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Foucault e a loucura como ausência de obra

Foucault and madness as absence of work


Chaim Samuel Katz psicanalista*

Resumo

Ao se elaborar o conceito foucaultiano da loucura como “ausência


de obra”, descobrem-se nele virtualidades que cabe aos psicanalistas
clínicos desenvolver. Na ausência de obra, ensina Foucault, não se
distinguem fala e língua, as palavras não se expressam como tais
mas mantêm um regime de auto-implicação. Contudo, elas não
estabelecem diferenças. Voltado especialmente para a questão dos
mecanismos de biopoder, Foucault não se lembra de que a
exclusividade de tal regime discursivo, sua não-transitividade com
outros regimes discursivos produz uma afetividade insuportável.
Propondo a elaboração de tal conceito desde a inclusão dos regimes
de desejos e pulsões, ignorados por Foucault, mostro como a noção
de ausência de obra pode ser um elemento importante e
transformador para o pensar psicanalítico mais próximo de Freud.
Palavras-chave: Foucault, loucura, clínica psicanalítica, discurso, pulsão

* Membro da Formação Freudiana, Doutor em Comunicação pela Escola de


Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1
Abstract

When elaborating on Foucault’s concept of madness as “absence of work”,


we may find in it virtualities some clinical devices that psychoanalysts should
develop. In the absence of work, Foucault teaches us, speech and language
are not separate, the words are not expressed as such but they maintain a
self-implication regime. However, they don’t establish differences. In this
specific moment, especially focused in the subject of the biopower
mechanisms, Foucault does not remember that the exclusiveness of such a
discursive regime, its no-transitivity with other discursive regimes, produces
an unbearable affectivity. Proposing the elaboration of such concept by
including the regimes of wishes and drives, unknown at this moment by
Foucault, I show how the notion of absence of work may be an important
and innovative element for the psychoanalytic thinking closer to Freud (and
also to Foucault).
Keywords: Foucault, madness, psychoanalytic clinic, discourse,
drive

Para MF, cuja aposta na vida expansiva


me ajudou a repensar minha Psicanálise

2
α – O que um psicanalista aprende com Foucault

Indico um dos modos como Foucault elabora o estatuto


discursivo específico da loucura e, em muitos pontos, como isto se
refere à Psicanálise. Mesmo quando se opõe à Psicanálise, ele marca
finamente suas posições, como faz nos seus pensamentos em geral.
É isto que nos permite, aos psicanalistas, pensar e aprender com
ele, bem como situar as nossas diferenças. Como? Por exemplo, num
debate que se seguiu às suas primeiras conferências na PUC-RJ, ele
se coloca, enfaticamente, na posição de sofista, por oposição e
diferença dos filósofos “ortodoxos”, que estariam na eterna busca
da verdade.
Com os sofistas, “temos uma prática e uma teoria de discurso
que são essencialmente estratégicas; construímos discursos e
discutimos não para chegar à verdade, mas para vencer. É um jogo:
quem perderá, quem ganhará?”. Enquanto “para Sócrates só vale a
pena falar se se quer dizer a verdade”. Porque, para os sofistas “a
prática do discurso não é dissociável do exercício do poder”1. O
logos, para os filósofos da tradição socrática, é um exercício de
memória, na busca do preexistente eterno, as Idéias em seu mundo
e existir específicos, estabelecidas como a Verdade, uma verdade
pronta e que deveria ser alcançada por uma dialética ascendente.
Enquanto para Foucault e para outros filósofos e muitos psicanalistas

3
(entre os quais me incluo), o logos é também e sempre criação, jogo e
poder. Portanto, possibilidade de produção da verdade e
transformação das existências.
Por isto, minhas indicações se farão também no sentido de
colocar os loucos, ao menos os discursos loucos, em condições de
jogar e vencer. É assim que importa a clínica psicanalítica, e não um
saber “neutro”, equiparado a uma pretensa ética abstrata, que não
se coloca na busca de melhores estratégias para o jogo da vida, mas
numa busca da revelação de A Verdade. Ou seja, tal direção do
pensamento foucaultiano é fundamental para o fazer psicanalítico
e quero exercê-lo neste pequeno escrito.
Independente do modo como constrói sua própria obra, além
de elaborar o estatuto específico da loucura como discursividade,
ou fazer o exame de uma linguagem da loucura, Foucault se
preocupou, também e especialmente, em pensar as relações de poder
que ali se constituem. Tomando os discursos como regimes de
materialidade, tratou de saber como eles se produzem (seu regime
discursivo) e se inscrevem e disseminam socialmente (todo saber só
existe na condição de manter relações de poder com outros regimes
de pertinência discursiva, disciplinar e social). Bem como procurou,
exatamente no texto que abordo diretamente, pensar a especificidade
de um discurso que não faz obra, não se delimita. Mas, desde logo,
no livro que hoje nos concerne2, Foucault, no interior da melhor

4
tradição sofística, começou a postular que não há relações de saber
que não sejam concomitantemente relações de poder.
Não me cabe aqui distinguir os dois movimentos mais
importantes da obra foucaultiana, a arqueologia do saber e a
genealogia do poder3, mas indicar o que parece importante nesta
tese de Foucault para a teoria da Psicanálise e o exercício dos
psicanalistas. Ainda quando ele não as desenvolvera, seus cuidados
e elaborações com as questões do poder nos são muito importantes.
Mesmo nestes escritos que privilegiam a genealogia do saber,
nunca se trata apenas do registro discursivo e epistemológico dos
saberes e ciências, como também de suas formas de domínio e
apreensão. “Se o personagem médico pôde cernir a loucura, não é
porque a conhece, mas porque a domina” (Foucault, 1972: 525). Se a
loucura existe, na época pré-freudiana estudada por Foucault, como
o que pode ser visto enquanto tal (idem: 507), o médico será seu Pai
e Juiz, Família e Lei. Primeiro, é a autoridade jurídica e familiar que
permite as internações dos loucos, e esta logo será duplicada pela
autoridade médica; e depois a Psiquiatria protege a família contra
seu louco: “o espaço asilar é estrangeiro ao espaço familiar”4. Do
mesmo modo, diz Foucault, é especialmente o poder médico que
ensina ao louco não apenas seus comportamentos adequados, como
uma linguagem própria para fazer parte dos saberes-poderes em
vigor, devendo submeter-se a eles, pela sua interiorização 5.

5
Aprendemos, então, com Foucault, que a interiorização não é apenas
um processo psíquico (conforme Nietzsche e Férenczi já ensinaram
antes), mas de introjeção de relações e de mecanismos de poder.
Por isto, de acordo com a futura elaboração de seus pensares,
quando enunciar a genealogia do poder, afirmará: “O discurso não
deve ser tomado como o conjunto das coisas que se dizem, nem
como a maneira de dizê-los. Ele está tanto naquilo que não se diz ou
o que se marca por gestos, atitudes, maneiras de ser, esquemas de
comportamento, acomodações espaciais. O discurso é o conjunto
das significações constringentes e constringidas que passam através
das relações sociais”6. Ora, tal indicação nos colocará inúmeros
problemas, que não cabe desenvolver agora. Mas uma tal perspectiva
indica inúmeras questões para o modo como Foucault identifica e
elabora o que compreende e examina como “psicanálise”. Trata-se,
como se lê nesta citação, de uma recusa da noção de discurso no
regime específico exclusivo de uma certa teoria da Linguagem que,
entre outras elaborações, se construiu na psicanálise francesa de
Jacques Lacan. Esta se estabelece, ao menos no seu desenvolvimento
inicial, no modelo fonologicamente construído, a partir da obra de
Saussure, e elabora o inconsciente estruturado como linguagem e
articulado em afastamentos diferenciais de termos que são
significantes da/na linguagem (os fonemas). Portanto, o que
Foucault considera como discurso psicanalítico e que merece suas

6
críticas, por considerar apenas uma dimensão da linguagem, se
restringe boa parte das vezes à psicanálise lacaniana7.
Se é assim, deve-se afirmar que ele problematizou ou
questionou um novo campo de saber, que exige indagações
diferenciadas. Na tradição filosófica mais próxima (esta que inspirou
Foucault), aprendemos com Heidegger que o pensamento estabelece
(e só se estabelece desde) questões; que se pensa, no alemão
heideggeriano, na sua construção conceitual, como die Fragen. Mas
em Heidegger tais questões se colocam desde o pensamento
originário, a consideração do humano enquanto Dasein (a ek-sistência,
o estar-aí) como outro modo de estar diante do Ser e seu processo
de velamento e desvelamento, sem se deixar levar por suas
manifestações imediatas ou históricas. Enquanto para Foucault,
apoiado especialmente em Nietzsche, trata-se também e
simultaneamente de verificar como se dão as operações do
pensamento desde suas construções positivas, onde os impulsos da
vontade de poder se fazem sempre em virtualidades históricas e
concretas (o que, como sabemos, Heidegger considerava como sendo
do reino da Metafísica).
Ou seja, uma positividade construída desde os fundamentos
do pensamento que considera os modos efetivos e múltiplos através
dos quais se faz. “O que me agradou em Nietzsche é a tentativa de
questionar os conceitos fundamentais do conhecimento, da moral e

