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PROBLEMA DE LÍNGUA, CONFLITO DE PAIXÕES

No Brasil, como nos Estados Unidos, na Argen-


tina e, mais discretamente, nos outros países ameri
canos, preconceitos, mal adormecidos ainda hoje, da
longa vassalagem colonial e do agressivo nacionalismo
que sobreveio à independência * sensibilizaram de tal
forma certas questões pertinentes à língua e à litera
tura, que as desviaram do campo objetivo da ciência
para o terreno do radicalismo 'ideológico.
Rebentos de um mundo novo, descoberto e colo
nizado por povos europeus de larga vida anterior, as
SSSPÇ?. aroçricanas amanheceram na liberdade política
sem haverem construído uma pátria cultural, com as
elites dirigentes de olhos fixos nós padrões europeus,
concebidos então como únicos e exemplares modelos
de civilização e de cultura.
Daí o drama dilacerante que viveram essas elites
no século passado, com duas pátrias^ inconciliáveis —
a do berço e a_ do_espírito — e com todos os com
plexos, angústias e frustrações provocados pelo humi
lhante sentimento de bastardia. Europeus na América,
pelo estilo de vida, mas europeus sem ancestrais, sem
raízes históricas, sem o patrimônio cultural armaze
nado por milênios no Velho Mundo. Americanos na
sedutora Europa, fascinante e inacessível, onde a fi-
nura no trato e a educação superior, que não raro
possuíam, não bastavam para esmaecer-lhes a inde
lével marca de rastacouères2.
,r.L
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Desse viver contraditório dá-nos testemunho Joa um de nós foi vazado ao nascer. De um lado do mai
quim Nabuco, tipo perfeito do brasileiro europeizado, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência
de um cidadão do mundo, melhor diríamos, pelo res do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imagi
peito que nos deve merecer o seu nobre e claro pen nação européia. As paisagens todas do Novo Mundo,
samento. a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não
"Nós, brasileiros", escreve êle, "o mesmo pode- valem para mim um trecho da Via Ápia, uma volta
se dizer dos outros povos americanos, pertencemos à da estrada de Salerno a Araalfi, um pedaço do cais
América pelo sedimento novo, flutuante, do nosso es do Sena à sombra do velho Louvre. No meio do luxo
pírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. dos teatros, da moda, da política, somos sempre
Desde que temos a menor cultura, começa o predo squatters, como se estivéssemos ainda derribando a
mínio destas sobre aquele. A nossa imaginação não mata virgem"*.
pode deixar de ser européia, isto é, de ser humana; Esse o pensamento quase geral, consubstanciado
ela não pára na Primeira Missa no Brasil para con na frase célebre: "Não vamos, voltamos à Europa".
tinuar daí recompondo as tradições dos selvagens que Religião, direito, arte, língua e poesia, tudo nos
guarneciam as nossas praias no momento da desco havia chegado como generoso empréstimo europeu e,
berta; segue pelas civilizações todas da humanidade, conseqüentemente, da Europa deveríamos esperar sem
como a dos europeus, com quem temos o mesmo fundo pre, nas questões culturais, a norma condutora.
comum de língua, religião, arte, direito e poesia, os
mesmos séculos de civilização acumulada, e, portanto, A idéia de que a Europa — e só ela — possuía,
desde que haja um raio de cultura, a mesma imagi de direito, as matrizes da cultura era tão pacifica
nação histórica"3. .
mente aceita, que, quando o instinto de nacionalidade
passou a revelar-se com indiscrição maior na pena po
E continua: "Estamos assim condenados à mais derosa de José de Alencar, o fato se revestiu das ca
terrível das instabilidades, e é isto o que explica o racterísticas de escândalo literário, e o grande roman
fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Eu cista se viu impiedosamente criticado pelos próprios
ropa. .. Não são os prazeres do rastaqüerismo, como compatriotas. E não nos devemos esquecer de que as
se crismou em Paris a vida elegante dos milionários primeiras críticas não se endereçavam à sua temática.
