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João VI /
IV Colóquio Internacional Coleções de Arte em
Portugal e Brasil nos Séculos XIX e XX
Edições EBA
Rio de Janeiro/RJ | Novembro, 2017
Roberto Leher ARTE E SEUS LUGARES: COLEÇÕES EM ESPAÇOS REAIS
Reitor da Universidade Federal do Rio Anais do VIII Seminário do Museu D. João VI / IV Colóquio Internacional
de Janeiro Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX.
Os artigos e as imagens reproduzidas nos textos são de inteira responsabilidade de seus autores.
Ficha catalográfica elaborada por Fabíola da Silva Pinudo CRB-7 005881 / SiBI/UFRJ
Arte e seus lugares: coleções em espaços reais: Anais do VIII Seminário do Museu
A786 D. João VI / IV Colóquio Internacional Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos
séculos XIX e XX / Rio de Janeiro: UFRJ, EBA/PPGAV; UFRJ, Museu D. João
VI, 2017.
ISBN 978-85-87145-73-4
CDD 700.74
APRESENTAÇÃO
O Grupo de Pesquisa Entresséculos é ligado ao Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais da Escola de Belas Artes (PPGAV) da Escola de Belas Artes
(EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e reúne as pesquisadoras
Ana Cavalcanti, Marize Malta e Sonia Gomes Pereira. Desde 2010 organiza
seminários anuais sempre voltados para a discussão da arte brasileira nos
séculos XIX e XX.
Inicialmente comprometido com o estudo e a valorização do acervo do Museu D.
João VI da EBA / UFRJ, seu território de interesses tem-se ampliado. Em 2014
teve início uma parceria com o ARTIS (Instituto de Artes da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa) - liderada pela professora Maria João Neto pelo ARTIS e por
Marize Malta pelo PPGAV - em torno do tema coleções de arte em Portugal e Brasil,
que se tem desdobrado em colóquios internacionais anuais, alternando-se entre
Lisboa e Rio de Janeiro.
Neste ano de 2017, os dois eventos se uniram: VIII Seminário do Museu D. João
VI e IV Colóquio Internacional Coleções de Arte. Tomando como tema a questão
dos lugares da arte e seus espaços reais, procurou explorar cinco eixos
principais de discussão: Em percurso: uma obra, vários lugares; Locações de
obras e modos de aparição; Privativo: coleções em intimidade; Por debaixo dos
panos: o avesso das obras; Vir a público: meios de compartilhamento no real; e
Materialidades e suportes de coleções.
Ao mesmo tempo, temos procurado nos unir a pesquisadores de outras
universidades brasileiras que compartilham conosco interesses temáticos e
abordagens metodológicas. É o caso do professor Arthur Valle, da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, que, desde o ano passado, tem trabalhado
conosco nesses seminários.
É, portanto, como fruto desse trabalho conjunto que apresentamos este livro.
Ele compreende a totalidade dos trabalhos apresentados no evento: palestras,
comunicações e pôsteres. Reúne pesquisadores de vários estados do Brasil,
assim como colegas de Portugal, França e Argentina.
Para a realização do evento e dessa publicação, contamos com o apoio de
várias instituições e pessoas. Entre as instituições, destaco o Museu Nacional
de Belas Artes – que nos tem apoiado há alguns anos – e a CAPES, da qual
recebemos recursos, que possibilitaram, especialmente, a vinda de
especialistas estrangeiros. Quanto a pessoas, colegas e estudantes de
graduação e pós-graduação têm sido sempre um apoio indispensável. Entre
eles, gostaria de destacar Adriana Nakamuta e Marco Antonio Pasqualini de
Andrade – ambos em pós-doutorado no nosso programa em 2017 –, além de
Flora Pereira Flora e Rafael Bteshe – entre alunos e ex-alunos.
Esperamos que esse livro sirva para divulgar as novas abordagens que
historiadores da arte – brasileiros e estrangeiros – têm realizado dentro do
cenário mais amplo de uma revisão historiográfica da arte tanto brasileira
quanto ocidental.
Rio de Janeiro, novembro de 2017.
