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19* TEXTOS DO BRASIL
TEXTOS DO BRASIL CULTURAS INDÍGENAS 19*
prefácio
Uma das primeiras lições que qualquer criança brasileira apren-
de nas aulas de História é que a sociedade brasileira foi formada
pela mistura de três raças: o branco, o negro e o índio. Este am-
plo reconhecimento da ancestralidade indígena, infelizmente,
não implica proporcional conhecimento da riqueza cultural
dos povos indígenas e de sua transversal influência no que hoje
reconhecemos como cultura brasileira.
Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
no Brasil vivem mais de 800 mil índigenas. Eles estão distribu-
ídos entre 683 Terras Indígenas e algumas áreas urbanas. Há
também referências a 77 grupos indígenas não contatados,
das quais 30 foram confirmadas. Estima-se que hoje, no Brasil,
existam cerca de 180 línguas indígenas – número que exclui
aquelas faladas pelos índios isolados, cujas línguas ainda não
puderam ser estudadas e conhecidas. A riqueza das culturas
indígenas no Brasil é enorme.
Com a presente publicação, o Ministério das Relações Exte-
riores, em parceria com a FUNAI, pretende celebrar a riqueza
cultural dos povos indígenas do Brasil. Não se tem qualquer
pretensão de exaurir o tema, mas apenas de dar a conhecer, em
especial ao leitor estrangeiro, aspectos pontuais das culturas
indígenas de nosso país e de sua herança na cultura brasileira.
O viés escolhido para a publicação é cultural, mais que an-
tropológico. Alguns artigos abordam aspectos históricos, como
os indígenas na ótica dos primeiros jesuítas ou a emocionante
saga dos irmãos Villas Boas. Outros apresentam aspectos das
culturas indígenas em si, como sua arte e sua arquitetura. Arti-
gos como o dedicado ao projeto Vídeo nas Aldeias ou à experi-
ência literária em terras indígenas exemplificam a possibilidade
de que o contato com elementos estranhos à cultura indígena
possa, não conspurcar esta cultura, mas ajudar a preservá-la. A
publicação apresenta também artigos que analisam aspectos
da ampla influência indígena na cultura brasileira, e como
os índios foram – e são – percebidos por esta mesma cultura.
A herança indígena é mais um traço cultural a irmanar o
Brasil às demais nações sul-americanas. Em maior ou menor
proporção, a identidade nacional de todos os países da América
do Sul foi moldada também por sua herança indígena. O leitor
sul-americano certamente reconhecerá traços comuns entre
os indígenas brasileiros e os dos países vizinhos. Conhecer a
cultura indígena, na América do Sul, é entender a si mesmo e
sua ancestralidade. É nessa jornada que os leitores são convi-
dados a embarcar.
06 Os índios na ótica dos
primeiros Jesuítas
Filipe Eduardo Moreau
116 90
O Brasil e a sua Todo dia era dia de índio
culinária indígena representações de indígenas
Mártin César Tempass em letras de canções brasileiras
Lucia Maria de Assunção Barbosa & Fernanda Tonelli
74 Pindorama modernista
influência indígena no Art Déco brasileiro
Márcio Alves Roiter
150
A saga dos irmãos
Villas BoAS
Um relato em imagens 130 Cenário contemporâneo
da educação escolar
indígena no Brasil
Gersem Baniwa
índios tupiniquins do sul da Bahia, com sua intervenção europeia, as primeiras atividades
nudez, beleza e inocência edênica vistas com econômicas e o conflito das civilizações. Tudo
perplexidade e encantamento: teriam todos isso mostra que o vínculo estabelecido entre
“[...] bons rostos e bons narizes, bem feitos... os povos nativos (de uma terra já habitada e,
bons corpos... tão limpos, e tão gordos e tão portanto, descoberta) e seus invasores euro-
formosos, que não pode mais ser... tão rijos e peus – cada qual com conhecimentos e cos-
tão nédios... todos tão dispostos, tão bem feitos tumes desenvolvidos de modo independente
e galantes com suas tinturas.” por milhares de anos – é o principal evento de
A descrição das mulheres, também deslum- nossa formação.
brantes, chega a sugerir fantasias sensuais nos Os documentos produzidos na época, dando
portugueses: “[...] ali andavam entre eles três início ao nosso processo histórico, possuem um
ou quatro moças, bem moças e bem gentis... alto grau do que a antropologia moderna cha-
e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e ma de “etnocentrismo”, isto é, de descaso pela
tão limpas das cabeleiras que, de nós a muito diferença “cultural” (também esta uma palavra
bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergo- moderna, de raiz romana, mas que adquiriu sig-
nha”. Foi muito observada “[...] uma daquelas nificado atual no Iluminismo) e complexidade
moças... tão bem feita e tão redonda, e sua ver- dos costumes alheios. No Brasil, especialmente,
gonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a são raros os textos portugueses (algumas pas-
muitas mulheres em nossa terra, vendo-lhe tais sagens em Fernão Cardim e Francisco Suarez)
feições, fizera vergonha, por não terem a sua em que se explora a tradição oral e a cultura
como a dela”. indígena (ao contrário do que ocorreu no Mé-
Destaca-se ainda em Caminha (como antes xico, por exemplo, com o levantamento feito
em Colombo, depois em Vespúcio, Léry e mes- junto aos índios pelo franciscano Bernardino
mo Gândavo) o aspecto luminoso dos índios. de Sahagún).
Essa admiração desaparece nas épocas seguin- Em termos literários, destacam-se, na cha-
tes, quando eles deixam de ser novidade e são mada “literatura quinhentista” produzida no
observados mais pela selvageria e inutilidade, Brasil, dois padres jesuítas, Manoel da Nóbre-
seja como mão de obra escrava (substituindo os ga e José de Anchieta, os primeiros a escrever
chamados “resgates”, troca de alguns produtos obras de ficção. A primeira delas, o Diálogo do
por matéria-prima e trabalho), seja para alian- Padre Nóbrega sobre a Conversão do Gentio, foi
ças militares, seja na formação de um rebanho escrito entre 1556-7, pouco depois da fundação
cristão (caso em que a comparação com animais de Salvador, primeira sede administrativa da
era usual e não exclusiva dos índios; mas já na Colônia. Com Anchieta, foi escrita toda uma
carta de Caminha eles estão comparados a aves coleção de poesias e autos (as primeiras peças
coloridas e animais de carga). encenadas na América portuguesa), tendo
Como não poderia deixar de ser, a nova como principal referência os povos recém-
2 2. Grupo de índios kuikuru no interior de casa indígena. Foto Acervo Museu do Índio.
3. Grupo de índias kuikuru preparando farinha de mandioca. Foto Acervo Museu do Índio.
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E 10
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E 9
PERNAMBUCO A 10
E 8
N 2
E 7
BAHIA A 1, 5, 8, 10
N 1, 3, 5, 6
E 6
E 5
E 4
RIO DE JANEIRO A 10, 11
E 2
N 7, 10, 11
YPEROIG A 7
E 1 N 9
SÃO VICENTE A 2, 4, 5, 6, 7, 9
N 4, 7, 8, 9, 10
PIRATININGA A 3, 5, 6
N 7, 10
N | Nóbrega A | Anchieta
1 [1549] Chega à Bahia com Tomé de Souza e os padres L. 1 [1553] Chega à Bahia com Duarte da Costa e Luiz
Nunes, J. A. Navarro, A. Pires, V. Rodrigues, D. Jácome. da Grã.
2 [1551] Vai para Pernambuco com A. Pires. 2 [1554] Chega a São Vicente com L. Nunes (levan-
do a Nóbrega o título de Provincial do Brasil, dado
3 [1552] Volta à Bahia. por Loyola).
4 [1553] Vai a São Vicente com Tomé de Souza. 3 [1554] Vai a Piratininga fundar o Colégio de São Paulo,
a mando de Nóbrega (duas viagens). 27
5 [1556] Volta à Bahia com Anchieta.
4 [1555] Volta a São Vicente.
6 [1558] Acompanha Mem de Sá em guerras na Bahia (em
1559, doente, passa o cargo de Provincial a Luiz da Grã). 5 [1556] Vai e volta de Piratininga, tem rápida passagem
pela Bahia, com Nóbrega, voltando a São Vicente.
7 [1560] Vai com Mem de Sá ao Rio de Janeiro (em guerra
aos franceses) seguinda para S. Vicente e Piratininga. 6 [1557] Vai e volta de Piratininga.
11 [1567] Vai ao Rio de Janeiro para fundar o Colégio e 10 [1578] Vai à Bahia, recebendo a patente de Provincial
ser seu Superior, a convite de Mem de Sá. Passa lá a do Brasil (até 1585, viaja por Pernambuco, Bahia, Es-
velhice, vindo a falecer em 1570. pírito Santo e Rio de Janeiro, incentivando núcleos
de ensino).
1 Carijó (Guarani) 6 Aimoré (“Tapuia”) 12 Vai ao Espírito Sando, onde é Superior no Colégio de
Reritiba (vindo a falecer em 1597).
2 Tupiniquim (Tupi) 7 Tupinambá (Tupi)
europeu sinal de tragédia. Florestan Fernan- tecnológico que tinham, estariam condenadas
des mostra que, principalmente para os tupis à dominação, porque mesmo as que eram consi-
da costa, o contato foi letal: expulsos de seu deradas avançadas, como a inca e asteca, foram
habitat natural (litoral e regiões mais férteis igualmente massacradas. É difícil julgar o papel
dos atuais estados do Rio de Janeiro e Bahia), da Companhia de Jesus: quis veementemente
eles fizeram migrações cada vez maiores, com proteger os índios e integrá-los honradamen-
alguns chegando ao Maranhão e Pará, onde te à civilização dominadora (seriam aprovei-
foram fixados com outros grupos; com novas tados principalmente no trabalho agrícola),
perseguições, muitos fugiram para a Amazônia. mas obrigou-os a largar costumes e rituais à
Florestan entende que a catequização não era força, tornando-os aculturados e vulneráveis
mais que a submissão pacífica, objetivo não ao massacre.
declarado de Nóbrega e Anchieta. Os jesuítas A quase extinção dos índios foi causada, ao
só conseguiram a simpatia de alguns grupos, lado de massacres e doenças, pelo fenômeno
enfrentando de outros a guerra ou permitindo que ainda marca os grupos sobreviventes: a
a fuga (com as tribos de menor contato sobre- aculturação. Já no século XVI ela tirava a au-
vivendo por mais tempo). Segundo o sociólogo, tonomia dos povos indígenas, deixando-os vul-
o aldeamento forçado, com a proibição de há- neráveis à matança e escravização. Os jesuítas,
bitos (como a poligamia, que contribuía para a mesmo que não tivessem consciência disso,
natalidade), fez reduzir radicalmente a popula- eram talvez os maiores responsáveis por essa
ção tupinambá, provocando fugas, migrações, aculturação: a tentativa de defender os índios
sofrimento e aniquilamento. da escravização fracassou justamente pela de-
Como considerações finais, lembramos sestruturação social causada por ela. Mas pro-
que as chamadas sociedades simples, encon- vavelmente os massacres seriam ainda maiores
tradas no Brasil, representavam milhares de sem a presença deles.
anos de experimentação e adaptação local. Não Nos registros deixados por Nóbrega e An-
se pode dizer que, pelo pouco conhecimento chieta, há passagens em que são ressaltadas as
33
qualidades dos índios: amor, amizade, virtudes contribuindo para o extermínio daqueles que
civilizadas. Mas a maior parte mostra o contrá- pretendia salvar. Partindo da conversão das al-
rio: bestialidade, falta de amor e de lealdade. mas, eles começaram a destruir a identidade
Com isso talvez possamos pensar que os re- cultural indígena. Ao dizer que os índios eram
ligiosos pensavam bem e mal dos índios. Há “página em branco” para receber a doutrina,
trechos em que os dois jesuítas bem poderiam negava-se (talvez como propaganda da ação) a
embasar a teoria romântica do “bom selvagem”, espiritualidade indígena, que existia e era tão
mostrando-se contentes com a sociabilidade válida quanto a cristã. Também pelo conceito
tradicional e a perfeita divisão dos alimen- de “guerra justa” contra grupos considerados
tos. Mas no geral, a parte luminosa foi pouco hostis ou que se recusavam a aceitar a doutrina,
lembrada (aparecendo apenas em observações os jesuítas preferiram apoiar a sujeição, que na
casuais), e a sombria reforçada a cada novo de- maioria das vezes se dava pelo massacre.
poimento, o que se adequava aos propósitos Na questão da “inconstância” e outras que
catequéticos: os índios não eram pensados com remetem a uma “índole” indígena, concorda-
existência própria, mas como figurantes de mos com Viveiros de Castro, que diz que os
uma história da cristianização humana, com os tupis eram “belicosos”, mas não “violentos”.
padres como grandes protagonistas (no que não Não há descrições de crueldade, de serem capa-
se diferem de outros contadores de história). zes de torturar e matar gratuitamente. O ritual
Transpondo para a realidade brasileira a aná- antropofágico seguia rigorosamente o costume
lise de Serge Gruzinski sobre fatos ocorridos milenar. Já os portugueses, como mostram de-
no México, mais do que confrontos militares, poimentos de Nóbrega e Anchieta, improvi-
sociais e econômicos, o aspecto mais descon- saram muitas coisas: explosões de índios em
certante da intervenção europeia foi talvez bombarda, queimas em fogueira, amplos exter-
a censura e interrupção de outros modos de mínios como os comandados por Mem de Sá.
apreender a realidade, da liberdade de crenças Vale lembrar que depois da primeira fase,
e costumes. Assim, o projeto jesuítico acabou já em época de conflito e opressão acentuada,
Anchieta foi capaz de abrir mão da pura teo- A análise de Lewis Hanke sobre o que
logia e fazer relatos histórico-sociais sem se ocorreu na América espanhola também ser-
referir aos índios como bestas, mas mostrando ve para o Brasil: em defesa de seus interes-
a condição humana dos que eram massacrados ses imperiais, a Coroa buscou prestígio e
(por exemplo, no texto Primeiros Aldeamentos investimentos, ou a conquista e os frutos da
na Baía, de 1584). Apenas não deixavam de ser guerra necessária. Como mentora da Igreja
os coadjuvantes dos padres e suas obras. Os no continente, quis também trazer os índios
dois jesuítas podem ser criticados: Nóbrega, no para a fé, o que requeria a paz. Esse duplo
começo, admirou e defendeu os índios, mas de- propósito gerou uma política indecisa, com
pois recomendou armas e sujeição. Antes fosse conflitos de ideias e homens. Para os índios,
a ordem inversa, principalmente pela desigual- a colocação em prática de qualquer dos dois
dade de forças (pois a Igreja se diz defensora propósitos era trágica, porque se pretendia
dos oprimidos). Nóbrega não reconhecia (como destruir a sua hierarquia de valores e inter-
34 fez Las Casas na América espanhola) o direito romper o desenvolvimento de suas culturas.
dos índios sobre as terras, que ele considerava Como mostra John M. Monteiro, o conflito
portuguesas. Mas isso é ao menos compensado das civilizações levou à hecatombe traduzi-
por um esforço em respeitar e conhecer melhor da pela queda brutal da população indígena,
a cultura indígena. dando margem a se acusar Portugal (e todas
O início do período colonial teve reflexos as nações expansionistas da época) de ter co-
em toda nossa história e cultura, talvez mais metido “etnocídio” premeditado.
que os outros séculos. Toda a empresa portu- Há ainda quem lembre a “grandeza dos des-
guesa dependeu basicamente da exploração cobrimentos” sem falar na extinção de povos
dos índios, que responderam, com os negros indígenas, e na expulsão de suas terras dos que
da zona açucareira, por quase toda a força de sobreviveram. Não apenas no Brasil, o homem
trabalho. Darcy Ribeiro mostra que dos índios, “civilizado” deu pouca importância aos que
melhor adaptados à terra, foram apropriados chamou de “primitivos”. Apesar das novas
os modos de produção de alimentos, de cons- políticas indigenistas, de boas iniciativas não
trução de casas e pequenas embarcações (as só atuais como de séculos atrás, ainda se vê,
“canoas”). Até a reprodução humana dos eu- 500 anos depois, índios e seus descendentes
ropeus (portugueses, holandeses, franceses) silenciosos, despidos dos valores espirituais
recorreu às índias. Principalmente a cultura e da crença no futuro. Índios indefesos, cir-
tupi, dominante no litoral, propiciou a base culando em meio ao caos, ainda estão sendo
material e cultural da Colônia. A horticultura, assassinados. Se no passado a civilização por-
a coleta de frutos e materiais, a caça, a pesca e tuguesa “crucificou” os índios, essa atrocidade
o conhecimento geral da terra foram absorvi- deve ser sempre lembrada, para no presente
dos pelos portugueses, gerando uma cultura apoiar iniciativas de proteção e integração de
necessariamente mestiça. todos à sociedade dominante.
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apreciados por seu exotismo e pela raridade questões geralmente ficam sem uma respos-
dos materiais constituintes e quando eram ta satisfatória porque os objetos produzidos
incorporados aos “gabinetes de curiosidades” pelos índios no Brasil, admirados nos centros
ladeavam materiais naturais os mais heterogê- urbanos, foram deslocados de seu contexto ori-
neos1. A coleta sistemática de objetos indígenas ginal para o interior de espaços governados por
remonta, entretanto, ao século XIX quando se critérios que permanecem exteriores aos de sua
disseminaram os museus de História Natural produção, uso e interpretação.
na Europa e nas Américas2. Inseridos no âmbito A dificuldade maior talvez resida no fato
dos museus, enquanto uma categoria especí- de que, nas cidades, as pessoas têm certo sen-
fica, a dos “objetos etnográficos”, refletem de timento de estranheza ao se depararem com
alguma forma a dinâmica da história do con- expressões artísticas que são formuladas segun-
tato entre os não índios e os índios, o que traz do outros critérios. Nesse confronto devem
à lembrança o fato de que diferentes culturas discernir a origem da valoração estética de um
indígenas foram submetidas a uma vasta em- artefato que se organiza através de materiais,
presa de supressão, as primeiras vítimas sendo de palavras, de usos, de hábitos, de mobilidades,
os habitantes da região costeira do Brasil. de contextos que são completamente diversos
Na atualidade, a contemplação de objetos dos habituais. Assim, quando levadas a admi-
indígenas ainda provoca reações diversas. Pode rar um artefato indígena, as pessoas se veem
interessar vivamente o público de museu3 ou diante da possibilidade de experimentar uma
ser alvo de uma observação distraída em uma situação que constitui o reverso de seu próprio
loja. Ocasionalmente, a desatenta atenção cede olhar, o qual habitualmente busca interpre-
lugar à irresistível atração por um objeto, tal- tar uma obra já qualificada e definida como
vez um pequeno cesto finamente entretecido e artística em sua própria sociedade 4 5. Entre-
esplendidamente ornamentado com meandros tanto, como o significado de uma obra não é
negros. O passo seguinte é penetrar o mistério redutível a sua aparência, pode deter diferen-
12. Boneca karajá (povo karajá – 1958). Foto Acervo Museu do Índio.
12
38 tes sentidos, de acordo com as circunstâncias sim sendo, é nitidamente reconhecível para os
e as relações que são estabelecidas entre ela Kuikuro9 a utilização particular dos utensílios
e o sujeito,6 seja na aldeia ou no museu. Isso domésticos, encontrados nas pesquisas arqueoló-
significa que a apreensão de um artefato ame- gicas recentemente efetuadas em seu território10.
ríndio pode comportar variados modos, quan- As práticas artísticas dos povos indígenas
do submetido a interpretações que não sejam possuem um caráter de integração com os di-
exclusivamente antropológicas. versos domínios culturais e uma natureza co-
As produções dos povos indígenas se apre- letiva, múltipla e transformativa. Trata-se de
sentam de diferentes formas, das mais efêmeras obras que integram redes de sentidos que são
pinturas corporais aos permanentes registros próprias a cada cultura, e que remetem a formas
rupestres, pintados ou gravados nos abrigos de ver o mundo, a sociedade, os humanos e os
ou afloramentos rochosos, correspondendo a não humanos11. Nas sociedades ameríndias a
uma prática representacional existente no país arte não representa, não é um simples signi-
desde o pleistoceno. Esses registros fornecem ficante, ela produz comunicação e motiva a
indicações sobre a importância7 sociocultural interação entre sujeitos os mais diversos, em
destas manifestações para as sociedades do pas- múltiplos campos da alteridade12.
sado, como depreendido pelos arqueólogos a Em outros termos, os métodos das artes
partir de pesquisas realizadas no sudeste do ameríndias e os sentimentos que as animam
Estado do Piauí e também na Amazônia. são inseparáveis, não se podendo compreendê-
Outros achados arqueológicos deram a co- -los como um encadeamento de formas, porém
nhecer a requintada e diversificada produção ce- como um mecanismo cognitivo que reflete a vi-
râmica como atestam as urnas da ilha de Marajó, são e o sentido que é conferido pelos membros
os vasos de cariátides da região de Santarém no da sociedade produtora. Esse é o motivo por-
Estado do Pará ou as figuras antropomorfas dos que, entre os povos indígenas, a arte serve, so-
rios Maracá e Cunani, encontradas no Estado bretudo para ordenar e definir o universo, uma
do Amapá. Essas e outras produções artísticas vez que é parte integrante da função cognitiva
ameríndias não mais se conectam às culturas global13. A complexidade dos sentidos dessas
que atualmente vivem na Amazônia8, entretan- artes nos conduz a indagar aos seus produtores
to o conservadorismo da manufatura cerâmica, e criadores as linhas mestras dos significados,
atestando uma contínua atividade artística, se as características principais e sua importância,
evidencia entre os povos do Alto Xingu. As- como se procurará fazer neste breve ensaio.
13. Braçadeira de folíolo (povo canela – 1952). Foto Acervo Museu do Índio. 13
14. Braçadeira de madeira (povo waiwái – 1994). Foto Acervo Museu do Índio.
14
39
40 Artes indígenas, outros olhares
O olhar que contempla os artefatos produzidos ocidental que os povos indígenas não formu-
e utilizados pelos povos indígenas não deve lem, em seus próprios termos, os critérios que
se deter apenas sobre a variabilidade das for- distinguem e produzem beleza15.
mas concretas e das matérias-primas, ou então Uma das principais distorções existentes é
sobre o requinte dos grafismos. É necessário relativa à identificação dessas artes, invaria-
mergulhar em estruturas profundas para co- velmente rotuladas na mídia e também nos
nhecer os significados que estão conectados a compêndios escolares com uma expressão no
diversos domínios da vida social e do conheci- singular: “arte indígena” ou por uma variante,
mento prático e metafísico. Portanto, sondar atualmente em voga: “arte nativa”. Entretanto,
essas produções significa percebê-las de modo essa qualificação não pode ser considerada en-
diverso, corrigindo inicialmente as distorções quanto um meio de identificação de uma arte
que ainda persistem e que têm origem na impe- que seja comum e geral aos índios, pois cada
riosa necessidade do pensamento ocidental em povo indígena desenvolve um estilo próprio que
avaliar as artes de outros povos a partir de seus expressa preocupações específicas e possui uma
próprios pressupostos, o que é agravado pelo representatividade única. A referência requer
profundo desconhecimento acerca das culturas sempre a pluralidade, a saber, “artes indígenas”
ameríndias e de sua complexa e diversificada ou “artes ameríndias” para uma correta identifi-
linguagem artística. cação dessas artes. Apesar das diferenças, um ar
A categoria “arte indígena” encerra uma no- familiar as perpassa16 o que é facilmente percep-
ção complexa e multiforme. Singular, é sobre- tível através das matérias-primas empregada e
tudo plural, integrada por diferentes saberes e de outros atributos que as tornam distinguíveis
formas expressivas, tais como a dança, o canto, tanto das criações desenvolvidas entre outros
a música, as narrativas míticas, os ornamentos, povos indígenas, norte e sul-americanos.
os artefatos, a arquitetura, a pintura corporal. O pressuposto de que as artes indígenas se
As manifestações artísticas que se expressam materializariam quase que exclusivamente pe-
através de artefatos e grafismos foram e ainda las formas transportáveis, os objetos, os quais
são concebidas e executadas em contextos que são o resultado de técnicas manufatureiras, tais
não compartilham das premissas ocidentais como cerâmica, entalhe, cestaria, plumária, te-
acerca da definição clássica de “arte”, enquanto celagem é, evidentemente, reducionista. Essa
um campo separado de outras esferas culturais concepção exclui as performances cênicas que
e da sua múltipla ocorrência14. Entretanto, não se expressam através de diferentes linguagens,
é porque inexistam conceitos e valores estéti- dança, música, canto, práticas xamânicas, nar-
cos que o campo das artes agrega na tradição rativas míticas, discursos cerimoniais17.
18 Consultar Vidal, 1992b, para uma descrição minuciosa desta arte.
19 Velthem, 2000b, 2003; Barcelos Neto, 2001.
20 Cf. Ladeira (1983) para uma descrição da casa e da aldeia Timbira, Velthem (2003), sobre a decoração dos beijus e Costa e Malhano (1986),
para detalhamento da casa xinguana.
21 VELTHEM, 1995.
22 Os Ka’apor falam uma língua do tronco Tupi-Guarani e vivem na divisa dos Estados do Pará e Maranhão.
23 Os Wayana são falantes de uma língua da família Carib e vivem na TI Parque do Tumucumaque e TI Paru d’Este, ao norte do Estado do Pará.
