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Apresentação de paciente

Casa de Saúde São João de Deus


02.06.2012

Exibiremos, a seguir, a transcrição de uma apresentação de paciente, realizada


no Hospital São João de Deus, somado, quando necessário, a algumas reflexões da rede
de pesquisa sobre a dinâmica da apresentação e sobre a dinâmica do próprio paciente.
Optamos por ler, uma vez que o discurso do paciente é bastante desconexo, tanto quanto
é sua desconexão com o mundo e, portanto, encontramos muita dificuldade em seguir
uma linha de raciocínio. Outro ponto importante é apontar o mal estar coletivo que se
deu durante a apresentação. No momento da discussão com a equipe, todos relataram o
profundo incômodo que sentiram no momento da entrevista.
Essa apresentação foi conduzida por Mauro Mendes Dias e por vez utilizaremos
do texto produzido, e gentilmente cedido, por ele na exposição presente. Optamos por
adotar a mesma menção ao paciente que Mauro adotou, pois concordamos com sua
argumentação da preferência de se referir a R que é inicial do nome do próprio do
paciente. Segundo Mauro “a não utilização de uma outra nomeação para escrever sobre
ele, comparece como condição de não repetir o ato de incluir mais uma língua em sua
historia”, pois, esse paciente fala “muitas línguas” e na transcrição observaremos
melhor como essas línguas falam.
Iniciemos:
Para não fazer do público uma plateia, optou-se por trazer o rapaz à sala já com a
conversa em andamento. R. diz: Eu fiz as letras, as músicas (...) Foi boa a aceitação. A
Samsung passaram a copiar (...). O rapaz relata que tem músicas nas rádios, mas elas
não tocam suas músicas.
Intervenção: O que o trouxe para o Hospital? R. relata que estava tirando a
CNH (carteira de habilitação, mas parece que ele confundiu com carteira de trabalho).
Passou a madrugada andando: saiu da Santo Amaro, chegou ao Shopping Eldorado. Lá,
quis fazer escândalo. Procurou a marinha e a polícia. Diz: Quando eu tentei fazer roupa
de banheiro (...) tive que implorar, deplorar, suplicar. Tive que fazer um cinto de
castidade. Relata que estava num ônibus com um policial e que esse policial falou: esse
ai vai ter que deplorar. Tive que fazer, eu fiz (...) todos estavam me seguindo (...). Vocês
vão me seguir? Eu vou longe heim! (...) os policiais me internaram (...). Essa não é a

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primeira internação de R, mas não sabe dizer o motivo da outra, nem a data e nem por
quanto tempo ficou internado.
Intervenção: O que é importante transmitir? R. diz: Sou simples, sou comum,
sou sincero, inteligente, auto individual, auto intelectual, sou constrangido pelo que
acontece com as coisas, não faço pacto com nada, tenho uma vida comum.
Em seguida R. cita que diversos artistas, como Luan Santana e Rodrigo Faro,
são seus filhos. O rapaz expõe em sua fala toda a dificuldade que encontra em se
colocar no mundo dentro de uma árvore genealógica. Durante toda a entrevista, R. citou
uma série de nomes famosos como sendo seus filhos, que não podiam assumir tal
filiação, para que não se expusessem. Nunca teve contato com esses filhos, apenas com
sua filha de 15 anos, com quem morou quando foi casado. Quando indagado por Mauro
fala desse casamento, que era muito ciumento. Diz que hoje está mais maduro e que
sabe como lidar melhor com isso. Diz da quantidade de remédio que está tomando e que
não sabe se o pênis vai voltar a funcionar. Quando indagado sobre outros
relacionamentos, diz que teve outro, mas não se estende no assunto.
R. após caracterizar seu irmão e seu tio como diabólicos, mostrou dificuldade
em dizer, ou melhor, em explicar o problema espiritual que pairava sobre os dois. O
entrevistador, ciente do fato de que R. se apresentava como versado em muitas línguas,
entre elas o “sânscrito e o americano”, introduziu tal dimensão na conversa ao
questioná-lo se conseguiria explicar-se em “outra língua”. R. responde prontamente a tal
convocação, inicia uma frase incompreensível. Mas logo se interrompe afirmando que
são diabólicos e que só conseguia pensar sobre esse assunto.
O entrevistador então insiste: “se quiser nos explicar em outra língua posso ver
se consigo entender”. A partir daí R. inicia um longo período de fala ininterrupta, uma
fala que além de ininteligível apresenta a marca da ausência de escansões ou de
qualquer cadência entre os termos. Mais que uma oração, R. parece ter verbalizado uma
única palavra de aproximadamente três minutos.
A história da sua relação com tal língua foi tratada a seguir. R. fala várias
línguas, graças a um dom de deus recebido aos oito anos de idade. Mesmo ano em que
ao se encontrar com o Espírito Santo, este lhe disse que ia sofrer e ter problemas na
vida, além de lhe demandar falar nessa língua, em suas palavras: “Ele falou para mim
falar inglês, eu falo inglês”. O entrevistador então comenta que a dificuldade de se falar
muitas línguas estava no risco de não ser compreendido pelas pessoas. R. vira-se para o
público: “falo inglês, americano, mas alguém entende. Não tem tradução: a tradução