7
da metafísica, recorrendo a uma análise histórica de tipo positivista,
sem se referir às origens”8. Além de, claro, Nietzsche ter um exercício
permanente de retirar o primado da consciência como constitutiva
do sujeito, o que foi também um movimento constante dos
pensamentos de Heidegger e Lacan9.
Mas a grande diferença é que, como já apontei no início e o
que interessa profundamente à clínica psicanalítica, as questões de
Foucault se querem transformadoras no regime existencial e não
apenas modos de se inscrever num pensamento originário, cujo
encontro possibilitasse a verdade. O discurso opera efetivamente
nas e desde as modalidades sociais e culturais, como no cuidado de
si, que Foucault elabora posteriormente, e é sobre esta efetividade
(quer se goste ou não deste termo) que ele constrói seu pensamento.
É exatamente por isto que terá que pensar acerca de “experiências
pré-discursivas” da loucura, que precisam ser consideradas10.
Mesmo quando o próprio Foucault a recusa ou oscila por
relação a ela, há que considerar uma “experiência trágica da
loucura”, que é, de algum modo, uma referência para seu
pensamento acerca da loucura. Tal extra-discursivo (para mim trata-
se de um extra-discurso e não de um pré-discurso) da loucura será
um motivo para o cotejamento entre a Psicanálise e Foucault, no
fim deste meu pequeno escrito.

8
β – A especificidade do discurso louco

Na segunda edição da Histoire de la folie à l’âge classique, lê-se


um pequeno texto, sobre “A loucura, ausência de obra”, que inexistia
na primeira edição11. Na verdade, trata-se de uma retomada vigorosa
de idéias já indicadas nas últimas páginas do próprio livro, no
capítulo V da terceira parte, sobre “o círculo antropológico”.
A Histoire de la folie à l’âge classique vem discorrendo sobre os
modos como a Razão, enquanto procedimento único (e vencedor)
do funcionamento expansivo e controlador das cidades, instituições
e teorias, exclui a Desrazão de seus limites. E como isto se faz desde
a inauguração de saberes e instituições que precisam de
regularidades para seu funcionamento12. O que se contém no seu
interior deve ser da ordem do mensurável, avaliável, do controlável,
enfim, daquilo que diz respeito à reprodução do idêntico. Como
ensinou Nietzsche, mestre de Foucault neste momento: “a
calculabilidade (Berechenbarkeit) de um acontecimento não está no
fato de que uma regra seja obedecida, ou uma necessidade escutada,
ou na projeção de uma Lei de Causalidade: está no retorno de ‘casos
idênticos’” 13. O Mesmo também é uma produção através de
mecanismos de poder, ensina Foucault, de acordo com Nietzsche.
Seu livro nos mostra que o predomínio da Razão sobre a
Desrazão levou à desclassificação desta última, como discurso

9
degenerado e decaído, desvalido institucionalmente e socialmente;
e em seguida à tomada de um dos regimes do desrazoável, a
Loucura, como aquilo que deveria ser excluído da lógica possível
das medidas (primeiramente as rationes, medidas; e, quase em
seqüência, uma ratio, como A Medida unitária do que pode ser
calculado, ou seja, Tudo!14), para que estas se tornassem estáveis.
Por aí nascem os saberes sobre a Loucura, fazeres fundamentais para
excluir da vida também as experiências trágicas que caracterizam
incessantemente os humanos, ou seja, você, meu leitor, e eu.
Nesta separação racional entre Razão e Loucura, inaugura-
se o pensamento da Desrazão como um resto de uma Razão
Universal e universalizante. Com isto se postula a existência de um
Universal único e Originário, um grande Outro, que conteria todas
as medidas possíveis. “A cura do louco está na razão do outro – sua
própria razão sendo apenas a verdade da loucura”. A Razão da
loucura é exterior à própria loucura, o que imporá diversas formas
de compromisso: “conflito entre uma concepção histórica,
sociológica, relativista da loucura (Esquirol, Michea) e uma análise
estrutural analisando a doença mental como uma invocação, uma
degenerescência, e um deslizamento moral na direção de um ponto
zero da natureza humana (Morel); conflito entre uma teoria
espiritualista, que define a loucura como uma alteração do espírito
a si mesmo e um esforço materialista para situar a loucura num

10
espaço orgânico diferenciado...” etc, etc. (Foucault, 1972: 540). A
Razão estaria no suposto Outro e nos seus agentes validados, que
dirão suas medidas únicas e verdadeiras.
Enquanto o esforço foucaultiano será pensar “a bela retidão
que conduz o pensamento racional até a análise da loucura como
doença mental, é preciso reinterpretá-la numa dimensão vertical...”
(Foucault, 1972: 40). Ou seja, após a história das exclusões das ordens
desarrazoáveis da loucura do cerne da vida social e institucional,
Foucault dedica as últimas páginas da Histoire de la folie à l’âge
classique para pensar a especificidade do discurso da loucura. Trata-
se de deixar falar a ordem da loucura, sem reduzi-la à ordem da
Razão.
Como? Qual é a especificidade da ordem da loucura? Esta
será a tarefa realizada no escrito que nos importa. Ainda no texto
da Histoire de la folie à l’âge classique, Foucault diz que “a loucura é
ruptura absoluta de obra; ela forma o momento de uma abolição,
que funda, no tempo, a verdade da obra; ela desenha sua [da obra]
borda exterior, a linha de desmoronamento, o perfil contra o vazio”
(Foucault, 1972: 556). Não se trata de uma oposição simples entre
dois termos ou de um processo dialético onde eles se relacionam
antiteticamente, mas de um encontro e emergência de dois diferentes
processos: “Só há loucura como instante último da obra – esta a
impele indefinidamente aos seus confins; ali onde há obra, não há

11
loucura; e, contudo, a loucura é contemporânea da obra, pois
inaugura o tempo de sua verdade” (idem: 557). Ou seja, Foucault
segue a linha de pensamento nietzscheano, o que se pode
acompanhar de acordo com o que indiquei acima.
Se não é a Razão que pode falar pela loucura, como pode a
loucura se falar, se expressar a respeito de si mesma? Quem
testemunha pela testemunha?, perguntava Cioran, o poeta trágico.
Estes são o esforço e a direção de Foucault, estudioso da obra de
vários loucos, para compreender a especificidade de seus discursos
e considerar seus ditos desde a ordem discursiva. Porque, e este é o
ponto que fará dificuldades e me produzirá diferenças, para
Foucault, “o discurso cobre todo o domínio de extensão da loucura”,
bem como “a linguagem é a estrutura primeira e última da loucura”.
Antes de seguir, observo que para ele “este discurso é ao mesmo
tempo linguagem silenciosa que o espírito entretém consigo mesmo,
na verdade que lhe é própria e [na] articulação visível no movimento
do corpo” (Foucault, 1972: 255-6). O que é algo distinto do que
sabemos com a questão psicanalítica das pulsões.

γ- O que é a ausência de obra

Portanto, seria preciso deixar falar a ordem da loucura, sem


reduzi-la à ordem da Razão. Qual a especificidade da loucura,

12
considerando-a unicamente desde a ordem discursiva?
Como mostrei, para Foucault não existe oposição dialética
entre Razão e Loucura. Pois ambas ocupam um plano discursivo,
que se partilha de várias maneiras. “Não existe uma única cultura
no mundo onde seja permitido fazer tudo”. Esta é sua tese, que
acompanho inteiramente. Assim, diferentemente do pensamento
iluminista tradicional, chega-se à conclusão de que não é a liberdade
que marca a essência do humano, mas a partilha entre o que é e o
que não é permitido15.
Diz Foucault que, se conhecemos as proibições do incesto em
vários grupos, ainda não conhecemos “a organização dos interditos
da linguagem”, visto que ambas não recobrem uma mesma divisão.
Assim, ele pensa em quatro tipos de interdição de Linguagem. Por
exemplo, os gregos não admitiam o incesto entre mãe e filho, mas
falavam deste incesto (conforme aprendemos, para ficar no exemplo
mais conhecido, com Sófocles no Édipo Tyranous); enquanto tal tema
é proibido em muitos grupos sociais. Ou, outra forma de interdição
da linguagem, enquanto o Código Civil de 1808 aboliu as penas
contra a sodomia, a linguagem dos séculos XIX e XX não tolera os
homossexuais masculinos, o que só se verifica a partir das duas
últimas décadas do século XX. Ainda, o impedimento de palavras
blasfematórias pela religião ou pelas regras sexuais. E em quaisquer
situações, digo eu, na medida da censura mínima (genocêntrica ou