24 Wang Chang, 2011: 148.
42
outros artefatos cerimoniais, mas igualmente condicionando a escolha das espécies animais e
sobre os objetos que são empregados na vida vegetais utilizadas. Requer igualmente que os
cotidiana. Revela-se também em coisas miúdas, grafismos aplicados sejam adequados e que as
pessoais, como o brilho das penas introduzidas técnicas de confecção e o equilíbrio das formas
nos lóbulos das orelhas, o odor do urucu fres- sejam assegurados.
co da pintura corporal. Segundo a ótica dos Os artefatos, os adornos, as máscaras e ou-
Wayana esse aroma se reveste de um caráter tras categorias de objetos, sejam eles de argila,
especial, pois permite afastar os odores corpo- de penas, de fibras vegetais, confeccionados ou
rais que consideram desagradáveis e, portanto, usados por homens ou mulheres, em momentos
inapropriados no estabelecimento de relações da vida cotidiana ou nas complexas práticas
sociais harmoniosas. rituais, congregam múltiplas propriedades e
As concepções indígenas nem sempre va- referências. Caracterizam-se por serem com-
lorizam um artefato por suas características partilhadas, pois os elementos formais e esté-
intrínsecas. Amiúde, a apreciação estética está ticos, revelados por um artefato, possuem um
no próprio uso do objeto, sobretudo quando sentido e uma lógica que é compreendida pelo
ocorre uma funcionalidade restrita ou então es- artista e pelo grupo ao qual pertence.
tar conectada ao fato dele permitir intermediar Nas artes ameríndias é possível detectar-se
uma relação entre pessoas, através da permuta dois enfoques principais25. Assim, diversas cultu-
ou oferta. A qualidade estética também pode ras privilegiam conceitos e representações mais
ser encontrada na complexa adequação entre especificamente ligadas às relações estabelecidas
os elementos constitutivos, técnicos e mate- entre indivíduos e grupos em sociedade, ao pas-
riais, de um artefato. Neste caso, a valorização so que outras optam por representar entidades
demanda o uso de matérias-primas específicas, sobrenaturais e conceitos cosmológicos mais
15. Colar plaquetas retangulares de caramujo (povo kuikuru – 1997). Foto Acervo Museu do Índio.
15
43
A fabricação material constitui uma atividade gem vegetal, tais como palmeiras, cipós, arumã,
prenhe de significados para os povos amerín- cana-de-ubá, e também madeiras e fibras; assim
dios29. As habilidades técnicas representam como daquelas que provêm dos animais, como
uma questão de conhecimento que associa di- as penas e plumas dos pássaros e aves, as peles
ferentes formas de aquisição e produção que dos felinos, os pelos de macacos; e ainda dos
conjugam a visão, o gesto e outras faculdades. elementos minerais como argila e pigmentos
Os artefatos e muitos produtos materiais indí- coloridos. Conhecimentos acerca do local onde
genas provocam um importante movimento de esses materiais podem ser encontrados, a for-
“imersão do cotidiano na ordem cosmológica”30 ma correta de colhê-los e processá-los para que
em um plano onde são requeridas habilidades possam ser trabalhados. Conhecimentos sobre
do fazer. Representam elementos fundamen- gomas colantes, antiplásticos, tinturas vegetais
tais para a completude social do indivíduo e a e minerais, vernizes, e a confecção e uso dos
harmonia da vida comunitária, logrando efeti- instrumentos. Conhecimentos sobre os locais
var mudanças do estado de uma pessoa. e os momentos favoráveis para a atividade pro-
A confecção de artefatos é uma ativida- dutiva, sobre as práticas propícias ou evitáveis
de técnica, artística, simbólica, acessível aos que, em conjunto, contribuem para a excelên-
membros de determinada sociedade indígena. cia do resultado final. Conhecimentos sobre
Constitui um conhecimento que resulta de um as técnicas de manufatura próprias ao sexo e
aprendizado evolutivo, oriundo de uma trans- idade do artista e que compreendem as formas
missão social, sexualmente diferenciada, em de principiar, conformar o objeto e o arrematar.
que pais, tios, avós iniciam as crianças. Iniciado São igualmente requeridos conhecimentos
na infância, este conhecimento se amplia e se sobre o repertório gráfico e sua origem mítica,
aprofunda com a puberdade porque visa habili- assim como sobre a adequação e correta aplica-
tar os jovens ao casamento e a geração de filhos, ção dos padrões que são pintados, entretecidos
e vai adquirir refinamento e especialização na ou gravados. Conhecimentos sobre o uso e o ar-
idade adulta31. mazenamento dos adornos e demais artefatos.
A produção de moradias, artefatos, adereços Essa soma de conhecimentos, que se expande
representa uma expressão de conhecimento para além do elenco mencionado, confere às
que se exerce em muitos campos. É requeri- artes indígenas uma representatividade única,
do de homens e mulheres o conhecimento a que se destaca visual e conceitualmente no ma-
respeito das inúmeras matérias-primas de ori- terial, na forma e nas representações gráficas.
29 Esse aspecto foi abordado por Guss, 1989, Overing, 1991, 1999; Velthem, 1998, 2000 a, 2003, para os povos de língua Carib, enfatizando a
importância da sua articulação com o cotidiano.
30 Overing, 1999: 85.
31 Velthem, 2009: 215.
16 16. Panela vasiforme (povo tukúna – 1968). Foto Acervo Museu do Índio.
17 17. Panela gameliforme (povo marubo – 1994). Foto Acervo Museu do Índio.
18
18. Moringa (povo terena – 1955). Foto Acervo Museu do Índio.
45
Homens e mulheres, quando dedicados à que se prolonga nos rituais funerários ou de
confecção de objetos, consideram os contex- iniciação, os quais permitem intermediar a ação
tos de uso, cotidiano ou ritualizado, e outros da sociedade sobre os corpos de seus membros.
prerrequisitos, relacionados com a vida em Outros artefatos, como os cestos cargueiros,
sociedade, entre as quais estão as obrigações constituem verdadeiros painéis de identifica-
matrimoniais e familiares que os engajam em ção coletiva e individual dos indivíduos, como
dádivas e redes de troca. Através dos artefatos, ocorre entre os Munduruku, que vivem no sul
funcionais e estéticos, são garantidos, por um do Estado do Pará.
lado, a própria reprodução e manutenção física O cesto cargueiro itiu constitui um artefato
dos indivíduos, e por outro as relações sociais. imprescindível na vida cotidiana das mulheres
Enfim, são estabelecidas operações cosmoló- munduruku. Entretanto, este cesto preenche
gicas fundamentais que logram a afirmação e outras funções, uma vez que veicula informa-
renovação desta mesma sociedade. ções sobre o lugar que tanto o confeccionador
46 Um componente estético está geralmente como a usuária ocupam no seio dessa sociedade
presente nessa atividade produtiva e os arte- indígena. Todos os cestos itiu se assemelham,
fatos produzidos nas aldeias indígenas quase o que os diferencia são os grafismos aplicados
sempre se apresentam muito mais elaborados e as alças de sustentação. Uma vez concluído,
e embelezados do que seria necessário para o o artesão aplica grafismos na face externa do
cumprimento de suas funções utilitárias32. Essa cesto cargueiro, os quais identificam o clã ao
consideração justifica o tempo dispendido por qual pertence. A alça é confeccionada pela
inúmeros povos indígenas na aplicação de gra- usuária do artefato, com entrecasca de envira
fismos em utensílios de madeira e cerâmica, que de coloração esbranquiçada ou avermelhada,
logo após o primeiro uso, tendem a desaparecer. porque deve observar a tonalidade que permite
Forma e função estão sempre intimamente reconhecer a sua metade exogâmica, a saber,
relacionadas e assim a incorporação social e ipakpökánye “vermelho” e iritiánye “branco”.
consequente percepção visual de um objeto só Essa divisão dual atua na regulação dos
se concretizam quando o mesmo está termina- casamentos e estabelece as fundamentais ca-
do e, portanto, pode ser utilizado. A experiência racterísticas de reciprocidade, rivalidade e de
artística inclui um fazer e um usufruto diário outros aspectos antitéticos existentes entre os
que se revela até em coisas pouco perceptíveis, Munduruku. Este é o motivo porque o cesto
como a altamente apreciada coloração esbran- cargueiro de alça branca demonstra que a dona
quiçada das folhas fechadas de palmeira, em um do itiú pertence à metade “branca”, identifica-
cesto recém-concluído por um artesão wayana. ção esta herdada do pai e, paralelamente, que
A categoria dos objetos trançados possui seu marido e filhos são da metade “vermelha”
ampla distribuição geográfica e se apresenta, porque o grafismo pintado no mesmo cesto foi
entre os povos indígenas, segundo uma apre- executado pelo marido.
ciável variedade de técnicas de confecção, de O padrão aplicado ao cesto possui outros
elementos gráficos, de formas, que conectam significados, pois o seu significado se conecta
cada objeto a uma função específica ou a vários ao clã ao qual o artesão pertence, e que tanto
usos. Na vida da aldeia, os artefatos trançados pode ser a formiga saúva, como a árvore ucuúba
tanto desempenham corriqueiras funções, ou o jacaré e outros mais, de um repertório de
armazenando as miudezas de um indivíduo, 39 clãs33, relativos às duas metades exogâmicas.
como permitem que uma família possa trans- A identificação dos clãs não é aleatória, pois
portar e processar os alimentos necessários à uma particularidade, presente nas espécies
vida cotidiana. Muitos trançados, como cin- animais e vegetais descreve a coloração que os
tos, tipoias ou suportes para ornatos plumários identifica. Desta forma, o jacaré é um dos clãs
contribuem para a estética corporal e são deter- da metade “vermelha” porque ele tem olhos
minantes para a individualização sexual ou etá- dessa cor. Os clãs da metade “branca” seguem
ria, estabelecendo por este meio uma conexão a mesma associação, pois o peixe piaba, o algo-
19. Mácara xinguana capuz tecido (povo bakairi – 2003). Foto Acervo Museu do Índio.
19
doeiro e a seringueira, estão associados à cor
branca através de suas escamas, frutos e seiva34.
A tecnologia dos trançados não se exerce ex-
clusivamente na produção de artefatos de uso
cotidiano. Nos momentos rituais ela adquire
refinamento e permite a muitos povos indí-
genas como os Timbira, os Karajá, os Kayapo,
os Tapirapé, os Wayana, executarem máscaras
trançadas. Imponentes e impressionantes pelo
tamanho e a complexidade das formas e mate-
riais, as máscaras indígenas povoam o imagi-
nário ocidental, muito embora só possam ser
conhecidas totalmente inertes, em exposições
48 em museus dos centros urbanos. Contudo, uma
máscara comporta um aspecto referencial, o ser
que ela representa e adquire expressão somáti-
ca apenas no contexto da coreografia ritual35.
As complexas formas de uma máscara reve-
lam e também dissimulam o verdadeiro signifi-
cado da sua representação, relacionado com a
criatividade e com certa visão de mundo e das
coisas materiais. Atuando como a síntese de um
conjunto de traços ideológicos, a máscara parece
culturalmente carregada e atrai porque acolhe e
nutre paradoxos. A fascinação sentida despren-
de-se de uma múltipla presença que remete ao
aparente excesso contido neste artefato ritual,
que se materializa menos com o intuito de so-
lucionar o paradoxo da alteridade como coisa
humana, do que para apresentá-lo e confirmá-lo.
As características das máscaras estão liga-
das a premissas materiais, sensoriais, estéticas,
simbólicas, ontológicas, contidas no próprio
artefato ou a ele agregado, permitindo articular
a relação entre o indivíduo e o macrocosmo.
Portanto, uma máscara é também o receptá-
culo de uma multiplicidade de referentes que
requer a associação de percepções e refletivi-
dades para lhe conferir sentido e permitir a sua
completa apreensão36.
As máscaras indígenas diferenciam-se pela
técnica de fabricação, pela forma e sua orna-
mentação. Uma máscara pode cobrir apenas
uma parte do corpo do portador ou encobri-lo
completamente. De um modo geral, as másca-
ras são pintadas e portam grafismos, além de
serem frequentemente associadas a peças de
arte plumária. As máscaras adotam igualmen-
20. Faixa frontal emplumada (povo menkrangnoti – 1994). Foto Acervo Museu do Índio.
20
50
As serpentes pintadas e os grafismos
A vida indígena é essencialmente marcada por dido como sendo as suas pinturas corporais e,
uma intervenção social que objetiva imprimir a portanto, como suas inerentes e permanentes
marca cultural, a identidade, em pessoas e coi- criações. Segundo relata um conhecido mito,
sas, integrando a sua essência mesma. Revela-se, este ser antropofágico foi morto através das
sobretudo através daquilo que se convencionou artes xamânicas dos Wayana. Desta forma,
denominar de “decoração corporal”. Quando os grafismos (milikutom) puderam ser visuali-
desprovidos desse referencial, os indivíduos zados/ copiados e reproduzidos na cestaria43.
permanecem incompletos e despersonalizados Diferentemente, entre os Waujá e ainda segun-
culturalmente41. A elaboração decorativa que do a narrativa mítica, o repertório ornamental
se caracteriza por ser essencialmente gráfica consiste da pintura corporal elaborada por um
destina-se tanto aos humanos quanto aos ar- homem, referido como Arakoni que se transfor-
tefatos: cestos, remos, recipientes cerâmicos, ma em imensa serpente, após cometer incesto 51
bancos, cuias, cabaças, com variações formais com sua irmã44.
porque são executada através de diferentes Dispostas em um artefato ou sobre o corpo
técnicas. Utilizando pigmentos minerais e humano, as unidades gráficas se apresentam de
também vegetais, tais como urucu e jenipapo, diferentes formas e assim podem ser isoladas e
e tintas industriais, os padrões revelam o es- variadas, ou então se apresentarem uniformes,
tilo de cada povo indígena e, mesmo quando através da repetição ilimitada de um mesmo
ocorre coincidência formal, os significados são padrão. Desta forma, alguns elementos gráfi-
sempre diferenciados. cos parecem abstratos a um olhar desatento,
Os grafismos procuram comunicar outra or- mas constituem na realidade representações
dem que é ao mesmo tempo representativa e de seres pertencentes ao cosmos indígena. Os
conceitual e esta perspectiva contribui efetiva- exemplos são inúmeros, mas é suficiente lem-
mente para a compreensão do entrelaçamento brar que entre os índios xinguanos, o padrão
existente entre a arte, a estética e os diferentes triangular remete à representação do uluri45 e o
domínios sociais e cosmológicos das sociedades losangular é sempre interpretado como “peixe”,
indígenas. O eixo fundamental consiste na pro- muitas vezes especificado como sendo o peixe
priedade não humana do repertório decorati- merexu ou então o peixe-pacu, indicando a im-
vo, aspecto que é compartilhado por inúmeras portância do peixe na vida econômica, ritual e
sociedades como os Wayana, Tiriyó, Wajãpi, nas concepções sobrenaturais desses povos46.
Yekuana, Waiwai, Desano, Baniwa que vivem Os grafismos, que são múltiplos e diferencia-
na calha norte do Rio Amazonas, e também dos, representam não propriamente a figuração
os Waudjá, Asurini, Kaxinawa, e outros mais, de um ser humano, de um animal, vegetal ou de
estabelecidos ao sul desta região. um sobrenatural, mas sim de uma figura plásti-
Uma serpente sobrenatural é referida em ca das concepções subjacentes a cada um des-
muitos contextos como Cobra Grande e cons- ses elementos. A sua apreciação formal permite
titui uma presença recorrente em todo o Brasil enfatizar outro aspecto, a saber, a existência de
indígena. Integra ainda o folclore nordestino e elementos figurativos ou icônicos que se tradu-
amazônico e está presente na literatura e nas zem por formas de reconhecimento visual, de
artes plásticas brasileiras42. Para os povos do semelhança e que são geralmente constituídos
Norte Amazônico, a Cobra Grande constitui a pelos traços mais característicos e definidores
figura central dos mitos que relatam as estraté- do modelo, a saber, um objeto, um animal, um
gias de obtenção dos grafismos. Essa entidade sobrenatural, o qual nomeia o grafismo.
é conhecida entre os Wayana como Tuluperê, Para os Wayana, um padrão gráfico é sempre
e o repertório gráfico empregado é compreen- uma evocação referencial porque expressa várias
As sociedades indígenas no Brasil estão sendo não. Em outro registro, o termo “artesanato”
submetidas a um contexto de transformação foi apropriado por diferentes povos indígenas,
social acelerado, devido às atuais característi- dentre os quais os Waiãpi, os Wayana e Apa-
cas dos contatos. Os indivíduos produtores de rai, para designar os objetos que se destinam à
cestos, de máscaras e de outros artefatos tive- comercialização através de suas Associações e
ram de encontrar respostas para um seletivo da Artíndia (FUNAI).
número de pressões decorrentes deste quadro As artes indígenas são muitas vezes apre-
e que alteraram radicalmente o que produzem, ciadas com certo saudosismo e assim aquilata-
assim como as formas de avaliar e transacionar das como representando obras de artistas que
esses produtos. Essas pressões envolvem não são incapazes de operar mudanças ou como
somente a introdução de novas técnicas, de ma- sucedâneos empobrecidos de uma arte ou-
teriais, usos, como também o deslocamento dos trora pujante. A realidade que se descortina é
artefatos indígenas para fora do contexto da completamente diversa. Canções são criadas,
aldeia. As mudanças originam-se, em geral, da narrativas míticas são reelaboradas e os objetos
ampliação do mercado externo mercantilista, e artefatos podem apresentar novas formas,
que envolve, em alguns casos, colecionadores materiais e grafismos que são obtidos através
que demandam “objetos autênticos”, acarretan- do contato com outros grupos indígenas e nos
do transformações radicais neste comércio54. centros urbanos57. As recriações nas artes in-
O surgimento de oportunidades de mercado dígenas contribuem efetivamente para que os
atraiu muitos grupos indígenas, mas a comer- grupos produtores possam continuar a redefi-
cialização de seus produtos é quase sempre es- nir a sua própria cultura, assim como operam
tabelecida em termos desvantajosos, pois im- politicamente em prol de sua manutenção.
postos pelas conveniências deste mercado55 que A respeito desse aspecto, assinala-se que en-
invariavelmente os rotula enquanto “artesana- tre os povos indígenas alto xinguanos, como os
to” e, ao serem aquilatados valorativamente, é Mehinaku e Waujá, essas inovações se apre-
instituída uma distinção hierárquica entre arte sentam sobretudo na pintura corporal e nos
e artesanato. Além dos objetivos comerciais, cintos tecidos de miçangas, nos quais destaca-se
essa avaliação decorre do fato de as produções a reprodução da bandeira brasileira58. Um caso
artísticas ameríndias serem julgadas anônimas particularmente interessante é o de uma co-
e estarem ligadas a um modo de vida pretérito, roa produzida pelos Kayapó do rio Xingu com
atrasado56, um pressuposto frequentemente as- canudinhos plásticos de cores vivas, como se
sociado às produções artesanais, indígenas ou fosse uma variante da coroa radial (àkà), que é
54 Hugh-Jones, 1995, Velthem, 2005b. 57 Vidal e Silva, 1995, Vidal, 2001.
55 Ribeiro, 1983. 58 Coelho, 1993: 621
56 Barbosa, 1995: 135-136.
confeccionada com penas de papagaio ou arara. sendo submetidas, tanto na composição como
As coroas de canudinhos surgiram por ocasião na variação dos tipos de artefatos e grafismos62.
de um ritual, durante o qual as confeccionadas Nesse processo, os artistas indígenas refor-
com penas foram destruídas por um incêndio. mulam suas produções e as vias que norteiam
O sucesso obtido por essa inovação permitiu essas reformulações e incorporações são as
a seu inventor incorporá-la ao repertório de mais variadas. Podem estar representadas por
seus privilégios rituais, integrando a partir de criações individuais, a possibilidade de aquisi-
então o patrimônio do segmento residencial ção de novos materiais, a descoberta de outros
ao qual pertence59. tipos de grafismos, inclusive através de livros.
No passado, assim como no presente, as ar- Criações inovadoras são geralmente o fruto da
tes ameríndias sofreram particularmente com inventividade de artistas mais laboriosos que
a influência de missionários, católicos e pro- dominam com destreza os processos técnicos
testantes, que se empenharam na imposição e gráficos, assim como a capacidade de selecio-
54 de novas formas arquitetônicas, musicais, ico- narem, adaptarem e contextualizarem os ele-
nográficas, visando particularmente a estética mentos externos, os quais, ao se disseminarem,
corporal indígena, com a sistemática introdu- passam a integrar o repertório gráfico utilizado
ção do vestuário. Neste contexto, as produções pelo grupo63.
artísticas ameríndias buscam, na maioria das As manifestações artísticas indígenas, que
vezes redefinir conceitos estéticos e sociais pre- se expressam através de artefatos e grafismos,
existentes60. Como, não raro, as concepções que têm sido alvo no Brasil de algumas iniciativas
norteiam os atos criativos permanecem ativas, positivas, em um contexto mais amplo de pro-
as inovações procuram nelas se enraizar para teção dos patrimônios culturais indígenas. As
compartilhar de seus cânones, revestindo-se, ações afirmativas articulam-se ao conceito de
entretanto, de novos sentidos61. Estudos etno- patrimônio cultural imaterial cujo surgimento
lógicos demonstraram que é possível detectar é parte de um longo processo que envolve dife-
assim um processo de resistência, apesar das rentes países e instituições, preocupados com
transformações intensas a que essas artes estão a diversidade cultural. Paralelamente, órgãos
64 Velthem, 2010: 20. 66 Vidal e Silva, 1995: 374; Vidal, 2001:42.
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Arquitetura e culturas
indígenas no Brasil:
tecnologias apropriadas
José Afonso Botura Portocarrero
58
Introdução 59
Um dos maiores patrimônios brasileiros, ao notar que as habitações indígenas nem sem-
lado das riquezas naturais e do enorme poten- pre foram o objeto de estudo, porém é possí-
cial do seu povo, é ser um país multicultural. vel perceber nos documentos desses viajantes
Habitam aqui mais de 200 etnias indígenas, e estudiosos a reprodução do “desenho” das
falando línguas que pertencem a mais de 30 fa- habitações indígenas, o que possibilita carac-
mílias linguísticas diferentes. Em Mato Grosso, terizar o modo construtivo de algumas delas.
estado localizado no centro da América do Sul, É possível compreender como foram “inven-
vivem 40 grupos indígenas, cujas terras ocupam tadas” e se desenvolveram, transformando-se,
cerca de 11% do território do estado, em com- adaptando-se, constituindo-se com caracterís-
plexa relação com os segmentos da sociedade ticas próprias, podendo ser reconhecidas por
não indígena. algumas soluções de desenho ambiental espe-
Tamanha diversidade, como era de se es- cialmente adequadas, e que podem ser consi-
perar, abriga uma grande quantidade de bens deradas como raiz ou paradigma para projetos
materiais e imateriais, constituindo um rico de arquitetura contemporânea.
e pouco conhecido acervo de tecnologias e Embora não faça menção às casas indígenas,
desenhos, dentre esses o desenho peculiar de o etnógrafo Erland Nordenskiöld, no trabalho
suas casas. O desenho atual dessas moradias intitulado The American Indian as an Inventor
representa a ponta de uma cadeia evolutiva, (Nordenskiöld, 1929) já destacara a criatividade
da qual se conhece apenas – e parcialmente – a e as invenções dos índios da América do Sul, re-
versão existente depois que os não indígenas se lacionando uma grande quantidade de descober-
puseram em contato com aquelas sociedades. tas genuinamente a eles atribuídas, chamando
Vestígios mais anteriores são, de modo geral, atenção e valorizando o seu potencial de modo
frutos preliminares de pesquisas arqueológi- a permitir uma leitura que podemos hoje cha-
cas. As casas indígenas podem ser caracteriza- mar como design apropriado. Entre os cientistas,
das como o resultado de um longo período de pesquisadores, artistas, viajantes e aventureiros
manipulação do que chamamos de tecnologias mais conhecidos que estiveram entre os povos
apropriadas para condições de vida, que remon- indígenas no Brasil e que contribuíram com
tam ao holoceno. coragem, perseverança, audácia e observações
Em 500 anos de contato, muito de suas téc- em campo para que se pudesse reconhecer esse
nicas construtivas e de seus desenhos apropria- “DNA” criativo, podemos citar nomes como
dos se perderam sem que pudessem ter sido Hercule Florence e Aymé Adrien Taunay, Karl
avaliados. Entretanto, alguns permaneceram von den Steinen, Max Smith, Wied-Neuwied,
mais ou menos conhecidos e estão espalhados Rondon, Lévi-Strauss, Maybury Lewis, Luís de
pelo mundo, porque foram registrados e divul- Castro Faria e Curt Nimuendajú, entre vários
gados pelas expedições científicas estrangeiras outros, que nos legaram informações fundamen-
que atravessaram o interior do Brasil, principal- tais para o estudo das casas indígenas. A cons-
mente nos séculos XVIII e XIX. É interessante trução desse legado ao longo de muitos anos nos
24. Etnia yanomami – Festa da Pupunha. Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI.
24
permite dizer que o desenho indígena é fonte de atenção especial aos fatores ambientais. Para
contínua energia, sendo portador de uma raiz Alva, nesse sentido, o desenho constitui a mais
cultural paradigmática, base para uma matriz de suave das tecnologias.
desenho sustentável.1 Esse entendimento sobre o desenho parece
As tipologias construtivas indígenas são ser extremamente acertado quando entende-
passíveis de serem tratadas e incorporadas aos mos a representação das casas indígenas como
sistemas construtivos existentes na sociedade desenho cultural, da maneira utilizada por Car-
de modo mais amplo. A seleção tecnológica, na los Zibel Costa (1993) com a casa Guarani, para
concepção de Fernando de Tudela (1982, p. 30), quem esse desenho é carregado de signos da
visa à modificação e melhoria tanto das técni- cultura do povo que o produziu. Alva ainda
cas modernas, transferidas de outras realidades, assinala, a respeito, aspectos culturais e polí-
de outros países, quanto das técnicas empíricas ticos implícitos no conceito de tecnologias
e tradicionais, podendo gerar a aplicação de apropriadas, citando Darrow2 (apud ALVA,
60 novos conhecimentos mais apropriados a partir 1982, p. 3), que reconhece “que os diversos
de sua origem. Ocorre que, na maioria das ve- grupos culturais e geográficos possuem tec-
zes, as pessoas tendem a considerar a tecnologia nologias diferentes que são apropriadas às suas
como uma constante, ao invés de uma variável circunstâncias e que a autodeterminação tec-
com enorme potencial inovador, passível de nológica é essencial para a identidade cultural
receber mudanças. Uma postura conservado- e política”. A compreensão dessas implicações
ra impede ou obstaculiza o desenvolvimento culturais torna fundamental a percepção de
de investigações e de tecnologias apropriadas. Reeddy (1978, apud ALVA, 1982, p. 4)3, de que
Assim, um imenso acervo de técnicas que fo- a tecnologia (o desenho aqui entendido como
ram cuidadosamente selecionadas é deixado de tecnologia) é comparável a um material genético,
lado; produtos de longos processos de seleção como uma espécie de código da sociedade que
tecnológica, ao invés de recuperados em face o concebeu, que o desenvolveu, sendo um fator
das exigências contemporâneas, continuam importante para a preservação da identidade e
esquecidos – como é o caso do desenho das a autodeterminação de um povo.
casas indígenas. A seguir, como exemplos da complexidade
Alva (1982, p. 3) define o desenho como ati- cultural das sociedades indígenas e de como
vidade que utiliza um conjunto de elementos suas habitações estão inseridas em um universo
materiais, condições ambientais e de organiza- simbólico mais amplo, serão contemplados dois
ção para alcançar um comportamento prede- povos indígenas: os Bororo e os Paresi. Os pri-
terminado de um produto cujas características meiros são habitantes imemoriais das bordas do
foram previamente definidas, e chega a propor Pantanal e os Haliti (autodesignação do povo
o termo ecodesenho ou ecoplanejamento para Paresi) habitam o grande divisor das nascentes
estruturas arquitetônicas e urbanísticas com do Amazonas e do Paraguai.