da Sul-América; a explicação é mais delicada e mais 0 indianismo de Alencar, bem como o de Gonçalves
profunda: é a atração de afinidades esquecidas, mas Dias e o de Magalhães, foi auspiciosamente acolhido
não apagadas, que está em todos nós, da nossa comum pelo público de então, aquela minoria privilegiada
origem européia. A instabilidade a que me refiro, que podia ler. E é compreensível que o fosse. 0 "mito
provém de que na América falta à paisagem, à vida, do bom selvagem" aparecia-lhe como um mito provi
ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, dencial, capaz de trazer-lhe a dignidade ansiada e o
o fundo histórico, a perspectiva humana; e que na equilíbrio interior. Elaboração européia, enobrecido
Europa nos falta a pátria, isto é, a fôrma em que cada nas páginas dç Bernardin de Saint-Pierre e Chateau-
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briand, êle dava a essa aristocracia espiritualmente fim de exprimir coisas ou novas, ou inteiramente bra
instável a dupla satisfação de continuar vinculada ao sileiras. Os Luteros não se fazem e menos se impõem,
gosto europeu e de encontrar, sem necessidade de aparecem com as circunstâncias e são aceitos pela
uma análise mais profunda, um "álibi", no termo necessidade que há deles" 10.
justo de Paul Teyssier 5, para justificar o que lhe fal Pela boca de Henriques Leal falava a tradição
tava: a nobreza de origem, as raízes seculares, a tra estática n, os séculos de passividade à norma dos dou
dição, aquilo, enfim, em que se assenta uma pátria — tores de Coimbra, a mesma voz que assumia arrogante
a Terra e os Mortos 6. entoação metropolitana nestas frases de Pinheiro
Não. A Alencar não lhe criticavam, de início, a
Chagas: "O defeito que eu vejo nessa lenda [Ira
idealização do indígena. As censuras recaíam sobre cema], o defeito que vejo em todos os livros brasi
a sua expressão lingüística, o seu vocabulário e, prin leiros, e contra o qual não cessarei de bradar intrè-
cipalmente, a sua sintaxe, que parecia desobedecer
pidamente, é a falta de correção na linguagem portu
guesa, ou antes a mania de tornar o brasileiro uma
aos intangíveis cânones portugueses. Antônio Henri- língua diferente do velho português, por meio de neo-
ques Leal, por exemplo — em política, um naciona logismos arrojados e injustificáveis, e de insubordina
lista que admitia "não carecermos de Portugal para ções gramaticais, que (tenham cautela!) chegarão a
o nosso desenvolvimento" 7; e, em literatura, um ad ser risíveis se quiserem tomar as proporções duma
mirador da "exatidão e firmeza n das descrições alen- insurreição em regra contra a tirania de Lobato". .. .
carianas —, recriminava-lhe as inovações lingüísticas "nós cingimo-nos às velhas regras, nós sem nos des
nestas palavras candentes: "Entendo, e creio que co viarmos da linha reta, enquanto os brasileiros se com-
migo pensa toda a gente, de senso, que, quando somos prazem em seguir umas veredas escabrosas, por onde
forçados a isto [ou seja, a inovar], importa saber a caminha aos tombos a língua de Camões" 12.
fundo a língua, tê-la estudado com espírito assaz es
Pela boca de Alencar falava a consciência do ar
clarecido, como o fizeram Felinto, Fr. Francisco de
tista criador, rebelde a jugos, e aguçada por aquele
S. Luís, Garrett, e Odorico Mendes, e ainda hoje instinto de nacionalidade a que nos referíamos e sobre
assim o praticam os Srs. Visconde de Castilho, Ale o qual Afrânio Coutinho tem escrito, modernamente,
xandre Herculano e Latino Coelho"9. E acrescentava: páginas tão lúcidas ,3.