13
etnocêntrica) para se pertencer a um grupo ou série, a um coletivo
qualquer.
Mas o que nos interessa é um quarto registro de interdição,
específico da loucura: “Existe também uma quarta forma de
linguagem excluída: consiste em submeter uma fala aparentemente
conforme ao código reconhecido a um outro código, cuja chave é
dada nesta mesma fala; de modo que esta [fala] é desdobrada no
interior de si mesma: ela diz o que diz, mas acrescenta um excedente
mudo, que enuncia silenciosamente o que diz e o código segundo o
qual é dito”. E isto não pode ser absorvido pela cultura (a ocidental,
no caso; mas em nenhuma, se seguirmos à risca os ensinamentos
psicanalíticos), pois ela escapa de seu centro de determinações,
anunciando um regime de associalidade. Trata-se de uma dobra ou
redobra da fala sobre si mesma, que se recusa aos outros e ao Outro,
onde ela não se constitui um regime diferenciado de linguagem.
Isto resumiria o regime discursivo de seu livro: “a loucura é
a linguagem excluída – aquele que, contra o código da língua, pronuncia
falas sem significação (os ‘insensatos’, ‘os imbecis’, os ‘dementes’),
ou o que pronuncia falas sacralizadas (os ‘violentos’, os ‘furiosos’),
ou aquele ainda que faz passar as significações proibidas (os
‘libertinos’, os ‘teimosos’)” (Foucault, 1972: 579, meu grifo), todos
estes serão objetos de interdição.
Para Foucault, é exatamente com Freud que começa a

14
modificação do estatuto da fala. Recolhendo as múltiplas
modalidades do discurso na sua aleatoriedade, Freud aprendeu a
escutar e considerar as diferenças extremadas das falas, que não
respeitam comportamentos normativos e nem a linguagem
distribuída regularmente pelos códigos do dizer, bem como
assimilou os espaçamentos, escansões, ritmos, andamentos, rupturas
e silêncios que as constituem, indissoluvelmente. Ou seja, Freud se
pôs a considerar as falas no regime de sua pura enunciação, mas fez
o mesmo com o lugar e os vazios onde elas se produzem, também
este topos ou este tempo onde fala e língua não se destacam, não se
distinguem de modo diádico.
Se é assim, temos uma outra e diferente teoria da linguagem:
“Freud não descobriu a identidade perdida do sentido; ele cerniu a
figura irruptiva de um significante que não é absolutamente como os
outros. O que deveria ser suficiente para proteger sua obra de todas
as interpretações psicologizantes que nosso meio-século [os
primeiros 50 anos] recobriu, com o nome (derrisório) de ‘ciências
humanas’ e de sua unidade assexuada” (Foucault, 1972: 579; o segundo
grifo que, como se verá, muito importa é meu).
Penso que este texto foucaultiano ilumina seu livro, pois
mostra um estatuto positivo para a loucura. Prefiro, ainda aqui, citar
o autor: “A loucura abre uma reserva lacunar que designa e faz ver
este oco [creux, côncavo] onde língua e fala se implicam, se formam

15
uma a partir da outra e dizem apenas sua relação ainda muda [muet,
silenciosa]” (Foucault, 1972: 580). A esta dobra do que é assim falado,
num regime onde não há expressão e nem distinção entre língua e
fala, Foucault chama de “ausência de obra”, na medida mesmo em
que ela vai à ou é a fonte das palavras, a um topos onde elas têm
uma auto-implicação, mas não produzem diferença.
Não tenho mais espaço nem licença para prosseguir, mas
lembro que Foucault pensa a positividade de tal linguagem que se
faz no oco entre língua e fala, onde há ausência de obra, como
constituindo também o que ele entende como Literatura. Mas a
Literatura “é uma distância aberta no interior da linguagem, uma
distância incessantemente percorrida e jamais coberta; uma espécie
de linguagem que oscila sobre si mesma, uma espécie de vibração
imóvel”16. Na literatura se faz obra e dobra, enquanto na loucura se
insiste neste oco, numa repetição incessante, sem bordas e sem
redobras, sem retorno possível. Na loucura, há apenas uma
insistência na busca repetitiva deste impossível, onde confluem
língua e fala, indiferenciadamente; na literatura se constroem
mundos.
Do que conclui Foucault que a loucura é um outro da razão,
e que a razão não se exclui da loucura. O silêncio e a ausência de
obra acompanham os falares e as obras, eis o que ensina. Inexiste
obra sem a insistência neste oco discursivo para fazer diferença, eis

16
o que aprendemos. Resumindo, a quarta forma de linguagem
excluída é esta linguagem específica dos loucos, mas segue
determinações similares às de outras formas de linguagem.
Já tínhamos aprendido, com os estóicos e com Nietzsche, que
com a fala o homem “dança sobre e acima de todas as coisas”, como
que dispensando a koiné aisthesis, o conjunto dos sensíveis que
“possibilita” as humanas experiências. Mas a outra inspiração para
pensar este texto vem de Kant. Exatamente num livro que Foucault
traduziu, como parte de sua tese secundária17, Kant ensinou que
existiriam três categorias de loucuras, determinadas pela
exacerbação das três faculdades do espírito, a percepção, a
imaginação e o juízo. Mas ele pensa também numa outra forma
sistemática de loucura, a “vesânia” (Aberwitz), onde o doente faz
uso de princípios que estão para além da experiência, que não fazem
obra (permito-me a expressão). Trata-se de uma positive Unvernunft,
e não de um desvio das regras do uso da razão. O louco se separa
do sensorio communi exigido para a sobrevivência e vive alheio às
regras da razão.
Kant teria dado a Foucault, seu ilustre tradutor e estudioso,
indicações para pensar esta categoria absoluta, que é independente
das três faculdades constitutivas da Razão, uma certa modalidade
discursiva que ainda não foi articulada pelos teóricos modernos da
Linguagem. A vesânia sendo pensada enquanto desrazão positiva,

17
não pode ser aproximada do diagnóstico absoluto dominante na
Psiquiatria, que se fazia (e ainda se faz) na partição entre normal e
anormal (po. 81ss. da tradução de Foucault). Ele estabelece seu
estatuto no interior de uma teoria discursiva, com instrumentos
criados a partir da ordem do discurso.

δ- Para introduzir a questão freudiana das pulsões

O que se apresenta como novo e importante é a consideração


da loucura como discurso marcado pela ausência de obra, elaborada
no oco ou no côncavo entre ou de língua e fala. Mas também sua
proximidade e diferença com a literatura, onde também se estatui
uma obra desde este vazio, porém circunscrita em limites, fronteiras,
bordas e dobras que delimitam os dois regimes diferenciadamente.
Transcrevo um exemplo, muito sugestivo: “Conta o escritor
argentino Ricardo Piglia em uma conferência que, quando estava
escrevendo Finnegan’s Wake e morava na Suíça, Joyce resolveu
consultar Jung sobre sua filha, considerada psicótica. Mostrou na
ocasião a Jung, que havia escrito um artigo sobre Ulisses [do próprio
Joyce], os textos da filha, que ele incentivara a escrever, dizendo
que o que ela escrevia era a mesma coisa que ele próprio escrevia,
um texto fragmentado, onirizado, marcado pela dispersão. Ao que
Jung teria respondido, a meu ver bem na linha do que está sendo

18
dito sobre a relação entre literatura e loucura: ‘Só que onde o senhor
nada, ela se afoga’”18.
Só que tal afogamento fala também das ordens extremadas
do desespero e da angústia, onde se jogam as possibilidades de
subsistência do que chamamos de humano, nas próprias fronteiras
entre inumano e humano. O que faz o nadador Joyce procurar o
psiquiatra Jung para falar sobre sua afogante filha? Se a loucura se
faz das “imagens sonhadas do homem”, se ela não se toma apenas
desde os regimes comportamentais e expressivos, se a loucura não
se remete apenas aos vazios, pois se afirma plenamente, se não se
pode pensá-la, por isto mesmo, enquanto regime transgressivo, se
sua discursividade se instala numa improdutividade de obra que é
recusada pelos mecanismos que emergem desde o século XVI no
Ocidente, nada disto, que aprendemos acompanhando
rigorosamente Foucault, impede ou impedirá que o que conhecemos
hoje como loucura esteja submetido a um excesso de sofrimento,
que torna sua existência permanente impossível.
Ou seja, os existentes da franja do vazio não se fazem com os
mesmos afetos e sentidos do território falado. Inexiste uma
neutralidade discursiva afetiva na pertinência ao oco da linguagem. Se
cada um paga com seus afetos mais importantes a ocupação, no seu
regime provisório, das bordas deste vazio e do silêncio que sempre
e também constituem as possibilidades do discurso, o louco paga