1 Ao longo dos últimos anos, essa inspiração e essa energia têm favorecido a constituição de um núcleo de pesquisas na Universidade Fede-
ral de Mato Grosso (Núcleo Tecnoíndia), reunindo antropólogos, arquitetos e estudantes, em uma importante troca cultural com os próprios
índios, inclusive com participação do primeiro arquiteto indígena do Brasil, Jucimar Ypaikire, da etnia Bakairi, responsável pela confecção de
uma coleção original de maquetes, agregada ao acervo do projeto. Tal acervo tem sido progressivamente compreendido como um banco de
memória sobre as casas tradicionais, algumas já não construídas como moradias, devido à crescente influência da cultura e da sociedade não
indígena nas aldeias. Os outros membros do núcleo, que coordenam e orientam projetos, são as professoras arquitetas Dorcas Araújo e Yara
Galdino e a antropóloga Maria Fátima R. Machado, a quem agradeço pelas contribuições na elaboração deste ensaio.
2 DARROW, K.; PAM, R. Manual de Tecnologia Adecuada. Centro de Estúdios Econômicos y Sociales del Tercer Mundo. México (sem data).
3 REDDY A. K. Background and concept of Appropiate Technology. Documento apresentado em reunião sobre tecnologias apropriadas na
Índia em 1978.
A cosmologia e a casa Bororo: Bóe é-wa – aldeia Boe
Bái é a palavra do povo Bororo, ou Boe como na ordem contrária o seu interior: a metade dos
eles se autodenominam, para designar suas ca- homens Eceráe fica dentro da metade Tugarége
sas. Para se conhecer o Bái é preciso percorrer e vice-versa, como sugere o esquema gráfico da
um caminho que conduz a um significado mais aldeia, construído a partir da Enciclopédia e de
amplo do que aquele que apenas indica uma Renate Viertler (1976):
morada. Por esse percurso pode-se aproximar Na lateral do Bái mána gejéwu, face Oeste,
da casa Bororo. Desvendá-lo é tarefa que requer está o bororo – o pátio das cerimônias. Há um
atenção e prudência, porque se trata de terri- caminho em linha reta, perpendicular ao baíto,
tório cuja leitura está sujeita a um conjunto que liga o bororo ao aíje múga – lugar dos atores.
de determinantes gravadas em código edifi- Este lugar fica afastado, externo ao círculo das
cado na tradição Boe, inacessível ao visitante casas, constituindo-se numa clareira de aproxi-
menos atento. Aqui resumem-se os aspectos madamente 20 metros de diâmetro. É lá que os 61
considerados mais relevantes para efeito de in- homens preparam-se, fora das vistas das mulhe-
terpretação de espaço, deixando-se de abordar res, para os cerimoniais. O caminho que os une
as questões antropológicas de sua organização é chamado de aije rea, ou caminho dos espíritos.
social que, por outro lado, já foram objeto de Jon Cristopher Crocker, referindo-se ao de-
detalhados estudos de antropologia. senho das aldeias, diz que para os Bororo ela é
Quanto à sua origem, a aldeia remete à len- como um modelo ideal, uma planta moral, que
da da inundação geral, da qual sobreviveu um estabelece uma ordem normativa e que regula
único índio, Merìri Pòro. Este sobrevivente fica a sua sociedade. Segundo ele:
ilhado no cume de um morro4, e ali acende um
fogo, aquecendo pedras que passa a jogar nas As posições dos clãs no círculo da aldeia são
águas; o calor das pedras provoca a evaporação, localizadas com referência aos pontos cardeais
e faz com que as águas retornem ao seu nível determinados pelo curso do sol, de maneira que
normal. O índio então encontra um guaçuetê cada clã se encontra em relação geográfica de-
fêmea (cerva) e com ela procria. Os primeiros fi- finida com todos os outros. Essas posições refle-
lhos nascem com as características da mãe e são tem aspectos das relações normativas corretas
sacrificados. Os que passam a nascer semelhan- dos clãs inter se. Os Borôro consideram muito
tes ao pai sobrevivem e dão nova origem aos importante que as posições das casas em de-
Boe. Estes são dispostos em aldeias circulares, terminada aldeia correspondam tanto quanto
organizadas como antes da inundação5, realizando possível às indicadas pelo modelo, e entre as
uma espécie de refundação das suas aldeias. obrigações principais dos dois chefes rituais da
Estas aldeias, construídas ao modo tradicio- aldeia está a de determinar a localização das
nal, circunscrevem-se num diâmetro de apro- cabanas toda vez que a aldeia se desloca. Na
ximadamente 100 metros, em terreno cuja to- verdade, os clãs que em princípio fornecem estes
pografia está suavemente inclinada na direção chefes são conhecidos pelo titulo de ‘Planejado-
Oeste, do lado em que também deverá estar res da Aldeia’ (Bado Jebage).6
localizado o curso d’água. A construção come-
ça, segundo a lenda, pelo Bái mána gejéwu ou Como também observou Sylvia Caiu-
baìto, forma comum usada pelos Bororo para by Novaes:
designar a casa dos homens, que determina o
centro do círculo e que tem seu eixo maior na a aldeia Bororo tem, nas casas que se situam
orientação Norte/ Sul. Seu eixo menor Leste/ ao redor do círculo, a representação das várias
Oeste divide a aldeia em duas metades exóga- linhagens que compõem esta sociedade. É assim
mas: Eceráe e Tugarége, mas que também divide uma espécie de ‘mapa’ da sociedade Bororo7.
4 Toroari, morro do gavião Toroa, está localizado nas cercanias de Cuiabá, sendo conhecido como Morro de Sto. Antônio; faz parte da heráldica
mato-grossense, figurando nos brasões do Estado de Mato Grosso e da cidade de Cuiabá.
5 ALBISETTI, Venturelli. Enciclopédia Bororo. V. 3, p. 431.
6 CROCKER, Jon Christopher. Reciprocidade e Hierarquia entre os Bororo Orientais. In Leituras de Etnologia Brasileira. 1976, p. 167.
7 NOVAES, Sylvia Caiuby. (Org.) As casas na organização do espaço social Bororo. In Habitações Indígenas. 1983, p. 75.
62
Portanto, a disposição das moradas no Bóe enquanto solteiro morava no baíto. A criança
e-wá, ao redor do círculo, em torno do Bái mána pertence ao lado e ao clã de sua mãe e a cada
gejewú, possui uma marcação bem definida e clã pertence um conjunto de espécies naturais,
imutável. Cada casa representa um clã ou sub- animadas e inanimadas que configuram seu
clã, e por isso não poderia estar em outro pon- patrimônio de cantos, danças, enfeites, armas
to diferente daquele definido pelo “mapa” da e outros objetos, nomes pessoais e primazias
cosmologia Boe. A maioria dos autores que se sobre determinadas matérias-primas. A esse
dedicaram ao estudo dos Bororo demonstra conjunto denomina-se aroe ou iedaga-mage8.
que a espacialidade da aldeia é uma represen- No seu cotidiano, em suas festas e cerimônias,
tação vital para aquele povo. o caráter da divisão desenhada pela espacialida-
Sobre a separação principal dos partidos, de da aldeia regula o equilíbrio entre as partes,
Eceráe – Tugarége, é que está assentada toda a numa troca constante de energias. Este movi-
ordem de igualdade e complementaridade dos mento chamou a atenção de Claude Lévi-Strauss,
Boe. Cada metade representa quatro clãs, e cada que a descreveu comparando-a a um balé:
clã, por sua vez, três subclãs e a partir destes um
número variável de linhagens maternas. (...) em que duas metades da aldeia obrigam-se
Os funerais dos Eceráe são feitos pelos a viver e a respirar uma por meio da outra, tro-
Tugarége, e os destes por aqueles. Como são cando as mulheres, os bens e os serviços, em meio
exógamos, cada metade só pode casar-se com a uma fervorosa preocupação de reciprocidade,
membros da outra, regidos pelo princípio da casando seus filhos entre si, enterrando mutu-
matrilinearidade, isto é, o homem Bororo casa- amente seus mortos, garantindo uma à outra
do passa a morar na casa da mãe da sua mulher; que a vida é eterna, o mundo caridoso, e a so-
ciedade justa. Para comprovar essas verdades e respectivamente os setores que abrigam as ca-
manter essas convicções, seus sábios elaboraram sas, ou clãs, dos construtores da aldeia de cima –
uma cosmologia grandiosa; inscreveram-na na Baadojebage Cobugiwuge – e dos construtores da
planta de suas aldeias e na repartição das ha- aldeia de baixo – Baadojebage Cebegiwuge –, che-
bitações. As contradições em que esbarravam, fes tradicionais da aldeia. Situados entre eles,
enfrentaram-nas e reenfrentaram-nas, jamais os Kie – os antas – à esquerda dos Cebegiwuge,
aceitando uma posição a não ser para negá- e os Bokodori – os tatu-canastras –, a direita dos
-la em favor de outra, dividindo e separando Cobugiwuge. O outro lado do círculo, a metade
os grupos, associando-os e defrontando-os, Tugarege, possui as seguintes subdivisões: no
fazendo de toda a sua vida social e espiritu- extremo Leste, os Paiwoe – os bugios –, e a sua
al um brasão em que a simetria e a assimetria esquerda os Apiborege – os donos da palmei-
se equilibram, como nos elaborados desenhos ra acuri; no extremo Oeste do semicírculo, os
com que uma bela Cadiueu, mais obscuramen- Iwagududoge – os gralhas –, e a sua direita os
te torturada pela mesma preocupação, fere o Aroroe – os larvas10.
próprio rosto9. Portanto, como se pode “ver”, o que dá sen-
tido a suas vidas está desenhado no espaço da
A divisão do círculo é feita em duas metades. aldeia e esse desenho está inscrito numa cos-
Essas metades, por sua vez, são subdivididas em mologia da qual eles têm a chave. Para se pene-
pequenos setores de terras, assinalados no solo, trar na casa é necessário passar antes por uma
onde são construídas as casas. construção intelectual e assim poderemos ler o
Nos extremos Leste e Oeste do semicírcu- texto dos Boe, aquilo que para nós está invisível,
lo, formado pelo lado ecerae, estão localizados e finalmente “enxergar” a casa.
A casa Paresí, háti, aparece pela primeira vez É interessante a observação de Rondon so-
descrita na “breve notícia que dá o capitão An- bre o desenho, no chão, que os Paresí fazem
tonio Pires de Campos”, em 1723 (CAMPOS, quando iniciam a construção da háti, e como
1862, p. 437). Pires de Campos havia estado no chamou sua atenção as madeiras duras usada
território destes índios por bastante tempo em pelos índios como esteios e que foram adotadas
1718, e assim se referiu em seu relatório: pela Comissão como postes telegráficos. Os
povos indígenas não desenhavam suas casas e
Naquelas dilatadas chapadas habitam os Pare- sua execução era feita com base na memória e
cis, reino mui dilatado, e todas as águas correm tradição de seus artífices.
para o Norte. É esta gente em tanta quantidade, Vinte anos depois da passagem da Comis-
que se não podem numerar as suas povoações ou são Rondon, como ficaram conhecidas suas
64 aldeias, muitas vezes em um dia de marcha se expedições, o etnógrafo alemão Max Schmidt
lhe passam dez ou doze aldeias, e em cada uma apresenta um relato da hatí, baseado em suas
destas tem dez até trinta casas, e nestas casas se observações da viagem aos campos dos Pare-
acham algumas de 30 até 40 passos de largo, e sí em 1927, e publicadas posteriormente em
são redondas de feitio de um forno, mui altas e 1943 pela Revista de la Sociedad Cientifica
em cada uma destas casas agasalhará toda uma del Paraguay:
família; [...] (CAMPOS, 1862, p. 443).
Una tal casa consta de um tejado com dos ver-
No começo do século XX, no ano de 1907, tientes curvos, provisto cada uno de sus lados
Rondon esteve entre os Paresí, ou Arití, que de hastiál, de uma parte saliente, redonda, y
segundo ele conta era como aqueles índios se de una abertura muy baja que sierve de puer-
autodenominavam, anotando uma breve des- ta. Essas dos puertas fronteras no aumbram
crição da háti: el interior de la casa sino muy poco. La puer-
ta de una tal casa que yo medi no tênia más
Suas casas – (Hatí) – abrigam às vezes mais de 1,25 m. de alto por 0,60 m. de ancho. La
de 30 pessoas. casa fotografiada por mi em Uazírimi tenia
As redes – (Maká) – são armadas umas so- 12 m de largo, 7,5 m. de ancho y 5 m. de alto.
bre as outras. A do marido é sempre colocada Las fotografias que hizo Rondon de casas de
acima daquela que pertence à esposa. aldeas habitadas por Kachíniti – y Uaimaré-
Nas cabanas além das redes o mobiliário -Paressís muestran que la forma de las casas
é representado por tocos de madeira sobre os de los Kozárinis, descrita en lo que precede,
quais se sentam. Nunca se sentam sobre o solo; era la forma común de las casas de todas las
em falta de um toco desses põem-se de cócoras. parcialidades de los Paressís (SCHMIDT,
Para construir uma de suas grandes casas tra- 1943, p. 15-16).
çam no chão o contorno da futura habitação e fin-
cam 3 a 4 esteios feitos com as madeiras que deno- Como se pode notar pela leitura comparativa
minam Tonoêtô e Makúriceurê, as quais, segundo das duas descrições, a casa vista por Schmidt di-
afirmam, resistem muito às causas de destruição, fere daquela encontrada por Campos 209 anos
uma vez enterradas no solo. Foi mesmo por isso que antes, sendo uma de planta redonda e outra
as adotei para o mister de postes telegráficos. de planta ovalada. A casa Bakairi, ãtã, descrita
A cobertura dessas casas é feita com palha por Karl von den Steinen, também possuía uma
do sapé, as folhas de pacova, da mala-malá, e, construção redonda, o que pode sugerir uma
raramente do burity. possível ligação ancestral entre as duas.
Fazem com o sapé pequenos molhos muni- Autora contemporânea, a antropóloga Ro-
dos, cada um, de um pequeno gancho de madei- mana Costa, em sua dissertação de mestrado
ra; esta alça serve para prender o pequeno feixe apresentada no Museu Nacional em 1985, fez
aos caibros. Para impedir a invasão das águas a etnografia da casa Paresí, descrevendo-a com
todo o perímetro do chão da cabana é tomado medidas que muito se aproximam daquela vista
pela casca do Oné (RONDON, S.d, p. 35). por Schmidt:
65
25. Aldeia Parecis de Itiaçurê (Buracão). Expedição de 1907. (RONDON, s. d., prancha sem numeração).
25
Estas têm o formato elíptico, com duas portas estrutura mais leve de ripas que fazem a co-
nas extremidades: uma voltada para o nascen- bertura propriamente dita, onde irão se fixar
te e outra para o poente. Sua estrutura é de as palmas – de sapé, guariroba ou às vezes até
madeira, designada kwáre-kwáre (aroeira) de buriti – que farão a vedação da casa, forma-
e coberta por folhas de guariroba. Na aldeia tando a cobertura-parede que define o design
Igómoweké, as casas guardam uma distância de característico da casa.
42 metros, que corresponde ao comprimento do Conhecendo um pouco mais a háti, aquela
pátio da aldeia. A casa do chefe tem 12 metros primeira impressão, de aparente simplicidade,
de comprimento por 6 de largura e 3 de altura. vai sendo desconstruída quando se apreende
[...]. (COSTA, R., 1985, p. 116-117). quão adequado e funcional é o seu desenho. A
estrutura de kwáre-kwáre foi feita para durar,
Às descrições anteriores podem-se juntar os em contraste com seu revestimento que pode
levantamentos mais recentes, como os da pes- ser considerado um refil, descartável, trocado
66 quisa de campo do projeto Tecnoíndia, no ano em períodos que variam entre quatro até oito
de 2003. Uma informação interessante coleta- anos. Seu desenho inteligente é extremamente
da durante a pesquisa diz respeito ao piso das adequado e pode ser considerado ambiental-
casas, feitos com terra de formigueiro socada mente correto. Toda a matéria-prima utiliza-
com água, produzindo uma camada dura e lisa, da na construção foi selecionada para poder
embora permeável, o que facilita a limpeza e ser extraída da região do entorno da aldeia, e
mantém o piso com uma boa aparência. Dentre é biodegradável, sendo possível sua reposição
as casas das várias etnias pesquisadas, as háti são ao meio ambiente.11
das mais interessantes, com a solução da estru- Do ponto de vista do conforto ambiental, as
tura parede-cobertura bastante simplificada háti, assim como as demais habitações indíge-
pela disposição das ripas sobre varas diretamen- nas consideradas tradicionais, comportam-se
te, sem necessitar reforços adicionais, provavel- muito bem. Possuem pé-direito alto, são frescas
mente em função da relação pé-direito, largura, durante o dia e aconchegantes durante a noite.
comprimento ser extremamente equilibrada. As camadas de palha sobrepostas que formam o
Seus acessos estão localizados nos extremos da conjunto parede-cobertura são eficientes como
planta ovalada, em oposição às casas xinguanas, isolante térmico e apresentam alguma perme-
nas quais estes estão centralizados nas laterais abilidade ao ar, através de uma infinidade de
do sentido longitudinal. microfrestas resultantes do seu assentamento,
A primeira vista da háti é muito agradável. imperceptíveis a olho nu, resultando numa
Suas proporções parecem se enquadrar numa agradável sensação de conforto térmico pro-
fórmula de proporções que lhe conferem um porcionada pelo fluxo de ar constante e sutil,
aspecto plástico reconhecível e único. As háti como a permitir uma respiração natural para
pesquisadas possuíam planta ovalada, em ex- a casa. Além disso, possuem saídas apropriadas
tensões que variavam de 14 a 20 metros de com- para o ar quente na parte mais alta, na junção
primento por aproximadamente 6 a 9 metros das faces da cumeeira ou nos seus extremos.
de largura. O pé-direito no centro das casas A ausência de janelas evita a incidência da luz
pode chegar a medir até de 5,5 m. As háti, como solar no interior, contribuindo para manter a
a maioria das habitações indígenas, são cons- temperatura fresca. Durante a noite o calor do
truídas em dois estágios: primeiro a estrutura fogo é conservado e a temperatura interior fica
principal, constituída por palanques e traves mais agradável do que a exterior, geralmente
de kwáre-kwáre, ou Aroeira, como conhece- mais baixa pela proximidade do rio, do córrego,
mos esta madeira muito dura. Depois uma ou simplesmente do orvalho noturno.
11 Atualmente, em face das agressivas condições de ocupação de seu território pelas frentes de expansão da sociedade envolvente e do
agronegócio, os Paresí, como os demais povos indígenas no Brasil, têm encontrado dificuldades para extrair os materiais necessários à cons-
trução nas proximidades das suas aldeias, e por isso são obrigados a buscá-los em locais cada vez mais distantes.
67
8. Piso seco: chão batido, sem desníveis, man- habitavam na região do que hoje é o território
tido sempre limpo pela varrição; do estado de Mato Grosso.
9. Mobiliário mínimo: normalmente consti- Galhano e Pereira12 em reconhecido texto
tuído pelas redes, bancos e catres; os utensílios, citam Lucio Costa, para quem deveríamos apro-
enfeites e armas ficam pendurados ou presos veitar a experiência das casas tradicionais brasi-
nos varais das coberturas-paredes, e os alimen- leiras, “[...] encarando com simpatia coisas que
tos são depositados sobre os jiraus; sempre se desprezaram ou mesmo se procura-
10. Área de cocção integrada: o fogo para pre- ram encobrir, a oportunidade de servir-se delas
paro de alimentos é localizado geralmente na como material para novas pesquisas, e também
área central das casas; para que nós, arquitetos modernos, possamos
11. Penumbra interna: por possuírem apenas aproveitar a lição da sua experiência [...]”. De
duas aberturas como portas e não possuírem fato, as casas indígenas ainda se constituem
janelas convencionais, o ambiente interno está num acervo de grande potencial para estudos e
constantemente em penumbra; pesquisas a serem desenvolvidas e eventualmen-
A partir desses princípios, e entendendo o te apropriadas como referências para ocupação
desenho como tecnologia, é possível buscar racional dos espaços construídos do Centro-
suporte para inovação nos dias atuais, recupe- -Oeste brasileiro. Pés-direitos altos, exaustão
rando o valor das casas indígenas como bem térmica, sombra e ambientes integrados são
cultural ainda capaz de se refletir num design princípios ancestrais que podemos classificar
adequado às necessidades contemporâneas. Ao como de sustentabilidade e extremamente atu-
adotar uma postura de atenção para com as ais, que ajudam a prospectar o futuro. Numa
habitações indígenas procura-se intencional- outra dimensão, estes princípios construtivos
mente reatar uma ligação esquecida na história foram aliados a um design peculiar e competen-
das tecnologias, a lição pouco apreendida das te, e chegam até hoje emanando possibilidades e
antigas ou tradicionais casas dos povos que ligando o passado, o presente e o futuro.
12 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim. Construções Primitivas em Portugal. Lisboa: Publicações Dom
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73
Pindorama modernista
considerada como a primeira manifestação artística brasileira a rece-
ber unânime aplauso mundial. E sua trajetória na vida do país a coloca
como nosso primeiro item pop, extrapolando as salas de concerto.
A protofonia de “O Guarani” passou a fazer parte da memória
coletiva brasileira popular em 1935, quando é criada a emissão radiofô-
– influência indígena no
nica “Hora do Brasil”, em cuja abertura ecoa a música de Carlos Gomes,
num programa de uma hora de duração que ia ao ar de segunda-feira
a sábado, com noticiário oficial divulgado pelo DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda, a partir de 1937), em todas as estações de
31 32 31. Aquarela do artista gráfico carioca J. Carlos, década de 1920. Foto Beto Felicio. Coleção Carlos F. de Carvalho.
32. Edificio Itahy: Av. Nossa Senhora de Copacabana, 252. Projeto Arnaldo Gladosch, 1932, arte decorativa no pórtico e no hall por Pedro Correia
33
de Araújo. Foto Acervo Instituto Art Déco Brasil.
33. Torso de índio em cerâmica craquelée, do escultor Hildegardo Leão-Veloso. Petrópolis (RJ), década de 1930. Foto Nelson Monteiro.
A Arte Decorativa no Brasil ainda está no seu Indianismo, Indigenismo e o curioso “mata-
primeiro balbucio. Apesar dos variados motivos virgismo” – a partir de mata virgem, cunhado
que o artista pode colher nas lendas do nosso por Mario de Andrade numa carta a Tarsila do
país e nos deslumbramentos da nossa natureza, Amaral4 – são termos que tentam definir, antes
ainda preferimos a imitação cômoda e amá- de mais nada, um nacionalismo com todas as
vel da pacotilha estrangeira. Não costumamos letras. Esse nacionalismo será tratado, para-
olhar para o que temos à mão [...] Cumpre-nos, doxalmente à luz do Art Déco, estilo europeu,
agora, desde que ninguém ouse disputar-nos sobretudo francês, consagrado na Exposição
o título de campeões no preparo de maionese Internacional das Artes Decorativas e Indus-
arquitetônica, variar o menu com outro manjar triais Modernas de Paris, 19255.
mais discreto. Por que não aproveitam nossos A marca principal do Art Déco era a geo-
artistas os motivos ornamentais da fauna, flora, metrização de temas abstratos e figurativos,
e da riqueza da indumentária nacional? Ainda absorvendo parâmetros do Cubismo – que,
76 não exploramos convenientemente a maravi- desde 1907, com as “Demoiselles d’Avignon”
lhosa terra que os nossos antepassados desco- de Picasso, já fora instaurado –, mas tornando
briram e povoaram. Precisamos, nesse passo, estes traços palatáveis à burguesia emergente.
voltar as costas ao litoral, e olhar rosto a rosto Trata-se de estilo pleno de releituras de cul-
a imensidade silenciosa dos sertões. Não está turas exóticas – África, Japão, Tailândia6 – e
ali todo o Brasil, mas está um Brasil poderoso e antigas – egípcia, grega, azteca, maia, inca – que
deslumbrante que ainda não conhecemos. ocupou no mundo um amplo espectro geográ-
fico. Podemos dizer que foi o primeiro estilo
Os clamores por Tupã de Ronald de Carva- verdadeiramente globalizado, a se aproveitar
lho foram ouvidos, e em fevereiro de 19223, a dos meios de comunicação modernos como
brasilidade tenta se casar com a contempora- o cinema, a imprensa, o rádio, o telégrafo, o
neidade, através da Semana de Arte Moderna. telefone e a televisão, bem como dos novos
Uma estética absolutamente brasileira acaba meios de transporte modernos – os transatlân-
emergindo, ainda na década de 1920, identi- ticos velozes, seus incipientes concorrentes do
ficada por diversos sinônimos: Nativismo, ar, os aviões (flying boats, barcos voadores) e
3 A Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo, no Teatro Municipal, entre 11 e 17 de fevereiro, se hoje é considerada deter-
minante no Modernismo brasileiro, à época não teve grande impacto. Foi uma ação entre amigos, patrocinada por ricaços paulistas que não
queriam ficar atrás do que se fazia na Europa em termos de Arte Moderna. Mas sem dúvida nenhuma se tornou um marco na valorização dos
temas nacionais, entre eles os derivados da cultura indígena. Dentre os expositores, em arquitetura, pintura, escultura, no entanto, só Vicente
do Rego Monteiro apresentou trabalhos diretamente relacionados ao tema.
