, mas de
um soldado que se encontra no seu posto” (FOUCAULT, 2009, p. 79), sem abandoná-lo em
hipótese alguma, independente de eventuais perigos. Ele também é associado a um princípio de
incômodo, pois à semelhança das picadas desagradáveis de um mosquito, ele nos causa agitação,
movimento, inquietude.
A parresia socrática não constitui propriamente um ponto de chegada do percurso
sabidamente inacabado de Foucault. Contudo, ela permite estabelecer um sólido contraste entre o
“dizer-verdadeiro” dele e as falas do profeta, do sábio e do “instrutor”, e principalmente da
retórica (tanto no campo político ou filosófico) na medida em que esta última se caracteriza por
não expressar o que efetivamente acredita.
Além desse aspecto negativo, Foucault pretende articular a pressuposição recíproca
entre estar atento a si mesmo e aos demais. Por isso, o destaque à atitude socrática de, sob a
influência dos deuses, ser levado “a cuidar dos outros de modo e a lhes mostrar que eles devem,
por sua vez, cuidar deles mesmos” (FOUCAULT, 2009, p. 83). Na segunda parte da terceira aula,
deparamo-nos com diversas passagens de textos platônicos que tratam do “ciclo da morte” de
Sócrates. Destacamos que, no Fédon, a ingestão da cicuta ilustra, de forma inconteste, o princípio
ético-filosófico de que “a coragem deve se exercer até a morte” (FOUCAULT, 2009, p. 105). No

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Uma demonstração cabal das sucessivas modulações pelas quais passam as investigações foucaultianas reside no
papel atribuído a Sócrates. Na Conferência “La Parrêsia”, em Grenoble, por exemplo, ele afirma taxativamente:
“Sócrates não é, evidentemente, homem da parresia” (FOUCAULT, 2012, p. 184).

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entanto, como afirmamos acima, a problematização foucaultiana da verdade não se encerra nas
lições do filósofo ateniense.
Sócrates representa, inegavelmente, até então, a figura “[d]aquele que articula a
exigência da parresia aos temas do cuidado de si e da técnica de existência” (GROS, 2002, p.
161). Mas é na Filosofia Quínica que as análises histórico-filosóficas de Foucault atingem o seu
ápice. Partindo do pressuposto de que estamos percorrendo um caminho em desenvolvimento,
cujos resultados não podem ser delineados de forma unívoca ou definitiva, isso se aplica de modo
ainda mais pertinente às análises elaboradas a respeito de exemplos retirados do modo de vida
dos quínicos, exatamente a partir da quinta aula. Foucault não apenas atribui ao quinismo um
surpreendente estatuto trans-histórico (cf. FOUCAULT, 2009, p. 161) como também o associa a
um procedimento existencialmente “mais denso”, “mais específico” (FOUCAULT, 2009, p.
159). A radicalidade da parresia quínica reside no modo como a harmonia entre teoria e prática
inscreve sua marca diretamente na superfície do corpo – daí o notório estilo de vida despojado,
irreverente e provocativamente alheio às convenções sociais.
V
No que diz respeito à parresia cristã, ela se encontra ligada a “uma obrigação de
renunciar a si” (FOUCAULT, 2001a, p. 15), na qual o que mais importa é a confiança na
providência divina. É interessante notar que essa postura de atingir a verdade a partir de uma
experiência mística remete, de modo semelhante ao quinismo, a toda uma preocupação em
conduzir a vida de forma autêntica. Em relação à “horizontalidade” grega, no entanto, Foucault
ressalta um processo vertical, pois “atitude corajosa de quem prega o Evangelho” (FOUCAULT,
2009, p. 301) só é possível a partir de uma “alma pura e transparente que se abre e se eleva a
Deus” (FOUCAULT, 2009, p. 297). Além disso, o cristianismo envolve, se nos detemos
especificamente no fator ousadia, a uma concepção antiparresiástica, pois “a verdade só se
instaura através da obediência temerosa e reverente em relação a Deus” (FOUCAULT, 2009, p.
308).
VI
Cabe, por fim, tecer algumas considerações a respeito da concepção foucaultiana da
dinâmica parresiástica no intuito de entender o alcance de suas pesquisas histórico-filosóficas.
Como salienta Franěk, “Foucault precisa elaborar uma noção ideal de parresia para ser capaz de
traçar seu deslocamento no sentido de uma ética” (FRANĚK, 2006, p. 118). Tal posição