19
um preço intolerável. Não é preciso que os pensadores da
discursividade participem de tal pesquisa ou até mesmo se importem
com ela: trata-se de que os estudiosos de Foucault saibamos do lugar
específico que a Psicanálise, bem ou mal, ocupa e continuará
ocupando, como mostrarei adiante. Sabemos que o sofrimento é
constitutivo inumano do humano, mas questiono o que se torna a
ordem humana quando posta sob a égide permanente de um
sofrimento puramente dispersivo, indiferenciado.
Não se trata de recusar, negar ou ignorar sofrimentos em
outras “categorias” discursivas, como a dos literatos, adotando uma
postura humanista ou exclusivista que afirmaria a exclusividade do
sofrimento dos loucos. Mas não se devem ignorar certas questões.
Quando escreve sobre a loucura de Rousseau, à moda de um diálogo,
acerca do sofrimento contido no discurso: “Mas Rousseau, no
momento exato em que, com sua pluma na mão, traça as linhas de
sua queixa, de sua sinceridade e de seu sofrimento?”, pergunta. E
ele mesmo responde: “É uma questão de psicólogo. Não a minha,
por conseguinte”.
Ou seja, “isto” existe, mas não é “minha” questão, diz Michel
Foucault. Por quê? Para explicá-lo, devo lembrar que a Psicologia
ou as psicologias têm uma característica diferenciada essencial na
obra foucaultiana. Em 1954, publica-se seu primeiro livro; que ensina
na sua conclusão que “a verdadeira psicologia deve libertar-se destas

20
abstrações [ou seja, a elaboração de categorias abstratas, que ignoram
o Dasein] que obscurecem a verdade da doença [mental] e alienam a
realidade do doente... a verdadeira psicologia deve desembaraçar-
se deste psicologismo, se é verdade que, como toda ciência do
homem, deve ter por finalidade desaliená-lo”19. Quando se publica
a segunda edição deste livro, oito anos mais tarde, sua segunda parte,
denominada “Loucura e cultura”, traz os resultados da elaboração
da Histoire de la folie à l’âge classique. Ou seja, as teses que venho
indicando modificarão o pensamento do Foucault influenciado
apenas pela Analítica Existenciária.
Foucault termina o novo livro, dizendo: “Há uma boa razão
para que a psicologia não possa jamais dominar a loucura; é que ela
só foi possível no nosso mundo uma vez dominada a loucura e já
excluída do drama”20. Ou seja, a loucura, no seu ponto zero, será
capturada pelos saberes da Psiquiatria, da Psicologia e da
Neurologia, produzida por um olhar-saber que marcou a alteridade
absoluta dos loucos e enquadrada em instituições de isolamento e
internação: mas ela é que detém a verdade acerca da psicologia e,
portanto, a psicologia não é um saber adequado sobre a loucura.
Porém, e pelos argumentos que desenvolvo, inclusive na
clínica psicanalítica, afirmo que a excessiva dispersão da língua-fala
é questão para alguém, nem que seja apenas para o próprio
discursador. E certamente é questão para os psicanalistas, que nos

21
pré-ocupamos com o estatuto do outro-discursador e suas
manifestações. Conforme se acompanha, não nos permitimos
confundir a Psicanálise com as psicologias ou com alguma suposta
Psicologia. Mas os psicanalistas não entendemos nenhum regime
discursivo onde inexistam afetos e percepções. O sofrimento é
constitutivo do discurso e não uma modalidade de queixas e reclamos
que clame pelos falares humanitários, estes mesmos que são
opressivos em seus fazeres, como mostrou o próprio Foucault. E
também sabemos que não há escuta neutra do outro em nós,
aprendemo-lo com a obra de Emmanuel Levinas.
Devo afirmar, incisivamente, que por não considerar a teoria
freudiana das pulsões, há em Foucault um descuido por referência
a outras ordens que também constituem a discursividade. Por
exemplo, no regime afetivo, disto que Freud denominou, de modo
genérico mas apropriado, de Unbehaglichkeit, o que se traduz em
português como o mal-estar, malaise em francês. Lembro que,
especialmente desde 1930, Freud pensará que o destino permanente
das pulsões é a insuportabilidade afetiva, o que ele denominou de o
não- ou in- confortável. Unbehaglich diz, nos regimes de discurso e
nas produções da cultura, o que é carente de prazer, comodidade,
satisfação, aconchego, confortável, à vontade (behaglich).
Para Freud, são três as fontes permanentes do sofrimento
humano e que obrigam os humanos à carência de bem-estar: “(I) a

22
supremacia da natureza, (II) a debilidade de nosso próprio corpo e
(III) a insuficiência de nossas instituições para regular as relações
mútuas entre os humanos na família, no estado e na sociedade”21.
Em certo regime do pensar teórico, Foucault o conhece.
Escreve que algum dia a loucura pode até ser assimilada ao
quotidiano da existência, já “que os progressos da Medicina poderão
fazer desaparecer a doença mental, como [já o fizeram] com a lepra
e a tuberculose; mas uma coisa permanecerá, que é a relação do
homem aos seus fantasmas, à sua impossibilidade, à sua dor sem
corpo, à sua carcaça da noite; que o patológico posto fora de circuito,
a sombria pertinência do homem à loucura será a memória sem idade
de um mal apagado na sua forma de doença, mas se obstinando
enquanto mal-estar, malheur” (Foucault: 576). Mas, determinado a
pensar uma especificidade discursiva, isto faz com que esta malaise
se torne, muitas vezes, excessivamente transparente, ausente de
densidade e desafetivizada. E é aí que ele acusa a especificidade da
loucura e “seu perigo inverso e simétrico das psicanálises”. Mas
sempre apontando, com sapiência, acerca do que é a “dor de existir”.
Diria Spinoza que o conceito de cachorro não ladra, o discurso
não sofre. Mas aprendemos com Foucault que as questões que dizem
respeito às relações de saber e poder não se podem ignorar, o que
inclui o estatuto também discursivo do sofrimento excessivamente
disruptivo, que impede um “mínimo de pensamento”. Ao dizer que

23
não há um outro fundamental do desejo, o complexo de Édipo da
psicanálise ortodoxa, e sim que o desejo é de ordem múltipla22,
Foucault pensa que, “então, a materialidade do discurso, o caráter
fatual do discurso, a relação entre discurso e poder, tudo isto me
parece um núcleo de idéias que eram profundamente interessantes
e que o platonismo e o socratismo repeliram totalmente, em benefício
de uma certa concepção do saber”23. Este método deve ser levado a
sério, em várias áreas do saber e fazer, mesmo aquelas que Foucault,
por qualquer motivo, ignorou ou não se pôs a pensar. “Os loucos
devem ser defendidos contra seus defensores”, escrevi há muito
tempo, mas podem se fazer escutar e ajudar desde alguma existência
insuportável: a compaixão está na origem do homem, ensinou
Rousseau. Se o mitfühlen, o sentir-com, a estada com os outros
também constitui as pulsões, qual seu estatuto teórico? Ou não tem
consideração teórica?
Por isto sinto falta de elaboração semelhante para pensar os
afetos, que se tornam, na maioria das vezes em que Foucault lhes
dá atenção, apenas o signo de um discurso de chorosos e humanistas,
conservadores e opressivos, “algo” que serviria apenas para um
desvio do que é importante, ou seja, uma certa ordem do discurso.
Chama a atenção a consideração depreciativa para com o “alívio do
sofrimento” ou da “reintegração da pessoa”, que de crítica à
psiquiatria farmacológica ou adaptativa, de justa crítica à opressão

24
institucional, teórica, cultural e social da loucura, se transforma em
marca generalizada para quaisquer saberes, sempre enganados e
dispersos, que pretendam minimizar o sofrimento dos loucos24.
E por que há tal sofrimento insuportável? Trata-se de uma
Unbehaglichkeit excessiva, sofrida por aqueles que estão ou são
unicamente a-na quarta modalidade discursiva proibida, que não
produzem diferença sexual. O próprio Foucault já nos indicara o
caminho, quando falou da unidade assexuada das “ciências humanas”
(Foucault, 1972: 579, conforme minha transcrição acima). Só que tal
linha se mantém por vezes na sua própria obra, porque o “objeto de
pesquisa [de Foucault] não era a verdade psicológica da doença
mental, mas a busca de uma verdade ontológica da loucura”25. A
verdade sexuada dói, é unbehaglich, mas não é dispersiva, não
paralisa o pensamento como faz a ausência de obra, onde se elabora
e insiste a indiferença assexuada.
E, questão que apenas indico sem desenvolver – já que seu
desdobramento é o objeto central da Psicanálise –, o que há de não-
sexual nisto que chamamos de discursos? Peço que algum leitor
paciente volte ao pequeno texto da nota 15.
Mas, atenção, é preciso considerar que Foucault criticou, com
justeza, a sexualidade de uma perspectiva que muitas direções da
Psicanálise ainda seguem. “Dize-nos [aos psiquiatras e psicanalistas]
qual é o teu prazer, não nos esconda nada do que se passa entre teu