4 Tarsila do Amaral (1886-1973) pode ser considerada a musa do Nativismo brasileiro na pintura das décadas 1920 a 1940. Do casamento com
Oswald de Andrade, não só surgiu a marca “Tarsiwald”, como retratos de um Brasil ancestral. Talvez seu mais conhecido óleo, o “Abaporu”,
hoje na coleção do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, coleção Constantini, desde o termo indígena que o batiza, reflete a
preocupação de Tarsila com o imaginário da selva brasileira. De um dicionário tupi-guarani foi retirado seu título: Aba: homem; poru: que come.
E foi dele que o Manifesto Antropofágico se alimentou. Oswald de Andrade, que recebia a tela como presente de aniversário, em 11 de janeiro
de 1928, exclamou: “Isso é como fosse um selvagem, uma coisa do mato”. Tarsila aprendeu na sua temporada parisiense a valorizar as “Artes
Primitivas”, hoje denominadas “Artes Primeiras”. Em seus contatos com Brancusi (de quem adquiriu uma escultura, “Prometheus”, de 1911)
Picasso, Léger, Lhote, Gleizes, Matisse – todos admiradores das “Artes Primeiras” – absorveu este apreço, e imediatamente o transpôs para
sua origem, uma terra de índios, de rico folclore, um mundo mítico ainda inexplorado na década de 1920.
Mario de Andrade (1893-1945), poeta, escritor, crítico e pesquisador do folclore brasileiro, foi, ao lado de Tarsila e Oswald, um dos pilares
do Modernismo brasileiro. Se o Nativismo tem um herói, esse seria Macunaíma, personagem central do livro de mesmo nome, editado em
1928. Definido pelo autor como “a aceitação sem timidez nem vanglória da entidade nacional”, Macunaíma é uma rapsódia brasileira onde
a muiraquitã (amuleto indígena) é também protagonista. As aventuras do “herói sem nenhum caráter”, mistura das raças negra, branca e
índia, em busca desse talismã percorrem as páginas deste que foi considerado o livro mais importante do nacionalismo modernista brasileiro.
5 Exposição promovida pelo Ministério do Comércio e Indústria da França, aconteceu entre abril e outubro de 1925, ocupando grande área
de Paris, e visitada por quase 16 milhões de pessoas. Com mais de 100 pavilhões, nacionais e estrangeiros queria mostrar ao mundo que os
prejuízos da Primeira Grande Guerra eram passado. Com notável variedade de estilos entre seus pavilhões, assim mesmo pode ser cunhada a
expressão Art Déco – um diminutivo do longo nome Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes. A partir dos anos
1960, com uma exposição no Museu de Artes Decorativas de Paris “Les Années 25” (1966) o termo passou a definir os objetos, arquitetura, moda
etc, que apresentassem características semelhantes, obedecendo à uma forte geometrização herdada do Cubismo, linhas aerodinâmicas, e
temas privilegiando a natureza e a figura humana.
6 Em 1931, de novo em Paris, acontece a Exposition Coloniale Internationale, que consagra a vertente “exótica” do Art Déco. Além das colônias
francesas de Além Mar, encontravam-se pavilhões de territórios exteriores belgas, dinamarqueses, italianos, dos Países Baixos, e até mesmo
de Portugal. A grande ausente, Grã-Bretanha, se justificou diante dos gastos consideráveis com a participação, no ano anterior, na Exposição
Internacional Marítima e Colonial de Antuérpia.
77
34 35 34. Partitura para piano, de Hekel Tavares, “Funeral de um Rei Nagô”, assinada por Flavio, década de 1930. Foto Nelson Monteiro.
35. Projeto de terrina com motivo jabuti da mata e desenhos da cerâmica marajoara, em guache, de Manuel de Oliveira Pastana. Pará, 1928. Foto
36 37
Nelson Monteiro.
36. Capa do primeiro de 19 álbuns com pranchas inspiradas por temas indígenas, que começam em 1921 e vão até 1930, de August Herborth. Acervo
Instituto Art Déco Brasil.
37. Prancha do álbum “Guarany”, de August Herborth. Década de 1920. Foto Acervo Coleção Berardo.
78 dirigíveis. O mundo tinha pressa de informa- (Inglaterra) – Nova York e veio ao Rio trazendo
ção, de estar up to date... De Xangai a Buenos norte-americanos que se dispuseram a pagar até
Aires, de Paris a Tel-Aviv, do Rio a Nova York – 130 mil dólares pelas melhores cabines, num
na arquitetura, artes decorativas, moda, design, cruzeiro de Carnaval, esquecendo o inverno
cinema, literatura, e até na música, a busca de do hemisfério Norte em meio à folia carioca7.
inovação e de progresso tecnológico definiu as Mas voltemos à Taba. A maior ilha fluvio-
primeiras décadas do século XX. costeira do mundo, Marajó, na Amazônia bra-
Um capítulo à parte merecem os paquebots, sileira, teve diversas fases de desenvolvimento,
que disseminaram mundo afora o estilo Art antes da chegada dos colonizadores portugue-
Déco, verdadeiras embaixadas flutuantes de ses. A mais importante, e que se estenderia de
seus países de origem, com o melhor do pro- 400 a 1350, denominada Marajoara, deixou
gresso tecnológico nas máquinas e sistemas de uma herança de artefatos finamente decorados,
funcionamento, com o melhor das artes deco- como urnas, vasos, bancos, esculturas, tangas,
rativas, e, o mais importante, abertos ao públi- adereços e talismãs, em pedra, terracota, cerâ-
co (mediante a compra de tíquetes) em cada mica e argila.
porto em que atracavam. Eram essas visitações No início do século XX, as novas invenções
um belo reforço nas finanças das companhias – automóvel, avião, hidroavião – aliadas ao
marítimas. Os passageiros desembarcavam, e espírito aventureiro de muitos arqueólogos,
subiam a bordo os habitantes dos portos, ávi- historiadores, antropólogos, jornalistas, comer-
dos das novidades, de câmera e bloquinho em ciantes e até saqueadores, transformam Marajó
mãos, e assim muitas casas e interiores surgi- num destino cobiçado8.
ram obedecendo à estética dos transatlânticos. Os objetos pré-cabralinos lá encontrados
Não surpreende que tantos prédios espalhados passam a alimentar o mercado de antiguidades.
pelo mundo reproduzam a estética streamline Museus, colecionadores e marchands do mundo
de decks, janelas de escotilha – em suma, a car- inteiro voltaram sua atenção para os exempla-
tilha arquitetural dos navios. res de uma arte em tudo semelhante à praticada
O maior, o mais luxuoso, o mais rápido dos pelos Incas – confirmando uma teoria de que
ícones da navegação Art Déco se chamou Nor- os povos do Peru desceram o rio Amazonas, en-
mandie e entre 1938 e 1939 saiu da rota cos- contraram a Ilha de Marajó e ali desenvolveram
tumeira Le Havre (França) – South Hampton a continuação da sua produção. Infelizmente,
7 Foi a bordo do Normandie, ancorado no meio da Baía de Guanabara que – convidada pelo “Rei da Broadway” Lee Schubert, passageiro do
cruzeiro, para um jantar no “Grill Room” – a maior artista brasileira dos anos 1930, Carmen Miranda, foi convidada a se apresentar em Nova
York, a “fazer a América”. Aceitou, meses depois assinou o contrato e partiu pelo SS Uruguay, para nunca mais voltar.
8 Expedições à Amazônia se tornaram, a partir desta época, favoritas dos aventureiros. Encabeçando uma longa lista, temos o ex-presidente
dos EUA, Theodore Roosevelt. Em 1913, acompanhado pelo brasileiro Coronel Mariano da Silva Rondon, resolvem descer o Rio da Dúvida. Nessa
expedição Roosevelt quase morreu, e muitos pereceram. Rondon, considerado o maior explorador da Amazônia, é o autor do lema relativo aos
índios: “morrer se preciso for, matar jamais”.
Em 1925, à procura de uma cidade perdida, uma civilização altamente sofisticada – “Z” – e que supunha encontrar-se em plena Amazônia
brasileira, o coronel britânico Percy Harrison Fawcett, conhecido como o último dos exploradores individualistas, desapareceu nas entranhas
da floresta.
pouca coisa hoje resta no Brasil, excetuando-se se pudesse imprimir labirintos, zigue-zagues, 79
as coleções do Museu Nacional da Quinta da gregas e tramas geométricas derivadas dos
Boa Vista no Rio de Janeiro e no Museu Goeldi desenhos indígenas.
de Belém do Pará. Instituições que passaram a A televisão, quando se instala no Brasil, se
ser a Meca dos designers do início do século XX chama TV Tupi, e sua logomarca é um indiozi-
em busca de inspiração para o desenvolvimento nho, um curumim, que anuncia o primeiro pro-
de um Art Déco genuinamente brasileiro, rari- grama, a TV na Taba, em 18 de setembro de 1950.
dade entre seus pares internacionais. A publicidade aborda constantemente a
O governo do Presidente Getulio Vargas, herança indígena brasileira através dos nomes
de 1930 a 1945, incluiu no seu programa – sin- das lojas11, empresas e prédios que adotam no-
tonizado com outros governos totalitários da menclatura completamente indígena, como até
época, como a Itália de Mussolini e a Alemanha hoje podemos encontrar: Itahy, Itaoca, Hicatu,
de Hitler – o “orgulho pátrio”. Tal orgulho bus- Itaiuba, Itacolomi, Ipu, entre outros.
ca nas origens indígenas os parâmetros de um No entanto, a busca de uma identidade na-
projeto de nação, de povo civilizado que doma cional para a arquitetura neste período, tratada
a selva, progressista, ocupado na criação de uma sob influência indígena, encontra forte reação
potência emergente: o “Novo Brasil 1930-1938”. nos partidários de uma internacionalização –
É esta a inscrição do pórtico à entrada da Ex- são os seguidores de Le Corbusier12, contrários
posição do Estado Novo, em 19389. a qualquer elemento decorativo, considerado
E provoca um fenômeno de massa! Na ar- supérfluo. E grandes discussões são deflagradas.
quitetura10 e na decoração das casas acontece Um dos casos mais marcantes é o concurso
uma verdadeira febre de objetos, móveis, lumi- para construção do Ministério de Educação
nárias, tapetes, vasos, enfim, tudo aquilo onde e Saúde, em 1936. O projeto vitorioso, de Ar-
9 Exposição montada na área da Esplanada do Castelo, Rio de Janeiro, e que celebra os novos projetos nacionais, incluindo maquetes dos novos
ministérios, quase prontos. O pórtico repetia o do pavilhão da Alemanha – ao topo, no lugar da águia e cruz suástica germânicas, as armas da
República brasileira – na Exposição Internacional das Artes e Técnicas Aplicadas à Vida Moderna, 1937, em Paris, e considerada a despedida do
estilo Art Déco, pelo menos na Europa. No Brasil a duração foi muito maior, até meados de 1950. Durante o longo primeiro governo do ditador
Getulio Vargas (ironicamente denominado, pelos EUA, “presidente permanente”), 1930-1945, as manifestações artísticas de cunho nacionalista,
explorando as raízes indígenas se tornam extremamente comuns. Surgem artistas como a bailarina Eros Volúsia (1914-2004) capa da revista
norte americana Life, em 1941, e que revolucionou a dança brasileira, acrescentando coreografias indígenas, africanas e do folclore brasileiro
ao repertório do balé nacional. Importante mencionar a dedicação dos compositores eruditos aos temas nativistas, como Heitor Villa-Lobos
(1887-1959), Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1947) e Alberto Nepomuceno (1864-1920), entre muitos outros.
10 A corrente Indigenista na arquitetura brasileira acontece em todo o território nacional. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, com exemplos
notáveis como, em Belo Horizonte, o Edificio Acaiaca, onde duas imensas cabeças de índio marcam os ângulos do grande prédio de esquina
(arquiteto Lúcio Pinto Coelho, 1943).
11 Muitos exemplos: a loja de departamentos O Guarany, da rua Gonçalves Dias esquina com a rua do Rosário, no Rio, especializada em
“camisas e chapéus, roupas para banho de mar, cama e mesa, perfumaria”, as Ferragens Cacique, a Fundição Tupy, aguardente Ypioca, queijos
Catupiry... Disputavam espaço com as denominações de origem francesa, onipresentes na vida brasileira das primeiras décadas do século XX.
12 Le Corbusier (1887-1965) confessa, entretanto, que para construir o “Cabanon” (tradução livre: barracão), sua casa de verão em Rocquebrune
Cap-Martin se inspirou nos barracos das favelas brasileiras. E foi no Rio, em 1929 que viveu um tórrido romance de verão com Joséphine Baker.
Ambos voltavam de temporadas em Buenos Aires, a bordo do Giulio Cesare, com destino ao Rio de Janeiro. Os cadernos de viagem e as cartas
conservadas na Fundação Le Corbusier comprovam o affair. Se Le Corbusier não se dedicou ao Nativismo, chegou bem perto.
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38. Centro de mesa em cerâmica policromada, atribuído a Correia Dias. Petrópolis (RJ), década de 1930. Foto Nelson Monteiro.
38 39 39. Pórtico em cerâmica com desenho de talismã amazônico – muiraquitã. Edifício Itaoca, na rua Duvivier, 43, Copacabana, Rio de Janeiro.
Projeto de Anton Floderer e Robert Prentice, 1928.
81
chimedes Memória e Francisque Cuchet13, de gosto nacional era aquele denunciado por Ro-
forte inspiração Art Déco-Marajoara, acaba não nald de Carvalho. Visconti utiliza temas de ins-
sendo construído, depois da pressão dos jovens piração marajoara numa série de vasos, produ-
Lucio Costa e Oscar Niemeyer sobre o Minis- zidos no ateliê Ludolf, e que só serão expostos
tro Gustavo Capanema. Surge em seu lugar o em 1926, na Galeria Jorge, no Rio de Janeiro.
prédio esboçado por Le Corbusier. Muito natural que do Estado do Pará e do Es-
Semelhante situação ocorre na escolha do tado do Amazonas surjam artistas com discurso
pavilhão brasileiro para a World’s Fair de Nova nativista, e entre os principais estão Theodoro
York em 1939. Um dos projetos preferidos pela Braga (1872-1953) e Manuel Pastana (1888-?).
imprensa especializada, como publicado em São de Theodoro Braga vasos em metal tra-
edição de novembro de 1938 de A Casa, de au- balhado, repuxado, com técnica semelhante à
toria da Roberto Lacombe e Flavio Barboza: produção do francês Jean Dunand, identifica-
dos por Pietro Maria Bardi e hoje nas coleções
82 arquitetura sóbria, destacando nas grandes do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
massas os motivos marajoaras, cujo espírito explorando a temática Marajoara.
de brasilidade demonstra um característico de Theodoro Braga vai ao extremo de encomen-
originalidade e beleza. dar ao arquiteto Eduardo Kneese de Mello sua
residência em São Paulo, nos anos 1930, como
Mas, finalmente, o pavilhão construído foi um painel de utilizações possíveis dos temas
a opção “International Style”, de Lucio Costa e marajoaras, desde o exterior da casa até a deco-
Oscar Niemeyer, que obteve imenso sucesso, ração. Tudo se integra na mesma vertente Art
diga-se. Por muitos considerado o retrato da Déco de influência marajoara: pisos em madei-
nova arquitetura brasileira, o Pavilhão antece- ras exóticas brasileiras, grades, móveis, papéis
de em vários anos a inauguração do Ministério de parede, luminárias, objetos... Não sem razão
da Educação e Saúde, ícone desse amálgama de foi por ele batizada de “Retiro Marajaora”15.
racionamentos do pós-guerra com as lições de Manuel de Oliveira Pastana foi discípulo de
Le Corbusier. Theodoro, e ao lado de uma produção voltada
Em mais um caso de disputa pela represen- para o academicismo – como o imenso retrato
tação no exterior de uma linguagem nacional, o do Almirante Tamandaré ainda hoje visível
Nativismo sai vitorioso durante a exposição O no prédio Art Déco do antigo Ministério da
Mundo Português, em 1940, que ocupou grandes Marinha, na Praça Mauá, no Rio – pesquisou
espaços à margem do rio Tejo, em Lisboa. O a flora e a fauna amazônica como ninguém,
Pavilhão Brasileiro, projetado pelo célebre ar- nos deixando diversos projetos de terrinas,
quiteto português Raul Lino, recebe decoração móveis e luminárias, onde resquícios do Art
interior em feérico estilo Marajoara, assinado Nouveau se encontram com a geometrização
pelo mesmo Roberto Lacombe, preterido para do Art Déco.
a New York World’s Fair14. Um carioca que passou sua infância em
Desde o início do século XX, ainda sob os Belém, Oswaldo Goeldi (1895-1961), filho do
efeitos do Art Nouveau, nosso pintor e designer naturalista alemão Emilio Goeldi, considerado
Eliseu Visconti (1866-1944), após frequentar o pai da gravura moderna brasileira, nos legou
em Paris as aulas de Eugène Grasset, retorna importantes registros de uma arte compro-
ao Brasil disposto a inovar na Arte Decorativa metida com as origens indígenas brasileiras,
local. Infelizmente sem muito sucesso, pois o sobretudo nas ilustrações para os mitos amazô-
13 Archimedes Memória (1893-1960) foi o arquiteto carioca que mais se destacou na vertente eclética, aí incluídas diversas manifestações de
cunho nacionalista. O neocolonial, abordado por ele e seu sócio Frances Francisque Cuchet em diversos projetos, como a sede do Clube Bota-
fogo de Futebol e Regatas, ou o demolido Theatro Cassino no Passeio Público, conviveu com as construções de estilo eclético, cujos principais
exemplos são o Palácio Tiradentes, hoje Assembléia Legislativa carioca, ou o Jóquei Clube da Gávea.
14 Publicado com destaque na revista A Casa de novembro de 1938, ocupando seis páginas, o projeto de Roberto Lacombe e Flavio Barboza
para a Exposição de Nova York de 1939, concorrente do escolhido, de autoria de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, parecia o preferido pela redação
desta publicação, muito conceituada à época.
15 Ver “The Jungle in Brazilian Modern Design”, artigo de Paulo Herkenhoff em The Journal of Decorative and Propaganda Arts, The Wolfso-
nian. Miami, 1995, pp. 256 e 257.
83
nicos de Cobra Norato, de Raul Bopp, em 1937. do interior em mosaico de cerâmica vitrificada
Para Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, em imita ondas do mar, painéis de peixes, algas,
1945, repete suas imagens carregadas de mis- cavalos-marinhos; habitantes dos rios e mares
tério, densas, cheias de sombras, próximas do – afinal estamos em Copacabana! – completam
Expressionismo alemão, de onde Goeldi busca o cenário.
sua maior fonte de inspiração. Diz ele: “eu não Pedro Correia de Araújo é personagem ím-
sou um selvagem. Eu teria que viver como eles par na história das Artes Decorativas dessa pri-
para que a minha imitação fosse genuína” 16. meira metade do século XX no Brasil. Nascido
Mas é no Rio de Janeiro – capital fede- na França, filho de nobres pernambucanos
ral nessas cinco primeiras décadas do sécu- exilados em Paris com a família real brasileira,
lo XX, da vigência do Art Déco Marajoara – estudou na Academia Ranson, onde conviveu
onde encontramos os melhores exemplos do com a vanguarda local, e, de volta ao Brasil, no
Nativismo brasileiro. início dos anos 1920, preferiu pesquisar nossas
Um dos ícones da arquitetura Art Déco ca- origens, assumindo sua brasilidade.
rioca é o Edificio Itahy, construído em 1932 e É também dele a decoração do pórtico e hall
localizado à Avenida Nossa Senhora de Copa- do Edificio Manguaba (1936, projeto de Chaves
cabana, 252. O projeto de Arnaldo Gladosch & Campelo Architectos e Engenheiros), à rua
(1903-1954) imprime feição streamline ao volu- Gustavo Sampaio, 220, no Leme, que recebeu
me da fachada, mas presenteia a rua, o morador, a seguinte descrição no Guia da Arquitetura
o flâneur – e, porque não, a cidade –, com uma Art Déco do Rio de Janeiro, organizado por
perfeita definição de Indianismo. O pórtico Jorge Czajkowski:
em cerâmica e hall social, desenhados por Pe-
dro Correia de Araújo (1881-1955), trazem uma discreto edifício com proporções harmoniosas,
verdadeira aula de como casar modernidade e varandas embutidas abauladas, corpos saca-
origens indígenas brasileiras. Uma índia-sereia- dos e persianas ‘Copacabana’. Na entrada e
-cariátide musculosa encima a porta em ferro portaria, painéis cerâmicos dignos de nota, da
batido, decorada com algas e tartarugas; o piso autoria de Pedro Correia de Araújo.17
16 O Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, e o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, são os locais incontornáveis
para quem busca informação sobre a arte dos povos indígenas brasileiros, sobretudo os da cultura Marajoara.
17 Tanto o Itahy, graças à atuação de um síndico, Sr. Flávio Willemsens, consciente do valor arquitetônico do projeto, e que não permite
modificações como o gradeamento do imponente pórtico, quanto o Manguaba, que por pouco não é demolido nos anos 1990, salvo graças à
intervenção do prefeito Luiz Paulo Conde, presidente de honra do Instituto Art Déco Brasil – são exemplos de resistência.
40 41 42 40. Escultura em tamanho natural em stucco assinada por Hildegardo Leão-Velloso, encomendada para o terraço do antigo Ministério da Fazenda,
na Avenida Presidente Antonio Carlos, centro do Rio de Janeiro. Década de 1930. Foto Vicente de Paulo.
41. Relevo “Índios”, em mármore, assinado por Victor Brecheret, que decora o Salão Nobre do Hipódromo do Jóquei Clube de São Paulo, projeto
de Henri Sajous. Década de 1940. Clovis França.
42. Edifício Acaiaca, centro de Belo Horizonte, projeto do arquiteto Lucio Pinto Coelho, de 1943. Foto Robin Grow, cortesia da Art Deco &
Modernism Society, Melbourne, Austrália.
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18 Brecheret e sua obra nativista já ganharam diversas exposições, como A Arte Marajoara de Victor Brecheret, em 2004, no Centro Cultural
Correios RJ, e que havia acontecido no Japão em 2001; e A Arte Indígena de Victor Brecheret, em 2009, na Caixa Cultural RJ.
19 Henry Gonot, aluno de Edmond Lachenal (1855-1930), um dos principais renovadores da cerâmica art nouveau na França, ainda não mereceu
o reconhecimento devido na história do design brasileiro da primeira metade do século XX. Foi em parte graças à atividade de Gonot que os
objetos de inspiração Nativista se tornaram populares.
20 Infelizmente o terraço do antigo Ministério da Fazenda hoje se encontra em péssimo estado de conservação, proibido à visitação, muito
distante do tempo em que era uma das atrações da cidade, com o Ministro recebendo nos jardins suspensos todas as celebridades nacionais
e internacionais.
43 44
43. Cadeira em imbuia e couro lavrado, acervo Coleção Berardo. Década de 1930. Acompanha mesa da foto 44. Foto Nelson Monteiro.
44. Mesa de escritório em imbuia, fabricante Laubisch-Hirth, acervo Coleção Berardo. Década de 1930. Foto Nelson Monteiro.
os painéis em mosaico assinados por Paulo Champs-Elysées – templo modernista proje-
Werneck (1907-1987), artista do primeiro time, tado por Auguste Perret em 1913, decorado
descrevendo cenas brasileiras, com matas e com relevos de Bourdelle (dois deles fazem
habitantes indígenas da “Terra Brasilis” em foco. parte do acervo do Museu de Belas Artes do
Paulo Werneck andou esquecido, mas feliz- RJ) e iluminado por René Lalique – o balé
mente começa a ser estudado e redescoberto. Légendes, Croyances et Talismans des Indiens de
No Rio de Janeiro sua presença é inquestio- l’Amazone, adaptado do livro de mesmo nome,
nável. Dezenas de painéis em mosaico deco- com os desenhos de Vicente, uma verdadeira
ram entradas e empenas de edifícios por toda cartilha do Art Déco marajoara. Sucesso total,
a cidade, que pouca gente identificava como uma performance inesquecível da estrela do balé
trabalhos de Paulo Werneck. Finalmente uma do momento, chamado Malkovsky, um russo
situação ultrapassada. Exposições viajando que os Irmãos Martel23, escultores do primeiro
por todo o Brasil foram montadas, sua família time, já haviam apresentado como ícone a ser
tem contribuído para o conhecimento de um consumido por todos, numa série de esculturas 85
grande mestre que, antes de se destacar como em cerâmica produzidas pela manufatura de
artista do concretismo, dedicou-se aos temas Boulogne-Sur-Seine. Exposto em 1925, desde
nativistas, seja em mosaicos, como os do Edi- abril, quando começou a exposição, no pavi-
ficio Maracati, no Leme, Rio de Janeiro – onde lhão “Une Ambasse Française”, no hall do cole-
se tornou mais conhecido – ou nas ilustrações cionador, esse retrato escultural de Malkovsky
para a Lenda da Carnaubeira (1939) e para O com certeza incentivou os franceses e estran-
Negrinho do Pastoreio (1941)21. geiros presentes ao evento a lotarem a sala do
Na história do Art Déco nativista brasileiro Théâtre des Champs-Elysées.
existem três personagens que não podem ser Vicente ficou tão entusiasmado com o su-
esquecidos: o pernambucano Vicente do Rego cesso parisiense que imediatamente criou o
Monteiro (1899-1970), o português Fernando Quelques Visages de Paris, listando os principais
Correia Dias (1893-1935) e o alemão August pontos turísticos de Paris, em gravuras (série de
Herborth (1878-1968). 300) editadas pela Imprimerie Juan Dura, tra-
Vicente do Rego Monteiro descobriu o tados à maneira marajoara. Vicente do Rego
Brasil nas longas temporadas parisienses, onde Monteiro, num humor bem brasileiro, apre-
conjugava trabalho artístico com corridas de senta o trabalho como sendo desenhos que ele
automóvel, e até de avião. Um modernista total, encontrou em plena selva amazônica, nas mãos
avant la lettre! de um chefe indígena que, incógnito, visitara
Se em 1925, durante a consagração do estilo Paris há pouco.
