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Trabalho Final Historiografia da literatura brasileira

Maria Clara Alves Gonçalves

A historiografia da literatura brasileira começa com a invasão portuguesa em


terras ocupadas por povos que viviam plenamente sua cultura, suas crenças, suas
histórias e suas diversas maneiras de se relacionar entre si e também com o
ambiente no qual estavam intrinsecamente conectados. Junto às caravelas
portuguesas, atraca, também, uma cosmovisão completamente destoante daquela
ali predominante. A exemplo disso, nota-se, na Carta de Pero Vaz de Caminha, as
primeiras impressões desses viajantes sobre esse território estrangeiro, e fica claro
o caráter extrativista e colonizador desse olhar. Esses invasores se viam (e ainda se
veem) como superiores, dentro dos diversos motivos dessa suposta superioridade
podemos citar a cultura escrita. Os povos originários do brasil foram taxados como
ágrafos e, a partir disso, um olhar de extrema inferioridade sobre eles se instaurou.
Todavia, eles já vinham construindo suas histórias desde muito antes de 1500, eles
possuíam língua própria e suas histórias estavam impressas sobre seus corpos e se
repercutiam através da tradição oral. Não estavam vazios, não eram incultos, e nem
mesmo necessitados de salvação.

Conforme a colonização foi avançando e, portanto, o aumento da imigração


de portugueses e do tráfico negreiro africano, o choque entre as culturas aqui
enraizadas, a cultura africana e a cultura europeia foi se dando de forma cada vez
mais intensa. De acordo com Silvio Romero, o encontro dessas raças resultaria
numa miscigenação cujo objetivo final seria o embranquecimento, resultando no
mestiço. Este seria uma sub-raça propriamente brasileira, uma consequência da
mistura dessas três raças. Portanto, o branco, como num movimento antropofágico,
absorveria elementos das outras culturas que lhe servissem, e defecaria todo o
resto que julgasse desnecessário. Pode-se observar uma certa semelhança desse
movimento com um ritual realizado por povos indígenas, no qual praticavam
canibalismo em seus prisioneiros de guerra, acreditando absorverem as qualidades
daquele guerreiro. Enquanto os indígenas foram julgados primitivos e selvagens, o
europeu permaneceu ocupando o lugar de salvador e o lugar do intelectual superior,
tendendo a prevalecer sobre outras culturas. Como se atesta nas palavras de
Romero, “A raça primitiva e selvagem está condenada a um irremediável
desaparecimento.”. Enfim, o canibalismo europeu, mais conhecido como
eurocentrismo.

Outro aspecto marcante na história da literatura brasileira, foi a forte


obsessão pela ideia de nacionalismo e o que seria original do Brasil. Essa ideia de
originalidade, de acordo com José Veríssimo, vista como algo impossível de se
concretizar nessa terra colonizada já que tudo criado nela, sofreu, inicialmente, forte
influência de Portugal, gerando em nós uma espécie de vazio. Isso marca uma forte
persistência numa visão super idealizada da metrópole como um exemplo a ser
copiado, como uma terra detentora da melhor cultura. Quando Veríssimo chama a
literatura de Portugal como literatura mãe e ao mesmo tempo diminui o que é
produzido pela literatura filha no Brasil, está sendo extremamente contraditório.
Como se não pudéssemos ter uma literatura própria por não termos uma língua
própria, como se fossemos viver num débito eterno a Portugal e tudo que fosse aqui
produzido até pudesse receber o nome de brasileiro, como designação regional,
mas pela inspiração, pelo espírito e pelo sentimento seria eternamente português.

Na verdade, o Brasil seria um filho roubado, aqui já existiam raízes, muitas


árvores e muitos frutos. O Brasil já tinha mãe e já tinha literatura, literatura essa
invisível aos olhos portugueses. Então, ao contrário do que José Veríssimo diz
sobre a literatura brasileira ser um ramo da portuguesa, ser defeituosa, falha, estar
fadada a servir servilmente o estrangeiro e sem originalidade de pensamento, o que
houve de fato foi uma tentativa de apagamento de tudo que já existia aqui. Os
enxertos tragos de Portugal podem ter roubado o nosso cenário natural por um
longo período de tempo, mas, aos poucos, conforme tomamos consciência daquilo
que não nos serve, podamos galhos impostos violentamente, permitindo que nossas
próprias flores voltem a florescer.