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vem de vocês, eu sou só o interlocutor”. Como recomendado, este permanece em
silêncio. O dialogo é retomado quando R. é interrogado se esta seria a língua do Espírito
Santo. Ao confirmar, ele acrescenta: “essa é minha língua, tenho músicas nessa língua”.
Convidado a compartilhá-las, R. canta uma primeira canção, em “americano”.
Esta é acelerada, abrupta na entonação das palavras, palavras que, como sua primeira
fala nesta outra língua, seguem umas às outras de maneira quase imediata, marcando
uma ausência de ritmo. Por seu conjunto, se assemelha a uma mistura entre rap e rock.
Há uma agressividade em sua execução, além da presença de diversos termos em inglês,
termos de difícil entendimento, mas dentre os quais destacamos “crazy” e “devil”. Ao
fim da execução, o entrevistador pontua a presença da palavra devil. Aproveitando a
deixa do próprio R., que afirmou, como vimos, que a tradução de sua língua era dada
pelos outros, o entrevistador pode pontuar: “você repetiu por diversas vezes a palavra
devil. O demônio te inspira?” Ao que R. responde, assumindo uma póstuma mais
retraída, de modo a expressar até certo sofrimento por tal interpolação: “Não sou
demoníaco, não faço mal a ninguém”. “Mas você sentiu a presença?”, interroga o
entrevistador. “Não, mas minha cabeça sentiu”, responde N. 
A música, no discurso de R., revelou possuir um papel decisivo para o
estabelecimento de um laço com uma terceira instância, seja encarnada pelo público,
seja por uma fratura no saber que fizesse com que o sujeito pudesse se contar na própria
história. Transmissor de uma língua divina, uma língua que poderíamos chamar “do
Outro”, R. parece desfilar uma série de fragmentos significantes, predominantemente
provindos da língua inglesa, que atestam sua posição na linguagem. Sem a inscrição da
castração, de uma falta que permita a emergência de um intervalo entre dois
significantes fundadores da bateria constitutiva do registro simbólico - intervalo que
marca a posição do sujeito neurótico no Outro - a fala de R. é exemplar da operação de
foraclusão própria da estrutura psicótica. A língua do Outro se configura como uma
pletora de significantes que se justapõem uns aos outros, e que se dizem através da fala
do paciente. Esta invasão do Outro, ou melhor, esta impotência de barramento de sua
onipresença, de uma circunscrição simbólica do conjunto da linguagem que se articula
no sujeito, mostra-se também na dificuldade de sistematizar seu discurso, de vez que,
como apresentado, ele transita de um assunto a outro de modo tão abrupto quanto
arbitrário. A dificuldade de sistematização, de um ponto de basta que produzisse uma
significação em sua fala, foi geratriz de uma intensa angústia que perpassou o público.
À presença simples do não-sentido, seja na linha narrativa, seja na língua própria de R.,