Art Déco através da Exposição Internacional Fernando Correia Dias aporta no Rio em
das Artes Decorativas e Industriais Modernas, 1914, e se torna um precursor, um verdadeiro
o Brasil não teve um pavilhão – apesar de con- mentor do estilo Marajoara-Déco. Exorta os
vidado e dos artigos publicados sobre o evento brasileiros a olharem suas raízes e a abandona-
na Illustração Brasileira22 –, foi com Vicente que rem o artificialismo dos parâmetros europeus
deixamos nossa marca! na prática das Artes Decorativas através do ma-
No auge da saison parisiense de 1925, en- nifesto “O Nacionalismo na Arte”, publicado
tre 10 e 25 de julho, estreou no Théâtre des em 1919, na Revista Nacional.
21 Ver Modernism, revista norte-americana, de 2009, e Paulo Werneck Muralista Brasileiro, catálogo de exposição em 2008, Paço Imperial, RJ.
22 Não só artigos anunciaram a participação brasileira na Exposição de Paris 1925. Segundo nos conta Péricles Memória Filho, no livro Archi-
medes Memória – o Último dos Ecléticos, à página 64:
“Em 1925, o Ministro da Justiça e Negócios do Interior João Luiz Alves escolhe e nomeia Archimedes (Memória) como representante do
Brasil para a organização da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, a se realizar em Paris, com base no sucesso
alcançado na Exposição do Centenário da Independência. Não se sabe o porquê, mas Archimedes não foi.”
Não houve pavilhão brasileiro, é bom que se esclareça.
23 Os Irmãos Joël et Jan Martel, gêmeos nascidos em 1896, e que morreram ambos em 1966, renovaram a escultura francesa. Praticaram
uma arte totalmente engajada na Modernidade, e cuja quintessência era Art Déco. Colaboradores e amigos dos principais arquitetos dos anos
1920-1940, tiveram seu ateliê e residência num hotel particulier construído por Rob Mallet-Stevens, ainda hoje de pé, na Rue Mallet-Stevens,
no 16ème arrondissement de Paris. Durante a Exposição de Paris de 1925, além da escultura retratando Malkovsky se celebrizaram pelas “Abres
Cubistes” (Árvores Cubistas), em concreto armado, no jardim do pavilhão de Mallet-Stevens.
86
45
45. Vaso achatado em cerâmica policromada, atribuído a Correia Dias. Petrópolis (RJ), década de 1930. Foto Nelson Monteiro.
de cerca de 470 pranchas, em guache, aquarela
e nanquim. São as mais diversas utilizações do
vocabulário indígena aplicado a necessidades
do design de móveis, vasos, tecidos e até arqui-
tetura. Expõe o resultado dessas pesquisas,
efetuadas sobretudo no Museu Nacional, na
Escola Nacional de Belas Artes, profere confe-
rências, escreve artigos, mostra aos brasileiros
a importância das civilizações pré-cabralinas.
Herborth, respeitado artista, através de uma
abordagem nacionalista, teve imediato sucesso
em terras brasileiras, o que prova a encomenda,
ainda no início dos anos 1920, pela Prefeitura
de Curitiba, de desenhos de inspiração indíge- 87
na para suas calçadas em pedra portuguesa até
hoje existentes24.
Tanto quanto Correia Dias, Herborth ainda
não recebeu as devidas homenagens brasileiras.
Seria o fato um comprovador da nossa falta de
memória? Ou da nossa vergonha pela maneira
com que os índios foram sendo sistematica-
mente dizimados? Interessante notar que em
vez de nomes indígenas dos prédios nas cida-
des brasileiras, e também “Brasil”, “Amazonas”,
“Ceará”, orgulhos nacionais, hoje todos têm
nomes franceses ou americanos: “Manhattan”,
“Chateau Chambord”, e por aí vai...
No texto de Paulo Herkenhoff, “Amazônia e
Modernidade”, encontramos o fecho para esse
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Todo dia
era dia de índio
representações de indígenas
em letras de canções brasileiras
Lucia Maria de Assunção Barbosa
Fernanda Tonelli
“Índio” e “indígena” geralmente são consi- indígena possuidor de virtudes (como é o caso
derados termos genéricos utilizados para da concepção indianista/romântica, no qual é
denominar os indivíduos pertencentes aos caracterizado como o ser forte, puro, guardião
grupos originários do continente americano da natureza), mas essas qualidades sempre têm
pré-cabralino. Segundo o dicionário UNESP como corolário a subserviência ao colonizador.
do português contemporâneo, ambos os ter- Dessa forma, as caracterizações do indígena em
mos se referem ao ser nativo, natural do local nossa cultura servem como base para se pensar
(América) onde habita. No entanto, embora sobre o desconhecimento sobre a cultura indí-
hoje esses itens lexicais apresentem semelhan- gena por parte daqueles que compartilham as
ças quanto a sua significação e forma, eles não ideias cristalizadas na sociedade, bem como a
possuem parentesco etimológico. O termo “ín- total desconsideração pelo caráter multiétnico
dio” surge a partir da concepção errônea dos desses povos.
colonizadores que, segundo a História oficial, Apresentaremos a seguir as letras das can-
ao terem chegado às terras da América, deno- ções selecionadas e suas respectivas análises.
minaram “índios” aqueles habitantes nativos Para fins didáticos, dividimos este trabalho em
por acreditarem estar nas Índias. Por sua vez, categorias que concentram as temáticas utiliza-
o termo “indígena” é de origem latina (no qual das para caracterizar o indígena nas canções. A
indu=dentro e gena -de gignere =gerado), cujo elaboração dessas categorias, por sua vez, teve
significado pode ser “nascido dentro do país” como base, além das canções escolhidas, os estu-
ou nativo. Para este trabalho, utilizaremos o dos de Ortiz (1975) sobre a identidade nacional,
termo indígena por compartilharmos da ideia o que nos levou a construção de três grupos: O
trazida pelo significado etimológico sobre o indígena idealizado, O indígena sob a perspectiva
indígena como aquele que é originário no local de vítima e O mito da democracia racial.
em que vive. Entendemos que a canção, justamente por
Indiferente do termo adotado, o que se veri- sua dinamicidade, pode transpor as caracteri-
fica é a atribuição pejorativa feita pelo Outro, zações e delimitações feitas nesta pesquisa. En-
consubstanciada na intensa discriminação e tretanto, nossa intenção, através da delimitação
opressão sofridas pelos povos indígenas ao lon- das canções selecionadas em categorias, é traçar
go da história brasileira. Ressalte-se que há mo- as diferentes configurações identitárias sobre
mentos em que se veiculam concepções sobre o o indígena que perpassam o discurso musical.
O indígena idealizado
A representação do indígena veiculada a par- ele é visto como guerreiro, possuidor de virtu-
tir dos pressupostos românticos está enraizada des e atributos ocidentalizados. Dessa forma,
no imaginário coletivo e tem no cancioneiro podemos atribuir à MPB o que Ortiz afirma
popular um lugar de destaque. O resgate das sobre os autores românticos brasileiros, que
origens nacionais por meio da construção de “se preocupa[m] mais em fabricar um modelo
um personagem que remontasse ao período de índio civilizado, despido de suas caracterís-
inicial da História do Brasil leva os românti- ticas reais, do que apreendê-lo em sua concre-
cos a forjarem uma identidade para o indígena tude”(1985, p. 19).
brasileiro que se aproxima dos cavaleiros me- Foram selecionadas as canções: “Alma de
dievais da Europa. Nas canções, por sua vez, Tupi” (1933), de José Luiz Calazans, “Senhor da
essa visão romântica se evidencia por meio da Floresta” (1945), de Renê Bittencourt e “Índia”
representação edificante do indígena, na qual (1952), versão de José Fortuna. 95
Alma de Tupi
(José Luiz Calazans, 1933)
Os versos de ambos os textos são redondilhas facilita a interpretação vocal e sua memorização.
maiores, forma métrica de origem medieval bas- Além disso, destaquem-se os campos lexicais
tante marcada pelo ritmo e por isso utilizada ligados à natureza: terra, serras, cascatas, sertão,
frequentemente em letras de canções populares matos, matas, céu, estrelas, que contribuem para
(GOLDSTEIN, 1999). Em todos os versos, a ter- reforçar estereótipos em relação às populações
ceira e a sétima sílabas são tônicas, o que lhes indígenas e, como consequência, a aceitação
imprime um ritmo cadente e traz uma marcação. das imagens veiculadas como sendo verídicas.
Se para um poema esse equilíbrio contribui para Características semelhantes serão encontra-
o tom declamatório, para a canção essa estrutura das na letra que analisaremos a seguir.
Senhor da floresta
(René Bittencourt, 1945)
46. Etnia Kamayurá – Ritual feminino (yamurikumã). Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI.
46
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A apresentação idealizada do indígena que se refere às escolhas lexicais, nestes versos
também está presente no samba de René Bit- vemos também presentes recorrências de pala-
tencourt “Senhor da floresta”, de 1945, por vras semanticamente ligadas ora à natureza, ora
meio do relato de uma lenda indígena. Este às virtudes das personagens, como uma forma
gênero narrativo caracteriza-se pela oralidade de reforçar a ligação intrínseca entre o “índio”
e pela relação que estabelece com o passado retratado e a natureza.
remoto, o que nesta letra adquire a função de O índio, mostrado de forma idealizada, é um 99
criar um histórico da cultura indígena. Esse “guerreiro” na história, identificado como o “se-
propósito foi bastante explorado no período nhor da floresta”. Tal atribuição, título da can-
em que a canção foi composta, visto que a ção, indica uma relação de poder estabelecido a
política da época tinha como projeto a cons- partir de uma visão ocidentalizada, pois o termo
trução de uma identidade nacional, e por isso senhor evoca a ideia de domínio deste sobre a
estimulava a produção de sambas com temá- natureza. Por sua vez, a filha do morubixaba,
ticas nacionalistas, conforme afirma Napoli- associada à mocinha das novelas medievais, é a
tano (2007). “virgem mais pura que a luz da manhã”, apro-
Podemos perceber uma correlação entre a ximando-se da imagem explorada nas cenas de
lenda contada com as narrativas medievais, Iracema, romance indianista de José de Alencar,
principalmente no que tange à seleção e carac- de 1865. Nessa obra romântica, a protagonista
terização das personagens. Na canção, temos a Iracema é identificada como a “virgem dos lá-
imagem do jovem cavaleiro medieval represen- bios de mel” (ALENCAR, 2006, p.15).
tado pelo “índio guerreiro” e pela imagem do rei A seguir, analisaremos outra de letra de
e da princesa, encarnados respectivamente pelo canção que, embora seja uma versão de uma
morubixaba e sua “filha formosa”. Evidencia-se, música paraguaia, atravessou as fronteiras e
desse modo, a criação de uma História nacional ganhou celebridade em terras brasileiras até
a partir dos parâmetros culturais europeus. No nos dias atuais:
Índia
(Versão: José Fortuna, 1942)
Índia seus cabelos nos ombros caídos Quando eu for embora para bem distante
negros como a noite que não tem luar e chegar a hora de dizer adeus
seus lábios de rosa para mim sorrindo Fica nos meus braços só mais um instante
e a doce meiguice desse seu olhar deixa os meus lábios se unirem aos seus
Índia da pele morena, sua boca pequena eu quero beijar Índia levarei saudade da felicidade que você me deu
Índia, sangue tupi, tem o cheiro da flor Índia, a sua imagem
Vem, que eu quero te dar sempre comigo vai
Todo meu grande amor Dentro do meu coração, flor do meu Paraguai
A canção “Índia”, de José Fortuna, em 1942, reforça a concepção da beleza da mulher indí-
é uma versão da canção paraguaia, de mesmo gena cristalizada socialmente. Os elementos
título, de J. Assuncion Flores e Manuel Ortiz da natureza – noite, luar, flor – reafirmam as
Guerreiros. Conforme assinalamos, ainda que generalizações, estereótipos e simplificações
não seja originalmente brasileira, esta canção que povoam nosso repertório. A referência à
possui um papel emblemático quanto à confi- raça tupi é retomada como etnia que prevalece.
guração identitária da mulher indígena. Trata- Ressalte-se também a proximidade temática e
-se de uma guarânia, gênero musical de origem imagética com o romance Iracema. Nessa pers-
paraguaia difundido no Brasil a partir da dé- pectiva, essa recorrência de motivos caracteri-
100 cada de 1940. Seu andamento lento, de tom zadores sinaliza para uma homogeneização e
melancólico, foi amplamente utilizado pelos apagamento de especificidades culturais dos
compositores de música sertaneja, conforme grupos indígenas.
afirma Tinhorão (s/d). No item que se segue, abordaremos a imagem
A imagem da índia meiga, de cabelos longos do indígena como vítima da sociedade, temáti-
e “negros com a noite” e lábios delicados tem ca bastante recorrente no cancioneiro popular.
sido frequente em outros textos e, desse modo,
A partir da segunda metade do século XX, de Djavan, “Curumim chama cunhatã que
tornaram-se mais evidentes composições que eu vou contar (Todo dia era dia de índio)”
denunciam a condição marginalizada a que (1981), de Jorge Ben Jor tematizam os indí-
foram submetidos os diferentes grupos in- genas a partir dessa visão e serão objeto de
dígenas. As canções “Cara de Índio” (1978), nossa análise.
Curumim chama cunhatã que eu vou contar (Todo dia era dia de índio)
(Jorge Ben Jor, 1981)
Considerações finais
Por meio dos exemplos mencionados, perce- coletivo e reforçam estereótipos relacionados
bemos que o cancioneiro popular, elemento às populações indígenas.
relevante na cultura nacional, auxilia-nos a De modo geral, vimos que as configura-
identificar representações sobre o indígena ções do indígena, veiculadas pelas letras aqui
perpetuadas socialmente. As imagens de he- analisadas, associam-no a um passado mítico,
rói, guerreiro, senhor da floresta, virgem dos distante da realidade atual, o que dificulta a
lábios de mel, primitivo, atrasado, preguiço- implementação de ações que levem em con-
so, indolente, submisso, fiel ou vítima de seu sideração sua verdadeira pluralidade étnica,
explorador estão cristalizadas no imaginário linguística e cultural.
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Toda nova tecnologia oferece uma diversidade corresponder à sua autoimagem. A possibili-
de usos, muitos deles insuspeitados até por seus dade de registrar histórias, cantos, danças e
próprios inventores. E a sua apropriação em conhecimentos que ficarão para as próxima
novos contextos depende de encontrar aquele gerações fascina e estimula os mais velhos a
uso que corresponde às necessidades e ao gosto catalisarem vivências coletivas que possam ser
de cada um. O vídeo foi introduzido nas aldeias registradas, socializando assim a sua memória
usando a sua grande inovação em relação ao com os demais.
filme de película: a possibilidade de sua exibi- Em dez anos, além de instrumentalizar o dis-
ção imediata, e portanto sua apropriação ime- curso de resistência cultural de alguns líderes
diata pelos sujeitos filmados. Foi exatamente indígenas com registros de manifestações cul-
o procedimento que adotamos: filmar e exibir turais, eventos políticos e promoção de inter-
as imagens após as filmagens. câmbio entre povos, produzimos uma série de
O espelho proporcionado pela “telinha” filmes revelando como povos indígenas reagiam
gerou um choque de realidade, o choque do à possibilidade da produção da imagem e sua
confronto da autoimagem com aquela exibida incidência sobre a questão da memória e do
na TV. Na primeira experiência do Vídeo nas patrimônio cultural. Estes filmes permitem ver
Aldeias, em 1986, o que saltou aos olhos dos como a memória ajuda na reconstrução da iden-
Nambiquara, no norte de Mato Grosso, foi seu tidade presente, e que não existe uma “cultura
visual, com uma mescla de roupas e a falta de ideal congelada”, mas que a cultura de um povo
rigor nas pinturas e nos ornamentos da celebra- se atualiza e se recria a cada momento. Assim
ção. Essa autocrítica estimulou a performance como isso é verdade para a civilização ocidental,
diante da câmera de outras festas abandonadas, também o é para os índios. Os filmes ajudam o
numa verdadeira catarse coletiva. Os líderes público a entender que nada será como antes
imediatamente reconheceram a importância e desfazer, afinal, o equívoco histórico do con-
de se colocar na telinha e passaram a dirigir o ceito do “bom selvagem”. Esses filmes também
rumo das filmagens. foram vitais para fazer os financiadores da co-
Diante desta revisão critica da própria operação internacional entenderem a impor-
imagem, o vídeo oferece a possibilidade ime- tância que esta démarche pode ter num grupo
diata de sua reconstrução, de modo a melhor indígena, e continuarem a apoiar o projeto.
108 Um processo de autoconhecimento
Com dez anos de estrada, o Vídeo nas Aldeias cina: rompe o cotidiano, permite estabelecer
atravessa uma nova etapa: da etapa do simples novos canais de comunicação dentro da comu-
registro para consumo interno, passamos para nidade, valoriza temas antes desprezados. Cria-
a produção de narrativas cinematográficas para -se uma sinergia não só pelo desejo de contar,
outros povos e para o público não indígena em de se expressar, mas também pela possibilidade
geral. Iniciamos então um processo de forma- de ser visto e reconhecido pelo mundo. O de-
ção de jovens adultos, indicados ao serviço de sejo coletivo do filme faz dessas obras criações
suas comunidades. coletivas. Não há momento mais emocionante
A produção de documentários sobre a sua para nós, participantes desse trabalho, do que
realidade, a sua própria intimidade, é um pro- ver um grupo de jovens entrevistando um ve-
cesso de autoconhecimento fascinante, e nesse lho – este feliz por estar sendo indagado – e se
caso capaz de aproximar gerações. Não é à toa espantarem com histórias até então desconhe-
que a maioria dos nossos jovens cineastas são cidas por eles, que chegam mesmo a cobrar do
professores em suas aldeias. O professor indí- velho: “por que você nunca nos contou essa his-
gena se tornou um pesquisador da sua própria tória?” Ao que o velho responde: “porque vocês
cultura, capaz de levar conteúdo à sala de aula nunca perguntaram, nunca se interessaram”.
na aldeia, de criar um novo espaço de transmis- Um processo colaborativo de realizadores/
são do conhecimento, da língua, da história do professores não índios, interagindo com os
seu povo. E o vídeo passou a ser seu instrumen- alunos indígenas e com o coletivo da aldeia,
to de pesquisa e de transmissão num espaço até torna a oficina de cinema um processo coletivo
mais amplo que a própria sala de aula. de aprendizagem e realização. Cada aluno se
O cinema que se ensina no projeto Vídeo descobre, cria seu personagem, sugere cenas,
nas Aldeias vai na contramão do bombardeio de cria fatos, improvisa. O filme resulta de um
imagens cortadas em ritmo alucinantes da TV, consenso em que a comunidade se identifica
que hoje chega a quase todas as aldeias. Sendo com o resultado e se sente realmente repre-
a TV a única referência cinematográfica destes sentada. Estes filmes se transformam em ver-
indígenas, a primeira reação é sempre imitá-la, e dadeiras carteiras de identidade visuais para
cair no fast food midiático. A formação do olhar percorrer o Brasil e tecer a sua rede de amigos
se dá na linha do cinema direto, um cinema de e simpatizantes, com a autoestima necessária
observação, todo na língua originária, baseado para enfrentar a massacrante situação de se
na riqueza infinita do cotidiano – e que espera sentir uma ínfima minoria. Além disso, con-
seus personagens se expressarem livremente. templam com a descoberta do mundo indígena
A magia do cinema encanta tanto os índios em sua intimidade e com obras cinematográfi-
que o realizam quanto as plateias que assistem cas que entraram para a história da produção
aos filmes posteriormente. A filmagem numa audiovisual brasileira.
aldeia cria um momento especial durante a ofi-
47
47. Etnia yawanawá – Festa da Terra. Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI.
Uma expressão para o mundo 109
É evidente que no processo de filmagem e de a diversidade não podem ser mascaradas, senão
edição dos filmes, de construção da imagem, pasteurizamos tudo e não contribuímos para
essa questão do olhar do outro, do olhar do superar as incompreensões.
Brasil sobre eles, tem um peso e é discutida. A diferença é a diferença, e às vezes choca.
Muitas vezes os próprios índios introjetam o Principalmente quando se está falando de di-
olhar externo sobre eles e hesitam: “não, isso ferenças de comportamentos, de usos e costu-
é melhor não botar porque não vai pegar bem. mes, de comportamentos que são tachados como
Eles vão rir da gente, vão achar que a gente é “imorais” numa sociedade e que são naturais
isso ou aquilo”. para outros povos. Todo este entendimento vai
A questão da identidade passa por esse reco- se formando também ao longo da trajetória do
nhecimento do outro e muitas vezes se debate cineasta que acompanha projeções de seus fil-
110 longamente essas questões durante as oficinas, mes em vários contextos, para públicos variados,
estimulando os índios no sentido de não se pau- no Brasil e no exterior. Ele vai interagindo com
tar por esse olhar: Você se orgulha disso? Você o público, entendendo as várias leituras do seu
acha que é legal? Então tem que estar no filme, trabalho, aprendendo que é preciso contextuali-
tal qual ele é; apenas contextualize a situação zar bem certas questões para ser bem entendido
para não haver desentendimento. A diferença e e formulando o foco de seus projetos futuros.
No governo Lula, com o então Ministro Gil- ciamento na área da cultura – as populações
berto Gil e sua equipe na gestão das políticas das periferias dos grandes centros urbanos,
públicas da cultura, a constatação de que “o grupos da cultura popular, remanescentes de
Brasil não conhece o Brasil”, e que num “País quilombos e os índios – raízes das nossas cul-
de Todos” todo cidadão deve ter não só acesso turas populares e contemporâneas.
ao consumo de bens culturais como também Neste contexto de inclusão dos índios na po-
aos meios para produzir cultura a partir de sua lítica cultural do Ministério, o Programa Cul-
perspectiva, se iniciou uma nova era de valo- tura Viva, que subsidiou Pontos de Cultura por
rização da diversidade cultural brasileira, e se todo o Brasil, deu um apoio considerável à rede
democratizou o acesso aos subsídios da cultu- de aldeias atendidas pelo Vídeo nas Aldeias,
ra. Num diálogo com a sociedade civil, tanto possibilitando a compra de computadores para
as Secretarias da Cidadania Cultural, como a edição dos filmes nas aldeias, a realização de
da Diversidade e da Identidade, traçaram uma diversas oficinas de formação e a publicação de
política inédita de subsídio para as populações uma coleção de DVDs com o melhor da produ-
tradicionalmente excluídas de qualquer finan- ção de autoria indígena.
Os índios na TV brasileira
Em 2008, o governo brasileiro tomou uma de- no uso e nas discussões dos filmes em sala de
cisão ousada, no sentido de instituir a obri- aula. Esperamos agora trabalhar, com o apoio
gatoriedade do ensino de aspectos culturais da UNESCO, numa compilação de filmes sobre
dos afrodescendentes e dos povos indígenas crianças indígenas para o jovem público escolar.
nas escolas públicas do ensino fundamental Imaginem quando nossos filhos e netos pu-
e médio. Esta decisão, que levará alguns anos derem se familiarizar e se interessar pela diver-
para ser implementada de fato, implica num sidade das culturas indígenas deste país desde
enorme investimento na formação dos nossos cedo, já nas escolas, e estabelecer uma relação
professores numa matéria que eles nunca estu- lúdica e criativa com a diversidade. Será um pri-
daram, e em gerar materiais didáticos atrativos vilégio para nós, um redescobrimento do Brasil.
e de qualidade sobre estes temas. Ao conhecer estes povos, teremos mais chances
Conhecendo o poder de sedução das imagens, de respeitá-los, e aqueles que serão vistos, de se
o Vídeo nas Aldeias tem voltado grande parte sentirem mais reconhecidos. É preciso criar no
de suas energias para a produção de compila- país um ambiente mais favorável em relação
ções de filmes e livros didáticos para escolas. aos índios, e permitir que eles, nos lugares mais
Em 2010, o Vídeo nas Aldeias fez um projeto distantes do Brasil, deixem para trás a vergonha
piloto, subsidiado pela Petrobras Cultural, que de ser quem são, a vergonha pela qual muitos
distribuiu 3.000 kits pra 3.000 escolas no Bra- tiveram de passar em gerações passadas, e pas-
sil com uma coletânea de 20 filmes de autoria sar ao orgulho de ser brasileiro, pertencendo a
indígena e um guia para assessorar o professor um povo indígena específico!
1 A obra da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931-2008) tem orientado o Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras, na
Universidade Federal de Minas Gerais, em suas experiências literárias com as comunidades indígenas, fornecendo inclusive alguns conceitos-
-chaves em suas elaborações teóricas: textualidade, legência, sobreimpressão são alguns dos principais. A estrutura do livro Curar também foi
tirada de um diário de Llansol, publicado sob o título Finita (1976), onde está prenunciado: “Há, pois, três livros, o da Paisagem, o do microcosmos
do homem, e o da polimorfa mulher”.
