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FOUCAULT, CONHECIMENTO, MÉTODOS:

VERSO E REVERSO

OSÓRIO, Antônio Carlos do Nascimento1

De que valeria o empenho do saber se assegurasse apenas


a aquisição do conhecimento,
e não de certo modo,
e na medida do possível,
o descaminho daquele que conhece.
(FOUCAULT, 1984, p. 13)

Este capítulo parte de algumas possibilidades de explicitações daquilo que


foi possível assimilar por intermédio de leituras, discussões e pesquisas
relacionadas ao campo epistemológico, em particular, neste momento, captado a
partir da significativa produção de Paul Michel Foucault (1926–1984), seus
pressupostos teóricos, metodológicos e eventos-temas de estudos, compondo a
tríade – saber (ter conhecimento), poder (relação da força com outras forças) e
sujeito (termo utilizado que não designa o sentido de uma pessoa ou forma de uma
identidade, mas, sim, de relação a si), com os respectivos itinerários (métodos),
enquanto movimentos que os caracterizam como arqueologia do saber, da
genealogia do poder e da genealogia da ética, assim denominados pelo autor a
partir da influência de outros pensadores.2
As complexidades dos aspectos enunciados passam a ter características
desafiadoras na medida em que aproximar, pensar, selecionar, analisar, refletir,
escolher, retratar e escrever sobre alguns ditos e escritos de Foucault, o momento
que se instaura, marca uma sensação de ausência ou de algo importante que ficou
sem ser dito. Nesse sentido, passam a ser outros desafios, dúvidas ou receios, pois
a cada leitura retomada em suas obras sempre são outros achados, novos sentidos
e significados, outras possibilidades de compreensões.