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corrobora a ideia de que Foucault ressalta um estilo provocativo, nas quais as “verdades que todo
mundo sabe, mas que ninguém as diz, ou que todo mundo repete, mas que ninguém se [interessa
em avivá-las]” exigem a “coragem da ruptura, da recusa, da denúncia” (GROS, 2002, p. 166).
Partimos da hipótese de que A coragem da verdade culmina num projeto ético-
filosófico, pois o exercício do “dizer-verdadeiro” funciona como um “instrumento da auto-
transformação” (BODEI, 2005, p. viii). Mas não se trata de um “ritual bizarro” no qual se
pretende “mudar continuamente de identidade” (OLIVIER, 1996, p. 61). Desde o início de sua
empreitada ética, o objetivo de Foucault consiste em abordar as seguintes questões: “como se
estabelece, como se fixa e se define a relação que há entre o dizer-verdadeiro (a veridição) e a
prática do sujeito? Ou ainda, de forma mais geral: de que modo o dizer-verdadeiro e o governar
(a si mesmo e aos outros) se vinculam e se articulam um com o outro?” (FOUCAULT, 2001, p.
220).
O derradeiro projeto ético-filosófico de Foucault efetivamente não define de forma
inequívoca o alcance que a “estética da existência pode significar na vida contemporânea”,
quando muito fornece “algumas sugestões” (HUIJER, 1999, p. 62). É o caso das considerações a
respeito de Sócrates e Diógenes (o Quínico), do Dandismo, da Amizade, da cultura renascentista
(na perspectiva de Jacob Burckhardt), para mencionar os registros mais relevantes do ponto de
vista de um trabalho cotidiano sobre si mesmo. Apesar de não haver o exercíco efetivo recente da
parresia,7 entendemos que Foucault pretende redimensionar nossos parâmetros de sócio-políticos
modernos de convivência e compreensão do que somos e daquilo que concebemos em relação
aos outros – independente de sermos governantes ou governados.
Talvez o registro foucaultiano que retrate de forma mais consistente essa perspectiva
se encontre na segunda versão modificada e expandida do ensaio “O que é o Iluminismo?”,
notadamente na discussão envolvendo a constituição de um “ethos filosófico”. Nele reside uma
pista consistente do motivo que o leva a enveredar pelo “dizer-verdadeiro”. Inicialmente, até que
ponto não se trata de pôr em risco sua própria identidade? Eis uma forma de resistir à política da
individualização. Nesse sentido, a parresia contribuiria para reelaborar a forma de o indivíduo
moderno falar, agir e viver. De acordo com Nehamas, esse projeto ético-filosófico se restringe a
ser “útil aos grupos excluídos, oprimidos, que não são capazes de se expressar com a sua própria

7
Seus resquícios se fazem notar de modo transversal no discurso revolucionário (“crítica da sociedade”), filosófico
(“reflexão sobre a finitude humana”, que, aliás, remete ao próprio trabalho de Foucault) e científico (“crítica dos
preconceitos, dos saberes e das instituições dominantes”, tema igualmente foucaultiano).

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voz” (NEHAMAS, 1998, p. 168). E conclui que essa reflexão se destinava especialmente aos
homossexuais, pelo menos num primeiro momento. Porém, se levamos em conta que “o
parresiasta é um educador que recobra o estado de saúde, não um legislador” (LUXON, 2008, p.
393), então seria mais adequado subordiná-lo a uma força transformadora vital.
Seguindo o exemplo do quinismo, ponto culminante das análises foucaultianas, a
prática da parresia encontra-se intimamente relacionada à “transformação do gênero humano e
do mundo” (FOUCAULT, 2009, p. 288), seja porque exige uma modificação completa no modo
como o indivíduo se relaciona consigo mesmo, seja em função do preceito de que se faz
necessário ir adiante da humanidade, como um “batedor” [kataskopos], para em seguida retornar
e anunciar a verdade que a espera.
O estudo da fala-franca não se limita, pois, a reviver um passado tido como glorioso
ou exemplar. Foucault remonta aos antigos para superar os modernos na medida em que defende
um estilo de vida subordinado a um discurso verdadeiro que seja capaz de redimensionar a
reflexão ético-filosófica, a atividade política e os relacionamentos pessoais no mundo
contemporâneo. Através da noção de parresia é possível tanto atribuir à existência um valor
estético quanto alavancar o projeto simultaneamente ético, político e filosófico de promover
ativamente um “combate nesse mundo contra o mundo” (FOUCAULT, 2009, p. 310). Horizonte
talvez inatingível, mas que quebra as correntes do imobilismo.

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Edição organizada por Frédéric Gros. Paris: Gallimard-Seuil, 2008.

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organizada por Frédéric Gros. Paris: Gallimard-Seuil, 2001a.

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