2 Título de um livro de M. G. Llansol publicado em 2004.
radical do bilinguismo, da impressão de uma como material didático na formação dos agen- 115
língua em paisagem alheia: nossa história cul- tes de saúde que trabalham com os Maxakali. A
tural nos autoriza a pensar na tradução como aposta dos professores Maxakali de que o que
método por excelência, ao se fazer a literatura os agentes do governo precisavam de uma ajuda
indígena no Brasil. para que pudessem ouvir e traduzir suas falas e
Então, pegando o mote deixado pelo roman- cultura foi acertada. O trabalho de colocar, no
ce no Ocidente, com a constatação de que o livro, anamneses inteiras em língua maxaka-
concerto de vozes é estruturante de todos os li, em transcrições fonéticas e com guias de
livros modernos, de que sempre os discursos pronúncia, para que possam ser lidas em voz
poderão se entrelaçar na trama textual, de que alta pelos médicos, na hora das consultas nos
essa textualidade é mais importante do que a hospitais e postos de saúde vizinhos da Terra
narratividade, deixamos o livro maxakali da Indígena Maxakali, resultou na utilização do
saúde, o Curar, se constituir graficamente em livro como um manual necessário a cada mé-
três colunas paralelas (“Há, pois, três livros...”), dico e enfermeira da região, sujeito a atender
cujos signos perpassam e ultrapassam os alinha- um paciente maxakali.
mentos, mostrando a decomposição dos saberes Assim, através do exemplo do livro Hitupmã’ã
através dos movimentos de leitura. Como um / Curar dos Maxakali, podemos verificar que a
prisma, a página do livro compreende o sig- literatura indígena retoma valores talvez esque-
no em sua tríplice faceta verbal-vocal-visual; cidos pela crítica literária ocidental. Esta, desde
e também multidimensional, o ícone, o índice o século XVIII, tem separado a fruição artística
e o símbolo. Ou, em outras palavras, as três da função pragmática da cura, da educação,
dimensões que produzem o texto literário: a da técnica, da religião, das ciências. O valor
paisagem, ou seja, a escrita do que é próprio, “literário” foi sendo determinado como “fina-
do que não se traduz; o microcosmos do homem, lidade sem fim”, como se os demais valores não
ou o discurso do mestre, os códigos e o jargão fossem também, em seu ponto de fuga, sem fim.
a serem reconhecidos de longe e indicarem ca- A ficção não é um atributo das textualidades
minhos de leitura; a polimorfa mulher, as vozes indígenas, ou de sua literatura, porque todas as
na sua procura de paragem, de escuta e em seu histórias contadas, todos os cantos transcritos,
movimento para algum conhecimento mútuo. todos os desenhos, são igualmente verdadeiros,
Assim o livro triádico maxakali foi impresso na medida em que algum dia aconteceram, po-
e, quase em seguida, foi escolhido pelos técni- derão acontecer, ou estão acontecendo em sua
cos da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) força significante.
culinária indígena
Mártin César Tempass
mitação das condições climáticas foi superada.
Hoje, se quisermos, podemos consumir tran-
quilamente muitos alimentos produzidos no
outro lado do mundo. E, nesse mesmo sentido,
em todo o mundo se consomem ingredientes e
118 pratos de origem brasileira, de origem indíge- obras que apresentam, simultaneamente, in-
na. Hoje é impensável um restaurante francês, formações sobre a alimentação de portugueses,
italiano, árabe, japonês, chinês – entre tantos negros e indígenas, as “três raças” formadoras
outros – sem o feijão, o milho, a batata-doce, a do Brasil. Isso, enganosamente, nos leva a crer
mandioca, o tomate, a abóbora etc. O indígena que não existiu uma relação muito forte entre
brasileiro contribuiu, e muito, para a confi- a alimentação dos três grupos.
guração do atual cenário alimentar mundial. A alimentação brasileira dos primeiros sé-
Absurdamente, não há no Brasil ou no mun- culos não pode ser dissociada da alimentação
do restaurantes típicos de comidas de grupos indígena. Na verdade, elas eram uma coisa só.
indígenas brasileiros. E, mais do que isso, a Ou, em outras palavras, a alimentação nos pri-
população brasileira, tanto quanto o resto do mórdios do Brasil era indígena. E esse modelo
mundo, estigmatiza as práticas alimentares dos alimentar foi fundamental para o sucesso da
indígenas. Ou seja, ao mesmo tempo em que empreitada colonialista. Sem as comidas e as
todos comem, também todos pensam que não técnicas produtivas e culinárias dos indígenas
estão comendo “como índios”. os portugueses não teriam se fixado nas terras
Diante do exposto, no presente artigo, de do Novo Mundo – ao menos não com tanta
forma bastante rápida, procuro ressaltar o pa- facilidade. E, sugiro, esse modelo determinou
pel dos sistemas culinários indígenas na for- o surgimento do que hoje chamamos de Brasil
mação da cozinha brasileira e internacional e e de culinária brasileira.
a sua importância no processo de surgimento Os autores “clássicos” que pensaram a for-
do Brasil. Em seguida busco explicar por que mação da culinária brasileira foram Gilberto
essa contribuição tão importante foi esquecida Freyre e Luís da Câmara Cascudo. Estes dois
na história da formação da cozinha e por que autores trazem valiosas informações, mas eles
a comida relacionada aos grupos indígenas é nos passam uma visão muito simplista e re-
estigmatizada pelos brasileiros. duzida da participação indígena na formação
Nos livros de História encontramos, aqui e da cozinha nacional. Para eles, os índios não
ali, relatos sobre a alimentação indígena antes passam de coadjuvantes nesse processo. Con-
destes terem entrado em contato com os co- tudo, por mais contraditório que possa pare-
lonizadores. Os cronistas relatam com grande cer, é justamente nestes autores que podemos
espanto, profunda estranheza e, muitas vezes, achar pistas que atestam um papel muito mais
muito preconceito a alimentação dos povos ti- importante dos grupos indígenas na formação
dos até então como “selvagens” ou “primitivos”. da culinária brasileira. Em outras palavras, nas
Esse tom muda um pouco quando são apre- “entrelinhas” encontramos a verdadeira contri-
sentadas as informações sobre a alimentação buição indígena.
dos brasileiros nos primeiros séculos depois do Luís da Câmara Cascudo (1967, 1972 e 1983)
“descobrimento”, mas estes abarcam principal- e Gilberto Freyre (1966 e 1997), como muitos
mente a alimentação de portugueses coloniza- autores posteriores, trazem as contribuições
dores e dos escravos. A alimentação indígena é dos portugueses, africanos e indígenas na for-
pouco ou quase nada comentada. São raras as mação da culinária brasileira, sendo esta uma
página anterior
síntese das “três raças”. Ou uma síntese de três dente em várias passagens das obras do autor. 119
cozinhas. Mas as portuguesas e as africanas te- A título de ilustração trago a seguinte citação:
riam um peso muito maior nessa junção. Para
esses autores, as africanas e portuguesas foram Só o grande lazer das sinhás ricas e o trabalho
as chefs criadoras, enquanto que as indígenas fácil das negras e das molecas explicam as exi-
foram meras ajudantes de cozinha. Os indígenas gências de certas receitas das antigas famílias
teriam simplesmente fornecido os seus ingre- das casas-grandes e dos sobrados; receitas qua-
dientes para o que hoje chamamos de culiná- se impossíveis para os dias de hoje. [...] tantas
ria brasileira. Os ingredientes seriam indígenas são as minúcias, os vagares de regalão, com que
(milho, mandioca, feijão, abóbora, amendoim o senhor de engenho da Bahia do século XVI ex-
etc.), mas o savoir-faire e demais componentes plica invenções das senhoras portuguesas, pri-
da culinária seriam portugueses e africanos. meiras donas de casa na Colônia: combinações
Gilberto Freyre trabalha a alimentação bra- de temperos antigos de Portugal, ou dos modos
sileira a partir do Nordeste açucareiro, advo- tradicionalmente portugueses de fazer doces e
gando que o avanço da humanidade depende conservas, com as frutas da terra, com a man-
da sua adaptabilidade alimentar. Nesse sentido, dioca, com o milho, com a castanha de caju, com
o autor denuncia a pobreza alimentar do pe- a macaxeira ou com o cará. (FREYRE, 1966, p.
ríodo colonial como causa para os problemas 61 – grifos meus).
de formação do povo brasileiro. O predomínio
do latifúndio monocultor privou a população Em suma, para Gilberto Freyre a “criação”
colonizadora de suplementos equilibrados e culinária é das portuguesas e africanas. Das
constantes de alimentação sadia e fresca. O indígenas teriam vindo o milho, o caju, a man-
latifúndio fez com que os alimentos propor- dioca, o cará etc., mas na condição, somente, de
cionados pela abundância de recursos naturais ingredientes (FREYRE, 1966 e 1997).
fossem mal aproveitados. E, a partir da dieta Luís da Câmara Cascudo é ainda mais con-
pobre, Freyre procura explicar “importantes tundente. O autor afirma não tratar da escassez
diferenças somáticas e psíquicas entre o euro- e da fome, mas da comida e do paladar. Trata da
peu e o brasileiro” (FREYRE, 1966, p. 45). Neste culinária, tida como ciência agradável e insepa-
quadro da monocultura, Freyre deixa de lado a rável da vida humana. É desta forma que aborda
participação dos indígenas na culinária. os portugueses e africanos na construção da
Na fusão das “três cozinhas”, Freyre indica cozinha brasileira. No que tange aos grupos
que os índios teriam contribuído apenas num indígenas, Câmara Cascudo deixa a culinária
primeiro momento, logo após os portugueses e o paladar de lado e tece um discurso sobre
terem desembarcado de suas caravelas. E, graças a escassez e a fome. O paladar inexiste nos in-
a isso, os portugueses conseguiram se estabele- dígenas, tudo o que é consumido serve apenas
cer nestas terras. Logo após, as portuguesas e para o sustento. Aos indígenas falta tudo. Falta
africanas, valendo-se das espécies cultivadas pe- óleo, doces, sal, acompanhamentos, ovos, leite,
los indígenas, teriam “criado” os pratos da culi- frituras, comensalidade etc. (CASCUDO, 1967,
nária brasileira (FREYRE, 1966). Isso fica evi- 1972 e 1983).
120
49 49. Etnia yanomami – Festa da Pupunha. Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI.
50. Etnia wajãpi – Festa do Pacu Açu: preparação do beiju. Acervo FUNAI.
50
Para Cascudo, a interação culinária dos indí- ameríndias foram esposas dos inúmeros euro-
genas com as outras duas “raças”, tal qual para peus que desembarcaram no Brasil. E isso per-
Freyre, se deu tão somente via troca de ingre- durou durante os dois primeiros séculos após
dientes. “A cozinha brasileira é um trabalho o descobrimento, período em que faltavam
português de aculturação compulsória, utili- mulheres europeias no Brasil (FREYRE, 1966).
zando as reservas amerabas e os recursos afri- Além de obter esposas indígenas, os portugue-
canos aclimatados” (CASCUDO, 1983, p. 431 ses se inseriram em uma rede de parentesco,
– grifo meu). Ou ainda, “a cozinha do português que lhes proporcionou todo o necessário para
no Brasil exerceu uma influência irresistível a sobrevivência nestas terras estranhas. Através
sobre os africanos e amerabas” (CASCUDO, do parentesco o português se inseriu em um
1983, p. 434). Muitos outros aspectos poderiam sistema de produção/ obtenção/ distribuição
ser elencados, mas me basto com a chocante de alimentos já há muito estabelecido. Berta
opinião de Câmara Cascudo, expressada no li- Ribeiro (1983) aponta que, num primeiro mo-
vro História da Alimentação no Brasil, de que a mento, os portugueses adotaram os alimentos e 121
mulher branca foi quem ensinou as indígenas as técnicas de produção dos indígenas para seu
a cozinhar, utilizando ingredientes europeus estabelecimento no Brasil. Entretanto, diante
(CASCUDO, 1967 e 1983)1. do que foi exposto acima, é possível inverter a
Todavia, como já anunciado, nas “entreli- frase e afirmar que foram os alimentos e téc-
nhas” das obras de Gilberto Freyre e Câmara nicas de produção indígenas que adotaram os
Cascudo aparecem outras informações que portugueses. Os portugueses, como uma crian-
entram em contradição com as acima apre- ça adotada, se inseriram no seio da família in-
sentadas. São estas as informações que julgo dígena e partilharam do sistema culinário dos
mais importantes. grupos indígenas.
Freyre (1966) destaca o casamento entre ho- Esmiuçando um pouco mais esta ideia, os
mens portugueses e mulheres indígenas como casamentos entre portugueses e índias, além
uma das estratégias mais importantes do pro- do alimento em si, proporcionaram aos colo-
cesso de colonização do Brasil. Com isso os nizadores a inserção na rede de parentesco
portugueses conseguiram estabelecer alianças indígena e de partilha de direitos e deveres
com os indígenas e, mesmo com um número desta sociedade. Partilharam, por exemplo, os
reduzido de indivíduos, se estabeleceram no meios e formas de produção, a reciprocidade,
território. A “miscibilidade, mais do que a mo- os mutirões e – porque não? – a simbologia
bilidade, foi o processo pelo qual os portugue- alimentar. Tais aspectos facilitaram muito a
ses compensaram-se da deficiência em massa sobrevivência dos portugueses no Brasil. E
ou volume humano para a colonização em larga – óbvio! – com sogras, cunhadas e esposas in-
escala e sobre áreas extensíssimas” (FREYRE, dígenas, os portugueses, inseridos nas famílias
1966, p. 12). O intercurso com a mulher indíge- extensas, também se valeram das cozinheiras
na fez com que o português se multiplicasse no indígenas. Em outras palavras, todas as etapas
território. Tal estratégia também foi acionada (obtenção, armazenamento, processamento,
em outras colônias portuguesas. preparação, consumo etc.) da alimentação dos
colonizadores ocorreram no modelo indígena.
[...] onde quer que pousassem, na África ou na Nos sistemas culinários dos grupos indíge-
América, emprenhando mulheres e fazendo fi- nas. Nos dois primeiros séculos, a cozinha do
lhos, numa atividade genésica que tanto tinha Brasil foi a indígena. O sistema culinário era
de violentamente instintiva da parte do indiví- o indígena.
duo quanto de política, de calculada, de estimu- Ao empregar a noção de sistema culinário
lada por evidentes razões econômicas e políticas estamos, de forma holística, levando em conta
da parte do Estado. (FREYRE, 1966, p. 11). todo tipo de encadeamento acionado para que
se possa ingerir algum alimento. Os alimentos
Assim, desde os primórdios, formou-se no são “parte inseparável de um sistema articulado
Brasil uma sociedade “híbrida de índio”. As de relações sociais e de significados coletiva-
1 Para uma análise mais completa das obras de Freyre e Cascudo conferir Tempass (2010).
122 mente partilhados” (GONÇALVES, 2002, p. 9). do as três diferentes tradições culinárias. Não
Assim, o foco não deve recair somente sobre encontrei nenhuma evidência que desminta
os alimentos propriamente ditos, mas tudo o isso. Pelo contrário, são inúmeros exemplos de
que direta ou indiretamente lhes diz respeito, pratos, principalmente doces, nos quais foram
ou seja: a cultura. Os alimentos são apenas um acrescentadas as frutas tropicais. Isso quando
dos ingredientes do “cadinho” culinário. Essa dispunham de ingredientes europeus e/ou afri-
noção de sistema culinário nos mostra que nos canos. Aliás, nenhuma cozinha é estática, mas
primeiros séculos de colonização os portugue- sim dinâmica. Criações, adaptações, transfor-
ses não consumiram apenas os ingredientes in- mações são componentes de qualquer cozinha.
dígenas, mas consumiram as comidas indígenas No entanto, estas “criações”, portuguesas e/ou
com e como os indígenas. africanas, não surgiram do nada. Esta “criação”
Depois, não faltavam mais mulheres bran- se deu sobre a base culinária indígena, predo-
cas na colônia, mas ainda faltavam os ingre- minante nos primeiros séculos da colonização.
dientes europeus. Ocorre que, como aponta A cozinha torna-se “híbrida de índio”, tal qual
Freyre (1966), a oferta de ingredientes euro- o povo brasileiro.
peus era muito escassa no Brasil. Poucos eram Tal hibridismo culinário vigora até os dias
produzidos no Brasil (baseado na monocul- atuais. Gilberto Freyre, advogando em favor
tura), e os poucos gêneros que conseguiam da preservação da culinária brasileira, defen-
ser importados eram excessivamente caros. de que doce tradicional tem que ser feito com
Segundo Freyre, “tudo faltava: carne fresca utensílios tradicionais. O uso de algum outro
de boi, aves, leite, legumes, frutas; e o que utensílio, que não o tradicional, altera o gosto
aparecia era da pior qualidade ou quase em e já não produz mais o mesmo doce. O interes-
estado de putrefação” (FREYRE, 1966, p. 53). sante é que, dentre os utensílios listados pelo
Essa escassez perdurou até o início do sécu- autor, encontramos pilões de pau (grandes e pe-
lo XIX. Assim, na grande maioria dos casos quenos), colheres de pau (grandes e pequenas),
(excetuando-se os grandes senhores de enge- peneiras de taquara, folhas de bananeira, palhas
nho, que podiam importar seus alimentos) a de milho, panelas de barro etc., que perduram
base da cozinha brasileira continuou sendo até hoje (FREYRE, 1997). Todos os utensílios
indígena. Com isso podemos concluir que listados são oriundos dos grupos indígenas.
não foi a mulher portuguesa quem ensinou Câmara Cascudo (1983) também chama
as índias a cozinhar, como apontou Cascudo atenção para a nomenclatura das comidas
(1967), mas sim o contrário, a portuguesa teve brasileiras, muitas delas oriundas de línguas
de aprender a cozinhar com as índias. Mais do indígenas. Moqueca, caruru, paçoca, tapioca,
que simples ingredientes, o savoir-faire indí- beiju, mingau etc. não são nomes de simples
gena também vigorou. ingredientes, são nomes de pratos que envol-
Não nego que as mulheres portuguesas te- vem todo um savoir-faire. São nomes surgidos
nham “criado”, ou “recriado”, pratos típicos dentro de um determinado sistema culinário.
portugueses com os ingredientes indígenas. Este é mais um indício de que a contribuição
Ou que mulheres africanas tenham mistura- indígena à culinária brasileira não se resume
simplesmente aos ingredientes. Ou as portu- Brasil Colonial a “endocozinha” era praticada 123
guesas e africanas criaram pratos e os batizaram “fora” de casa e a “exocozinha” era praticada
com nomes indígenas? Os pratos têm nomes in- dentro dela. Conforme Hernández e Arnáiz
dígenas porque são indígenas, mesmo sofrendo (2005), o que se interioriza como tradicional e
modificações ao longo do tempo. peculiar de uma cozinha própria é construído
Alguns dados apresentados por Paula Pinto a partir das comidas festivas. Os alimentos
e Silva (2005), oriundos de uma ampla pesquisa de festa, ou da “exocozinha”, são preparados
histórica que envolveu autores e cronistas, po- com menos frequência, são mais difíceis de
dem complementar a compreensão do impor- preparar, requererem mais tempo (não neces-
tante papel dos grupos indígenas no processo sariamente de cocção) e utilizam ingredientes
de formação da culinária brasileira. Segundo mais caros. Como assinala Ariovaldo Franco
esta autora, por muito tempo, mesmo nas casas (2006), o rotineiro é esquecido e o excepcio-
mais abastadas, perdurou a maneira indígena nal é registrado. Ou, como afirma Câmara
de levar os alimentos à boca. Cascudo (1967), só os ricos têm interesse em
fixar receitas. Isso nos leva à ideia de que, no
Mesmo em casas abastadas não havia mesa, processo de formação da culinária brasileira,
nem bufete, nem aparadores. A comida era en- foram registrados com muito mais ênfase os
tão servida sobre esteiras indígenas colocadas pratos finos, excepcionais, de festa, prepara-
no chão, a cuia de farinha ao centro, cada co- dos pelas sinhás nas cozinhas de dentro. Ou
mensal com seu prato de barro, comendo com as seja, a parte portuguesa neste processo foi
mãos, aos bocados. (SILVA, 2005, p. 32). melhor documentada. Enquanto que a parte
indígena, a base da alimentação, os pratos do
Esteira, farinha, cuia, panela de barro, comer cotidiano preparados na cozinha de fora, foi,
com as mãos... tudo é indígena. Mais uma vez, digamos, esquecida. Talvez isso explique o fato
não apenas os alimentos, mas também a forma de que da culinária indígena, para os autores
de consumi-los é indígena. clássicos e também para os atuais, sejam lem-
O outro aspecto levantado por Silva (2005) brados apenas os ingredientes.
se refere à presença de duas cozinhas nas casas Como afirma Câmara Cascudo, “depois da
dos colonizadores, a de dentro e a de fora. Na respiração, a primeira determinante vital é o
cozinha de dentro, em ocasiões especiais, as alimento” (CASCUDO, 1983, p. 395). A alimen-
sinhás preparavam receitas finas, mais “ela- tação é vital. E, como já argumentado, os indíge-
boradas”, de influência portuguesa. Na cozi- nas foram muito importantes para os objetivos
nha de fora eram preparadas as receitas do de colonização do Brasil porque “forneceram”
dia a dia, não portuguesas, mais demoradas. a alimentação aos colonizadores. No entanto,
Mas estas não eram preparadas pelas sinhás. esta importância raras vezes é reconhecida pelos
A cozinha de fora, com certeza, tem origem descendentes dessa colonização, sendo comum
indígena. Conforme a distinção entre “endo- que os brasileiros ainda caracterizem os indíge-
cozinha” e “exocozinha” proposta por Lévi- nas como arredios, indolentes, preguiçosos etc.,
-Strauss (1979), é curioso de se notar que no porque o habitus indígena nos incomoda.
126 De fato, o índio é extremamente incômodo, por- mulheres indígenas. Assim, quando escravizados
que demonstra cotidianamente que é possível os índios homens, postos a trabalhar na lavoura,
viver de uma maneira diferente, na sua simpli- além da maior jornada de trabalho, estranharam
cidade, no despojamento. Para a sociedade bra- as atividades a que foram designados, tiveram
sileira, é incômodo o fato de existirem pessoas que fazer tarefas desagradáveis a sua condição
que trabalham um mínimo e vivem bem, sem masculina. Diante disso, sem contar com o ób-
serem exploradas por terceiros, pois os índios vio desconforto da escravidão, os índios não de-
não se exploram uns aos outros. A caça e a co- sempenharam satisfatoriamente os trabalhos
leta se distribuem de uma forma mais ou menos impostos, sendo classificados como arredios
tranquila na comunidade. Há uma noção de e preguiçosos. Já a mulher indígena, mesmo
propriedade coletiva, uma noção de trabalho escravizada, continuou realizando as tarefas
comunitário no modo de vida indígena, que é tidas como agradáveis ao seu sexo, plantando,
inquietante para o modo de vida de uma socie- colhendo e cozinhando, tarefas que já realizava
dade burguesa, que é a sociedade do capital, da diariamente. Assim, diante da ruptura ocasiona-
propriedade privada. (IANNI, 1986, p. 22). da pela escravidão, os índios homens sofreram
uma mudança cultural muito mais impactante
Então esse incômodo é muito antigo. An- do que as mulheres. Sobre isso, Freyre afirma
tes de trazerem escravos africanos, os portu- que, diante do contato, “do indígena se salvaria
gueses se valeram muito dos indígenas como a parte por assim dizer feminina de sua cultura”
trabalhadores escravos. Centenas de milhares (FREYRE, 1966, p. 220):
de indígenas, que possibilitaram a permanência
dos portugueses nesse continente mediante os Inserindo-se na vida dos colonizadores como
seus sistemas culinários, de uma hora para ou- esposas legítimas, concubinas, mães de família,
tra passaram a ser capturados e escravizados.2 amas-de-leite, cozinheiras, puderam as mulhe-
Em linhas gerais, os indígenas não foram “bons res exprimir-se em atividades agradáveis ao
escravos” e, inadaptáveis a longas jornadas de seu sexo e à sua tendência para a estabilidade.
trabalho, foram estereotipados como arredios (FREYRE, 1966, p. 203 – grifos meus).
e preguiçosos. Mas esta configuração muda de
acordo com o gênero. Ora, os sistemas culinários Embora isso seja um tanto polêmico, se
são tanto femininos quanto masculinos, mas foi a parte feminina da cultura (se é possível
existe a divisão de tarefas segundo o gênero. Ca- dividi-la em partes) que se “salvou”, “salvou-se”
biam aos homens indígenas as atividades de caça também a culinária indígena, tão importante,
e pesca e também a derrubada da mata para a como procurei demonstrar, para o processo de
abertura dos novos roçados. O plantio, a colheita colonização do Brasil.
e a preparação dos alimentos ficavam a cargo das Como já afirmado, hoje essa importância foi
2 E, muitas vezes, foram capturados com a ajuda de outros grupos indígenas. Os portugueses faziam e desfaziam suas alianças com os
indígenas com muita rapidez. Um grupo que num dia era aliado, no outro, já podia ser inimigo, e o que era inimigo virava aliado. Para uma
análise mais abrangente ver Tempass (2012).
página anterior
apagada da história brasileira. Em parte, como os “civilizados” dos “selvagens”. Os “finos” dos 127
também já observado, porque o que se registra “grossos”. Os “com” modos dos “sem” modos.
são as comidas festivas, não as cotidianas. A parte Para ser civilizado, tal e qual os europeus, era
rica fica para a história, a pobre se faz questão de preciso parar de comer com as mãos, de cozi-
apagar. E, a contribuição portuguesa fica desta- nhar em fogueiras fora de casa, de comer sem
cada, enquanto a indígena é esvaziada. De outra sentar a uma mesa... É preciso parar de comer
parte, também temos a questão “civilizatória”. determinados alimentos considerados vulgares
Ocorre que os alimentos separam e classificam as e passar a comer os pratos mais “refinados”. Ou,
pessoas – em termos étnicos, religiosos, etários, em outras palavras, é preciso parar de comer
sexuais etc. As comidas são poderosos sinais dia- como um índio. O caminho para a civilização
críticos, sendo frequentemente acionados para consistiu na negação de tudo que é indígena.
contrastar grupos em interação (Cf. BARTH, A questão dos doces exemplifica bem esse
1988). No caso das diferenças de classes, como ponto. No início o açúcar era usado como remé-
bem observaram Bourdieu (1985) e Norbert Elias dio, depois passou a ser um alimento simbólico
(1990), as classes mais “elevadas” adotam novos da elite, posto que era muito caro. Então, para
elementos simbólicos, considerados requintados, demonstrar seu poderio econômico, a elite pas-
para se distinguir da massa restante da popula- sou a abusar do uso de açúcar, adicionando-o
ção. Mas as camadas mais baixas da população em praticamente todas as comidas. Os sabores
vão, aos poucos, adquirindo estes hábitos, o que doces e salgados figuravam simultaneamente
motiva a classe alta a adotar novos símbolos. É o nos mesmos pratos. Quando as classes baixas
caso do uso do garfo, por exemplo: antes não se passaram a poder consumir açúcar – muito em
usava garfo na Europa, então os nobres o adota- função da grande produção açucareira brasilei-
ram para se distinguir dos demais, mas as classes ra – este ficou “cafona” e os ricos começaram a
inferiores aos poucos foram também se valendo separar os sabores doces dos salgados. Então a
do garfo, buscando se igualar aos nobres, e com elite passou a comer primeiramente os pratos
isso foram-se tornando cada vez mais complexos salgados e somente depois os doces. E assim foi
os utensílios culinários e chegamos ao quadro criada a sobremesa.
em que os ricos têm dezenas de talheres em torno No Brasil, tanto por influência indígena
do seu prato. E quanto mais talheres o indivíduo quanto portuguesa, as comidas também apre-
sabe usar, mais rico ou nobre ele é. sentavam ao mesmo tempo os sabores doces e
No Brasil esses requintes de distinção entra- salgados. O mel de abelha ou o mel de engenho
ram com enorme força, dando início ao esque- (melado) era adicionado a qualquer prato. Em
cimento da culinária indígena. Se na Europa função da distinção, o mel passou a figurar
a questão era distinguir ricos de pobres, aqui como alimento de “selvagens”, enquanto que
no Brasil a questão primordial era distinguir o açúcar diferenciava os “civilizados”. Os doces
“finos” eram os feitos com açúcar3, os do coti- so de releitura da identidade brasileira, com um
diano eram feitos com melado. E a isso se so- olhar mais cuidadoso para os personagens até
mou o fato de que agora, por cópia do modelo então considerados coadjuvantes, como os ne-
europeu, os sabores doces e salgados devem se gros, os índios, os pobres, os caipiras etc. Gru-
opor. Em suma, para ser “civilizado” é preciso pos que construíram o Brasil e que merecem ser
abandonar a alimentação dos “selvagens”. E, reconhecidos por isso. E, espero modestamente
talvez, até apagar da memória que nossos an- ter contribuído para isso neste breve texto em
cestrais comeram como e com os “selvagens” que busquei chamar a atenção para o papel dos
(Cf. TEMPASS, 2010). Ainda hoje a culinária indígenas na formação da culinária brasileira e
indígena não interessa aos “civilizados”. a sua importância para o surgimento do Brasil.