Por exemplo, nas narrativas indígenas a exaltação à floresta e à mãe terra já


marcavam forte presença no pensamento desses povos. Entretanto, os escritores
que foram se estabelecendo nas terras brasileiras chegaram tardiamente nesse
olhar de admiração. E esse olhar não era puro como o olhar dos nativos, estava
impregnado de um pensamento colonizador, romantizando a natureza, tornando-a
elemento exótico, uma simples riqueza literária, uma vantagem que teria nos
colocado a frente de Portugal nessa corrida de produções escritas.
“São poucos para tão fecundo manancial, mas são sufíicientes para provar até onde pode
chegar o arrojo daquella poesia, e mostrar em que consiste essa maravilhosa fonte de
inspirações americanas, que para o futuro deverão forínar uma inexcedivel litteratura.”
(carta sobre lit brasilica pag 3)

Seguindo essa linha de pensamento, o mais importante era encontrarmos


nossa originalidade, era emanciparmo-nos literariamente, era criar uma
nacionalidade que se propagasse em belas produções literárias. Como um filho
deserdado que buscaria eternamente a aprovação e o orgulho de uma mãe que
nunca foi sua. Logo, a ideia discutida por Araripe Júnior de “sentir o poder de
inspiração e criação que a natureza pode dar”, não é nenhuma novidade. Nossa
natureza é e sempre foi nossa maior riqueza, os índios já sabiam disso. Percebe-se,
então, que o verdadeiro movimento para encontrar a tão aclamada nacionalidade
seria resgatar tudo de indígena que tentaram destruir, tudo que já respirava
vividamente nos ares dessa terra antes dos portugueses chegarem.

Em Portugal a escrita era vista como uma entidade separada talvez, daquele
que escreve e daquele povo que vive junto exercendo determinada cultura. Já na
cosmovisão indígena, as histórias tinham um valor muito maior do que
simplesmente demarcar o amor por essa ideia de nação, pode-se entender também
como uma exaltação pelo nome que se dá a essa nação, como uma forma de
diferenciar-se, e o tamanho do poder relacionado a ela. A contação de histórias era
um momento de conexão entre os mais velhos e os mais novos, levando-os a sentir
um senso de pertencimento e uma presença inimaginável quando comparamos com
a experiência de solidão de quem lê um livro.

“Os escritos indígenas existem para esse fim, deixar aos novos uma continuidade de
legado. Existem para que lembrem que a cultura é um tesouro que não se pode deixar roubar
ou perder”

Escritores indígenas encontraram na expressão literária escrita uma forma de


reviver, resgatar e perpetuar o que foi ignorado e alvo de apagamento desde o início
da colonização. Nas suas produções encontramos uma composição multimodal, ou
seja, a leitura da palavra interage com a leitura das ilustrações, com a percepção de
desenhos geométricos, de elementos rítmicos e performáticos. O corpo está
intrinsecamente ligado ao ato de contar uma história e também de ouvir uma
história, os sentidos como visão e audição são vividamente explorados. Dentro
desse universo, a relação entre o autor (contador de histórias) e o leitor (ouvinte) é
essencial para que se estabeleça uma conexão forte com aquele enredo e as
pessoas ali envolvidas. Conexão essa que não se estabelece na maioria das
narrativas provenientes da cultura ocidental.

A cultura indígena possui muitas riquezas e hoje essas alteridades estão


recebendo um olhar diferente daquele primeiro olhar colonizador, elas estão sendo
valoradas, elencadas como um diferencial e referência da nossa nacionalidade.
Percebe-se uma grande importância na promoção da literatura indígena para o
conhecimento da pluralidade cultural do país, promovendo a liberdade e igualdade
de expressão que há muito havia sido negada. Dessa forma, torna-se possível
combater um discurso antes predominante a respeito do desaparecimento dos
povos indígenas que havia sido repassado nas escolas por décadas para as
crianças. Enaltecendo sempre a cultura portuguesa e a colonização como algo
necessário.

Como disse Ailton Krenak, o homem branco se viu como um iluminado,


dotado da sabedoria necessária para viver nesse mundo da forma correta, enquanto
tudo que estivesse fora dessa luz, uma escuridão, fosse algo perdido a espera de
sua salvação. A desconstrução dessa narrativa com a chegada de indígenas em
lugares antes não ocupados por eles, permitiu que a história fosse finalmente
contato sob a perspectiva daqueles que viviam nessa terra estrangeira quando as
caravelas de Cabral atracaram nesse solo.

É importante ressaltar também outra característica interessantíssima da


literatura indígena que é a atemporalidade e mutabilidade. A concepção de
passado, presente e futuro, marcante na visão ocidental, é diferente na cosmovisão
indígena, já que essas histórias estão vivas no imaginário do povo e estão em
constante transformação. No momento em que são contadas elas estão presentes,
torna-se, portanto, uma literatura elástica, sujeita a mudanças de acordo com o
contator que as conta, com o contexto históricos e com todo o cenário que pode
influenciar na contação daquela história. O processo narrativo da tradição oral está
relacionado à repetição e como resultado dessas repetições temos a reinvenção. A
literatura vira uma cadeia de vozes e histórias mutáveis, nada está preso a um livro,
ela depende das pessoas que contam e as vivenciam.

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