25
coração e teu sexo; saberemos o que és e te diremos o que vales.
Szasz viu bem, acredito, como a posta ‘à questão’ da sexualidade
não era apenas um assunto mórbido dos inquisidores transtornados
pelo seu próprio desejo; mas que se desenhava aí um tipo moderno
de poder e controle sobre os indivíduos”26. Estou de acordo, quando
Foucault mostra, inegavelmente, que a produção contemporânea
da verdade é devedora da produção da confissão, e que se quer
impô-la aos loucos, através da pergunta: “que ser sexual é você?”.
Ou seja, uma convergência perfeita ou até mesmo uma confusão
entre os atos sexuais e a sexualidade, que decididamente aparece
também em muitas teorias psicanalíticas e casos clínicos. Uma
produção de saber e poder, também por parte dos psicanalistas e
da Psicanálise, que levou à fusão, confusão e mistura indevida da
emergência de uma subjetividade com a sexualidade. Mas, se isto
também é sexualidade, a sexualidade não é apenas isto.
Contudo, é preciso indicar que Foucault e os psicanalistas
nos diferenciamos por respeito ao estatuto inegavelmente sexual
da loucura, o que não cabe discutir aqui. Pois a sexualidade não se
refere apenas à linguagem incitadora dos atos sexuais, mas diz
respeito ao estatuto do prazer, aos discursos, aos corpos e à
organização da repetição pulsional.
Porém, há que se lembrar de que o que escrevo só vale porque
Foucault me ajudou a pensá-lo e elaborá-lo. Sem sua obra, a

26
Psicanálise continuaria no triste caminho ainda percorrido por
muitos psicanalistas, que elaboram a sexualidade como o ponto
único de organização da subjetividade enquanto um modo único
de ser. Por relação a isto, Foucault pensou em processos de
subjetivação e não em subjetividade, o que é atualmente inapagável
na Psicanálise que importa, esta que se propõe também a transformar
não somente os que a procuram como também os próprios
psicanalistas, e não apenas a construir um discurso epistemológico
coerente.
Foucault postulou a multiplicidade de processos de
subjetivação, desconstruindo a noção de subjetividade única. Isto
nos ajudou, aos psicanalistas, a escapar das análises superegóicas
da IPA, que postulavam e ainda postulam o socratismo adaptador
do “conhece-te a ti mesmo”, e abriu as vias para se pensar
nietzscheanamente: “torna-te no que és” “mas nunca sejas o mesmo”.
Pois, conforme aprendemos com o Foucault posterior, não se trata
de saber sobre si, mas do que ele denominou de cuidado de si. Não
queira renunciar às pulsões, mas se articular com “isto” que já te
constitui. Conta com os outros, seria outra lição, para não insistir
(apenas) no saber de si.

27
ε – Psicanálise e loucura se assemelham discursivamente

Foucault afirma que Freud fez desviar os médicos da


internação asilar, propondo que os loucos ficassem salvaguardados
pelos médicos num regime específico de discursividade: “criou a
situação psicanalítica, onde, por um curto-circuito genial, a alienação
se tona desalienante, porque, com o médico, ela se torna sujeito”
(Foucault, 1972: 529-30). A Psicanálise, ignorante do estatuto positivo
da desrazão e da loucura, seria uma espécie de inclusão vigiada do
louco no discurso científico e institucional. Para mim, tal modo
foucaultiano de pensar a Psicanálise é bastante generalizante,
quando ele a elabora como unidade, vista apenas pela ordem
dessecada dos discursos enunciados, ignorando sua
multidiscursividade e seus regimes de prática.
Contudo e outra vez mais, é preciso deixar claro que se podem
encontrar indicações similares a esta que Foucault critica na própria
obra freudiana sobre as psicoses. Num regime teórico importante, a
linha central que Freud investiga acerca das regularidades que se
encontrariam no discurso louco se baseia num suposto destino final
dos psiquismos, que se determinaria unicamente desde o que ele
chamará posteriormente de “complexo de Édipo” (penso no caso
de Schreber, o juiz louco que deixou memórias que Freud utilizou).
Para isto, Freud se guiou pela teoria dos chamados
“complexos”. Tal termo foi criado pelo psiquiatra alemão, de
28
influência kantiana, Karl Ludwig Kahlbaum (1828-1899), que foi o
primeiro a elaborar a noção de síndromes (Symptomenkomplexe). Para
ele, a paranóia atinge a inteligência e Kahlbaum pensa a paranóia
como síndrome de delírios crônicos primários sistematizados, ou
seja, um complexo único. É nesta direção que Freud segue neste
momento, procurando uma unidade dos sintomas, que poderiam
ser organizados em grupos com regularidades e relações mútuas,
constituindo uma estrutura (Struktur) ou construção, organização
(Aufbau).
Mas há outra direção no próprio Freud, ainda no mesmo
escrito, para outro estatuto do saber psicanalítico e sua linguagem
específica, quando ele investiga os “raios de Deus”, compostos de
uma condensação de raios solares, que são “investimentos libidinais
projetados para fora” e dão ao delírio de Schreber “uma coincidência
extraordinária com nossa teoria”. O medo que tem Schreber de que
Deus possa retirar os raios, desligando-se dele, Schreber, assemelha-
se a “pressupostos endopsíquicos” da própria teoria freudiana. Diz
Freud: “Deixo ao futuro decidir se na teoria [psicanalítica] cabe mais
delírio do que eu queria, ou se no delírio [cabe] mais verdade do que
outros acreditam hoje possível”27.
Mas não se trata de uma exceção, tal identificação entre os
pressupostos teóricos da Psicanálise e o discurso louco de Schreber
para Freud. E sim de uma constatação permanente, que diz respeito

29
ao estatuto da loucura e seus traços diferencias similares aos da
Psicanálise enquanto teoria sobre a loucura.
Por exemplo, numa carta a Jung, Freud diz: “o maravilhoso
Schreber, que poderia muito bem ter sido feito professor de
psiquiatria e diretor de hospício”28. Ou noutra carta a Fliess, quando
afirma que “a percepção interna confusa do próprio aparelho
psíquico estimula ilusões do pensamento, que, naturalmente, são
projetadas para fora e, de modo específico, para o futuro e o além.
A imortalidade, a recompensa, todo o além são apresentações
(Darstellungen) de nosso psiquismo interno”. E indaga:
“Meschugge?”29.
Num novo espaço do saber-fazer pulsional como é a
Psicanálise, algumas das fronteiras tradicionais entre saberes e
fazeres ficam borradas e devem ser repensadas e refeitas. Quando
se “descobre” que o homem é criação pulsional, caótica, um tal
inventor, como Freud, por vezes se vê maluco (meschugge ou
Meschugge, em iídiche diz “louco”, “doido”, “pirado” ) com suas
próprias idéias. No parágrafo acima deste, Freud manifestava a Fliess
o desejo de conversar longamente com ele acerca destas
meschugensten Sachen, coisas mais loucas.
Tal é o paradoxo da Psicanálise, que é preciso realçar. Por
um lado, Freud elaborou a questão da loucura enquanto enquadrada
no conceito psiquiatricamente estabelecido de psicoses, mantendo-

30
se no conforto de sua etiologia estabelecida desde um complexo
paterno unificador dos psiquismos. Por outro, encontrou, nos modos
discursivos loucos de Schreber e de outros, uma organização que se
assemelha à do saber psicanalítico. Que se façam críticas aos regimes
discursivos e extra-discursivos da Psicanálise, especialmente na
medida em que eles procuram melhor observação e controle dentro
de ordens de equilíbrio e estabilidade, é aí exatamente onde se perde
de vista a especificidade da dimensão pulsional postulada por Freud.
Não é possível ignorar a Gaya Scienza, a Fröhliche Wissenschaft
freudiana e seu caráter caosmático (Guattari) e libertário.
A ordem psicanalítica discursiva e seu principal artefato
técnico, a transferência, fazem obra. Permitem que os termos se
elaborem em torno de um campo específico, que se define por
pequeno número de conceitos inapagáveis (inconsciente, resistência,
transferência, pulsão, compulsão à repetição etc). Com isto, ela se
dobra sobre si mesma, procura-se nesta articulação específica entre
uma língua e a fala singular. E se refere simultaneamente a um
contexto onde é demandada. O registro do que chamamos
Psicanálise permite recorrências e a construção de um discurso que
não só se torna para si mesmo, na busca de suas afirmações, como
se propõe a transformar os outros, os outros que nos procuram e os
outros da vida social mais ampla. Só que esta Razão psicanalítica é
longe do equilíbrio, está sempre se fazendo, em devir. Por vezes,

31
Foucault confunde psiquiatrias com psicanálise, ou não acompanha
as diversas modalidades do pensar freudiano.
No que estou de acordo com ele, é que é preciso repensar e
refazer a Psicanálise, esforço que fazemos também com a ajuda da
obra foucaultiana, como mostro adiante. Considerando a
importância dos afetos e subjetividades parciais, dos acontecimentos
e experiências, silêncios e não-dizeres, valores atuais e existenciais,
afirmação de viver etc. Por quê? É o que aponto neste último item.
Entretanto, parodiando o velho Goethe, eu digo que
paradoxais, caro amigo, são todos os discursos e teorias...