________________
1 Professor Titular dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Psicologia da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Coordenador do Grupo de Estudos e Investigações
Acadêmicas nos Referenciais Foucaultianos (GEIARF/CNPq), implantado no ano de 2000.
2 Influenciado pelos pensamentos de Nietzsche (1844-1900); Maurice Merleau-Ponty (1908-1961);
Gilles Deleuze (1925-1995); Jacques Derrida (1930-2004) entre outros; Carl Marx (1818-1883),
Sigmund Freud (1856-1939); Gaston Bachelard (1884-1962); Jacques-Marie Émile Lacan (1901-
1981); Martin Heidegger (1889-1976); Maurice Blanchot (1907-2003); Donatien Alphonse François
de Sade (1740-1814); e, Franz Kafka (1883-1924).
Mesmo assim está posto, num exercício de organização das discussões que
aqui serão apresentadas, que tem o propósito de um diálogo inicial com seus “ditos
e escritos”, pontuando alguns aspectos e análises operadas no presente capítulo
distribuídas em três momentos: O primeiro, a partir de algumas referências em
relação ao autor, características pessoais, sua formação acadêmica, suas
preocupações iniciais e as escolhas de seus primeiros eventos-temas.
No segundo momento, no que diz respeito aos movimentos e análises da
arqueologia do saber, da genealogia do poder e da genealogia da ética ou
arquegenealogia, pelo mapeamento de algumas especificidades dessas abordagens
– nos diferentes campos do conhecimento – e dos princípios, fontes e produções.
Dessas, alguns aprofundamentos e destaques ocorrem pela indicação do autor.
Em ambos os momentos, menciono o ano da primeira publicação original –
em Francês acompanhada do respectivo ano das publicações no Brasil e Portugal,
por exemplo, a obra Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões
(1975/1987), acrescida de algumas emersões iniciais, em relação ao conhecimento,
às instituições, às práticas/políticas, a poder, saber e sujeito, possibilitadas por
Foucault, que são procedidas pelas motivações e constatações que nos instiga. Por
último, constam algumas observações finais, não como encerramento, mas para
outras aberturas de possibilidades de reflexões.
Foucault é um contestador e provoca a examinar todas as formas de poder
circulantes, privilegia-nos com uma vasta produção quando nos remete para
subjetividade na arqueologia do saber, marcando de modo decisivo o pensamento
de seus contemporâneos, influenciando desta maneira outras formas de analisar
eventos-temas e se inserir nas possibilidades de mudanças da realidade que os
manifesta, sempre encontradas por intermédio da história social, na condição de
exercidas, enquanto práticas/políticas, pelos seus registros.
São os labirintos da história e da sociedade, marcando de forma diferencial
seu pensamento, quando lidas pelas condições de eventos-temas e métodos,
exercendo a criação de um conjunto de dúvidas e possibilidades de outras
compreensões aos seus leitores, exigindo, como já escrevi leituras e releituras de
suas obras, quando se depara com outras análises.
É o exercício de que revisar implica sair da sensação (subjetividade ou
aparências) e perceber outros achados em seus mesmos escritos. Ao mesmo
tempo, pelo fato de ter empreendido em novos conceitos e termos, inserindo
algumas mutações, ampliações e recolhimentos de vocabulários propostos em seus
livros, estamos diante de duas situações:
A primeira, ele não permite ser fisgado na exclusividade de uma
determinada obra. É no conjunto delas que nos fornece pistas, amplia ou recolhe
expressões (glossários), seus respectivos sentidos e preponderâncias variantes;
segundo, é uma das características determinantes em seus escritos utilizar-se da
negação, explicando por meio do que não é e, somente nas últimas páginas, define
seu pensamento sobre o evento-tema e as formas de apropriação. A partir dessas
duas observações, que não são únicas, considero Foucault o autor das armadilhas,
induzindo ao erro a maioria de seus leitores desprevenidos, exigindo sempre indicar
a obra, pois o vocabulário pode adquirir outro sentido, como as compreensões de
saber, poder e sujeito.
Embora muitas vezes seja rotulado como estruturalista ou pós-estruturalista
e, ainda, pós-modernista, acabou rejeitando esses rótulos, além de outros, assim
como a condição de filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo e crítico
literário. Essas tentativas de enquadrá-lo podem ser consideradas de sujeição aos
interesses de possíveis leitores ou críticos, simpatizantes de suas ideias ou
adversários, sem nenhum conhecimento, muitas vezes, desviando o que Foucault
nos ensina. Preferiu se autorreconhecer como um dos pensadores da história crítica
da modernidade, influenciando tanto grupos acadêmicos, quanto os ativistas das
causas relacionadas aos movimentos sociais de sua época e até dos dias de hoje.
Por outro lado, há um pouco de exageros, talvez, mais uma vez por
desconhecimento, quando anunciam que Foucault é um pensador contemporâneo,
responsável em propor uma teoria do poder, na medida em que seus escritos
anunciam, na genealogia do poder, enquanto um dos campos de convergência de
um conjunto de “regras” metodológicas, tuteladas por um universo temas-objetos,
que se desenham também pelos modos de apropriações aos quais foram
empreendidos diferentes itinerários.
Instigante e desconfortante, muitas vezes criticado também por
contrassensos, talvez por uma leitura aligeirada de suas obras, de excertos ou
títulos delas. Foucault investigou diferentes domínios e empreendeu novos
conceitos, conforme já foi dito, ampliou expressões ao longo de suas pesquisas,
sempre em vista da variedade de eventos-temas, por pontos estratégicos, entra na
história social (fatos) de onde se vê em que lugar estamos e para onde vamos, sem
anunciar onde estaremos e como seremos.
As contribuições de Foucault são de toda ordem, justamente pela sua
capacidade de remanejar e reorientar os campos epistemológicos (plano discursivo),
por diferentes caminhos (itinerários) e concepções (glossário), adentrando os seus
estudos, alinhavados pelos registros contidos na história social (fatos).
Isso indica que ele não se ateve apenas ao conteúdo da filosofia, como
muitos afirmam, mas das ciências homem, que estudam criteriosamente um
conjunto de conhecimentos com o propósito de compreender o homem como ser
social, ampliando seus domínios ao relacionar-se com os campos da saúde,
psicologia, psicanálise, economia, comunicação, religião, teologia, do jurídico e
político, a partir de discursos específicos, das práticas sociais, das instituições e dos
indivíduos, operadas pelas culturas locais, que sempre serão políticas, pelas
tentativas exaustivas de sujeição.