"Sem termos os conhecimentos indispensáveis e muita
Postos nesses termos, os problemas da língua de
lição dos bons clássicos portugueses, que, pois, somos
rivaram naturalmente para o conflito de paixões. As
descendentes de Portugal e falamos a mesma língua, duas correntes — a tradicionalista e a nacionalista —
é loucura tentar empresas tais, que só servem para o
esquecem-se dos problemas e passam a viver o con
descrédito de quem o faz. Deixemo-nos de inovações flito de velhos e novos preconceitos. De um lado O
extravagantes, onde já é miséria, e grande, não sa purismo exagerado, jima concepção fossilizada da
bermos usar das riquezas que herdamos, para melhor língua; de outro, o anelo por uma língua nacional ",
recorrermos e admitir tudo o de que precisamos a
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mtm mzz*
aprendam a falar na mesma língua, e os homens se
própria, desvinculada da portuguesa, o que os mais entendam com ela, e os escritores a trabalhem em
ardentes chegam, ainda hoje, a considerar um impe suas criações culturais. E se não se quer levar em
rativo de nossa soberania.
conta que uma língua vive em perpétua formação,
"0 Brasil é uma nação livre, logo, deve ter uma sendo portanto própria e obra de quantos a falam
língua própria", escreveu um dos maiores poetas como língua natural, e, se se pretende supor que os in
atuais, em comunicação à Academia Brasileira de gleses, portugueses e espanhóis recebem de seus ante
Letras ,s. passados a língua em propriedade, enquanto os ame
Esse jacobinismo lingüístico, mais um gesto do ricanos a recebem de mãos alheias, como um mero
que um ato, na necessária distinção sartriana, funda- usufruto, também se erra" 16.
se no reconhecimento tácito de que nos servimos de E Amado Alonso continua o seu claro raciocínio,
um idioma por empréstimo, o que também é o pensar pondo à mostra a impossibilidade da existência de
dos puristas. À diferença entre as duas posturas re "donos da língua" 17:
side apenas em conformismo ou inconformismo com "A atual geração de ingleses recebeu seu idioma
o estado de coisas.
de seus pais, e por isso o inglês é o idioma próprio
A propósito desse enraizado preconceito de "lín dos ingleses; e seus pais o receberam da geração an
gua própria", convém repetirmos, mais uma vez, as terior, e por isso o inglês era sua língua própria e
palavras sensatas de Amado Alonso, o exímio e malo natural, e a geração anterior, da mais antiga, e assim
grado filólogo espanhol: sem possível solução de continuidade; e o mesmo,
"Essa idéia de língua própria se deve a um equí sem a menor sombra de diferença, fizeram os norte-
voco. Os bens anotáveis no registro da propriedade americanos, até chegarem ingleses e norte-americanos
são próprios de um quando não o são dos demais: a uma geração de antepassados que lhes seja comum.
uma casa, um campo e também este relógio e esta Dessa geração de ingleses, que falavam o inglês como
bengala. Para poderem ser de minha propriedade têm sua língua própria, uns permaneceram na Inglaterra
(jue não ser. da propriedade dos outros. Mas a lin e outros passaram à América. Será que os coloniza
guagem não é dessa espécie de bens; ao contrário, é dores perderam a propriedade da língua por se ha
daqueles que 'são maiores quanto mais comunicados, verem expatriado? Ou acaso seus filhos, nascidos em
como diziam os homens do Renascimento. Uma língua terra americana falavam uma língua que, sendo a de
é própria de uma nação quando é a que as crianças seus pais e a que eles haviam aprendido com o leite
aprendem de seus pais, a que os conacionais empre de suas mães, não lhes era mais própria porque a
gam em sua vida de relação e a que seus poetas e sua propriedade a tiveram registrada os que ficaram
prosadores elaboram e cultivam esteticamente para na Inglaterra? E os filhos dos primeiros mestiços —
suas produções de alta cultura. Se assim é, a língua não falavam também uma língua própria, pois que
de um país é bem próprio, absolutamente próprio falavam a língua de seus pais? Chega-se assim à evi-
desse país, ainda que em outros países as crianças
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m
dência de que para a geração atual de americanos o sem dúvida os preponderantes, pois que permitem a
inglês é uma língua tão própria, exatamente tão pró intercomunicação, a superior unidade não só da língua
pria, sem mais nem menos, como é para os ingleses" w. literária, mas também da língua falada pelas classes
Cabe-nos afirmar a mesma coisa do português cultas nos dois países.
