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cubanas. Os dois primeiros livros intitula- a guerra, para o templo e a magia, para a
vam-se La africanía de la musica folklórica família e a escola, para o amor e a morte”
de Cuba e Los bailes y el teatro de los (Ortiz, 1951, p. 3). Em suma, a música e
negros en el folklore de Cuba. Amparavam- demais expressões culturais afro-cubanas
-se em uma ampla gama de fontes, tais eram elementos estruturantes da organiza-
como relatos de viajantes e missionários, ção social da comunidade negra.
estudos de antropólogos, etnógrafos e musi- Segundo Ortiz, poucos anos antes teria
cólogos, pentagramas, desenhos e fotogra- sido escandaloso reconhecer a contribuição
fias, assim como observações diretas toma- positiva da cultura negra para a formação
das por Ortiz, de modo a documentar os da nacionalidade cubana. Mas considerava
aportes africanos e afro-cubanos ao folclore. que os tempos eram outros, oferecendo aber-
Os demais livros formavam um tratado de tura para a compreensão desse fato. Em
cinco volumes dedicado ao estudo etnográ- seu balanço do folclore afro-cubano, via
fico da música, com o título de Los instru- uma arte original com positivas contribui-
mentos de la música afrocubana. Divididos ções humanas e estéticas capazes de serem
de acordo com suas características sonoras, vertidas na arte universal. Olhando para o
os instrumentos foram examinados minu- futuro com otimismo, Ortiz acreditava que
ciosamente tanto em termos das suas raízes estava em curso no mundo uma revolução
africanas, influências europeias e recriações que poderia propiciar a compenetração de
cubanas quanto dos seus múltiplos usos no todos os valores musicais dos povos sob
passado e no presente. a forma de uma progressiva panmixia de
Como Ortiz entendia a música folclórica artes, de cores e de culturas. Em suas pala-
cubana? Era essencialmente uma manifesta- vras: “La mulatez va más ala de los cruces
ção dos grupos negros da sociedade cubana: de los pigmentos, alcanza la mixtura de
“música característica do stratum básico de las ideas, las emociones, las artes y los
uma dada sociedade”, por criação própria ou costumbres” (Ortiz, 1951, p. 453; 1952-55,
por adaptação da alheia e incorporada ao v. 1, p. 10).
costume (Ortiz, 1951, p. XV). O seu juízo a
respeito da sociabilidade da música africana TRANSCULTURAÇÃO
e afro-cubana rompia o senso comum que a
confundia com a desordem, a ignorância e O conceito de transculturação é central
a irracionalidade. Definindo-a como demo- na obra mais difundida de Fernando Ortiz,
crática e comunitária – conjuntamente com Contrapunteo cubano del tabaco y el azú-
o canto, o baile e a pantomima –, era mais car, cuja amplitude de objetivos era sugerida
do que um elemento de distração típico da pelo subtítulo – Advertencia de sus contrastes
música dos brancos. Com base na antropo- agrários, económicos, históricos y sociales,
logia e nas suas observações, atribuía-lhe su etnografia y su transculturación. Na intro-
uma função essencial para a manutenção da dução à primeira edição, o antropólogo Bro-
coletividade: “[...] é música para o trabalho nislaw Malinowski refere-se ao encontro com
e o prazer coletivos, para a produção eco- Ortiz em Havana em 1929, no qual o autor
nômica e a distribuição, para o governo e cubano disse estar preparando um livro com
fluxo de trocas que incidiram tanto sobre homogeneizadores difundidos pelos países
Cuba quanto sobre diversos povos que de desenvolvidos depois da Segunda Guerra
algum modo mantiveram contato com a Mundial. Primeiramente foi utilizado pelo
ilha. Por um lado, a produção para expor- mexicano Mariano Picón-Salas, em uma
tação havia causado a radical mudança da obra clássica a respeito da história cultural
composição demográfica e das formas de hispano-americana colonial, publicada em
trabalho em Cuba, assim como a forma- 1944, para tratar os fenômenos de fusão
ção de novos hábitos e expressões culturais dos elementos indígenas e europeus que
resultantes da interação das populações de levaram à criação de uma arte mestiça.
