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PRÁTICAS DA CULTURA INDÍGENA: ANTROPOFAGIA NA AMÉRICA

PORTUGUESA1

Gabrieli Donda Grigolin2

INTRODUÇÃO

Desde o principio os viajantes europeus descreviam os acontecimentos de suas viagens


cheias de aventuras no alto mar em forma de cartas, crônicas e diários de bordo, com o
encontro e a recém chegada ao até então Novo Mundo não foi diferente, pois os recém
chegados da Europa queriam que todos estivessem cientes que eles haviam encontrado uma
nova terra, dos acontecimentos que se davam nela e do povo que acabara de ser descoberto.
Naquele momento as histórias eram algo extremamente importante, pois “numa época onde
ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer” (SOUZA,
2005, p.21).

Os relatos desses europeus recém chegados à nova colônia descreviam, sempre que
possível, tudo com uma imensa riqueza de detalhes, contavam todos os acontecimentos que
julgavam relevantes e descreviam a cultura do povo que aqui se encontrava: sua agricultura;
seus costumes, sua cultura, suas práticas religiosas, e dentro dessas se encontram a
antropofagia também chamada de canibalismo pelos colonos, a poligamia e o incesto. As
culturas dos colonos e dos povos originários da terra se contrastavam a todo momento, para
não dizer que eram totalmente opostas.

Como o imaginário era algo de grande valor para a época, antes mesmo da descoberta
já eram existentes diversas histórias, sobre o que era aquele mundo recém encontrado e o que
se encontrava naquelas terras que nunca haviam sido exploradas anteriormente. Com os
colonos já morando e explorando a até então colônia tiveram contato direto com a cultura de
diversas comunidades indígenas que residiam na terra, no inicio tentaram se adaptar às
culturas para conseguir tirar proveito do que fosse possível, mas com o tempo se assustaram
com certos atos religiosos e culturais praticados, passando assim a se opor ao que viam sem
ao menos tentar entender ou saber qual era o objetivo que os povos buscavam alcançar.

Antropofagia no contexto da descoberta


1
Paper produzido como exigência da disciplina História da América Portuguesa I, ministrada pela Professora
Dra. Maria Celma Borges, Curso de História, Campus de Três Lagoas, UFMS.
2
Acadêmica do 1º Semestre do Curso de História, Campus de Três Lagoas, UFMS.
Foram poucos os povos que foram descritos de forma precisa nos livros, cartas e
documentos escritos na época da descoberta do Novo Mundo e que estão disponíveis para
serem utilizados na realização de estudos no contexto dos povos originários, e sobre suas
características e sua cultura na até então América Portuguesa. O principal povo que podemos
encontrar nesses documentos são os de língua tupi, como cita Florestan, no capítulo dois do
livro A Época Colonial:

Apenas tribos pertencentes ao estoque lingüístico tupi foram descritas de


forma relativamente extensa e precisa. A razão desse fato é simples. Os tupis
entraram em contacto com os portugueses em quase todas as regiões que estes
tentaram ocupar e explorar colonialmente. Foram, ao mesmo tempo, a principal
fonte de resistência organizada aos desígnios dos colonizadores e o melhor ponto de
apoio com que eles contaram, entre as populações nativas. (1989, p.72)

Os povos originários que aqui viviam não possuíam a mesma visão que os europeus
recém chegados que possuíam uma cultura diferente, para eles além de toda a questão cultural
que foi passada por seus ancestrais, a grande maioria dos atos religiosos que praticavam eram
considerados de amor, eles podem ser considerados um povo sem malícia e puro, pois de
maneira diferente de quem via sua cultura de fora, aquilo era normal e não algo
completamente horrendo como foi descrito.

Segundo Martins no primeiro capítulo do livro A Chegada do Estranho, Frei Vicente


do Salvador se esqueceu de citar uma das principais características da vida indígena nas tribos
do tempo da América Portuguesa: “O canibalismo como prática ritual do perene renascimento
do homem no seu semelhante”(p.17), na qual o indígena como ser humano assume que seu
inimigo possui características tão boas quanto as suas.

No livro Dicionário do Brasil Colonial, montado por Ronaldo Vainfas seguindo obras
de diversos autores que estudaram com profundidade os temas referentes ao Brasil como
colônia, fica claro um pensamento que grande parte de nós tem sempre que ler algo sobre a
descoberta de nosso país, os Europeus que chegaram aqui, julgavam sua cultura muito
superior à encontrada que era seguida pelos povos originários, se consideravam seres mais
evoluídos e com uma superioridade de destaque, um trecho que confirma isto: “Para os
historiadores, o canibalismo fundamentou a convicção europeia de que os ameríndios eram
seres inferiores.”(2001, p.92)
A antropofagia dos povos originários da colônia diferentemente do que as histórias
que corriam o mundo contavam, representava uma questão da humanidade daquele povo, uma
forma que era considerada um sinal de respeito ao inimigo, porque ao comer a carne de outro
ser humano, a pessoa que pratica o ato estaria recebendo toda a sua humanidade e força. Mas
esse ato, como muitos outros que eram praticados pelos indígenas, o homem branco não
entendia e nem tinha o interesse de compreender o real significado que se escondia por trás da
primeira impressão, pois para eles o seu pré-julgamento com a primeira impressão sem ao
menos conhecer já era horrendo o suficiente, e toda a população europeia preferia acreditar no
que seus colonizadores contavam.

Martins traz em sua obra que no século XVI, um mercenário alemão viajou para a
colônia com o mesmo intuito de todos os outros que já se encontravam nela, mas este, de
modo diferente foi capturado pelos índios tupinambá e sentenciado a ser comido pelos
mesmos. Porém, após algum tempo de cativeiro, o prisioneiro conseguiu escapar e a partir
disso escreveu um livro no qual conta como foi sua experiência de medo, e quase morte
vivenciada na colônia e reafirmou para todo o mundo a visão do canibalismo indígena como
um simples ato de satisfação em comer a carne dos inimigos, e não a visão do ato
antropofágico como sinal de humanidade daquele povo.