ξ – Uma teoria psicanalítica da ausência de obra

É inútil a Filosofia que não cura os sofrimentos psíquicos (psykhés pathos).


Epicuro

Quando se põe em questão a importância da sexualidade e


dos outros, da alteridade na constituição do pensamento, aparecem
questões que há que produzir. Quando falamos dos discursos loucos
e de seus problemas específicos, os psicanalistas temos que
considerar o que acontece com os que fazem desta quarta
modalidade discursiva interditada o núcleo ou a principalidade de
seus ditos e vivências.

32
Isto é, indago sobre o que acontece com a produção discursiva
e existencial dos loucos. Consideramos, considero a importância do
reconhecimento de um discurso “onde língua e fala se implicam” e
de um instrumento discursivo para entender e elaborar sua não-
circulação, sua proibição enquanto discurso permitido. Mas há que
colocar, também enquanto questão (Frage, conforme mostrei acima),
a discursividade desde o pedido de ajuda de quem exerce, está ou é
tal regime de discursividade proibido, os sofrimentos excessivos que
impedem o discursador de existir, no sentido mínimo da expressão.
Por que aparecem tais afetos excessivos e dispersadores,
concomitantemente ao discurso que implica língua e fala no oco?
É claro que temos que considerar situações diferenciadas,
como farei adiante, mas é preciso saber que, na enorme maioria das
vezes, o louco existe em vão, deambula em torno de algum si mesmo
que nunca encontra, suas bordas corporais não ecoam questões mas
indiferença, com dores afetivas, existenciais e perceptivas que não
lhe permitem alguma existência digna. Ele é dor demais, pois não
produz uma diferença mínima entre língua e fala. A indiferença,
elaborada por Foucault numa ordem discursiva onde se
indistinguem língua e fala, é simultaneamente dissociação excessiva,
desintegração psíquica, corresponde à impossibilidade de produção de
diferenças, o não-reconhecimento dos outros e do outro em si mesmo,
da alteridade na constituição dos processos de subjetivação. A

33
indiferença da implicação entre língua e fala é sofrimento. Por quê?
Tal questão é essencial para nós.
Pois o que consideramos como registro do fazer humano e
do fazer-se humano não se dá apenas num registro existencial
discursivo, construído através de regras lógicas e pertinentes, pois
o discurso considera e se constitui, de acordo com o que aprendemos
com Deleuze, dos regimes indissociáveis de afetos, percepções e
categorias30.
Foucault não considera a postulação específica do campo das
pulsões, que não se põe enquanto parte de um sistema permutável
de representações, nem se deixa apreender enquanto finitude. O
que coloca limitações para sua interpretação da loucura. Pois a ordem
discursiva desconsidera por vezes a alteridade, a própria alteridade
do discurso, seus regimes paradoxais e a sexualidade, constituintes
permanentes do “humano” (o que quer que isto seja).

η – A clínica psicanalítica da ausência de obra

Esta quarta ordem discursiva proibida, que Foucault elaborou


sob o signo de “ausência de obra”, se “encontra” em todos. Digamos
que um casal de recém-enamorados, à moda antiga, só conversa no
interior deste regime discursivo; saturado o namoro, cessa o oco
discursivo. Ou que as mães “falam” com seus bebês do mesmo modo,

34
onde língua e fala se confundem, se repetem insistentemente sem
fazer diferenças. Mas o discurso (a)fonemático entre mãe e filho
termina por retornar às regularidades fonemáticas da linguagem.
Um lingüista ensinou que “muitas vezes a atividade de sucção da
criança faz-se acompanhar de um leve murmúrio nasal, que é a única
formação que pode se produzir quando os lábios se comprimem
sobre o seio materno, ou sobre a mamadeira, e [por isto] a boca está
cheia”31. E que tais balbucios infantis retornam sobre a língua da
mãe, enquanto vogais ou consoantes oclusivas, nasais ou bilabiais,
e terminam por constituir cerca de 90% dos fonemas “maternos” da
Linguagem. A mãe ou quem ocupa a função materna retorna sobre
a linguagem e a língua se diferencia da fala. Ou seja, nestes casos,
há uma passagem entre a linguagem afetiva e a linguagem
designativa, que permite também o trânsito oposto, como na
linguagem dos enamorados (antes da produção massiva dos casos
de “ficar”, o que serve para outro ensaio). Tal diferença faz obra.
Mas, nos chamados loucos, trata-se não apenas de mais uma
ordem discursiva, parcial e intensa, mas de uma linguagem quase-
exclusiva.
Vejamos uma exceção. A fala-língua silenciosa, inteiramente
silenciosa, de um paciente posto em home care com um câncer
terminal, mostra o valor positivo de tal ordem de discurso. Sua
mulher pede que ele lhe diga alguma coisa, que seja uma despedida,

35
um adeus. Nele, contudo, língua e fala se encontram num murmúrio
infinito e indefinido, onde só assim as dores e sua morte anunciada
aprendem a calar e a suportar. No caso, sua mulher quer que ele se
ligue à existência dos outros, que seu discurso faça diferença, que é
o mais importante do humano vivente ou enquanto vivente. Mas
seu silêncio é um refúgio autista, lugar sagrado de resistência à dor
excessiva e à estupefação da morte surpreendente. Não é uma tarefa,
mas o anúncio de uma ligação, uma conjunção que sempre foi
prazerosa antes do câncer prostático.
Mas, quando da visita do analista, ele quebra seu silêncio onde
se implicam fala e língua e diz “estou fodido”, apontando, através
da ordem do humor auto-referente (e não da ironia, que visa os
outros), para uma permutação possível de discursos e a referência
com sua morte próxima. Pensaria, neste caso, que a ordem de
discurso que aqui investigamos também tem um estatuto positivo,
somente na medida em que pode se atravessar e estabelecer,
transversalizar com outras ordens discursivas. Neste modo, não é
proibida, mas mal tolerada. Todos nela estamos ou a temos, tal
ordem discursiva. Seu silêncio se quebrará pela frase mais banal
possível, mas restitui seu enunciador ao mundo da
transdiscursividade e não do autismo ou da confissão. Não é
indiferente discursar a própria morte, é preciso exercer esta
característica do humano até a morte, não deixar a morte matar

36
impunemente. Transitórios, mas resistentes.
Outro analisando, durante três anos de sessões, grita e
expressa palavras obscenas contra todos e, a partir de um certo ponto
de sua análise, contra mim. Sua perturbação o espanta, pois não
sabe o que fazer com tais discursos blasfematórios, ele exerce sua
capacidade de expressão simultaneamente à sua ignorância dos
porquês dos vazios e limites que o obrigam, palavrões e maldições
incessantes e incoerentes (desde seu e meu pontos de vista) que se
dirigem a “qualquer um” indiferenciadamente – desde sua mãe
“edípica” aos seus irmãos rivais, à filha de oito anos a quem muito
ama, mas que se prepara para corneá-lo com um coleguinha de sala
de oito anos, que a comerá e com quem ela ficará
pornograficamente... –, que lhe escapam, que não fazem borda, nem
obra ou limite. Até que, durante uma sessão, depois de um tempo
intensivo32, posso interpretá-lo, gritando, no mesmo tom, ritmo e
andamento, e com escansões e afirmatividade similares às com que
expressa habitualmente suas blasfêmias, alguns fonemas e ruídos
vazios, que não fazem nem farão significação alguma, mas que são
um eco, outra fala que se põe a contornar seu oco entre fala e língua
e que lhe dão consistência e intensidade (isto só é possível na
transferência). Estupefato e tomado de surpresa, encontrará, a partir
de tal “interpretação”, um pequeno limite para sua pornografia e
suas blasfêmias, na medida em que estas se tornam sua própria fala,

37
se decantam da língua. Sua malaise ou seu malheur ganham contornos,
que poderá obrar doravante, parcialmente. A blasfêmia não está
apenas na ordem simples e direta do discurso, exige tons e ritmos
diferenciados, alturas marcadas e realçadas da expressão habitual e
forças intensas, distintas e específicas no discurso, o que os
psicanalistas (segundo Lacan) chamamos de gozo. Sem considerar
isto, não há análise possível do discurso, o discurso se torna cadáver
e cadavérico.
Se tal não se encontra no pensamento foucaultiano, é porque
tais discursos se atravessam pela ordens da sexualidade e da
transferência. A visita do antigo psicanalista pode fazer acesso à
ordem específica da fala; os gritos do analista se fazem nas fronteiras
delineáveis da linguagem, atravessados transferencialmente: é a
diferença sexual em seu regime transferencial que se produz
diferencialmente, e se passa assim em muitos fenômenos discursivos
de mesma ordem. Na transferência, onde se estabelecem sempre
um fantasma e um outro, o psiquismo emerge em suas modalidades
expansivas: esta é a ética que nos importa, aos psicanalistas
freudianos.
No louco se afirma a impossibilidade de ter acesso a outras
ordens discursivas, o que impede sua expansão psíquica. O sujeito
ali está por não poder discursar diferentemente. O que não deixa de
tornar possível a obra, quando o enunciador pode transitar por outros