origem europeia, africana e americana. Por Apesar de reconhecido internacional-
outro lado, a difusão mundial do açúcar e mente por especialistas de vários campos,
do tabaco cubano impulsionou o nascente o conceito de transculturação não foi ade-
capitalismo e introduziu novos hábitos de quadamente valorizado pelas ciências sociais
consumo. O tabaco, por exemplo, adqui- do mundo anglo-saxão, as quais têm pri-
riu diferentes usos e significados além-mar. vilegiado o conceito de aculturação e de
Transformado em um bem mercantil, a fun- sincretismo (Ibarra, 1990, p. 1.349). Apesar
ção coletiva e religiosa desempenhada pelo disso, os aportes do cubano foram aclama-
tabaco entre os indígenas foi abandonada dos por uma série de especialistas interna-
pelos europeus, passando a ter um uso pre- cionais. Como reconhecimento de sua obra,
ponderantemente lúdico e individual. O seu Fernando Ortiz recebeu o título de Doutor
consumo foi condenado pela Igreja Católica Honoris Causa da Universidade de Colum-
e a Inquisição, que o associava aos heréticos bia nas comemorações do seu bicentenário,
rituais dos índios, ao passo que encontrou em 1954. Para o antropólogo estadunidense
ardorosos defensores entre poetas, filósofos Sidney Mintz, Ortiz foi o decano dos estu-
e comerciantes, que no final das contas dos afro-americanos por ter se antecipado
venceram a contenda e contribuíram para aos antropólogos norte-americanos nesse
a difusão do seu consumo em massa. tipo de estudos; e para o etnólogo francês
Diferentemente da maioria dos demais Roger Bastide, o cubano não apenas foi o
outros trabalhos, voltada aos aspectos cultu- pioneiro, mas o “mestre”.
rais do negro, Contrapunteo sobressai pela A inovadora noção de transculturação
perspectiva ampla, ao tratar a transcultu- permaneceu relegada a segundo plano no
ração como fato total que articula a histó- mundo acadêmico durante anos até que rea-
ria das relações interétnicas aos fenômenos parecesse com força. Em 1982, Ángel Rama
econômicos, políticos, sociais e culturais. publicou o livro Transculturación narrativa
A vitalidade da abordagem reside em tratar en América Latina; em 1990, o mexicano
os fenômenos derivados do contato cultu- Néstor García Canclini propôs a expressão
ral de diferentes povos sem as limitações “culturas híbridas” para analisar a dinâmica
impostas pelo etnocentrismo e a perspec- multicultural latino-americana; e em 1992,
tiva teleológica. O conceito ganhou tanto a norte-americana Mary Louyse Pratt ana-
mais força quanto maior a crítica ao colo- lisou os fenômenos de transculturação no
nialismo, ao imperialismo e aos padrões que ela chamava “zonas de contato”, espaços
123RF/Sergey Galyamin
Selo cubano
comemorativo
do centenário de
nascimento de
Fernando Ortiz
ficos e intelectuais por meio do intercâm- exemplo de Federico García Lorca, Ramón
bio internacional de professores e bolsas Menéndez Pidal, Claudio Sánchez Albornoz,
para estudantes. Ortiz dedicou-se a orga- Fernando de los Ríos, María de Maeztu,
nizar uma ampla rede para vincular diver- Luis de Zulueta, Gregorio Marañon, Luis
sas instituições das Américas, de modo a Araquistain, Américo Castro, Blas Carreras,
possibilitar a circulação de professores por Gustavo Pittaluga, Fabra Rivas, José Casa-
vários países. Graças a tal empreendimento, res Gil, entre muitos outros. Duas publica-
cientistas, escritores e artistas espanhóis ções também foram criadas para divulgar
integraram essa rede acadêmica, transitando as atividades da instituição: Mensajes de
não só pelo Caribe e a América Latina, mas la Institución Hispanocubana de Cultura
também os Estados Unidos. Foram reali- (1928-31) e Surco (1930-31).
zadas, por exemplo, atividades conjuntas A participação de Ortiz em uma série
com o Instituto Hispânico da Universidade de eventos acadêmicos internacionais foi
de Columbia, com a Universidade de Porto outra dimensão da sua atividade voltada
Rico e com a Institución Hispano Mexicana para a troca de conhecimentos científicos, a
de Intercambio Universitário. Nessa primeira construção de redes intelectuais e a defesa
fase da Hispanocubana inúmeros nomes da de bandeiras progressistas. Em 1922, vai
ciência e da cultura espanhola participa- ao Congresso de Americanistas, em Roma;
ram das atividades sob o seu patrocínio, a em 1928, integra a delegação cubana junto
Ultra (1936-47), contendo os resumos das puderam encontrar apoio político, suporte
conferências, resenhas de livros, novidades material, vínculos intelectuais e de amizade
científicas e atividades culturais cubanas, para reiniciarem suas vidas.
pois, para Ortiz, “ser cultos era la única
manera de ser libres” (Puig-Samper & O COMBATE AO RACISMO
Naranjo, 1990, p. 808).