do Brasil, do espanhol das repúblicas hispano-ameri É na história que vamos encontrar explicação
canas e do francês do Canadá e das Antilhas 19. para todos estes fatos: para as sensíveis diferenças da
E poderíamos ir além. Não somente a língua, língua popular e para a relativa coesão da língua culta
mas toda a história de Portugal anterior ao descobri de Portugal e do Brasil, menos orgânica do que a do
mento do Brasil é também tão própria dos portugue castelhano europeu comparado aõ americano (fato
ses quanto dos brasileiros, que nela imergem as suas que a história também justifica), mas, ainda assim,
raízes mais fortes. Língua e história representam, em de evidência clara.
síntese, um passado comum, uma fonte comum de Sabemos todos que a colonização portuguesa,
vida, de pensamento, de sentimento, de — em uma pa com inúmeros saídos positivos", não foi exemplar no
lavra: cultura 20. terreno educacional e cultural. Enquanto os espanhóis
Certamente do conflito entre o reacionarismo his- cedo criaram.colégios e universidades na sua América,
toricista e o jacobinismo nacionalista se originou o no Brasil colonial- existiram apenas uns poucos esta
erro, denunciado com tanta penetração por Amado belecimentos de ensino primário, e médio, e isso quase
Alonso. Mas havemos de reconhecer que, para gene por milagre de certas ordens religiosas, especialmente
ralizá-lo, contribuiu poderosamente o método aplicado a dos jesuítas.. Os que pretendiam uma instrução su
por certos filólogos — alguns deles eminentes — no perior deviam seguir para Coimbra, onde estava se
exame das diferenças lingüísticas entre o português diada a universidade do império. E o mesmo contraste
europeu e o americano. se observa quanto ao desenvolvimento da imprensa,
De qualquer comparação só se podem extrair con da editoração, que se inicia no México em 1535, no
clusões válidas, se feita com termos relacionáveis. Esta Peru em 1584M e no Brasil somente em 180823.
preliminar metodológica, um tanto acaciana, não tem O fato de Espanha haver dado a suas colônias
sido, porém, a norma observada no contrastar as duas "uma organização de cultura tão completa como a
modalidades nacionais do português. Opõe-se, de que ela mesma possuía" 24, tendo chegado a criar no
regra, a língua comum de Portugal aos falares das continente americano mais de vinte universidades2£
i
classes humildes do campo e das cidades do Brasil. e uma imprensa florescente2fi, não poderia deixar de
Procedendo-se assim, não é de admirar que se chegue traduzir-se numa conservarão mais interessada e cons
'" .a a diferenças profundas em todos os domínios: na fo- ciente da norma lingüística peninsular, disseminada,
nética e na fonologia, na morfologia e na sintaxe, no assim, extensa e intensamente. Era, em síntese, a prá
léxico e na semântica. A esse método vicioso21 se tica eficaz da célebre doutrina da "língua compa
deve o esquecimento freqüente dos traços comuns, nheira do império", preconizada por Nebrija 27.

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i

Diversas as nossas condições culturais, distintas nicamente reproduzidas na maioria de nossos compên
também as soluções de certos problemas lingüísticos dios gramaticais.
no Brasil. Como só no século XIX tivemos o pri Compreende-se, pois, que, tendo ouvido a lingua
meiro estabelecimento de ensino superior e a primeira gem castigada dessa elite colonial, aquele observador
imprensa, apenas uma insignificante minoria de bra do século XVII se convencesse de que o "Brasil era
sileiros pôde, no período colonial, receber instrução a academia onde se aprendia o bom falar"...3"
universitária e raros foram aqueles que auferiram o
privilégio de ver o produto do seu talento em letra
de fôrma. SERVILISMO E NACIONALISMO LINGÜÍSTICO
Daí a diglossia, a acentuar-se progressivamente:
de um lado, a língua popular, entregue à sua sorte Não há dúvida de que toda língua culta, em par
na boca de tantas e tão variadas comunidades de anal ticular quando escrita, é tradicional e, de certa ma
fabetos que se espalhavam pela imensidão do Brasil; neira, uma língua especial. Se, no entanto, ela perde
de outro, a língua dos doutores 28 e dos padres, dos o contado com a língua viva, se não se renova com
bacharéis bem-falantes, mosaico de fragmentos do pas as criações do falar corrente, de que deve ser uma
sado literário que essa elite de "bons latinos" apren normalização ou uma estilização, sofre em seu fun
dia em Coimbra ou nas tradições portuguesas con cionamento, estratifica-se. E a estratificação é a morte
servadas nos colégios dos jesuítas — "signum" de letárgica de um idioma.