38
discursos, eis o que aprendi com Freud e me foi reensinado pelo
próprio Foucault: “A loucura de Nietzsche, a loucura de Van Gogh
ou a de Artaud pertencem à sua própria obra, talvez nem menos
nem mais profundamente, mas sobretudo num mundo inteiramente
diverso (tout autre monde)... [contudo] entre a loucura e a obra não há
acomodamento, troca mais constante nem comunicação de linguagens; seu
afrontamento é bem mais perigoso que outrora; e, agora, sua contestação
não perdoa; seu jogo é de vida e de morte. A loucura de Artaud não
desliza nos interstícios da obra; ela é, precisamente, ausência de
obra...” (Foucault, 1972: 555, meu grifo). Foi também Foucault que
me ensinou, insistentemente, como em Nietzsche, no fim de sua vida
expansiva psiquicamente (e como!), no momento em que se proclama
ao mesmo tempo Dioniso e Cristo, tratou-se, então, “do próprio
aniquilamento da obra, a partir do que ela se torna impossível, e
onde é preciso se calar; o martelo vem cair das mãos do filósofo”
(Foucault, 1972: 555-6).
Ou ainda: “Só a linguagem pode ser delirante... a linguagem
que prescreve a uma obra seu espaço, sua estrutura formal e sua
própria existência como obra de linguagem podem conferir à
linguagem-segunda, que reside no interior da obra uma analogia
de estrutura com o delírio”33. E os afetos discursados, acrescento.
Desta perspectiva, se a loucura e a literatura têm em comum
o fato de serem contestações da produção social normativa, são bem

39
distintas entre si, na medida do sofrimento e da improdutividade,
dos jogos sociais e institucionais, de suas possibilidades tão
diferenciadas de jogar e ganhar, que é o que Foucault nos
recomendou a considerar. O vazio e o silêncio, as escansões que
lhes são comuns, que tornam sua aproximação necessária, se
mostram distintos não apenas na afirmação de obra que percorre a
literatura, mas pela quase-intransitividade discursiva dos loucos.
Tal posição nada tem a ver com uma proibição do discurso
específico dos loucos, fazendo interná-los, eis o que os psicanalistas
deverão para sempre a Foucault, não se postando no lugar de algum
supereu sábio e orientador. O que importa é a inclusão da “ausência
de obra” nas ordens discursivas merecedoras de consideração e que
indicam como se fazem os discursos. E um esforço na direção de
conseguir uma transdiscursividade. Eis o que nenhuma clínica
psicanalítica de psicóticos digna tem como ignorar. Isto é parte de
nossa dívida com os ensinamentos foucaultianos, pois temos que
dar conta de outras coisas...
Por isto minha admiração e a pesquisa permanente da obra
de Foucault. Na mesma época em que a chamada psicanálise francesa
recomendava o desfile dos loucos no asilo, para que psiquiatras e
psicanalistas “vissem e ouvissem” “O Real, o Simbólico e o
Imaginário”, qual mestres absolutos e cruéis mandando no destino
de cidadãos e homens dos alienados, aprendi com Foucault que

40
devia pensar a especificidade de seus discursos e o modo de
transformá-los, atendendo ao seu querer falar, e poder fazer um
silêncio produtivo, e não apenas aos vazios e escansões dispersivos
e improdutivos, sem obra e excessivamente unbehaglich. Se sabemos
que tal regime de discursividade existe, aprende-se que não basta
determiná-lo apenas por sua inclusão em algum mecanismo de saber
e poder. É um existente que não faz parte de nenhum regime político,
eis o paradoxo mostrado durante meu escrito, já que mesmo quando
se captura por mecanismos que impedem sua enunciação, que o
supõem como um proibido da linguagem, não se reduz a isto.
Como fazê-lo? Além das duas modalidades de elaboração
que mostrei, podemos aprendê-lo com um exemplo clínico de Freud.
Ele trata de uma mulher, a baronesa Anna von Lieben, que se
desesperava por causa de suas alucinações34. Freud nos ensina duas
modalidades clínicas de cura psicanalítica. Durante a análise, ela
relata que, aos 15 anos de idade, quase trinta anos antes, estava
deitada na cama, vigiada pela severa avó. Cäcilie M. deu subitamente
um grito, sentiu uma dor penetrante na testa, entre os olhos, que
durou várias semanas. Por quê? Ela relata que o olhar da avó era
“penetrante”, “durchdringend”, de tal modo que parecia ir
diretamente ao seu cérebro. O olhar de desconfiança da avó a
perfurava; mas, relatando a dor alucinada e alucinante a Freud, a
dor desaparece.

41
Depois, conta como tivera uma alucinação dolorosa, que a
deixou inteiramente confusa, de que seus dois médicos, Breuer e o
próprio Freud, estavam pendurados, enforcados em duas árvores,
próximas uma da outra, no jardim. Freud lhe pergunta sobre os
porquês da alucinação. Cäcilie M. diz que pedira um remédio a
Breuer, que o negara; depois, no dia seguinte, pedira o mesmo ao
próprio Freud, que também não o deu. A alucinação, diz Freud,
mostra uma forma discursiva de expressar o ódio pelos dois, que
lhe negaram o conforto do remédio para o sono. “Die Zwei sind
einander wert, der eine ist das Pendant zum anderen”, “ambos,
Breuer e Freud, se eqüivalem, um é Pendant do outro”. Fazer
Pendant significa que “vocês dois são iguais” mas também é “estar
enforcado”. Freud elabora com ela como a alucinação e o delírio
emergiram e ela se tranqüiliza, volta a transdiscursar; desde que o
ódio não fica mais dispersado, pode se interlocutar
transferencialmente.
A alucinação remete a uma tentativa de discursar fazendo
dobra, onde a fala não se fixe no regime do oco, do creux, e que
possa exprimir seu ódio pelas dores desconexas e por aqueles que
lhe recusam ajuda. Numa linguagem psicanalítica, eu diria: “A
experiência do sentido, da memória não-simbólica, não se inscreve
agora e chama uma alucinação, onde não há remetimento mútuo,
mas experiências pulsionais. Estas experiências, sua abordagem no

42
registro de um tempo não-recorrente, não as deixam se inscrever
simbolicamente. Trata-se, neste exemplo, de um acontecimento não-
representado, não inscrito desde um sistema prévio, pois não diz
respeito à memória contínua do a posteriori. Mas que faz sentido,
alucinatoriamente. A alucinação não é um resto mal realizado, mas
uma afirmação pulsional”35.
Para “ser justo com Foucault”, através dos exemplos clínicos
indicados, penso que nem sempre ele pôde acompanhar a
multiplicidade do pensamento freudiano. Acredito que, se o fizesse,
não teria produzido sua própria e importante obra; nem eu estaria
agora pensando sobre ele nesta pequena homenagem. Façamo-lo
os outros, elaborando as magníficas produções de Foucault.
Sair da loucura, mesmo que de modo parcial, não é ignorar
esta ordem discursiva e de existência que nos constitui, a todos, mas
poder transitar através de vários regimes de discursividade. É também
sair da dor excessiva e dispersiva que impede ou paralisa o
psiquismo e a multiplicidade dos regimes discursivos. Isto pode se
dar num campo psicanalítico, guiado por uma ética também múltipla
e transformadora. Os quatro racontos acima, dois de Freud e dois
de minha própria clínica, são, quem sabe?, demasiado insignificantes
diante das tantas misérias de todas as ordens, que nos cercam e
obrigam permanentemente. Mas aprendemos com o próprio
Foucault que, por mais riscos que tenha esta palavra, é preciso se

43
responsabilizar pelo pouco que se faz, compondo uma convergência
que também tenha chances de vencer.

Referências bibliográficas

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Elisabeth Roudinesco et al., Foucault: leituras da História da Loucura.
Rio de Janeiro: Relume Dumará.