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produziu um tipo de laço, tenso em sua forma, que se alterou após a primeira
intervenção do entrevistador. Ao recortar do primeiro canto, de um canto ininteligível,
ao qual R. levou a cabo com certa agressividade e agitação, o significante “devil”, o
entrevistador, possibilitou a R. um princípio de articulação deste não-sentido em seu
discurso.
Porém, tal recorte, colocado para R. como a presença do demônio em sua
música, o deixou visivelmente agitado e angustiado. O rapaz diminuiu o volume da voz,
abaixou a cabeça e se mostrou abatido (ou melhor: ainda mais abatido, já que estava
visivelmente dopado por excesso de medicação). Nessa situação, buscando uma maneira
de recolocar o rapaz na entrevista, Mauro Mendes o convidou a cantar uma nova
canção. Diferentemente da primeira, a segunda música de R. se mostrou mais melódica,
com a presença de uma voz fina - que em alguns momentos transformavam-se em
falsetes - com uma harmonia calma e até tocante. Remetia a um misto de música
religiosa e romântica. Novamente, o inglês aparecia fragmentado, mas deixando
explícitas algumas palavras como lie, live, know, love, need, etc. Durante a canção, um
episódio interessante: uma pessoa do público tossiu. R., então, sem virar a cabeça, e sem
que isso afetasse o andamento da sua canção, faz o gesto de apontar com o dedo para a
pessoa. Ao fim desta longa música, R. interroga o entrevistador: “teve o demônio
agora?”. Ao que este lhe responde “Não, você fez ele ir. Se sente mais apaziguado?”. R.
confirma o apaziguamento.
Quanto a essa segunda canção, podemos dizer que o americano transmitido por
R., tomou uma diferente modulação. A presença da melodia parece trazer um esboço de
uma obturação nesse “americano”, língua do Outro. Frente à onipresença do Outro, R.
consegue articular pelas suas escansões e ritmo cadenciado, uma outra forma de portar a
linguagem, de posicionar-se enquanto sujeito, que prontamente se manifesta na
modalidade de laço por ele estabelecida. Podemos atestar essa forma, seja pelas palavras
apresentadas (que convocam o outro), seja pela indagação que faz ao final ao
entrevistador, seja ainda pela expressão posterior do público de um desejo de aplaudi-lo
ao fim de sua canção. Para Mauro Mendes, a expressão “need”, que ressoou algumas
vezes no americano de R., diz respeito a um pedido de ajuda dirigido ao entrevistador.
Esta tentativa de estabelecimento de um laço mostrou-se apaziguadora para R. Após
confirmar esse apaziguamento, o entrevistador passa a questioná-lo sobre a história de
sua família. Depois de afirmar que era órfão, R. entra numa longa e complicada fala
sobre suas invenções, exprimindo-se de maneira tão desconexa que, em alguns