superioridade culture?1 e, também, mais do que nunca, Esta a situação em que nos encontrávamos, às
de distância social. vésperas da Independência: as inflexíveis normas gra
"Eu sou um conimbricense maticais obedecidas passivamente pelos letrados da co
Nascido nestas montanhas", lônia tinham conseguido manter unificada a língua
culta, mas, pelo artificialismo de tal unificação, ha
dizia Gregório de Matos. E, com efeito, o era, apesar viam aumentado, muito além do natural e do admis
de alguns temas e de certas incontinências de sua obra sível, a distância entre as duas formas da linguagem,
que podemos qualificar de nativistas. E conimbricen- a transmitida e a adquirida, que praticamente deixa
ses como êle voltaram aqueles dois mil e quinhentos 29 ram de comunicar-se.
brasileiros que, do Descobrimento à Independência, Entramos, assim, no século XIX com um vácuo
estiveram na velha e austera universidade. Educados enorme entre a língua escrita e a língua falada. A
para imitar, numa época de ensino essencialmente pas luta por diminuí-lo vai confundisse, nos espíritos mais
sivo, quando a própria literatura era concebida como lúcidos, com á própria luta pela formação de uma
uma recriação tópica, esses brasileiros, talvez mais do literatura verdadeiramente brasileira (pois que enten
que os portugueses, concorreram para a implantação dida como "harmoniosa conciliação de temática e
das normas de correção idiomática, ainda hoje mecâ-
21
20

mm
forma expressional), e só chegará a bom termo, em Comparando essas percentagens às do século XIX
nossos dias, com as atitudes radicais do modernismo. — e atendo-se ao campo da poesia —, Bastide mostra-
Conquistada a autonomia política, começaram a nos como a cultura das classes médias e inferiores
aparecer os primeiros sintomas de mudança desse es subiu em menos de oitenta anos, apesar da escravidão
tado de coisas. Classes sociais, até então emparedadas, que, até 1888, marginalizou parte substancial da po
tiveram oportunidades novas com a vulgarização do pulação humilde.
ensino e, principalmente, com o desenvolvimento da O índice das classes superiores baixa de 86,3%
imprensa. Os reflexos desses fatos na aeração da a 36,8%; o das classes médias sobe de 6,9% para
língua foram logo previstos por José Bonifácio, que, 26,4%; e o das classes inferiores passa de 6,8% a
em 1825, assim se manifestava sobre a legitimidade 36,8% ».
da criação vocabular: "Ousem pois os futuros inge- Para esse acesso vertiginoso à literatura das ca
nhos (sic) brasileiros, agora que se abre nova época madas inferiores da sociedade contribuíram decisiva
no vasto e nascente Império do Brasil à língua por mente as novas condições criadas pela independência
tuguesa, dar este nobre exemplo; e fico que, apesar política, mas contribuiu também poderosamente o Ro
de franzirem o beiço puristas acanhados, chegará o mantismo, com a valorização estética do nacional e
Português, já belo e rico agora, a rivalizar em ardi- do popular. O ideal nacionalista e democrático do mo
mento e concisão com a língua latina, de que traz a vimento não poderia deixar, por outro lado, de re
origem" 31.
fletir-se na forma de expressá-lo — a língua.