Mas essa fuga do “selvagem” não é o sufi- Para finalizar, gostaria de alertar que as
ciente. Isso é absurdo, mas como “civilizados” informações apresentadas acima, na verdade,
temos que levar os benefícios da civilização são bem mais complexas. Tentei ser didático
128 também para os “selvagens”. “Ide e fazei discí- e acessível a todos os leitores e por isso aparei
pulos!”. Temos que mostrar para os “primitivos” diversas arestas do texto. O que quero destacar
que a alimentação deles é “ruim” e “inadequa- é que os índios não são todos iguais e, logo,
da” e ensiná-los a comer “do bom e do melhor”, não existe um único modelo alimentar indí-
como nós “civilizados” e mais “evoluídos” faze- gena. Eles até podem se valer dos mesmos in-
mos. Na esteira desta concepção são formula- gredientes, mas cada grupo vai elaborar os seus
dos inúmeros projetos com políticas públicas alimentos de forma diferenciada, de acordo
alimentares, muitas delas copiadas de países com as suas culturas. Pouco importa se todos
supostamente mais “desenvolvidos”, que visam os grupos indígenas brasileiros comem milho
modificar/ melhorar/ intervir nas práticas ali- e mandioca. Cada grupo tem formas singula-
mentares dos ditos “primitivos”.4 E isso ocorre res de obter, cozinhar, servir, consumir, tem
em praticamente todas as aldeias indígenas que imaginários diferentes sobre estes alimentos.
resistiram à colonização, das maiores às meno- Como afirma Fischler (1995), culturas distintas,
res, das mais próximas às mais distantes, seja sistemas alimentares distintos. Creio que nisso
por iniciativa de missionários, ONGs, agências reside a ocorrência de tantas cozinhas regionais
internacionais, instituições governamentais e/ no Brasil. Então, a contribuição indígena para
ou de pesquisa. É comum que quando se fale a culinária brasileira não foi “uma”, mas sim
em melhorar as precárias condições indígenas, “várias”. Cada diferente grupo indígena com
a proposta é deixá-los mais parecidos conosco, quem os colonizadores entraram em contato
que somos “civilizados”. E isso também ocor- forneceu um tipo diferente de contribuição.
re, e muito, na questão alimentar. Então, em A cozinha brasileira não surgiu em uma única
pleno século XIX, os grupos indígenas cons- região e num determinado espaço de tempo,
tantemente estão lutando para manterem os como pensam certos autores. Ao contrário,
seus padrões alimentares tradicionais. E com a trata-se de uma confluência de todas as regiões
manutenção da sua alimentação também visam e de uma lenta e contínua construção histórica.
preservar a sua cultura. Desta forma, em cada região, em cada período,
O Brasil, historicamente formado pela fusão diferentes povos indígenas estiveram em con-
de “brancos”, “negros” e “índios”, sempre teve tato com portugueses e negros (sem falar nos
como dirigente a elite “branca” da população. outros grupos de imigrantes), produzindo uma
E essa elite, para se diferenciar dos demais bra- interação específica. Mapear a contribuição de
sileiros, passou séculos copiando os absurdos cada um dos grupos indígenas, nos diferentes
modelos de “civilização” de países europeus. períodos, é uma tarefa quase impossível. Como
Até décadas atrás o Brasil não passava de uma um todo, é possível afirmar que a contribuição
“cópia”. E essa “cópia” estigmatizou tudo o que indígena para a alimentação brasileira é mui-
era genuinamente brasileiro, negou os valores to mais complexa do que tem sido noticiado.
locais e louvou os importados. Felizmente, per- Notícias que foram recortadas visando a “civi-
cebo que no Brasil está se iniciando um proces- lização” europeia.
3 No Brasil o açúcar distinguia os “civilizados” dos “selvagens”, mesmo se este açúcar fosse combinado com ingredientes nativos, tal como
os indígenas faziam com o mel (Cf. TEMPASS, 2010).
4 Uma análise detalhada destes tipos de projetos pode ser encontrada em Tempass (2008 e 2009).
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129
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Mártin César Tempass é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UFRGS, mes-
tre e doutor em Antropologia Social pela UFRGS e cursou pós-doutorado na UNSAN
(Buenos Aires). É pequisador vinculado ao Núcleo de Antropologia das Sociedades In-
dígenas e Tradicionais (NIT) da UFRGS e professor temporário no Departamento de
Antropologia da UFPel.
Cenário contemporâneo
da educação escolar
indígena no Brasil
Gersem Baniwa
130
Introdução
Este artigo tem como propósito apresentar um nas nos últimos anos e os sistemas de ensino
panorama atual do processo de desenvolvimen- têm se esforçado em oferecer o atendimento
to da educação escolar indígena no Brasil, no escolar nas próprias comunidades como uma
âmbito da Secretaria de Educação Continuada, forma de desestimular o êxodo. A oferta de
Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Mi- educação escolar intercultural e multilíngue
nistério da Educação. de qualidade nas aldeias é uma dessas políticas
O desenvolvimento de políticas públicas importantes para garantir a permanência dos
que garantam a permanência dos jovens in- jovens indígenas nos seus territórios e contri-
dígenas em seus territórios com qualidade de buir para o desenvolvimento socioeconômico
vida tem sido a preocupação dos povos indíge- de suas comunidades.
131
Processo histórico
A implantação das primeiras escolas nas comu- se transformarem em cristãos e patriotas obe-
nidades indígenas no Brasil é contemporânea dientes e submissos, o que facilitaria a posse
à consolidação do próprio empreendimento de suas terras.
colonial português. Isso não quer dizer que os Em 1906, os assuntos indígenas, e em par-
povos indígenas não tivessem seus processos ticular a educação escolar indígena, passam a
próprios de educação antes da chegada dos por- ser atribuições do Ministério da Agricultura
tugueses. Processos educativos são inerentes a e, em 1910, de um órgão especialmente dedi-
qualquer sociedade humana, pois é por meio cado à questão, o Serviço de Proteção ao Ín-
deles que os grupos produzem, reproduzem, dio (SPI). Neste novo quadro jurídico-admi-
difundem seus conhecimentos e valores para nistrativo, começam a surgir, pouco a pouco,
garantir sua sobrevivência e continuidade his- as primeiras escolas indígenas mantidas pelo
tórica. O modelo de escola trazido e implanta- Governo Federal.
do pelos portugueses (com professor, sala de A Constituição de 1934 foi a primeira que
aula, livros, carteiras, disciplinas, currículos, atribuiu poderes exclusivos à União para legis-
diretor etc.) é totalmente estranho às cultu- lar sobre assuntos indígenas. Neste cenário, as
ras indígenas tradicionais, mas aos poucos 66 escolas indígenas organizadas pelo SPI até
foi sendo necessário e importante para a vida 1954, assim como as inúmeras escolas missio-
pós-contato. nárias, passaram a representar, junto com as
A educação indígena no Brasil colônia foi frentes de trabalho, os principais instrumentos
promovida por missionários, principalmente institucionais desta “incorporação” prevista em
jesuítas, por delegação explícita da coroa por- lei, processo marcado pela negação da diferença
tuguesa, e instituída por instrumentos oficiais cultural e pelo assimilacionismo étnico.
como as cartas régias e os regimentos. Esta edu- Este quadro passou a se defrontar com um
cação tinha uma missão muito clara de civilizar, forte contraponto nos últimos anos da década de
cristianizar e de incutir nos índios um sentido 1950: a Convenção n° 107 da Organização Inter-
de pátria. Em outras palavras, fazer com que nacional do Trabalho, de 26 de junho de 1957, que
os índios deixassem de ser índios (deixassem trata sobre proteção e integração das populações
de falar suas línguas próprias, abandonassem tribais e semitribais de países independentes, rati-
suas culturas, seus costumes, suas terras) para ficada e incorporada ao cenário brasileiro.
A proposta de educação escolar indígena inter- rem vivendo segundo suas culturas, sendo-lhes
cultural, bilíngue e diferenciada surgiu como garantido, inclusive o direito de ingressar em
contraponto ao projeto colonizador da esco- juízo na defesa de seus direitos e interesses, su-
la tradicional oferecida aos povos indígenas. perando a ideia de incapacidade civil e política
Surgiu na década de 1970 no Brasil. Apenas destes indivíduos e povos.
duas décadas depois, o Governo, através do A ideia mais aceita entre os professores in-
Ministério da Educação, incluiu o tema na dígenas no que diz respeito à educação escolar
sua agenda de discussão. As iniciativas foram indígena diferenciada é aquela educação traba-
desenvolvidas como estratégias de luta pela re- lhada a partir da escola, mas tendo como funda-
cuperação das autonomias internas e conquista mento e referência os pressupostos metodoló-
de direitos coletivos. gicos e os princípios geradores de transmissão,
132 Em termos conceituais e políticos, foi a produção e reprodução de conhecimentos dos
Constituição Federal de 1988 que revolucio- distintos universos socioculturais específicos de
nou o rumo da política indigenista oficial e, cada povo indígena. Uma educação que garanta
junto, a educação escolar indígena. A Consti- o fortalecimento e a continuidade dos sistemas
tuição superou de forma definitiva a concep- de saber próprios de cada comunidade indígena
ção equivocada da incapacidade indígena que e a necessária e desejável complementaridade
fundamentou o princípio jurídico da tutela, de conhecimentos científicos e tecnológicos,
por meio do qual era concedido ao Estado o de acordo com a vontade e a decisão de cada
poder e a responsabilidade de decidir pela vida comunidade. Isso possibilitou apropriar-se dos
e destino dos povos indígenas do país. A referi- conhecimentos tecnológicos para ajudar a resol-
da Constituição é explícita quanto à garantia ver velhos e novos problemas da vida nas aldeias,
dos direitos dos povos indígenas ao reconhecer sem necessidade de abdicar de suas tradições, va-
suas culturas, tradições, línguas, organizações lores e conhecimentos tradicionais, antes perse-
sociais, crenças, enfim, o direito de continua- guidos, negados e proibidos pela própria escola.
Base legal
Ensino Superior
Dados atuais revelam que, a partir de 2002, a Nenhum outro segmento da população brasi-
expansão anual da matrícula em escolas in- leira apresenta um crescimento tão expressivo
dígenas aproxima-se da taxa de 10% ao ano. no período.
Evolução da oferta de educação escolar indígena – 2002/2006
Fonte: CGEEI/SECAD/MEC
A proposta de educação escolar indígena dife- passava a marca dos 20% do total dos docentes
renciada foi fundamental para o surgimento que trabalhavam nas escolas implantadas em
de um novo segmento estratégico: o dos pro- comunidades indígenas. Atualmente, os profes-
fessores indígenas. Os números atuais são re- sores indígenas atuando nas escolas indígenas
presentativos desse avanço. Vinte anos atrás, representam mais de 96% dos mais de 12.000
o número de professores indígenas não ultra- em atividade.
1.985 professores
1997 indígenas e 652 2.637 Relatório FUNAI
professores não índios
10.928 professores
2006 indígenas e 1.928 12.856 CGEEI/MEC–2006
professores não índios
11.820 professores
2010 indígenas e 1.200 12.020 CGEEI/MEC
professores não índios
1 Os dados relativos ao período anterior de 2000 foram tomados do relatório de consultoria de Eliene Amorim contratada pelo Conselho
Nacional de Educação, com recursos do PNUD e os demais são do Censo Escolar (INEP).
Recursos Financeiros
Nos últimos anos houve um crescimento subs- ção Escolar (merenda escolar), cujo valor per
tancial dos recursos financeiros destinados à capita por aluno indígena é o dobro do valor
educação escolar indígena no país. A principal per capita do aluno não indígena. Além disso,
fonte tem sido o FUNDEB (Fundo Nacional os recursos da Coordenação Geral de Educação
de Desenvolvimento da Educação Básica), que Escolar Indígena (CGEEI/SECAD/MEC) têm
neste ano alcançou o volume de R$ 500 mi- sido ampliados, no apoio complementar aos
lhões, destinado à manutenção e funcionamen- estados, municípios e universidades, no atendi-
to das escolas indígenas (o valor per capita por mento às escolas indígenas, principalmente, na
aluno indígena é 20% superior ao aluno não construção de escolas, formação de professores
indígena), seguido do Programa de Alimenta- e material didático diferenciado.
Crescimento orçamentário suplementar de educação escolar indígena 2004/2006/2007
137
ANO VALORES CRESCIMENTO
2004 R$ 119.258.368,00
Nas últimas duas décadas aconteceram con- tes Municipais de Educação (UNDIME) e ao
quistas extraordinárias no campo da política de Conselho Nacional de Secretários Estaduais de
educação escolar indígena no Brasil, em grande Educação (CONSED) em busca da expansão da
medida pela articulação dos povos indígenas, oferta, com qualidade, de educação escolar nas
mas também por maior sensibilidade dos diri- comunidades indígenas.
gentes do poder público no processo de rede- Outro aspecto importante é a ampliação de
mocratização do país, iniciado nos anos finais programas federais voltados à qualificação da
da década de 1980. Saímos de algumas poucas educação escolar indígena, tais como: formação
escolas em aldeias que tinham por objetivo in- de professores por meio do Magistério Indíge-
tegrar, civilizar e colonizar os povos indígenas, na, que já formou mais de 10.000 professores
proibindo suas línguas e condenando suas tra- indígenas em todos os estados do Brasil, e das
140 dições e culturas, para muitas escolas indígenas Licenciaturas Interculturais (PROLIND), que
bilíngues ou plurilíngues e interculturais, com já formaram 500 professores indígenas, com
autonomia político-pedagógica, nas quais 96% mais 3.000 em processo de formação; progra-
de professores são indígenas, garantindo maior mas do FNDE, como o Programa da Alimenta-
protagonismo indígena na condução pedagó- ção Escolar, com atenção especial para alunos
gica e administrativa das escolas. indígenas, que têm um valor per capita superior
Nos últimos quatro anos foram feitos es- ao das escolas não indígenas, incentivando e
forços por parte do Ministério da Educação, favorecendo a permanência dos alunos em
por meio da Coordenação Geral de Educação suas escolas; produção de materiais didáticos
Escolar Indígena, em busca de maior qualidade específicos, que refletem as realidades sociolin-
nas escolas indígenas, priorizando ações de sen- guísticas, a oralidade e os conhecimentos dos
sibilização dos sistemas de ensino. Em termos povos indígenas.
quantitativos houve progressos consideráveis, Outro avanço político relevante é a ênfase
como mostram o crescimento da oferta em to- dada pelo MEC no reconhecimento e valori-
dos os níveis de ensino, o maior aporte de re- zação da diversidade, expressa na criação da
cursos principalmente por meio do FUNDEB, SECAD e na expansão dos recursos emprega-
maior articulação com os sistemas de ensino, dos exclusivamente no desenvolvimento da
envolvendo o CONSED, a UNDIME e a cria- educação escolar indígena, destinados ao apoio
ção da SECAD. aos sistemas estaduais e municipais de ensino.
Os números informam que, a partir de 2002, Estes recursos atingiram, em 2007, o montante
a expansão anual da matrícula em escolas indí- de R$ 110 milhões, correspondendo a um au-
genas aproxima-se da taxa de 10% ao ano. Mui- mento sem precedentes na história da dotação
tos fatores explicam esta expansão. O primeiro orçamentária para essa modalidade de ensino.
fator é a nova percepção dos povos indígenas Além disso, a realização da I Conferência Na-
quanto à educação escolar, que além de ser cional de Educação Escolar Indígena em 2009
um direito básico, é uma estratégia na cons- e a agenda de trabalho definida a partir dela,
trução de seus projetos societários de futuro. mostram o quanto o Estado brasileiro – e em
O segundo fator refere-se à ação contínua da especial o MEC – está cada vez mais incluindo
SECADI/MEC junto às secretarias municipais em sua agenda estratégica a questão da educa-
e estaduais de educação, à União dos Dirigen- ção escolar indígena.
Considerações finais
A crescente demanda dos povos indígenas pela tais como: a) diversidade étnica: são mais de 230
escolarização em todos os níveis de ensino ex- povos, linguística e culturalmente diferencia-
pressa a importância depositada na formação dos, vivendo nos mais diversificados contex-
escolar como instrumento de defesa e garantia tos políticos, em todos os biomas e situações
dos seus direitos, bem como a necessidade de ambientais do território nacional, em terras
apropriação de novos conhecimentos e tecno- indígenas cuja extensão varia de poucas cente-
logias capazes de contribuir para a solução de nas de hectares a milhares de quilômetros qua-
velhos e novos problemas que as comunidades drados; b) povos que contam com centenas de
enfrentam em seus territórios. A formação es- anos de contato e outros, como os Xavante, que
colar é considerada como uma condição ne- começam a manter contato permanente com
cessária para garantir um futuro desejável. A a sociedade nacional a partir dos anos 1950, e
importância dada ao processo escolar de ensino outros ainda, como os Enawenê-nawê, contac- 141
pelas comunidades e povos indígenas vai ao tados somente nos anos 1980; c) um espectro
encontro de algumas expectativas etnopolíti- que abrange sociedades monolíngues em língua
cas relevantes, como a necessidade de qualifi- indígena e sociedades monolíngues em portu-
car quadros técnicos indígenas para a gestão guês, passando por níveis muito variados de
territorial, formulação e gestão de projetos de bilinguismo e, muitas vezes, de multilinguis-
etnodesenvolvimento, a fim de responder aos mo; d) povos que contam com apenas algumas
problemas de sobrevivência alimentar e econô- dezenas de pessoas ameaçadas de extinção e
mica e atender ao desejo de autonomia. localizadas em um único território, e outros
Os povos indígenas se apresentam hoje como povos como os Ticuna que são milhares e se
um dos segmentos da sociedade brasileira que espalham por vários municípios e têm paren-
luta com maior intensidade pelo acesso a escola tes vivendo em outros países ou ainda povos,
pública adequada e de qualidade. Atualmente, como os Guarani, que estão presentes em vários
têm-se mais de 620 territórios indígenas demar- estados da federação e em outros países, como
cados e homologados, constituindo quase 13% o Paraguai, onde a língua guarani é uma língua
do território nacional. A população indígena oficial do país, ao lado do espanhol; e) povos
apresenta um crescimento demográfico próxi- relativamente protegidos em seus territórios,
mo aos 4%, quase o triplo da média nacional. As como os Yekuana em Roraima e outros que
lideranças indígenas têm clareza da importância mantêm intenso fluxo de relações com centros
estratégica da educação escolar para seus povos, urbanos como os Terena e Kaingang.
em particular para sua juventude, como possi- Por fim, é essencial não esquecer que falar
bilidade de um futuro mais promissor. Por tudo de educação escolar indígena no Brasil é falar
isso, as demandas indígenas por uma educação de 230 povos que ocupam 13% do território
escolar adequada e desenvolvida em harmonia nacional. Na Amazônia Legal, as terras indíge-
com seus projetos societários de futuro crescem nas somam 23% da região. Essas terras apresen-
em quantidade e complexidade, trazendo novos tam indiscutível importância estratégica para
desafios aos sistemas de ensino. o país, haja vista a sua inestimável riqueza em
O Estado brasileiro e em particular o Mi- sociobiodiversidade, ainda altamente preserva-
nistério da Educação tem assumido o desafio da e protegida por seus habitantes ancestrais.
de construir políticas cada vez mais coerentes Nesta perspectiva, a presença dos povos indí-
com as aspirações dos povos indígenas e com as genas no país representa em sua totalidade um
determinações constitucionais, mesmo diante fato de extraordinária importância histórica e
de grandes desafios oriundos da diversidade e constitui um fenômeno social com caracterís-
complexidade da realidade indígena brasileira, ticas, problemas e conquistas específicas.
54. Etnia Kamayurá – Ritual Feminino (Yamurikumã). Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI.
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A Constituição Federal brasileira de 1988 e os direitos indígenas
A atual Constituição brasileira é uma das mais fundamental regular (art. 210, § 2º); determinou
avançadas da América Latina em termos de que o Estado deve proteger as manifestações
direitos indígenas1, ao lado das constituições das culturas indígenas (art. 215, § 1°); consagrou
da Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, a organização social, costumes, línguas, crenças
Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Pa- e tradições indígenas (art. 231, caput); reconhe-
raguai, Peru e Venezuela. Fazem algum tipo ceu aos índios os “direitos originários” sobre as
de referência a direitos indígenas também as terras que tradicionalmente ocupam (art. 231,
constituições de Costa Rica, El Salvador, Guia- caput); afirmou o dever da União de proteger e
na e Honduras. São omissas as constituições fazer respeitar os índios, seus bens e terras (art.
de Belize, Chile, Guiana Francesa, Suriname 231, caput); definiu as “terras tradicionalmente
e Uruguai. ocupadas pelos índios” (art. 231, § 1°) e discipli-
144 Sem dúvida a Constituição atual, dentre to- nou cuidadosamente o seu regime jurídico (art.
das que fizeram parte da história constitucio- 231, §§ 2°, 3°, 4°, 5°, 6° e 7°), além de ter estipu-
nal brasileira, foi a que mais se comoveu com a lado a competência da União para demarcá-las
questão indígena, o que resultou em uma longa (art. 231, caput) no prazo máximo de cinco anos
disciplina jurídica do tema, a qual constitui o a partir da promulgação da Constituição (arts.
que se pode denominar “direito constitucional 231, caput, e 67 do ADCT); outorgou legitimi-
indigenista” brasileiro atual2: manteve as ter- dade às comunidades e organizações indígenas
ras tradicionalmente ocupadas pelos índios no para ingressarem em juízo em defesa de seus
domínio da União (art. 20, XI) e a competência direitos e interesses, intervindo o Ministério
privativa desta para legislar sobre populações Público em todos os atos do processo (art. 232).
indígenas (art. 22, XIV); estabeleceu a compe- E, o que é importante, isso se deu, felizmen-
tência exclusiva do Congresso Nacional para te, sob as luzes de um novo padrão de pensa-
autorizar, em terras indígenas, a exploração mento acerca das relações entre o Estado, a
e o aproveitamento de recursos hídricos e a sociedade dominante e os nossos índios. De
pesquisa e lavra de riquezas minerais (art. 49, fato, honrando a alcunha de “cidadã”, a nova
XVI); determinou a competência da Justiça Constituição promoveu uma verdadeira mu-
Federal para processar e julgar a disputa sobre dança de paradigma, derrotando o até então
direitos indígenas (art. 109, XI); conferiu ao tradicional viés integracionista3 que dominava
Ministério Público a função institucional de todo o Direito positivo brasileiro e que ditava
defender judicialmente os direitos e interesses um tratamento de teor etnocêntrico que partia
das populações indígenas (art. 129, V); afirmou da premissa de que os índios viviam em um
que a pesquisa e a lavra de recursos minerais estágio de desenvolvimento inferior e, por-
e o aproveitamento dos potenciais de energia tanto, para o seu próprio bem, deveriam ser
hidráulica dependem de condições específicas integrados pelo Estado à comunhão nacional. Em
legalmente previstas quando essas atividades se outras palavras, o Direito brasileiro, acompa-
desenvolverem em terras indígenas (art. 176, nhando pensamento que durante muito tem-
§ 1°); assegurou às comunidades indígenas a po predominou em outras ciências sociais,
utilização de suas línguas maternas e processos louvava o abandono de culturas tidas como
próprios de aprendizagem, inclusive no ensino “primitivas” e a absorção dos grupos humanos
1 Os índios tiveram uma participação ativa no processo constituinte (LACERDA, Rosane. A participação indígena no processo constituinte.
In Caderno Constituição & Democracia, n° 20, março de 2008).
2 Sobre a disciplina constitucional dos direitos indígenas vide, dentre outros: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 232. In BONAVIDES,
Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura (coords.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 2399-
2428; ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Breve balanço dos direitos das comunidades indígenas: alguns avanços e obstáculos desde a Constituição
de 1988. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (coords.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988.
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, pp. 569-604.