Muito além de apontar essas práticas, como um tipo de intervenção política,
entre pensamento e ação, coletivo e individual, esse conjunto de domínios, que
caracterizam as disciplinas das ciências homem, permite pontuar algumas
especificidades peculiares de suas contribuições epistemológicas e cobrem, de
forma singular, um campo de conhecimento amplo e interdisciplinar, compreendido,
aqui, como uma interação entre duas ou mais disciplinas, como é o caso da história
e a sociologia, um ou mais campos de estudos, de saúde e da educação, , bem
como de outras das quais se vale, que compõem as ciências.
Isso só foi possível diante de os resultados de suas investidas apresentarem
essas características no âmbito do conhecimento, relacionadas a um ou mais
evento-tema estudados pelo autor, além de empregar diferentes itinerários, com
procedimentos e análises específicas, pelo tripé: História da filosofia, História da
ciência e História da literatura.
Inova e possibilita ao indicar agora a condição de um evento-tema de
estudos e os itinerários adotados em cada um, enquanto processos que se alinham
e se explicitam durante toda a constituição investigativa de forma concomitante,
desde a escolha de um determinado tema-evento, que não se limita a uma revisão
bibliográfica sobre este, mas as escolhas que vão se constituindo enquanto um
evento-problema de estudo associado a um método, que não ocorrem ou se pré-
determinam a priori, nas sim em constantes buscas e simbioses.
São fontes e movimentos peculiares do tratamento não só de arquivos,
entrelaçados e complementares, com características que se aproximam como
novos, pois são outras possibilidades, achados, aberturas ou brechas no mesmo
campo do conhecimento, o que permite estabelecer outros sentidos e significados
da realidade social pelos efeitos de seus desdobramentos, pelos emaranhados das
raízes dos processos históricos (fatos), pelas redes que se configuram e subsidiam
suas reflexões, exigindo demarcar os espaços de suas emergências e de seus
esgotamentos e muitas vezes retomados, pelas condições instauradas que os
possibilitaram serem desarquivados ou percebidos, muito próximo aos elementos
ideológicos de maneira distorcidas, interferindo diretamente nos em seus efeitos,
compressões e resultados.
Essas atitudes de certa resistência do autor, já o diferenciam dos demais
pensadores, não só pelo volume significativo de suas produções, mas pelas
complexidades de seus estudos e aproximações, muitas vezes imperceptíveis,
quando já menciona a relação de poderes e saberes em sua tese de doutorado
anunciando: “entre tantos outros, se recopiasse, se fragmentasse, se repetisse, se
simulasse, se desdobrasse, desaparecesse”. (FOUCAULT, 1975, p. 6).
Com essa obra, Foucault marca também os efeitos iniciais do seu sucesso
intelectual nos anos de 1960, reconhecido como um dos pensadores da história das
ideias, introduzindo-o no meio intelectual e, ao mesmo tempo, despertando o
interesse em conhecerem outros escritos de sua autoria, ampliando sua visibilidade
intelectual dentre eles: Doença Mental e Psicologia (1954/1962), fruto do seu
relatório de dissertação do curso de mestrado, adota como pressuposto “[...] de que
muito além das patologias mental e orgânica há uma patologia geral e abstrata [...]”
e menciona: “[...] em um balanço rápido, é necessário reconhecer ao mesmo tempo
se constituíram as psicopatologias tradicionais e recentes [...] a medicina mental tem
que estar consciente para encontrar um novo rigor”. (FOUCAULT, 1975, p. 8).
Sugere pensarmos a doença mental não como uma exclusiva condição
clínica ou patológica, mas sim compreendê-la por um método, que permita se
aproximar e identificar um conjunto de significações anterior de vida, que induziram
a constituir cicatrizes, comprometendo as condições atuais da existência individual,
desdobradas pelas relações sociais acumuladas e instrumentalizadas pela
perspectiva binária, entre um dito normal ou patológico. Logo, as repostas não
podem estar numa determinada metapatologia qualquer, mas em uma “[...] certa
relação historicamente situada entre homem e, o homem louco e homem
verdadeiro”. (FOUCAULT, 1975, p. 9).
Pelo livro O Nascimento da Clínica (1963/1980) é possível identificar o
aparecimento, no século XVII – de diálogos-fontes entre médico e o doente, como
uma condição histórica, social e de saúde mental de um sistema que não se esgota
de reorganizações em profundidades, não só dos conhecimentos da saúde, mas
pelos jogos dos discursos que vão sendo alinhavados, entre as mudanças e
propósitos da concepção da própria doença mental.
Destaca o surgimento da clínica como um espaço de preservação, as
mudanças dos exames e das observações, as especificidades individuais, os
comprometimentos evasivos dos diagnósticos clínicos e suas consequências à vida
dos indivíduos, uma espécie de carimbo social.
Esses novos achados são tutelados pelos aspectos históricos, sociais e
psicológicos tratados nessas duas obras, que se modificam e transferem
radicalmente os pensamentos precedentes do ponto de vista teórico e metodológico,
abrindo alternativas e possibilidades, incentivando novos hábitos de reflexão
científica, dentre as quais, é possível que um indivíduo preencha a função do sujeito,
em que o campo do sujeito é sujeito, e de que uma rede se alinhave pelos discursos,
entre os desejos, entre os prazeres e as frustrações, a culpa, a cultura, o econômico
entre outros, que não são isolados do seu contexto, e é nesse o destaque da rede
de relações, afirmando que não há sujeito absoluto.
Nesse sentido, o sujeito tem suas bases, uma constituição histórica e social,
no emaranhado de uma rede de interesses (dos outros, pelas brechas de si). Assim,
fica evidente que o evento-tema poder, pensado por muitos leitores desprevenidos,
não é o foco de seus estudos, mas o sujeito, como foi se constituindo por diferentes
saberes, que atribuo num formato de espiral, em que no centro se localiza o sujeito,
e ocupam um dos extremos dessa espiral os saberes e outro, os poderes, ambos
circulantes, provisórios em torno do sujeito.
Assim, Foucault se projetou como intelectual até os dias de hoje, mesmo
após sua morte, não só por ter despertado atenção em seus escritos e ditos, mas
também por alterar radicalmente a escrita de forma crítica, nas tentativas do domínio
da desrazão, nas mudanças do estatuto e das condições da classificação do louco,
operadas pelas técnicas de exclusão.
São raras ou pouco frequentes essas discussões teóricas e metodológicas,
não só relacionadas ao autor ou teóricos, mas a situações ou episódios, como
estando estes, de forma, direta ou indiretamente, disponíveis a serem estudados em
uma prateleira. Mais raras ainda são as discussões relacionadas com questões