Ana Cavalcanti
Arthur Valle
Maria João Neto
Marize Malta
Sonia Gomes Pereira
Palestras
OS RECHEIOS DO PAÇO DO RAMALHÃO (SINTRA, PORTUGAL): A HERANÇA E O
GOSTO ARTÍSTICO DA RAINHA D. CARLOTA JOAQUINA DE BOURBON
O Palácio do Ramalhão, resultado de uma campanha de obras iniciada nos primeiros anos
da centúria de setecentos, recebeu profunda intervenção, de gosto neoclássico, patrocinada
por D. Carlota Joaquina de Bourbon, que adquiriu o imóvel, em 1802, com a finalidade de o
transformar na sua residência particular. Conhecido hoje o gosto da soberana por arte e,
particularmente, o seu apreço pelo colecionismo pictórico, os inventários do Palácio do
Ramalhão, realizados após a morte da soberana (ocorrida em 1830), com o objetivo de se
proceder à venda do edifício e dos seus recheios, são fontes essenciais para se poder
caracterizar os recheios do palácio, determinar a importância da sua coleção de arte e, ao
mesmo tempo, avaliar as tendências do gosto da monarca. Perceber os efeitos que as
invasões francesas e a saída da corte para o Brasil, em 1807, tiveram sobre os bens de D.
Carlota Joaquina apresenta-se como um importante desafio, que se complementa com a
compreensão dos mecanismos que, com a sua morte, conduziram à dispersão de boa parte
do acervo do Ramalhão no efervescente mercado da arte oitocentista.
Fig. 1 – Francisco de Goya, A família de Carlos IV, 1800-1801. © Museo del Prado. Carlota Joaquina
apresenta-se à direita da composição, sendo visível apenas sua cabeça.
Tendo muitas das pinturas viajado de Itália, onde se encontravam a adornar os palácios
Barberini, Sant’Alessio e Sant’Albano, aquando da morte de Carlos IV, ocorrida no exílio,
importará acrescentar à avaliação da memória destas obras, os danos sofridos na viagem
para Espanha, os restauros realizados durante a permanência em Madrid, os efeitos dos
armazenamentos desadequados de que fala José Presas, bem com o posterior embarque
com destino a Portugal, ocasião em que, tal como havia sucedido na viagem de Roma para
Espanha, as telas de maiores dimensões tiveram que ser desemolduradas e enroladas em
Já na posse de Ana Joaquina da Cunha e de seu marido, José Street de Arriaga, a quinta é
“emprestada”11 ao célebre escritor inglês William Beckford (1760-1844) que, em 1787, na
sua primeira viagem a Portugal, ali se estabelece por alguns meses. É pelo seu testemunho
que ficamos a conhecer alguns dos traços arquitetónicos e decorativos da residência do
Ramalhão desses tempos. Situada “num sitio desafogado que domina uma vasta extensão
de terra limitada pelo oceano”, impressionou o literato pela “série de aposentos, que são
espaçosos e arejados”, bem como pelos jardins “em óptimo estado”, ainda que o edifício
não tivesse o “aspecto de uma casa habitada”. Beckford refere-se ao salão “estilo lanterna,
que entre portas e janelas envidraçadas, de grandes dimensões tem nada menos de onze” e
aos aposentos que lhe são destinados, “forrados a papel e com os seus cortinados [que] são
um primor”. Sensível à estética dos recheios, ele que era colecionador de arte, acrescenta
ainda que “as camas e os sofás têm colchas das mais lindas chitas e quase todas as mesas
têm em cima a sua arca japonesa ou o seu contador”, pelo que “tudo está a entrar em
ordem”, esperando “dentro em pouco” encontrar-se “razoavelmente instalado”12.
É este palacete das serranias de Sintra, de onde William Beckford escrevera muitas das
suas famosas cartas, que D. Carlota Joaquina transformará no seu reduto, no espaço de
acolhimento da sua coleção e no local de reclusão a que foi condenada depois de ter
recusado jurar a Constituição de 1822.
Um “inventário de toda a mobília que Existe no Real Paço do Ramalhão”, realizado em julho
de 180720, quando a ameaça francesa já se pressentia, dá a conhecer boa parte dos
recheios do palácio e respetiva distribuição pelas suas divisões, mas também a organização
arquitetónica do edifício, que encontra complemento em duas plantas, datadas de 183621.
Fig. 4 – Planta do andar nobre do Palácio do Ramalhão, 1836. ANTT, Casa Real, Plantas, Almoxarifado do
Ramalhão, nº 315©ANTT
Formado por dois pisos, um térreo e um nobre, é neste último que se dispõem as zonas
mais relevantes da residência, como as duas Câmaras da Rainha, a Câmara da Princesa, a
Caza da Pintura, as Casas dos Armários e de Jantar e a Ermida. No andar de baixo situam-
se cerca de três dezenas quartos, entre os quais quatro pertencem às camaristas. A “Casa
Na Caza da Pintura, além de algumas distintas peças de mobiliário, como uma mesa
redonda de mármore preto com pé guarnecido de figuras de alabastro, “2 Espelhos de Vestir
Guarnecidos com Remates de bronze doirado e pés bronziados”, uma dúzia de cadeiras
dourada com assentos estofados, um lustre de alabastro de oito lumes guarnecido com igual
número de figuras do mesmo material, é mencionado um vasto conjunto pictórico constituído
por 180 obras, entre as quais “71 Quadros de Molura doirada”, “97 Ditos de pau Santo” e 12
“com frutas d’America em Vulto”.