3 A rigor, é possível adotar uma distinção conceitual entre os termos assimilação e integração. Nessa visão, o primeiro refere-se a um
processo de aproximação cultural que implica perda do elemento diferenciador de um grupo minoritário, ao contrário do segundo no qual a
diferença é mantida. Entretanto, considerando os objetivos do presente trabalho e o fato de que muitos dos estudos jurídicos, sociológicos e
antropológicos brasileiros não fazem a distinção acima mencionada, utilizaremos aqui a palavra integração no sentido técnico de assimilação.
respectivos pela sociedade “civilizada”. Um O comando constitucional pós-1988 veleja
bom exemplo dessa orientação era o sistema no sentido da valorização de todas as culturas
de incapacidade e de tutela orfanológica ao qual presentes nos diversos grupos formadores da
eram submetidos os índios brasileiros até a sua sociedade brasileira, sem qualquer escalona-
completa assimilação4. mento hierárquico e sem nenhum resquício da
Os índios não mais devem estar submetidos antiga pretensão homogeneizadora. A Consti-
a uma tutela orfanológica, como se fossem in- tuição interdita todo e qualquer entendimento
capazes de tomar as suas próprias decisões com jurídico que insista, de forma direta ou indire-
base em sua vontade livre e consciente, e que, ta, na tese, já superada, da superioridade cul-
portanto, precisam ter a sua vida e os seus bens tural da sociedade majoritária. Como corolário
geridos pelo Estado. Prova contundente dessa do princípio constitucional da proteção da iden-
incompatibilidade é a já referida previsão cons- tidade, está garantida a liberdade cultural de
titucional de que os índios, suas comunidades todos os grupos integrantes da nossa sociedade,
e organizações, por si sós, independentemente inclusive os indígenas, que podem continuar a 145
do Estado, possuem capacidade postulatória exercer a sua identidade própria, se assim dese-
para ingressar em juízo na defesa de seus direi- jarem, sem qualquer possibilidade de sofrerem
tos e interesses5. A única tutela admissível após discriminações negativas em decorrência do
a atual Constituição é aquela que, revestida de exercício desse verdadeiro direito à diferença
caráter de Direito público, visa proteger os povos ou à alteridade. A vereda constitucional indica
indígenas e os seus bens, sob a perspectiva de a valorização, o respeito e a proteção do modo
que se trata de minorias culturais, independen- de ser e de viver dos índios, criando obrigações
temente de como os mesmos interagem com a estatais a respeito e incluindo a cultura indíge-
sociedade majoritária. na no patrimônio cultural brasileiro6.
A nova disciplina constitucional fincou uma organizações para defenderem os seus direitos
sólida base a partir da qual foi intensificada e interesses perante o Poder Judiciário8, como
a luta dos índios pelos seus direitos, com o ainda incumbiu expressamente o Ministério
crescimento das demandas no plano extraju- Público da defesa judicial desses mesmos di-
dicial e judicial7. Talvez prevendo esse fato, a reitos e interesses9. Isso tudo sem prejuízo da
Constituição cuidou de assegurar que os povos possibilidade dos grupos indígenas serem de-
indígenas fossem defendidos da melhor forma fendidos por outros órgãos ou entidades, como,
possível. Para tanto, não só conferiu legitimi- por exemplo, a União e a Fundação Nacional
dade aos próprios índios, suas comunidades e do Índio (FUNAI).
4 Artigos 7° a 11 do Estatuto do Índio. A tutela era prevista, ainda, no artigo 6°, parágrafo único, do já revogado Código Civil de 1916, segundo
o qual “Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem
adaptando à civilização do país.” (redação da lei n° 4.121/1962). No que concerne à incapacidade, esse mesmo Código Civil, no seu artigo 6°, inciso
III, colocava os “silvícolas” como relativamente incapazes. Sobre a incapacidade e a tutela orfanológica, vide: SOUZA FILHO, Carlos Frederico
Marés. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 1998, pp. 92-109.
5 Artigo 232 da CF/88. Nesse mesmo sentido, dentre outros: SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Direito Indígena, Direito Coletivo e
Multiculturalismo. In SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (coords.). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008, p. 587.
6 Para uma visão mais profunda da mudança de paradigma do direito brasileiro em relação à temática indígena, vide: ANJOS FILHO, Robério
Nunes dos. Breve balanço dos direitos das comunidades indígenas: alguns avanços e obstáculos desde a Constituição de 1988. In SOUZA NETO,
Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (coords.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2009, pp. 569-604.
7 Boa parte das questões judiciais e extrajudiciais tem como pano de fundo um choque entre interesses econômicos, supostamente a serviço
do desenvolvimento nacional, e os direitos dos grupos indígenas, com destaque para a questão fundiária. Outras vezes o problema está na
ausência de efetivação de certos direitos dos povos indígenas, como aqueles relativos à saúde e à educação.
8 Art. 232, CF/88. Essa possibilidade, no plano infraconstitucional, já era prevista no art. 37 da Lei nº 6.001/1973.
9 Art. 129, V, CF/88.
146 A Constituição de 1988 também fortaleceu mesmo ramo do Ministério Público ou de ra-
o Ministério Público, trazendo uma série de mos diversos, visando a melhor defesa possível
inovações que modernizaram a instituição e a dos direitos e interesses dos povos indígenas14.
tornaram uma das mais avançadas no mundo10. Dentre todos os ramos do Ministério Público
Dentre as atribuições determinadas pela nova no Brasil é o Ministério Público Federal aquele
Constituição encontramos o dever de defen- que possui a maior parcela de obrigação quanto
der judicialmente os direitos e interesses das ao dever de defender os povos indígenas. E a
populações indígenas11, bem como o de inter- razão é muito simples. As atribuições do Minis-
vir em todos os atos dos processos judiciais tério Público Federal são essencialmente exer-
nos quais esses direitos e interesses estejam cidas perante a Justiça Federal, a qual é cons-
sendo discutidos12. titucionalmente competente para processar e
Os deveres constitucionais relativos à de- julgar não só todas as causas que dizem respeito
fesa dos povos indígenas dirigem-se a todos os à disputa sobre direitos indígenas15, como, tam-
ramos do Ministério Público da União (Minis- bém, as ações de interesse da União16, entidade
tério Público Federal, Ministério Público do a quem a Constituição conferiu o domínio das
Trabalho, Ministério Público do Distrito Fe- terras tradicionalmente ocupadas pelos índios17
deral e Territórios, Ministério Público Militar) e o dever de demarcar essas terras, proteger e
e também aos Ministérios Públicos Estaduais, fazer respeitar todos os bens indígenas18.
guardadas, obviamente, as atribuições judiciais As atribuições do Ministério Público Fe-
e extrajudiciais respectivas13. Dentro de cada deral relacionadas à defesa dos direitos e inte-
Ministério Público, os seus membros, em todos resses das comunidades indígenas foram disci-
os níveis da carreira, devem agir pautados por plinadas no plano infraconstitucional pela Lei
essas determinações constitucionais. Também é Complementar nº 75, de 199319. Este diploma
possível uma atuação conjunta de membros do normativo possibilitou que essas atribuições
10 Para uma visão geral do perfil do Ministério Público na nova ordem constitucional vide: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. O Ministério
Público. In TAVARES, André Ramos (org.). 1988-2008: 20 Anos da Constituição Cidadã. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2008, pp. 178-180.
11 Art. 129, V, CF/88. Em termos de legislação comum, a Lei 6.001/1973 já determinava, nos seus artigos 9º, parágrafo único, 36 e 37, a atuação
judicial do Ministério Público em questões envolvendo direitos e interesses indígenas.
12 Art. 232, CF/88.
13 Por exemplo, é atribuição do Ministério Público do Trabalho propor, perante a Justiça do Trabalho, as ações necessárias à defesa dos direitos
e interesses dos índios decorrentes das relações de trabalho (art. 83, V, da Lei Complementar nº 75/1993).
14 Acerca das diversas formas de atuação conjunta, vide: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos; OLIVEIRA JÚNIOR, Oto Almeida. Breves Ano-
tações Sobre a Atuação Conjunta de Membros do Ministério Público. In CHAVES, Cristiano; ALVES, Leonardo Barreto Moreira; ROSENVALD,
Nelson (orgs.). Temas Atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010, pp. 241-286.
15 Art. 109, XI, CF/88.
16 Art. 109, I, CF/88.
17 Art. 20, XI, CF/88.
18 Art. 231, caput, CF/88.
19 Vide especialmente os seguintes dispositivos: artigo 5º, III, “e”; artigo 6º, VII, “c”; artigo 6º, XI; artigo Art. 37, II.
sejam exercidas através de instrumentos pró- pete em especial defender os direitos constitu- 147
prios, como o inquérito civil público e a ação cionais do cidadão com vistas à garantia do seu
civil pública20. Além disso, expressamente de- efetivo respeito pelos Poderes Públicos e pelos
terminou que o Ministério Público Federal prestadores de serviços de relevância pública22.
exercerá a defesa de direitos e interesses dos Importante destacar, nessa linha, o trabalho
índios e das populações indígenas nas causas desenvolvido pela 6ª Câmara de Coordenação
de competência de quaisquer juízes e tribunais, e Revisão do Ministério Público Federal. As
possibilitando assim, por exemplo, a atuação câmaras são órgãos setoriais de coordenação,
dos seus membros perante a Justiça Estadual, integração e revisão do exercício funcional na
quando necessário21. instituição, organizadas por função ou por ma-
Dentro do Ministério Público Federal a téria, através de ato normativo, compostas por
defesa dos direitos e interesses das comunida- três membros, sendo um indicado pelo Procu-
des indígenas deverá ser exercida por todos os rador-Geral da República e dois pelo Conselho
seus membros, nos diferentes graus da carreira. Superior, juntamente com seus suplentes, para
Assim, o Procurador-Geral da República, os um mandato de dois anos, dentre integrantes
Subprocuradores-Gerais da República, os Pro- do último grau da carreira, sempre que possí-
curadores Regionais da República e os Procu- vel23. Um dos membros de cada Câmara será
radores da República, cada um nos limites das designado pelo Procurador-Geral para a função
suas atribuições respectivas, devem se desin- executiva de Coordenador24. Conforme a Lei
cumbir dessa importante tarefa. O Procurador- Complementar 75/199325, compete às Câma-
-Geral da República, por exemplo, poderá pro- ras de Coordenação e Revisão: I – promover a
por, junto ao Supremo Tribunal Federal, ações integração e a coordenação dos órgãos institu-
de controle de constitucionalidade em face de cionais que atuem em ofícios ligados ao setor
leis ou atos normativos federais ou estaduais de sua competência, observado o princípio da
que violem os direitos dos índios. independência funcional; II – manter inter-
Também é possível que algumas funções ou câmbio com órgãos ou entidades que atuem
cargos exercidos pelos membros do Ministério em áreas afins; III – encaminhar informações
Público Federal tenham uma ligação específica técnico-jurídicas aos órgãos institucionais que
com o dever de proteção aos povos indígenas. É atuem em seu setor; IV – manifestar-se sobre o
o caso, por exemplo, do Procurador Federal dos arquivamento de inquérito policial, inquérito
Direitos do Cidadão e dos Procuradores Regio- parlamentar ou peças de informação, exceto
nais dos Direitos do Cidadão, aos quais com- nos casos de competência originária do Procu-
26 Resolução nº 06, de 16 de dezembro de 1993, do Conselho Superior do Ministério Público Federal. Trata do tema também a Resolução nº
20, de 06 de fevereiro de 1996, do Conselho Superior do Ministério Público Federal.
27 Art. 7º, II, da Resolução nº 20, de 06 de fevereiro de 1996, do Conselho Superior do Ministério Público Federal.
28 Atualmente a 6ª Câmara mantém três Grupos de Trabalho relacionados aos direitos e interesses dos povos indígenas: Grupo de Trabalho
sobre Educação Indígena; Grupo de Trabalho sobre Registro Civil; e Grupo de Trabalho sobre Saúde Indígena. Fonte: http://ccr6.pgr.mpf.gov.
br/documentos-e-publicacoes/relatorios-de-atividades-1, acesso em 10/10/2011.
29 Em relação aos projetos inseridos no planejamento estratégico e que tratam direta ou indiretamente da temática indígena, estão em
andamento os seguintes: “Direito à diversidade sociocultural: estudos comparados”; “Construção de banco de dados de atuação do MPF na
matéria referente à 6ª CCR”; “Digitalização e indexação de documentos da 6ª CCR”; “Criação e manutenção do site da 6ª CCR”; “Realização de
Oficina de Trabalho sobre os Povos Indígenas da Região Nordeste”; “Discussão do Regime Jurídico da contratação dos professores indígenas”;
“Criação do GT – Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais”; “Acompanhamento da transição da atenção à saúde indígena da FUNASA
para o Ministério da Saúde”; e “Acompanhamento do ensino superior indígena”. Fonte: http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/
relatorios-de-atividades-1, acesso em 10/10/2011.
30 http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/, acesso em 10/10/2011.
Conclusão
Há sérios obstáculos a se enfrentar na luta judi- questão indígena é permeada por conflitos que
cial e extrajudicial pela concretização dos direi- culminam em atos de violência física e moral,
tos e interesses dos povos indígenas no Brasil. bem como em situações de devastação ambien-
Muitos ainda não estão sintonizados com o tal, desamparo educacional, desatenção à saúde,
novo paradigma constitucional de respeito à preconceito, desigualdade, racismo, exclusão,
diferença e de inexistência de hierarquia en- miséria e fome.
tre as culturas dos diversos povos que formam A alteração desse quadro exige uma firme
o conjunto de brasileiros. Lamentavelmente atuação de larga magnitude, envolvendo mui-
ainda há preconceito contra os índios e a sua tos atores públicos e privados, como as diversas
cultura, o que por vezes resulta em posições esferas do governo, o mercado e a sociedade
ideologicamente contrárias aos povos indíge- civil. O Ministério Público Federal, em todas
nas, revelando nítido inconformismo com o novo as suas instâncias, tem feito um notável esfor- 149
modelo constitucional. Esse inconformismo ço para bem cumprir o seu papel, consciente
é especialmente grave em relação à questão de que o protagonismo constitucionalmente
fundiária, havendo forte oposição à cristalina determinado à instituição e aos seus membros
disposição constitucional que acarreta a nuli- pode ser o ponto determinante para a constru-
dade, extinção e ausência de efeitos jurídicos ção de uma nova realidade, mais condizente
dos atos que tenham por objeto a ocupação, o com a Constituição, o Estado Democrático de
domínio e a posse das terras tradicionalmen- Direito, o pluralismo, a tolerância e o direito
te ocupadas por índios31. Por isso, não raro a à diferença.
Robério Nunes dos Anjos Filho é Doutor em Direito pela USP, Mestre em Direito pela UFBA.
Presidente Honorífico do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBEC), é Professor de Direito
Constitucional e Procurador Regional da República na 3ª Região.
Um relato em imagens
A saga
dos irmãos
Villas Boas
Este artigo reproduz os textos e imagens
utilizados na exposição kuarup – a última A s imagens e textos aqui reproduzidos
buscam recuperar um pouco do imen-
so legado humanístico, social e político dos
viagem de orlando villas boas, organizada irmãos Villas Boas. Por quase seis décadas,
pela aori Produções com fotografias de Renato Orlando (1914-2002), Cláudio (1916-1998) e
Soares e do acervo da família Villas Boas. Leonardo (1918-1961) fizeram do contato, da
convivência e da solidariedade com inúmeros
povos indígenas o seu impulso vital.
Quando se integraram, em 1943, à Expedi-
ção Roncador-Xingu, organizada pelo governo
Vargas (1930-1945), os pouco mais de 40 mi-
lhões de brasileiros ainda viviam próximos da
faixa litorânea e, praticamente, desconheciam
o interior do País.
Era o início do que se chamou de Marcha
para o Oeste, em cujo caminho nasceram de-
zenas de cidades e vilas, campos de aviação,
estradas e obras de infraestrutura.
Orlando, Cláudio e Leonardo perceberam
que os povos indígenas, até então isolados, se-
riam literalmente massacrados pelo processo
de interiorização do País se não recebessem a
devida proteção do Estado brasileiro.
O empenho pessoal dos Villas Boas resultou,
em 1961, na criação do Parque Nacional do Xin-
gu, atualmente denominado Parque Indígena
do Xingu. É considerado pela UNESCO o mais
belo mosaico linguístico-cultural das Américas.
Um pouco dessa verdadeira epopeia está re-
gistrada nas fotografias e textos a seguir.
As trajetórias dos Villas Boas não são apenas
as vidas de três indivíduos. São veios essenciais
da construção de uma nação tolerante, solidá-
ria e plural entre seus povos e suas culturas.
(AORI Produções)
55 55. Em 1942, no viaduto do Chá, em São Paulo, na companhia de Cabral, um amigo de infância. Nessa época, Orlando trabalhava na Esso,
Cláudio era empregado da Companhia Telefônica Brasileira e Leonardo ganhava a vida em uma empresa de importação. Nenhum dos três
estava satisfeito com a vida na cidade grande.
56. Os três irmãos, em 1944. Usando do subterfúgio de se fazerem passar por caboclos, os Villas Boas conseguiram incorporar-se à Expedição
56 57 em Barra Goiana, atual Aragarças (GO), após uma rocambolesca viagem, na qual remaram por 22 dias no rio Araguaia.
57. O primeiro índio com quem fizeram amizade, Izarari Kalapalo, em 1946, na região do rio Kuluene.
58 60 58. Os Villas Boas com trabalhadores no rio Xingu, em 1948. Inicialmente contratados como servidores braçais, logo Cláudio foi nomeado
chefe do pessoal, Leonardo responsável pelo almoxarifado e Orlando secretário da base.
59 61
59. Embarque de burro, dezembro de 1947.
60. Expedição ao rio Xingu, na década de 1940.
61. Príncipe Albrecht, da Baviera, com Orlando e Leonardo, no Xingu, em 1948.
62 63 62. Orlando com araras, rio das Mortes, julho de 1949. A travessia desse curso d’água, em 1945, foi, segundo Orlando, “o verdadeiro início da
Expedição”. Ali foi instalada sua base principal.
64 65
63. Cláudio, no centro, de camisa branca, com os índios Kayabi e Suyá, abrindo uma pista de pouso, no início dos anos 1950. Segundo Orlando,
“Observamos que cada vez que parávamos para fazer um trabalho – montar um posto ou abrir um campo de pouso – os índios reagiam.
Tentavam nos atacar. Quando reiniciávamos a marcha, acompanhavam-nos à distância, mas não nos hostilizavam. Isso deixou claro que eles
só se preocupavam quando pensavam que iríamos nos fixar em suas terras”.
64. Orlando conduz o Ministro João Alberto Lins de Barros (1897-1955) em visita ao Xingu. Ex-líder tenentista e ex-interventor federal em São Paulo, João
Alberto presidia a Fundação Brasil Central, responsável pela Expedição Roncador-Xingu.
65. Leonardo, Orlando e Cláudio, início dos anos 1950.
66 67 66. Orlando, o médico Noel Nutels, Leonardo e Darcy Ribeiro no gabinete do Presidente Café Filho, em 1954, para discutir a formação do
parque do Xingu.
67. Leonardo, o Presidente Jânio Quadros, Orlando e Afrânio Oliveira, secretário particular do mandatário, em 1961. As boas relações com Jânio
vinham da juventude e em muito contribuíram para a implantação do Parque Nacional do Xingu, naquele ano.
“Nosso conceito de integração atende a nossos in- ada com os donos das terras, os índios? Há pressa
teresses, nunca aos do índio. É preciso salientar em semear o capim no lugar da mata. Há urgência
que uma integração no sentido antropológico e em que o boi, essa criatura que só vive num deserto
social da palavra é irrealizável. Em relação ao de homens, substitua tudo, pisoteie tudo.”
Brasil, pode-se afirmar que o processo usado no
contato entre as duas sociedades – a primitiva e a Orlando Villas Boas (1914-2002)
nossa – não é semente de destruição de sua cultura, VILLAS BOAS, Orlando. Discurso proferi-
mas da própria criatura. Vemos com desesperança do na Universidade Federal de Minas Gerais,
e desamparo comunidades desaparecerem. Vemos em 12 de dezembro de 1972, In LARA MES-
tombarem vastas áreas de florestas, numa luta in- QUITA, Fernão et alli, O Xingu dos Villas Boas,
contida e ansiosa por novas riquezas. Por que essa Agência Estado/ Metalivros: São Paulo, 2002,
ocupação apressada, essa concorrência desenfre- pág. 29.
68 69 68. Marina foi para o Xingu em 1963, aos 26 anos. “Peguei o avião em São Paulo com intenção de permanecer alguns meses no Parque. Acabei
ficando quase a vida toda”.
70
69. Orlando e Marina na rede, Xingu, dezembro de 1963. Eles se casaram seis anos depois.
70. Orlando joga futebol no posto Diauarun, ao norte do Parque, em 1967.
“Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas compu-
seram as vidas mais extraordinárias e belas de que
tenho notícia. Pequeno-burgueses paulistas, conde-
nados a vidinhas burocráticas medíocres, saltaram
delas para aventuras tão ousadas e generosas que
seriam impensáveis se eles não as tivessem vivido.
Só se compara à de Rondon a façanha desses três
irmãos, que se meteram pelo Brasil adentro por
matas e campos indevassados ao encontro de índios
intocados pela civilização.”
Darcy Ribeiro
71 72 71. Cláudio e Noel Nutels (1913-1973), anos 1960. Nutels, um médico sanitarista nascido na Ucrânia e radicado no Brasil desde a infância,
integrou-se à expedição em 1948. Nas palavras de Orlando, “Por mais de 30 anos ele prestou inestimáveis serviços às populações indígenas e
menos favorecidas”.
72. Orlando cumprimenta o cacique Aritana Yalawapeti, um dos principais líderes da região, em novembro de 1974. Os Villas Boas e diversos
caciques reuniram-se nessa ocasião, no Alto Xingu, para denunciar a invasão de terras por brancos (Foto Marcos Arruda/O Globo).
73 74 73. Orlando, Orlando Filho e Noel, na aldeia Yalawapeti, em 1981. Vilinha nasceu em 1970 e Noel, em 1975. Os dois passaram a primeira
infância entre os índios e tiveram de se adaptar na volta a São Paulo.
74. Orlando com o chanceler Willy Brandt, o presidente da República Federal da Alemanha, Richard von Weizsäcker e Adolf Theobald, em
Bonn, durante o recebimento do prêmio GEO, do governo alemão, em 1984.
“A festa havia terminado. Chamamos de festa por esquerda um arco que serve como cordão, enquanto
causa da luta e das flautas na fase final, mas em com a direita sacodem o maracá, que marca o ritmo
verdade o que assistimos foi o mais importante ce- do canto que entoam. (...) Ao pé de cada tora de ma-
rimonial dos índios desta região. deira um pequeno fogo é ativado a noite toda pela
Os mortos são representados por toras de madei- família, que dele não se desgarra um só minuto. A
ra (...) plantadas no centro da aldeia. Cada família essa tora de madeira dão o nome de Kuarup. (...)
enfeita o seu “morto” com os melhores e mais capri- O Kuarup é a encenação da lenda da criação.
chosos enfeites que possuem, e a seu pé choram um Só se justifica a cerimônia quando morre um índio
dia e uma noite. Para trás, dois contadores, com de linhagem, que outro não é senão aquele que foi
o corpo um pouco curvado, seguram com a mão criado pelo herói Criador, Mavutsinin.”
75 76 75. Última visita ao Xingu, em julho de 1998, durante o Kuarup em homenagem ao seu irmão Cláudio, morto naquele ano. Segundo Orlando,
“Hoje podemos dizer, sem dúvida alguma, que a Expedição Roncador-Xingu foi o que justificou o estabelecimento efetivo de Brasília, a atual
capital do país. A estrada Belém-Brasília, a Brasília-Cuiabá e a própria Transamazônica surgiram da Fundação Brasil Central”.
76. Última visita ao Xingu, julho de 1998.
77 77. Orlando, Marina, Orlando Filho e Noel, em casa, São Paulo, 2000.
O Kuarup de Orlando
Orlando Villas Boas foi homenageado pelos O Kuarup de Orlando foi como o primeiro
índios do Xingu poucos meses após sua mor- Kuarup. Nele, tudo parecia remeter aos tempos
te, em 19 e 20 de julho de 2003. A cerimônia de Mavutsinin. Da escolha ao corte da madei-
contou com a presença de mais de 2.000 ín- ra (que na língua dos Yalawapiti se denomina
dios, além de familiares e numerosos amigos. mari), da pesca com timbó, da preparação do
O Kuarup realizou-se na aldeia dos Yalawapiti, tronco de madeira, que dessa vez reinou sozi-
uma tribo que se recompôs a partir da ação dos nho no centro da aldeia, simbolizando Orlando;
Villas Boas. Isso deu à celebração uma enorme da homenagem dos homens, da triste, porém
força simbólica. vigorosa melodia dos maracá-êp, entrecortada
(...) Sua preparação levou vários dias, nos pelo choro das mulheres carpideiras, que dura
quais a aldeia anfitriã pescou e recolheu ali- toda uma noite, da luta dos huka-huka – tudo
mentos para receber as outras tribos durante transcorreu como no mito do primeiro Kuarup.
a cerimônia. Pelo Kuarup, Orlando se fez duplamente
O tronco é colocado no centro da aldeia, presente. Primeiro porque ele era o homenage-
para simbolizar aquele que se foi. ado por toda aquela gente que, unida, evocava
Durante a cerimônia, os índios de todas as o retorno de seu espírito. Segundo, porque sem
etnias presentes utilizam apenas dois tipos de ele não haveria mais ninguém dançando ou can-
pintura corporal. O primeiro são os traços ge- tando naquele local que, provavelmente, seria
ométricos simbolizando o peixe. Outros pin- pasto batido por bois em grandes latifúndios.
tam círculos, que representam a onça. Os dois Pelo Kuarup, os índios do Xingu deram vida
animais foram transformados por Mavutsinin, a Orlando, sobretudo porque é na vitalidade
no ato da criação, em índios comuns. O Kuarup da cultura que une crianças, jovens e velhos
se encerra com o huka-huka, a luta do peixe que ele continuará vivo, assim como Cláudio,
contra a onça. Leonardo e Álvaro, enquanto existir esse lugar
mágico que se chama Xingu.
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