éticas do pesquisador nos seus eventos-temas, relativas às suas condições
cognitivas, básicas (ler, interpretar e escrever) no caso, desprovidas de uma
determinada teoria ou paradigma, até mesmo de um método, como se este não
fosse calcado a partir do domínio de seus pressupostos contidos em cada
perspectiva teórica anunciada. Há uma forte tendência em afirmar que estamos
vivendo a experiência da pós-verdade, pelas condições da precariedade do saber, a
que muitos foram submetidos durante a escolarização, com o agravamento do que é
conhecimento.
Sem essa compreensão teórica e metodológica, é praticamente impossível
falar de ciência, na medida em que elas são frutos do domínio (cognitivos)
comprometidos pela precariedade das formações anteriores, que antecedem a base
teórica, talvez pouco se fale sobre certos conceitos, pressupostos teóricos e
conhecimento ou das possibilidades de alinhavar uma determinada teoria e seu
respectivo método, que sempre exigem, nos processos possíveis, tentativas de
domínios elementares de um conjunto de elementos contextuais e das possíveis
condições operacionais da investigação que se anuncia, muitas vezes na raiz da
aprendizagem, as condições comprometidas de alfabetização e letramento.
Isso ocorre em função das dificuldades também relacionadas aos aspectos
entre o lógico (estrutura interna do processo constitutivo anunciado), o histórico
(formas de apropriação dos fatos) e, acrescento ainda, as redes de relações entre
tema-evento, contextos, teoria/métodos, resultados/análises, na medida em que se
isola dessa atitude desse conjunto de relações, deixa de existir como evento-
problema.
Os desdobramentos desses, de maneira geral, ocorrem de forma diluída,
disseminada, muitas vezes sutis, em diferentes relações e níveis organizacionais.
Dispomos da afirmação que o conhecimento é uma das ferramentas de poder que
não se dá, não se troca, nem se retoma, se exerce, só existe em movimento ou ação
também da afirmação que o poder não é manutenção e reprodução das relações,
não só teóricas, mas econômicas, sociais, culturais, acima de tudo, relações de
forças e domínios. Ele não tem como ser relativizado ou omitido. Ele é explicitado
pelos limites e possibilidades de cada sujeito em lidar consigo. (FOUCAULT, 1980,
p. 175).
Para lidar com esta ideia, Foucault sugere a necessidade de questionar o
momento presente não porque ele é, mas, as condições históricas (fatos) que
permitiram levá-lo a ser como é, principalmente, que condições possibilitaram sua
emergência, interferindo diretamente nos modos de ser e estar no mundo.
Isso o levou, em seus últimos escritos, a focalizar também na perspectiva
dos indivíduos livres, éticos e racionais nas lutas pelas transformações sociais e
políticas, libertos das amarras de dominantes culturais, atenta para as tentativas
hegemônicas dos enunciados promotores de discursos, das falsas verdades,
impondo condutas e determinações de pensamentos, narrativas, enquanto pilares
da formação de cada indivíduo, constituído pelas drenagens peculiares de cada um
dos efeitos do meio e suas condições de enfrentá-los e transgredi-los, rompendo o
ciclo naturalizado da dicotomia da forma que penso e exercito, mas o que leva
acreditar que penso, é a verdade.
Esses desafios são sustentados pela história da realidade social secular,
marcada pelos fatos alcançados, em que se denota a precariedade das condições
de existência humana, em uma divisão inicial binária, entre os produtores de uma
determinada ordem (verdades) e os cumpridores, em sua maioria, acatadores
dessas determinações, de uma maneira ou de outra, sujeitados a partir de si aos
outros.
Essa espécie de drenagem se institui pelas condições objetivas e subjetivas,
entre o meio e o indivíduo, mediado pelas disputas culturais. É a circulação do
dever, da moral (ou imoralidade), da religião, dos paradigmas, paradoxos do que se
anuncia como conhecimento, alinhado ao certo ou errado ou, ainda, à condição do
melhor ou pior, para compreender a realidade representada pelos seus fenômenos
que sempre serão peculiares – são modos de vida, escolhas ou ainda, mecanismos
de defesas.
O resultado é a seleção pela classificação e o estabelecimento de controles
evidentes ou não, seja em cada instituição, entre os indivíduos, sujeitando-os às
práticas sociais operadas por determinantes culturais, sem qualquer análise prévia
de suas validades. São práticas/políticas em jogos de linguagens, comportamentos e
omissões, porta para o sofrimento, adoecimento ou pela produção de sua própria
exclusão.
Esses movimentos, quando resgatados em arquivos, fatos e analisados,
pelas perspectivas Foucaultianas, são sustentados nas relações de poderes e
saberes – sujeitos e indicam diferentes domínios, objetivamente pela sua
materialidade (prova) e pela subjetividade (interpretação) permitindo tecer críticas
aos aspectos relacionados às suas próprias delimitações disciplinares, de
enquadramentos, como normal e anormal.
Assim, a partir desse inventário inicial das bases de seus pressupostos
teóricos e metodológicos, alinhavados por obras e análises iniciais destas, cabe
refletir um pouco sobre seus três empreendimentos e respectivas transformações,
concernentes aos métodos empregues, também, conhecidos pelos seus leitores e
assim interpretados por etapas, fases, projetos ou itinerários, relacionados aos
movimentos que se caracterizam como arqueologia do saber, genealogia do poder e
genealogia da ética, assim denominados pelo autor como já anunciado.
Em verdade, não há uma arqueologia no sentido restrito da expressão, mas
a que Foucault procede é a uma arqueologia do saber das ciências humanas,
tratando da constituição de uma superfície de inscrição que sustentou, inicialmente,
suas pesquisas e análises, mas não se configurou um corpo teórico amplo, segundo
ele avaliou alguns anos após, no livro Em Defesa da Sociedade (1997/1999).
A tutela do itinerário arqueológico é o saber, neste sentido o marco de
referência são as formas de organização do conhecimento, numa dada época da
história, enquanto um evento-tema, em função de classes e objetos específicos,
buscando obter as suas condições de emergências contidas nos discursos desses
saberes, operados pelas ciências, paradigmas, paradoxos, ideologias e outras
práticas discursivas capazes de serem submetidas a estas condições de análises –
fontes de movimentos das práticas sociais vigentes operam por determinantes
culturais vigentes, na potência de uma verdade absoluta, fechada e enfática. Além
do comprometimento cognitivo de quem tenta se apossar.
Segundo Foucault, no livro Arqueologia do Saber (2005, p. 172), a
arqueologia é compreendida,