Nos inúmeros vãos dos vários aposentos, cortinas com bambinelas, de tecidos leves, como
a “cassa branca de ramos com guarnições preta e amarela”, usada na sala de entrada, ou o
paninho, presente em quase todos as divisões, substituíam as pesadas cortinas de veludos
e damascos de outrora.
A partir do inventário de 1807, podemos dizer que nos “espaçosos e arejados” aposentos do
palácio do Ramalhão, como a eles se referiu Beckford, sobressaía a utilização de mobiliário
ligeiro e prático, concebido maioritariamente em mogno, mas também em pau-santo e pau-
No escasso inventário relativo à capela23, merecem ainda referência, entre cortinas, doceis,
frontais e paramentos de damasco de seda bordados a ouro, inúmeras alfaias de prata
(cálices, patenas, turíbulos, navetas), com destaque para as cruzes e castiçais dos altares
de Santo António e Santa Teresa, e três imagens, uma de Nossa Senhora da Soledade no
seu trono e duas de Cristo Crucificado.
São, porém, os arrolamentos realizados por morte de D. Carlota Joaquina, a partir de 1835,
pelo seu maior detalhe, amplitude e precisão, dados os fins legais a que se destinavam,
aqueles que mais auxiliam na reconstituição dos recheios do Palácio do Ramalhão, que
Dora Wordsworth (1804-1847), filha do insigne poeta romântico inglês William Wordsworth,
considerou “the richest of all the palaces, in furniture, decorations, and things of virtu;”24.
Fig. 5 – Primeira página da Copia do Inventario dos bens e mais objetos exerestentes (sic) na Quinta do
Ramalhão pertencentes a Herança da Imparatiz (sic) Rainha a Senhora Donna Carlota Joaquina de
Borboun, 1844. ANTT, Casa Real, Cx. 4663. ©ANTT
Debruçando-nos sobre o inventário do mobiliário, aquele que assume maior expressão nos
recheios do palácio, é evidente a ampliação e diversificação das peças face ao
levantamento realizado quase trinta anos antes. Mantendo-se a opção por mobiliário ligeiro
e funcional, onde sobressaem mesas, cadeiras, bancos, sofás, camas, secretárias (algumas
portáteis), mesas de costura e de jogo, também são identificados guarda-livros, aparadores,
cómodas, toucadores, tremós, cantoneiras, baús. Concebidos sobretudo em mogno, mas
também em pau-santo, pau-cetim, cerejeira, vinhático, pinho da Flandres, espinheiro, muitas
vezes adornados de dourados e guarnecidos com mármores de diversa cores (brancos,
azuis, pretos e cinzentos), com granitos ou jaspe, apresentam, pontualmente,
ornamentações de tartaruga e madrepérola, como sucede com um toucador, feito na Índia,
disposto na 7ª sala25. A par das rochas ornamentais, os apontamentos de cor das divisões
são reforçados pelo mobiliário de assento, estofado de caxemira e seda verde, azul ferrete
ou amarela e, certamente, pelas cortinas e almofadas com tons a condizer.
Comprometiam-se os artistas eleitos, “em boa consciencia sem dolo malicia ou suborno ou
outro algum motivo” a “avaliarem os bens “conforme sua qualidade estado e uso”32.
Distintamente do que sucedera com a coleção de Carlos IV, onde predominava a pintura
profana e os quadros de caráter histórico, mitológico, de paisagem ou de género37,
tendência do gosto da época, a coleção de Carlota Joaquina apresentava-se dominada pela
pintura religiosa, facto a que não será indiferente o fervor que devotou ao catolicismo, como
já foi salientado38. A pintura de paisagem - com cenários bucólicos e marítimos -, de género
e de retrato, esta última focada em personalidades contemporâneas da realeza e da
aristocracia, preenchem a restante hierarquia temática, sendo escassos os temas
mitológicos e alegóricos39.