46
Notas

1
La vérité et les formes juridiques. Dits et écrits II, 1974, p. 632.
2
Michel Foucault, Histoire de la folie à l’âge classique. Gallimard. Paris,
1972. 2ª edição.
3
Isto pode se acompanhar em três escritos de brasileiros. Cf. Roberto
Machado (1982), Ciência e saber. A trajetória da arqueologia de Foucault.
Graal; (2000) Foucault, a filosofia e a literatura. Jorge Zahar; e Joel
Birman (2000), Entre cuidado de si e saber de si. Sobre Foucault e a
Psicanálise. Relume-Dumará.
4
12 Conferências na Universidade da Guanabara (1974), segunda
conferência, p. 33. Estas conferências, por mim dirigidas e transcritas,
traduzidas e redigidas por Roberto Machado e Jurandir Freire-Costa,
parece-me que não se encontram nos Dits et écrits. Publicadas sob
forma de apostila pelo Instituto de Medicina Social. Rio de Janeiro.
UERJ, 1979.
5
“Trata-se de corrigir o ‘delírio de nominação’ e coagir o doente a reconhecer
a pirâmide hierárquica do asilo. A aprendizagem da nominação é, ao mesmo
tempo, aprendizagem da hierarquia... Do mesmo modo, a lavagem do
banheiro representa o ensinamento da linguagem de ordem pontual... É a
trama do poder que deve surgir por detrás da linguagem”. Conferências na
Universidade da Guanabara (1974), a sétima Conferência, pp. 55-6. Insisto
que as concepções de Linguagem de Foucault são distantes do Fonologismo

47
da díade significante-significado, com ou sem barra. Foucault se baseia na
categoria nietzscheana de interiorização. Na medida em que as pulsões se
impossibilitam de liberar-se “para fora”, voltam-se para dentro, é o processo
de Verinnerlichung, que é parte da constituição do humano ou dos processos
de subjetivação se fazendo desde a introjeção de mecanismos de emergência
também social e que são múltiplos. Tal é a formação da alma “individual”,
die Seele, oprimida e reativa. É este paradoxo, de uma Linguagem com
estatuto discursivo próprio, que precisa ser escutada, e uma Linguagem
assujeitada às regras de poder, inclusive dos poderes teóricos, que Foucault
elaborará, de modo importante para os psicanalistas. Ou seja, a escuta dos
discursos loucos se faz em regimes diferenciados e irredutíveis.
6
Le discours ne doit pas être pris comme.... Dits et écrits III, 1976, p. 123.
7
Ao responder uma pergunta, acerca das influências no seu pensamento:
“O senhor está de acordo que Freud é a própria psicanálise. Mas, na França,
a psicanálise, [que era] de início, estritamente ortodoxa, teve recentemente
uma existência segunda e prestigiosa, devida, como o senhor sabe, a
Lacan...”. La folie n’existe que dans une societé. Dits et écrits I, 1961, p.
168. Quando se acompanham as citações e elaborações que Foucault faz
acerca do que é Psicanálise, damo-nos conta de que sua compreensão do
que é o freudismo se restringe, inúmeras vezes, à vertente lacaniana da
Psicanálise. Que, sendo importante, não responde a muitas das questões
que nos importam, enquanto psicanalistas, no campo freudiano.

48
8
Les problèmes de la culture. Un débat Foucault-Preti. Dits et écrits II,
1972, p. 372. Neste mesmo texto Foucault fala também da importância de
Heidegger “de colocar em questão todos nossos conhecimentos e seus
fundamentos”.
9
Para a influência de Heidegger no seu pensamento, por exemplo, “Verité,
pouvoir et soi”. Dits et écrits IV, 1988, p. 780.
10
Para esta oscilação nas teses foucaultianas, ver os dois livros de
Roberto Machado, já citados.
11
La folie, absence d’oeuvre. Originalmente publicada em La Table Ronde,
nº 196 (sobre as “Situações da Psiquiatria”. Maio de 1964). Também
publicada em Dits et écrits I, pp. 412ss.
12
É claro que os outros autores desta publicação se encarregaram de escrever
melhor sobre o assunto. Para meu pequeno recorte, basta-me esta indicação.
13
Esta tese anti-kantiana de Nietzsche é uma das marcas que dirige,
firmemente e de modo permanente, o pensamento de Foucault na sua
Histoire de la folie à l’âge classique. Para se entender melhor, ainda que
indicativamente, onde estão os limites e as profundas diferenças de Foucault
para acompanhar a obra de Heidegger (tão importante para ele), é preciso
que se conheça o que escrevia Nietzsche, a respeito da ilusão da interpretação
da causalidade, desde um originário: “Uma ‘coisa’ (ein Ding) é a soma de
seus efeitos (Wirkungen), sinteticamente enlaçados por um conceito, [ou]
uma figura. Efetivamente, o saber esvaziou o conceito de causalidade de
seu conteúdo e o reduziu a uma fórmula de identidade, cujo fundamento

49
ficou indiferente a respeito da causa [múltipla] ou efeito [real]”. Nietzsche,
Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre. Edição de Karl Schlechta, terceiro
volume, p. 768 (Carl Hanser Verlag München, 1956). Recomendo este texto
para a consideração de meus leitores lacanianos que, fundados na
interpretação heideggeriana (Das Ding, em Vorträge und Aufsätze.
Pfulingen. Neske, 1954, parte II), crêem no mito originário de das Ding
como causa única de um Desejo originário.
14
Contudo, um quadro do pintor Victor Arruda se intitula: “Tudo é tão
pouco”.
15
De acordo com Freud, se a marca essencial do humano é a
sexualidade, ao mesmo tempo em que obriga o homem, ela lhe
impõe limites necessários. A sexualidade é, simultaneamente e de modo
inseparável, sua insistência permanente e constante, a produção repetida
de diferenças e as regras de sua limitação.
16
Michel Foucault (1964). “Linguagem e literatura”. Duas conferências
pronunciadas em Bruxelas e não editadas nos Dits et écrits. Em Roberto
Machado (2000), p. 142.
17
Trata-se da Anthropologie du point de vue pragmatique [1798]. A tradução
francesa foi publicada pela Librairie Philosophique J. Vrin, de Paris, em
1964. Inclusive, Foucault escreveu uma tese secundária, nunca publicada,
sobre “Genèse et Structure de l’Anthropologie de Kant”. Cf. Dits et écrits
I, p. 23.
18
Apud Roberto Machado (2000), pp. 43-4.

50
19
Deste livro, só tenho a tradução argentina, Enfermedad Mental y
Personalidad. Paidos. Buenos Aires, 1961, p. 104.
20
Foucault, Doença mental e psicologia. Tradução Tempo Brasileiro. Rio
de Janeiro, 1968, p. 98.
21
Freud (1930a [1929]). Das Unbehagen in der Kultur. O mal-estar na
cultura. GW, XIV, p. 444.
22
Mesa redonda em torno de “La verité et les formes juridiques”, na PUC-
RJ. Dits et écrits II, 1974, p. 627.
23
Idem, p. 633.
24
Por exemplo, no importante debate com David Cooper, Jean-Pierre Faye
e outros: “Enfermement, psychiatrie, prison”. Dits et écrits III, 1977 (texto
209).
25
Elisabeth Roudinesco, “Leituras da História da loucura (1961-1986)”.
Em Elisabeth Roudinesco e outros, Foucault. Leituras da História da
loucura, op. cit., p. 21.
26
Dits et écrits III, 1976, pp.90-1. Trata-se de uma resenha sobre o livro de
Thomas Szasz, A fabricação da loucura (trad. brasileira: Zahar editores).
27
Freud (1911e [1910]). Psychoanalytische Bemerkungen über einen
autobiographisch beschriebenen Fall von Paranoia (Dementia paranoides).
Observações psicanalíticas sobre um caso auto-biográfico de paranóia
(Dementia paranoides). GW, VIII, p. 315; ESB, XII, p. 104 (meu grifo).

51
28
Freud/Jung. Correspondência completa. Trad. Imago. Rio de Janeiro,
1976. Organizada por William McGuire, carta 187F de 22/04/1910,
p. 366.
29
Sigmund Freud. Briefe an Wilhelm Fliess 1887-1904. Ungekürzte
Ausgabe. Frankfurt-am-Main. S. Fischer, 1986. Editada por Jeffrey
Moussaief Masson, reelaborada por Michael Schröter e transcrita
por Gerhard Fichtner. Carta 150, de 12/12/1897, p. 311.
30
“Nossas únicas diferenças com Foucault dizem respeito [a que] ... os
agenciamentos não nos parecem [ser] antes de tudo poder, mas desejo, o
desejo sempre agenciado e o poder [sendo] uma dimensão estratificada de
agenciamento...”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalisme et
Schizophrénie. Mille Plateaux. Minuit. Paris, 1980, p. 175.
31
Roman Jakobson, “Por que ‘mama’ e ‘papa’”?. Em Fonema e
fonologia. Rio de Janeiro. Trad. Livraria Acadêmica, 1967, p. 81.
32
Atenção: esta é uma modalidade discursiva importante. Como aparece
nos documentos?
33
“Introduction” a Rousseau juge de Jean-Jacques. Dialogues. Dits et écrits
I, 1962, p. 188.
34
Freud e Joseph Breuer, 1895d, Studien über Hysterie. Estudos sobre
Histeria. GW, I; ESB, II. Freud a alcunhou de Cäcilie M. Tais relatos
estão no caso clínico sobre Elisabeth von R.
35
C. S. Katz, Freud e as psicoses. Primeiros estudos. Xenon. Rio de Janeiro,
1994, p. 128.
Recebido em 15 de julho de 2001
52

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