[...] como o método próprio à análise da discursividade local, que permite a


descrição detalhada de um discurso, por meio da evidência de seus
enunciados, num conjunto maior que o circunda e o constitui como saber
específico.
Descreve, ainda nessa mesma obra, que a formação discursiva nada mais é
do que compreender aquilo que é essencial, as condições que permitiram emergir
um determinado saber, suas regularidades, permitindo que apareçam nas condições
de verdade. Na mesma obra anunciada, Foucault, em uma de suas análises: “[...]
não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode
definir-se pelo saber que ela forma”. (FOUCAULT, 2005, p. 205).
Enfatiza que todo saber tem um enunciado contido e adota como tema-
evento a superfície da inscrição e que não pode ser investigado como códigos
produzidos por um ou mais sujeitos, mas somente relacionado a outros “eventos
simultâneos”, discursivos ou não-discursivos, “ao mesmo tempo não visível e não
oculto” como já foi anunciado. Suas bases emergem sustentadas por elementos
subjetivos e objetivos, e esbarram pela presença ou não de um nível de consciência
individual e coletiva ou cognitiva gerando a própria alienação de si.
Por isso, os acontecimentos não se esgotam em si mesmos, mas
perpassam a cada indivíduo, palavras, frases, proposições, condutas e os atos
diversos de linguagens. São elementos de uma discursividade que, para serem
apreendidos, precisam ser tratados sempre de maneira relacional - redes. Nunca
estão isolados, compõem relações de interesses, inclusive de exercer a
desinformação do próprio conhecimento acumulado, podendo ser, também, o
espaço de uma espécie de distorção ou omissão dos fatos, do crime ou não crime.
Ao interrogar, a arqueologia do saber utiliza as condições de ser-saber,
enquanto sujeito do conhecimento, ao mesmo tempo, propicia abrir para discussões,
a partir das seguintes indagações: Que posso saber? e Como posso saber? As
repostas vão sendo alinhavadas a partir das peculiaridades da problematização a
que o autor procede nas formações discursivas, as suas descontinuidades e as
verdades contidas no interior das contingências históricas e sociais, na condição de
acontecimentos e dos acasos de cada época, por espaços que possibilitaram
emergir como tal e enfatiza: “Não me pergunte quem sou e não me diga para
permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil: ela rege nossos papéis. Que ela
nos deixe livres, quando se trata de escrever”. (FOUCAULT, 2015a, p. 23).
O pressuposto adotado é que, em cada época, há um espaço na condição
de uma determinada ordem - saberes, condutas marcadas por possibilidades do seu
aparecimento, impondo o que pode ser, como deve ser e como deve ser pensado e
agido, assim como, o que pode ser dito e como pode ser dito ou mesmo silenciado
pelo enunciado propulsor de diferentes discursos relacionados a esses saberes – “o
enquadramento” de determinações.
As obras que possibilitam elementos das reflexões referentes ao movimento
da arqueologia do saber são: O Nascimento da Clínica (1963/1980) – quando
Foucault anuncia, em seu prefácio: “[...] este livro trata do espaço, da linguagem e
da morte; trata do olhar [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 9); Em As Palavras e as
Coisas: uma arqueologia das ciências humanas (1966/1967), originalmente
traduzido em Portugal, em que o autor investiga o homem e as ciências humanas,
enunciados e discursos circulantes, empregues para os mesmos ou diferentes
eventos-objetos, tomando os fatos sociais e as diferentes percepções sobre eles,
pela materialidade dos processos contidos em suas configurações e em arranjos.
Essa última obra é conhecida também como uma das mais polêmicas de
sua autoria, pelas críticas às quais foi submetido, nas décadas de 1960 e 1970,
quando utilizou a paradoxal junção entre o saber histórico, erudito, e o saber local –
diferencial, singular – saber histórico das lutas, propondo conceito provisório para
genealogia:

[...] o acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a


constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas
táticas atuais. [...]. Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que
pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um
conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por
alguns. (FOUCAULT, 1995, p. 171).