É muito interessante porque o livro tem várias e preciosas gravuras que nos
mostram os tupinambá esquartejando e devorando prisioneiros: um como uma
perna, outro uma cabeça,, outro as mãos e assim por diante. Nessas gravuras, feitas
por um branco, é visível a alegria que o faziam, porém, tratava-se de uma ceia ritual,
os brancos ao longo do século, têm interpretado o canibalismo indígena do ponto de
vista da cultura da morte, de que são portadores. (MARTINS, 1993, p.18)

Canibalismo ou antropofagia

Nos dias atuais tudo o que praticamos recebe dois tipos de visões/julgamentos, o nosso
próprio, pois tomamos atitudes que julgamos ser corretas e são embasadas em nossos
princípios e o de outras pessoas, que vêem de fora tudo aquilo que fazemos e tiram suas
próprias conclusões embasadas naquilo que consideram correto. Nos tempos da descoberta
não aconteceu de modo diferente, os portugueses ou espanhóis chegavam à até então colônia,
viam tudo o que acontecia e julgavam segundo os princípios que possuíam naquele período
tão conservador.
Os termos canibal e canibalismo surgiram através de um erro de interpretação
cometido por Colombo em sua primeira viagem para a América, pois mesmo na Grécia antiga
o ato de comer carne humana era denominado de antropophagia. Colombo cometeu este erro
e a partir disso existem os termos canibalismo e antropofagia, palavras com quase o mesmo
significado, mas que alguns estudiosos fazem definições diferentes: “Antropófagos e canibais
são, em princípio, termos idênticos, mas alguns estudiosos fazem importante distinção: a
antropofagia seria um ritual, enquanto o canibalismo ocorreria motivado pela necessidade,
sendo parte da dietética indígena”. (VAINFAS, 2001, p.90)

Segundo o dicionário do Brasil colonial na até então América Portuguesa existiram


dois tipos de canibalismo, o exocanibalismo, praticado pelos tupis, assim que capturado o
inimigo era casado com uma das mulheres da aldeia, a qual não podia se apegar ao marido,
pois o mesmo morreria, e em determinado dia que já esta pré definido acontecia uma grande
festa na qual a vítima ficava presa com cordas e como possuía um espírito guerreiro deveria
lutar até sua morte, no fim a vítima recebia um golpe na cabeça, era esquartejado, cozido e
todas as partes do seu corpo consumidas. Já o endocanibalismo era praticado pelos tapuias do
nordeste, diferente do citado anteriormente, este consistia no consumo da carne de amigos ou
parentes que morriam por algum outro motivo, apesar de se tratar do consumo da carne, esse
ato era de completo amor, os pais consumiam os próprios filhos e assumiam que uma parte da
pessoa que se foi continuaria com eles.

É notável que existe uma grande diferença entre as visões que a antropofagia recebe
até os dias atuais, no período colonial recebeu a visão dos próprios indígenas que possuíam
uma forma inocente de ver o mundo e não enxergavam a maldade nas atitudes e a visão
européia, que a grosso modo via os atos culturais praticados pelo povo que acabara de ser
encontrado como algo horrendo e desumano.

Enfatiza-se menos o significado dos ritos antropofágicos no universo simbólico das


culturas nativas e mais a representação européia do canibal, considerada como o
extremo do barbarismo. Para os testemunhos coloniais, o canibal não sabia
distinguir entre os animais e os seres humanos, sinal, portanto, de sua incapacidade e
desumanidade. (VAINFAS, 2001, p.92)

Há ainda uma vertente que foi levantada por alguns historiadores, de que o
canibalismo não passou de uma invenção dos europeus: “Os testemunhos eram insuficientes
para comprovar a veracidade do canibalismo. Frisou que os relatos eram sempre indiretos,
comumente envolvendo acusações entre inimigos”(VAINFAS, 2001,p.92) que passaram
tempo demais em alto mar e quando chegaram à terra firme estavam confusos, essa teoria
levantou muita polêmica entre os estudiosos e foi rapidamente discutida e descartada.

Considerações finais

Portanto, podemos concluir que o ato antropofágico chocou e horrorizou os Europeus


que chegaram a nova colônia, esses nada entendiam daquele povo com uma cultura tão
diferente da sua, diferenças que iam da forma de se vestir até nos deuses que acreditavam.
Mas hoje temos o conhecimento de que o ato de comer carne humana era algo muito
importante que fazia parte da cultura do índio da América Colonial, e não uma simples forma
de canibalismo onde o objetivo é saciar um estranho apetite ou comer uma carne diferente.

A colonização do território que hoje é conhecido como Brasil trouxe muitas mudanças
para o povo que já estava aqui quando essa terra foi descoberta. Muitas características
culturais dos povos originários foram perdidas ou abandonadas, muitos valores substituídos
pelos valores conservadores dos europeus , e para chegar ao que somos hoje muita coisa
aconteceu, “Antes de tudo, o que veio a ser a América Latina é um território antropofágico. Já
o era antes da conquista e tornou-se mais antropofágico ainda depois da Conquista.”
(MARTINS, 1993, p.16)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

FERNANDES, Florestan. Antecedentes indígenas: organização social das tribos tupi. IN:
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.) A Época Colonial. História Geral da Civilização
Brasileira.8ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

MARTINS, José de Souza. A chegada do Estranho. São Paulo: Hucitec, 1993.

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia da
Letras, 2005.

VAINFAS, Ronaldo (organizador). Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro, 2001.

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