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momentos, pareceu precisar buscar nomes de personagens famosos e até mesmo de
avenidas (R. fala, por exemplo, de “Arantes do Nascimento” e “Rangel Pestana”) para
tentar estruturar algo parecido com uma história.
Porém, interessante notar que em vários momentos de toda a conversa que se
seguiu à segunda canção, R. ainda era tomado pela questão da presença demoníaca: em
dado momento, se diz um anjo, e que a presença do diabo na primeira música tinha o
intuito de afastá-lo. E afirma em seguida: “Eu tava assistindo lá em cima as coisas, (...)
prostitutas que ganhavam a vida cantando, acho que por isso que eu cantei a música do
diabo (...) não foi por mal”. E já no final da entrevista, a última fala de R. foi
diretamente dirigida ao público, feita em americano. Terminada a fala, dirige-se ao
entrevistador e pergunta: “teve demônio agora? Foi fala de Deus”. A pontuação
realizada por Mauro Mendes quanto à presença deste “devil” na letra de sua primeira
música pareceu assustar R., que precisou retomar a questão, como se corresse o risco
constante de que o apaziguamento realizado pela segunda canção expirasse frente à tal
presença. Se dizendo tranquilo, R. não conseguiu evitar, em vários momentos da
entrevista, mostrar seu lado de extrema agressividade, e entendemos que esse demônio
diz dessa agressividade de maneira direta.
Quanto ao episódio da tosse, ocorrido durante a segunda canção, Mauro Mendes
afirma que foi nesse momento que R. encontrou algo do reconhecimento: “a tosse é,
para ele, o sinal de que sua voz foi reconhecida, é o momento em que sente haver nele a
possibilidade de transmitir algo. É, portanto, o instante da voz, para logo em seguida ser
coberta pelo canto em americano. Nesse sentido, é pelo real que ele se reconhece no
Outro, enquanto ruído da tosse que retorna”. Podemos nos perguntar, porém, o quanto
esse reconhecimento diria de uma tentativa de laço com o público. Pois R. chega a
afirmar “não faço pacto com nada”. Numa auto-referenciação impressionante, a fala de
R. apontou o tempo todo para uma ausência completa de laço, com breves traços de
pedidos de ajuda e breves momentos de reconhecimento, mas que nunca passaram ao
ato, apesar de todo o esforço de Mauro Mendes, que passou quase que a totalidade da
entrevista na função daquilo que Lacan denominou de “secretário do alienado”.
Perguntado quanto à sua saída do internamento, R. afirma que não sabe o que
vai fazer, mas em seguida pede ajuda ao público: “vocês são provas minhas, estão do
meu lado. Meu dinheiro está com o Cris da Mega TV” – R. afirmara antes que Cris
(aparentemente o personagem do seriado de TV “Todo mundo odeia o Cris”) estava
com dinheiro da sua conta do HSBC. O entrevistador insiste, então, na questão: “o que

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vai fazer quando sair?”. N. responde que quer uma vida normal, morar sozinho, mas
que, quanto a trabalhar, que pode “trabalhar com eles, com todos os que estão no canal,
e que trabalham para mim”. Mesmo quando é colocado a pensar em como sair do
internamento, R. responde reafirmando em seu discurso o tema da alienação de seus
trabalhos midiáticos e de suas ditas relações familiares. Tema que não pode ser
colocado como um delírio. A partir do diagnóstico, tanto psiquiátrico quanto
psicanalítico, de esquizofrênico paranoide, vemos que R., seguindo o texto de Mauro
Mendes, “repete algumas ideias de forma delirante, mas que não chega a se contar a
partir do que essas palavras poderiam associar como sentido único. Tal falta de
sistematização é o que se vai recolher, nesse caso, sob a forma em que a paternidade é
vivida. Ele não consegue se contar por inteiro a partir dela, nem ser reconhecido
por ela”.
De fato, o que se viu na manhã de 02 de junho não foi um quadro animador para
o futuro de R. Se houve algo próximo de uma entrevista, devemos esse fato ao esforço e
à escuta de Mauro Mendes, que conseguiu extrair, em raros momentos, algo que
podemos pensar como estilhaços de um sujeito. R. afirmou explicitamente: “não faço
pacto com nada”, mas mesmo assim pudemos encontrar momentos em que traços de
uma tentativa de laço foi feita. Questão que nos leva ao grande estranhamento que
sentimos no momento do debate. Além de apontamentos que diziam da maneira como
R. teria construído melodias que se exprimiam em si mesmas, e que não precisavam de
palavras para que expusessem seu conteúdo, o que apontaria para uma comunicação que
precederia a palavra, também vimos uma boa parte dos presentes, comentando do
apaziguamento de R. no momento da segunda música, procurando apaziguar a si
mesmo, numa busca coletiva pelo bem do rapaz. No meio de algumas falas sobre
colocá-lo trabalhando de jardinagem, ou numa escola de música, o ceticismo de Sandra
Berta nos pareceu, talvez, a posição mais realista: “não percebi a intenção de
comunicação que vocês falam, nem mesmo na canção; se algo se produziu, foi pelo
esforço do Mauro. Nunca vi ninguém tão enlouquecido, mesmo tão medicado!”.

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