Distancia-se dos procedimentos da arqueologia do saber, em proveito do


conceito de genealogia, definido no texto Nietzsche, a Genealogia e a História
(1971), como uma pesquisa histórica, passando a tomar suas análises sobre o
discurso, na condição de um instrumento de caráter político, fruto dos estudos
iniciais, que contaram com algumas discussões iniciais com a participação de
Nietzsche e Gilles Deleuze e, posteriormente, Foucault continuou aprofundando as
possibilidades de análises propiciadas pela genealogia do poder.
A polêmica dessa atitude de Foucault – tratar de ativar saberes locais,
periféricos levando, a partir das críticas que recebeu, três anos após, a publicar o
livro Arqueologia do Saber (1969/1972) detalhando os movimentos e as
ferramentas adotadas no livro anterior, valendo-se de uma pesquisa histórica, que
passa do período anterior ao classicismo, o atravessa e chega às ciências humanas
modernas, analisando os saberes contidos, a partir do que constitui a episteme.
Episteme na obra é compreendida nada mais do que um espaço-síntese do
aparecimento de uma ordem, uma determinação no momento histórico, em que os
saberes nele contidos surgem e são manifestos, pelos enunciados imersos nos
discursos tomados como verdadeiros, devido as suas influências, simpatias ou
antipatias, podendo ser confundidos, por fragmentos ideológicos ou doutrinários,
muitas vezes pelo próprio desconhecimento desses saberes ou de uma visão
horizontal.
Seis anos após, é que Foucault publica o livro Vigiar e Punir: história da
violência nas prisões (1975/1977), adotando como método a genealogia do poder
e inaugurando o período genealógico, assim atribuído. Agora é a analítica do poder
que é apresentada neste livro, tornando visível a organização do sistema de punição
nas sociedades disciplinares, de formas massificantes e individualizantes.
É esse espaço, historicamente, de confinamento reconhecido pela
sociedade, de uma forma ou de outra, que subsidia as análises das práticas
institucionais, não só em presídio, mas nas demais instituições, pelos desvios,
distorções, por fora e por dentro.
Tem como um dos pressupostos a necessidade de dirigir as leituras e as
análises procedidas das discursividades, de maneira diferente até então empregues,
na arqueologia do saber – “horizontal”. Passam a ser orientadas no sentido “vertical”
e para o presente – pelas determinações históricas e sociais de nosso próprio
regime de discursos, introduzindo outros conceitos, eventos-temas que passam a
compor os seus estudos seguintes.
Ao se distanciar do termo episteme (na condição de um dispositivo
eminentemente discursivo), passa a utilizá-lo ao fazer as escolhas metodológicas de
ocupar-se dos mecanismos de dominação de poder, em detrimento do uso dos
elementos da soberania, do aparelho de Estado e das ideologias, como detalhado
no livro Em Defesa da Sociedade (1999).
Indiscutivelmente, perspectiva genealógica do poder tem como lastro a
reconstrução da história, com foco em compreender os fatos e as práticas exercidas
pelos indivíduos e as instituições como construções sociais singulares proferidas
pelo saber, pelo poder e pelo sujeito, compondo diferentes modos de subjetivação.
É nos domínios do poder que as questões da genealogia se colocam, não
para explicar o que ele é ou deixa de ser, mas para entender que as suas análises
deduzem sempre da economia política, consoante outras concepções teóricas
afirmam. Nesse sentido, o evento-tema “poder” constitui-se questão de fundo das
pesquisas genealógicas.
Busca apreender e traz à tona, colocando em foco saberes marginais e até
então impensados, o “como” do poder, sua engrenagem, seu funcionamento, seu
deslocamento atuar entre dois pontos de referência: nas regras de direito, que o
delimitam, mas também, “[...] nos seus efeitos de verdade que o poder conduz e
que, por sua vez, reconduzem esse poder”. (FOUCAULT, 1999, p. 28).
Explora exaustivamente o discurso pelas diferentes formas que se manifesta
e produz poderes. Nesse sentido, o discurso é uma das ferramentas de exercícios
de poder, produz efeitos, constitui-se por diferentes leituras, interpretações, criando
outros movimentos, os quais estabelecidos originalmente, em suas bases, muitas
vezes como contraditórios e antagônicos. Exatamente por isso, o discurso também
demarca características de espaço, de lugar onde se alojam as relações de saberes
e poderes – sujeito e de disputas.
É o seu caráter político, das práticas discursivas, agora na condição de
confrontos culturais da sociedade. Nesse sentido, a genealogia do poder exige
abarcar as suas especificidades, pelas minúcias, detalhes e um acúmulo significativo
de materiais, não para construir monumentos, mas para evidenciar “pequenas
verdades”, o que se opõe à pesquisa da origem, independentemente das suas
bases selecionadas, pois são diferentes propriedades no separador denominada de
Ursprung - temo referente à gênese das origens.
Por isso, recusa as gêneses lineares (preocupadas com o útil das coisas) e
preconiza até sua inexistência, possibilitando que se confronte a história na qual se
destacam as rupturas e as descontinuidades – não há uma continuidade absoluta.
Nessa perspectiva, a genealogia do poder também é considerada como uma
tática de “guerra”, a partir da discursividade local, assim descrita, ativa os saberes
libertos da sujeição, que emergem desta discursividade “[...] se colocando como uma
das formas de resistências e de lutas contra os discursos legitimados em
determinada sociedade”. (FOUCAULT, 2005, p. 172).
Logo, as questões pertinentes da genealogia do poder estão imbricadas nos
exercícios de ser-poder, enquanto sujeito de ação sobre os outros, trazendo duas
indagações: Que posso fazer? e Por quê? Na medida em que problematiza o
surgimento de questões relacionadas aos ciclos dos saber e poder e às posições de
sujeição, pelo princípio das disputas culturais em que “Não há relação de poder sem
a constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não
constitua ao mesmo tempo relações de poder”. (FOUCAULT, 1999, p. 27).
Foucault busca reconstituir a maneira pela qual o saber imbrica, ao mesmo
tempo, relação com os propósitos de aquisição de um conhecimento (movimentos
de objetivação) e com os processos de subjetivação (cognoscente – capacidade
cognitiva para apreender o saber, interpretar e analisar).
Essa dinâmica é, coincidentemente, uma condição individual e coletiva, na
estrita relação com o meio e o indivíduo, da aceitação e rejeição, sensação e
percepção, compondo hiatos que vão se formando entre crenças e o conhecimento,
natureza e limitações, as relações entre estímulo físico e a percepção. É a
subjetividade determinando os fenômenos mentais e as representações simbólicas
manifestas de maneiras objetivas.
Nesse sentido, a genealogia do poder explica que não se trata de uma
história dos comportamentos ou das representações, mas, de analisar os seus
contextos, teórico e prático, as relações e suas configurações, aos quais à noção de
sexualidade foi vinculada, sua genealogia, uma análise da formação de um tipo
específico de saber sobre o sexo em termos de poder.
O segundo livro desse período é História da Sexualidade I: a vontade de
saber (1977/1978), o qual dá início ao projeto da coleção “História da sexualidade”,
que previa mais cinco volumes específicos programados, mas foi modificado,
conforme já escrito no início deste capítulo, com o propósito de se ater à noção
cotidiana e recente do evento-tema “sexualidade” no século XIX.
O capítulo A Vida dos Homens Infames, coleção Ditos & Escritos: ética,
estratégia, poder-saber, v. 4 (1994/2003), é marcado como um acerto de contas de
Foucault consigo, referente, em parte, com sua experiência em lidar com genealogia
do poder – uma face a face com o poder e o saber. Ele escreve sobre as limitações
suas em transpor a linha de força em que se constitui o poder, de ultrapassá-la,
mesmo buscando as diferentes maneiras de resistências.
Trata-se de um diálogo entre ele e um interlocutor imaginário, sobre certos
impasses, em que situa seu trabalho, e autoanalisa:

[...] isto é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de


ultrapassar a linha, de passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a
linguagem que vem de dentro de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma
escolha, do lado do poder, do que ele diz ou do que ele faz dizer. Essas
vidas, por que não ir escutá-las onde, por elas próprias, elas falam?
(FOUCAULT, 2006a, p. 199).