Uma estatística, organizada por Roger Bastido,
põe em evidência os efeitos dessa alteração ác- pano La langue était VEtat (Vavant quatre-vingt-neuf;
rama cultural. Les mots, bien ou mal nês, vivaient parques en castes,
Examinando a origem dos escritores brasileiros dissera Victor Hugo34 do francês pré-romântico. E
e a situação econômica de seus pais, o distinto soció era assim por toda a parte, e — pelas razões já adu
logo francês apresenta-nos este eloqüente quadro re zidas — mais se acentuava no Brasil. Cumpria aos
lativo ao período colonial: românticos liberar a língua como a Revolução Fran
cesa liberara os homens.
Saídos das classes superiores . . 86,3% Mas não devemos exagerar a profundidade de
Médias 6,9% tais inovações. Tanto em França como no Brasil os
Inferiores 6,8% românticos foram mais ousados na teoria do que na
o prática. O j>róprio Alencar, que, imprudentemente,
É digno de nota, acrescenta, "que esta contribuição chegou a falar em "língua brasileira" e à teorizar
das classes inferiores não aparece senão na segunda sobre o assunto, não pretendia, na realidade, criar uma
metade do século XVIII, na época em que se prepararia língua nova, nem fazer ascender a nossa linguagem
a independência, pelo menos intelectual, do Brasil" 32. pópülãra ãltürã de língua literária. 0 que êle pre-
» •—

22 9?
conizaya era somente uma elasticidade maior da ex Também lhe parecia que os brasileiros tinham "o
pressão, a legitimação dos termos tipicamente brasi direito de aumentar e enriquecer a língua portuguesa
leiros, uma sintaxe mais livre, ou, melhor dizendo, e de acomodá-la às suas necessidades", fosse no campo
menos sujeita às normas severas do português europeu. do léxico, fosse no da sintaxe, pois reconhecia que.
Releiamos estes passos de 0 Nosso Cancioneiro: "para dizer o que hoje se passa, para explicar as
"Uns certos profundíssimos filólogos negam-nos. idéias do século, os sentimentos desta civilização, será
a nós brasileiros, o direito de legislar sobre a língua preciso dar novo jeito à frase antiga" ".
que falamos. Parece que os cânones desse idioma fi Machado de Assis, o compreensivo e sereno leitor
caram de uma vez-decretados em algum concilio cele dos clássicos, não pensava diferentemente. Em ma
brado aí pelo século XV". gistral artigo, publicado em 1873, quando ia acesa a
"Nós, os escritores nacionais, se quisermos ser polêmica de Alencar com os detratores de sua obra,
entendidos de nosso povo, havemos de falar-lhe em ponderava:
sua língua, com os termos ou locuções que êle entende, "Não há dúvida que as línguas se aumentam e
e que lhes traduz os usos e sentimentos. alteram com o tempo e as necessidades dos usos e
"Não é somente no vocabulário, mas também na costumes. Querer que a nossa pare no século de qui
sintaxe da língua, que o nosso povo exerce o seu inau- nhentos, é um erro igual ao de afirmar que a sua
ferível direito de imprimir o cunho de sua individua transplantação para a América não lhe inseriu rique
lidade, abrasileirando o instrumento das idéias. zas novas. A este respeito a influência do povo é de
"Se nós, os brasileiros, escrevêssemos livros no cisiva. Há, portanto, certos modos de dizer, locuções
mesmo estilo e com o mesmo sabor dos melhores que novas, que de força entram no domínio do estilo e
nos envia Portugal, não passaríamos de uns autores ganham direito de cidade"38.
emprestados; renegaríamos nossa pátria, e não só ela, Mas nenhuma dessas afirmações, nem outras,
como a nossa natureza, que é o berço dessa pátria" 3S. mais contundentes, de Alencar, foram feitas com o
Não era outro o pensamento de Gonçalves Dias, intuito de convencer-nos da necessidade de uma língua
ao escrever em 1854: brasileira", empregando-se a palavra "língua" no seu
"A minha opinião é que ainda, sem o querer, significado próprio.