A maior parte dos exilados possuía curso A crítica à noção de raça e as inicia-
superior e era integrada por profissionais, tivas antirracistas fizeram de Ortiz um
docentes e pesquisadores universitários, dos pioneiros nesse campo na América
artistas, intelectuais e jornalistas. Para Latina. Suas primeiras críticas vieram à
sua manutenção, a Hispanocubana promo- tona em 1910 na polêmica contra o pan-
veu várias atividades, a exemplo da cria- -hispanismo, ao questionar a existência
ção da Escuela Hispanocubana Libre de La de uma “raça hispânica”, sob o argu-
Habana e dos ciclos de conferências dos mento de que raça não era um conceito
quais participaram três centenas de pales- biologicamente consistente, mas antes um
trantes, entre 1936 e 1947. Com o tempo, os artefato intelectual.
exilados integraram-se como profissionais e Posteriormente, seus estudos e mani-
na universidade, desempenhando importan- festações públicas a respeito da condição
tíssimo papel no desenvolvimento de áreas do negro apenas reforçaram os seus argu-
científicas ainda incipientes em Cuba, tais mentos antirracistas e seu protagonismo
como a medicina, a exemplo de Gustavo como intelectual público em favor da
Pittaluga, renomado pesquisador de hema- igualdade do gênero humano. Em 1929,
tologia e doenças tropicais que se radicou em uma homenagem recebida em Madri,
definitivamente na ilha. Na condição de discursou condenando não só a tese da raça
presidente da Unión de Profesores Univer- hispânica, assim como todo conceito de
sitarios Españoles Emigrados, entidade fun- raça, afirmando seu caráter falso, estático
dada anteriormente em Paris, Pittaluga levou e dissociador, em contraste com a noção
a cabo o seu primeiro encontro em 1943, de cultura, definida como dinâmica, uni-
de modo a congregar docentes espalhados versal e capaz de agregar os povos.
por vários países. Reunidos para discutir os Nos anos 30, a criação da Sociedad de
problemas da realidade espanhola e propor Estudios Afrocubanos contribuiu não só
ideias para reconstruir a Espanha democrá- para o estudo do negro, mas também para
tica, redigiram ao final um documento, a formular propostas para a sua integração.
Declaración de La Habana, que ratificava Como resultado, a Constituição Cubana de
o papel da ilha como um local da resis- 1940 passou a declarar ilegal e punível toda
tência internacional à ditadura franquista. discriminação por motivo de sexo, raça, cor
De antiga província ultramarina, mera ou classe. No mesmo ano, uma resolução
fornecedora de tabaco e açúcar, Cuba havia foi aprovada pelo VIII Congresso Científico
se convertido em um dos principais locais Panamericano, celebrado em Washington,
de peregrinação dos exilados da hecatombe por sugestão de Fernando Ortiz, na condi-
espanhola. Um espaço além-mar onde eles ção de delegado de Cuba, declarando que
direção a uma abordagem crítica que se amalgamaram formando uma nova sociedade.
tornou uma referência para os estudiosos Mais do que um fenômeno exclusivamente
dos fenômenos étnico-raciais americanos. cubano, pensava as fusões ou mestiçagens
Por meio das suas pesquisas a respeito como a marca de todas as sociedades ame-
da história, dos hábitos e da cultura do ricanas: de corpos, ideias e produtos; de lín-
negro, contribuiu para mostrar o seu papel guas, costumes e culturas; de valores, vícios
como um dos pilares da sociedade de seu e paixões. Ao elaborar o conceito de trans-
país e da sua identidade nacional, que ele culturação e materializá-lo em um conjunto
chamava de cubanidad. de obras, Ortiz foi um precursor da “história
O estudo do negro e das raízes culturais atlântica”: os fenômenos culturais, políticos,
cubanas desdobrou-se na formulação de uma econômicos e sociais deviam ser estudados
nova perspectiva sintetizada no conceito de nas conexões concretas que uniam o pro-
transculturação. Ortiz entendia que os fenô- cesso histórico dos povos da América, da
menos históricos cubanos não podiam ser África e da Europa. Talvez não seja exagero
adequadamente compreendidos nos limites afirmar que a transculturação se confundia
do Estado nacional, pois ao longo do tempo com a própria biografia de Ortiz, cubano
a ilha havia sido povoada por fluxos migra- de origem espanhola que havia transitado
tórios europeus, africanos e asiáticos que se entre os dois lados do Atlântico.
Bibliografia