Nesse momento, ele amplia, transforma a concepção de poder aplicada nos


seus últimos trabalhos, embora não faça um retorno ao sujeito, mas o problematiza
pelas relações de poderes e saberes, criando o termo “subjetivação” – que consiste
nas novas possibilidades de vida, pela exegese de si.
Ao introduzir o termo problematização, ele passa a ser empregue com
ênfase crescente nas suas últimas pesquisas, designando o conjunto de práticas
discursivas e não-discursivas, que permitem que algo entre no jogo do verdadeiro e
do falso, constituindo-o como evento-objeto para o seu pensamento. Tudo pode ser
questionável.
Em 1984, após oito anos da publicação do primeiro volume da História da
Sexualidade I: a vontade de saber publica simultaneamente os volumes da
coleção com os títulos História da Sexualidade II: o uso dos prazeres
(1984/1984), e História da Sexualidade III: o cuidado de si (1984/1985), nos quais
problematiza o sujeito.
Agora não mais a modernidade, mas a Antiguidade greco-romana, não mais
os dispositivos de poder, mas as “práticas de si”. Importância decisiva nessa
mudança é o curso que ministrou em 1982, organizado com o título Hermenêutica
do Sujeito. (2001/2004).
Outros cursos ministrados no Collége de France e no Brasil, nas décadas de
1970 e 1980, um número significativo já traduzido, no campo da genealogia do
poder, por intermédio eventos-temas, entre eles destaco livros e conferências: A
Ordem do Discurso (1971/1996); Théories et Institutions Pénales: cours au
Collège de France (1973) (Teorias e Instituições Penais); A Verdade e as
Formas Jurídicas (1973/2003); A Sociedade Punitiva (1974/2015b); Do Governo
dos Vivos I (1981/2010); Em Defesa da Sociedade (1997/1999); O Poder
Psiquiátrico (2003/2006); Os Anormais (2003/2003); Segurança, Território e
População (2004/2008a); Nascimento da Biopolítica (2004/2008b) e O Governo
de Si e dos Outros (2008/2010).
Trata-se da história do pensamento, preocupada com o modo pelo qual são
organizados eventos-temas para o pensamento e as estratégias criadas para
resolvê-los pela compreensão do aparato teórico. Para o autor, as repostas a um
conjunto de dificuldades ou problemas são várias.
Busca os modos de problematização, correspondendo a uma época
específica (não uma variação cronológica), visto que problematizar é a tarefa da
filosofia, do exercício crítico do pensamento, que em nada equivale à busca de
soluções aos problemas ou dificuldades – práticas/ políticas.
Ao retomar esses modos de problematização, de instaura o “desprender-se”,
mas, também, de fazer a história do pensamento, dos comprometimentos de manter
com a verdade, com os objetos, regras de ação ou modos de relação de si. Na
medida em que se instaura uma condição de problematizar, há interrogações,
repostas a certo tipo de problema, que sempre deverão ser provisórias.
É a abertura para compreensões peculiares dos fatos (arcabouços
históricos) margeados, num determinado tempo (período) que permitiu emergir,
circular e esgotar diferentes discursos, evidenciados por conceitos, crenças,
expressões e procedimentos – são práticas – estabelecidas, executadas, que
circunscrevem a realidade dos dias atuais, exigindo uma análise crítica do tempo
presente, em relação àquilo que nos produz e nos sujeita.
O terceiro domínio Foucaultino, arquegenealógico, também conhecido como
ético-político ou ético, parte do seguinte pressuposto: Ser consigo sujeito de ação
sobre si, pelas duas seguintes indagações: Quem sou eu? Quem posso ser? Como
nos tornamos o que somos? As repostas são sustentadas por dois pilares
concomitantes relacionados aos aspectos discursivos e não discursivos, falar não é
ver, ver não é falar. São as formas exteriores entre si do saber, visível e enunciável,
pela linguagem.
São as evidências de certas verdades registradas para a problematização e
a constituição da subjetividade do sujeito que seguem as fases envolvidas nas
evidências. Trata-se das relações do corpo com dispositivos e os efeitos da sua
constituição, que se efetuam a partir dessas experiências peculiares, individuais e
constantes, a partir das relações das práticas sociais, operadas pelas disputas
culturais, na medida em que envolve elementos relacionados às tentativas de
superação da homogeneidade cultural de valores e condutas, leis, regras e normas,
pensamento e ação se situarem ou não nas condições históricas de sua própria
existência.
Começam assim as discussões relacionadas às possibilidades de uma ou
não ética universal, da sujeição ou não, da homogeneidade cultural ser atravessada
pela liberdade de ser e estar no mundo, pelas brechas dadas pelas heterogêneses
sociais que ultrapassam as tentativas de regularizações das predominâncias ou
determinações de um determinado contexto cultural, de relações institucionais de
uma sociedade e se relacionam às questões pertinentes às diferenças, às
diversidades, às pluralidades de pensamentos e às condutas de bases variadas.
Nada simples, nada fácil, a catarse de estabelecer formas de resistência, de
contestação frente às diferentes relações de poder; são lutas singulares. Pensar o
sujeito criticamente foi uma tarefa que Foucault se colocou desde os seus primeiros
estudos, porém, foi nos últimos estudos que apareceram as técnicas pelas quais os
homens se produzem e transformam a si mesmos.
Trata-se, então, dos modos pelos quais os indivíduos vão elaborando suas
subjetivações, numa dimensão ética encontrada nos volumes que compõem a
coleção História da sexualidade, a partir de 1984, e o acompanha após sua morte,
quando publicado o último volume, em 2021.
A resistência é retomada não mais no interior dos dispositivos de poder, mas
como ponto de partida para uma ontologia crítica da atualidade: as formas de
resistência aos diferentes poderes, Foucault evidencia a existência de três tipos de
lutas: contra diferentes formas de dominação; contra as que separam os homens da
própria produção (formas de exploração); e, contra a sujeição (formas de
subjetivação e de submissão).
Explica que essas parecem predominar em nossas sociedades atuais
decorrentes do desenvolvimento do Estado moderno, considerado quase sempre