havemos de modificar altamente o português. A bem dizer, toda a questão da "língua brasi
"Vês tu o nosso Macedo? o seu merecimento não leira" se resume, ainda hoje, na luta contra as regras
é ser clássico, mas ser brasileiro; e êle não seria tão inflexíveis dos puristas, dos gramáticos retrógrados,
estimado, tão popular, se andasse alambicando frases, sempre contrários a inovações e defensores de um de
que os poucos conhecedores da língua mal compreen sarticulado sistema idiomático, simples mosaico de
deriam a sopapo de dicionário. O que o simples bom formas e construções colhidas em épocas diversas do
senso diz é que se não repreende de leve num povo o passado literário. É, em suma, um ato de rebeldia
que geralmente agrada a todos"...36 contra uma ordem arbitrariamente estabelecida, uma

24 25

rmmw
tentativa de libertação elementar não só do artista, não ao que se deve dizer dos puristas, porém ao que
impedido de escolher seus meios expressivos, mas do tradicionalmente se diz num domínio da comunidade
falante e do escritor comum, obrigado a não parti idiomática — normas que podem conviver harmônica-
cipar da cultura ambiente por lhe negarem a utiliza mente, dentro da língua portuguesa, com outras normas,
ção das formas lingüísticas exigidas pela vida quoti peculiares a distintos ambientes sociais, culturais ou
diana. E precisamente por ser uma atitude de rebeldia regionais.
contra o opressivo contorno social, mais um espírito E o resultado está ao alcance de nossos olhos, no
do que uma realidade, é que a tese da "língua brasi verdadeiro Século de Ouro que vamos vivendo, com
leira" nunca pôde ser formulada como um corpo de uma literatura singular entre as literaturas contempo
doutrina coerente. O próprio Mário de Andrade, chefe râneas pela originalidade de seus temas, de suas preo
incontestado do movimento modernista de 1922, não
cupações, de suas conscientes e ousadas explorações
estilísticas dentro deste Eldorado que é o nosso idioma,
conseguiu jamais compor a Gramatiquinha da Fala
onde ainda há muita riqueza intocada para ser um
Brasileira, que nos prometera. É de presumir, é quase dia pesquisada e exibida.
certo — poderíamos adiantar — haver êle desistido
do projeto 39 por não ter encontrado na sua obra, nem
na de seus companheiros, os elementos indispensáveis O TERRORISMO PURISTA
para provar a existência de um sistema lingüístico di
ferente do do português europeu, o que, a rigor, jus Pelos motivos mencionados, compreende-se que
tificaria uma língua brasileira. Mas nos apressamos só no século passado começasse, no Brasil e nas re
em esclarecer que, se o Movimento de 1922 não nos públicas hispano-americanas, a rebeldia consciente
deu — nem nos podia dar — uma "língua brasileira", contra os dogmas puristas.
êle incitou os nossos escritores a concederem primazia O purismo português, como o espanhol, surgiu
absoluta aos temas essencialmente brasileiros, com no século XVIII, "em momentos de decadência, e poi
suas formas culturais próprias, e a enunciarem de influxo francês" 10. A própria palavra purista não pas
maneira adequada esses temas, ou seja, a preferirem sava de um galicismo. que se introduzira sorrateira
sempre palavras e construções vivas do português do mente em nossa língua, mas que, ainda em 1858, o
Brasil a outras, mortas e frias, armazenadas nos di venezuelano Miguel Carmona considerava, pela ori
cionários e nos compêndios gramaticais. Utilização gem, "palabra corrompida"41 no espanhol.
particular de algumas das múltiplas possibilidades da Transplantado para a América, com sua elite ha
língua, escolha das formas afetivas mais ajustadas ao bituada à imitação lingüística e literária, o insôsso
gosto e ao pensamento de cada um, ao meio em que casticismo peninsular haveria de empobrecer-se mais
vive e ao ideal artístico desse meio, formas por vezes e mais (se é possível o depauperamento da indigên-
em flagrante contraste com o ensino das gramáticas, cia), e resumir-se a uma postura de passividade servi)
mas legítimas, obedientes a normas que correspondem a um vocabulário mumificado e a arbitrárias regra;

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