como poder político que se preocupa com questões maiores (totalidade, classe,
população) do que com os indivíduos. Todavia, o pensador chama atenção às
características do poder político do Estado moderno ocidental, que é ao mesmo
tempo individualizante e totalizador. (FOUCAULT, 1995).
Ainda nesse livro, Foucault denomina subjetivação aos diferentes processos
de constituição do sujeito, na formação de subjetividade, e destaca inicialmente três
modos de subjetivação, que produzem sujeitos, ao objetivá-los: primeiro, uma
investigação que busca alcançar o estatuto de ciência (do ser vivo, falante e do
trabalho); segundo, as “práticas divisoras”, que separam o sujeito no interior dele
mesmo e em relação aos outros, visando classificá-lo e fazer dele um objeto; e,
ainda, as técnicas de governamentalidade (o investimento do poder no sujeito;
embates entre técnicas de dominação e as técnicas de si, em rejeição à sujeição).
Acredita-se que ao problematizar o paradigma da linguagem na
arquegenealogia (episteme), Foucault exercita, nesse movimento, as suas
contribuições com o debate da passagem do paradigma da filosofia e psicologia da
consciência, no qual o sujeito do conhecimento ou da consciência reflexiva de si
mesma serviam de suporte às metafísicas idealistas do eu.
Tenta compreender o papel da linguagem no interior dos processos sociais,
políticos e históricos, também os seus usos em diferentes contextos institucionais e,
ainda, nas práticas de vida, macrossocial, micropolítica, microfísica, colocando em
evidência os processos na constituição do sujeito e da subjetivação/subjetividade,
assim como a manutenção e preservação da sociedade, o paradigma da filosofia e
psicologia da linguagem, que prioriza as diferentes formas de linguagens e as
práticas discursivas, dando significados e sentidos, na maneira de compreender a
realidade social, a partir de si na relação com os outros.
Entre as obras que marcam esses aspectos epistemológicos e
metodológicos desse projeto do autor estão: Do Governo dos Vivos (1979/1980);
Subjetividade e Verdade (1980/1981); A Hermenêutica do Sujeito (2001/2004); A
Sociedade Punitiva (2013/2015b); e A Coragem da Verdade (2009) e O Governo
de Si e dos Outros (2004/2010).
O que foi desenvolvido até aqui foram diálogos com alguns pensamentos e
movimentos do autor, que não se encerram neste momento, pelo contrário, exigem
aprofundamentos, retomadas e outras reflexões dos ditos e escritos de Foucault,
aqui reunidos, na expectativa de subsidiarem outras análises e compreensões da
realidade social e da nossa própria existência, das histórias da história, propiciadas
pelas ferramentas teóricas e metodológicas disponibilizadas, que tomam o campo do
conhecimento, pelas latências das práticas que se constituíram, por diferentes
ângulos e outras possibilidades.
O postulado é que todos os saberes geram poderes, que, por sua vez,
produzem novos saberes, por intermédio do exercício concomitante, e visam à
sujeição ou não do indivíduo por intermédio das práticas sociais, operadas pelas
disputas culturais. São contextos que as identificam, nas especificidades de cada
evento-tema estudado por Foucault, pela microfísica, pela micropolítica, pelo
cuidado de si, pelas células do arcabouço proposto por ele, justificando os
movimentos estruturados aqui e o título deste Capítulo.
Essas possibilidades se organizam de forma estruturante na medida em que
a arqueologia do saber, genealogia do poder e a arquegenealogia – ética são
entrelaçadas, e momentos constantes dos processos de conhecimento, é uma
relação peculiar do pesquisador com o seu evento-tema, conforme propõe o autor.
Falo então de elementos que têm por base as diferentes formas de angariar
as fontes, lidar com elas, respaldar-se, enquanto produção de conhecimento de um
determinado evento-tema, e, essencialmente, salvaguardar as verdades que
emergiram pelos enunciados contidos nos discursos.
Nesse sentido, o acesso e apropriação de documentos são fontes
determinantes e inerentes que demarcam uma pesquisa voltada para compreensão
das principais características do campo arqueológico, cuja premissa tem o
enunciado como elemento fundamental dos arquivos, o que implica a qualidade das
fontes acessadas. É um tipo de problematização.
Já no campo genealógico, o autor movimenta esses arquivos para uma
leitura de forma histórica e social, fisgando elementos para explicitar as redes de
relações, suas forças, tensões e sujeições, pelo que se estruturou por uma nova
forma de poder instituído, dissolvido e penetrante, com o propósito de normalizar,
impondo um conjunto de regras, entre o que pode ser ou não dito, dando objetivação
ao sujeito – sujeição, garantindo, assim, a docialização, passividade e o medo – as
grades agora não são só físicas, direcionam-se ao campo emocional, à inércia de
reação e da compreensão da realidade histórica e social em que se insere.
No campo ético, que é simultâneo aos outros dois momentos anteriores, há
uma visão nítida que dá respaldo à forma adotada na seleção e constituição de
arquivos, até mesmos dos enunciados contidos nos documentos. Entretanto, observa-se
que há predominância no tratamento dos arquivos como uma questão de ordem
mecânica, que emerge das relações entre análises, observação e sujeição das fontes,
gerando não só uma desestabilidade à produção do conhecimento, ora de controle e
domínio, abrindo para outra visibilidade e, ao mesmo tempo, dá espaço às "[...] formas
de poder funcionar sobre si mesmo [...]” (FOUCAULT, 2014, p. 196), ou o sujeito fala de
sua própria prática, sem uma depuração mínima que lhe dê respaldo de ser uma
condição de conhecimento.
Isso permite afirmar um dos princípios fundamentais da pesquisa, Foucault nos
ensina é que cada evento-tema exige procedimentos teóricos e metodológicos que se
constituem concomitantemente no processo de construção do conhecimento, pois só
assim é possível explicitar as condições e os limites do próprio evento-tema que nos
permite acessar, conhecer e validar suas condições histórica e social que o institui,
alinhavado pelos procedimentos relacionados aos itinerários.

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