Fig. 6 – António Pereda y Salgado, Natureza morta com cesto de frutos,1650, MNAA 469 Pint©DGPC
A par das exigências assumidas na realização do inventário, importa destacar que, em todo
o processo, os cuidados com a conservação das obras também foram uma prioridade. Para
tal, Manuel da Silva, pintor de estuque e de liso40, é encarregado pelo então almoxarife do
Paço do Ramalhão, Rodrigo José Simões, de cuidar
“da mobília e de tudo o mais que lá avia …e com especialidade dos Paineis, porque
sendo partes de muito mérito, e sendo Pintor ninguem ali milhor do que elle, pode
tratar daquelles quadros sem os estruir (sic). Esta Colleção de pintura é objecto de
muita atenção, e que se não pode confiar de qualquer homem desconhecido da arte,
41
que seria sacreficar uma das requezas daquelle Cazal” .
Outros objetos decorativos, presentes no inventário que temos vindo a citar, merecem,
igualmente, menção: caso dos dois vasos “sobre o gosto borruminesco”, com figuras em
jaspe; de dois globos do Mundo; de duas embarcações de “marfim arrendadas feitas na
China com suas maquinetas de vidro”; de dois “cestos de marfim arrendados feitos na India
com suas redomas de vidro”; e de um “cesto de Tartaruga arrendado feito na India
guarnecido de marfim com sua manga de vidro”.
A semelhança de seu pai, vários são os relógios que integram o espólio da soberana
portuguesa: relógios de mogno; relógios de mesa em pau-santo com ornatos em metal
dourado; relógio de mesa, em madeira de mogno, com figuras de jaspe; relógio de mesa, de
“madeira fingindo Ébano”, mostrador de prata, e guarnecido com pés e argolas em prata;
relógio de mesa, quadrado, de pedra mármore; relógio de pé, de parede, com caixa de
mogno (Casa de Jantar); e ainda um “Realejo, pedra azul por cima, madeira de mogno com
ornato de metal fino francez, com Relogio na frente dando horas por musica”.
É muito provável que tivessem existido outros relógios na coleção da soberana portuguesa,
que se terão danificado quando foram escondidos durante as invasões francesas, como
testemunha o almoxarife João dos Santos:
A morte de D. Pedro, escassos meses depois, haveria, contudo, de determinar que fosse
sua mulher e testamenteira, D. Amélia de Leuchtenberg, a tratar da partilha destes bens
pelos legítimos herdeiros, propondo-se, então, em conselho de família a permissão da
venda da quinta do Ramalhão … com todos seus annexos bens, moveis, e semoventes o
que tudo se acha descripto no Inventario48. O processo da herança haveria, contudo, de se
arrastar no tempo, vindo a ser sucessivamente administrado por D. Maria II, face à
desistência da viúva do duque de Bragança (em janeiro de 1838), e depois da morte desta,
pelo rei consorte D. Fernando II49.
A realização dos inventários do espólio, iniciados em 1835, não terá sido tarefa nada fácil,
atendendo à quantidade e diversidade de peças envolvidas, mas também à sua dispersão
por Queluz e pelo paço de Sintra, para onde D. Maria II, em 1836, numa altura em que
estava decidida pela compra do Ramalhão e de todos os seus recheios, mandou “transferir
a maior parte da mobília” e outros objetos50. A conclusão dos inventários, em 1843, criou
condições para que se acordasse a venda pública de todos os bens, providenciando-se a
Ainda que a seleção dos peritos, apresentada logo no primeiro dia da almoeda (23 maio de
1848), tenha recaído sobre 48 lotes59, o governo apenas viria a autorizar a compra de 25
deles e por um valor bastante abaixo do apresentado60. Com a abertura de um crédito
extraordinário de 4:665$200 réis, autorizado pelo Decreto de 6 de dezembro de 1850,
adquiriram-se: Cavaleiro antigo (escola de Loilo); Desembargador (Velasquez); 2 Paisagens
(João Baptista Bussirri); O Naufrágio de um navio e Vista de um Porto de Mar (Vernet);
Imperatriz alemã (Bronzino); Os dois irmãos (Escola Veneziana); A Paciência (Pierino del
Vaga); Judith (Guido Reni); Martírio de um Bispo (Escola de Rubens); A pregação do
Nessa altura, o Ministro da Fazenda António José d’Ávila (1807-1881) assevera que “a
somma é tão pequena, que não póde ser por embaraços financeiros que não se tenha
concluído esse negócio”64. Terá sido, muito provavelmente, este o estímulo necessário para
que, no ano seguinte, a 11 de abril, as peças fossem encaminhadas para o convento de São
Francisco da cidade, sede da Academia de Belas-Artes, onde se preparava a abertura da
tão ansiada Galeria Nacional de Pintura.
A avaliação do estado de conservação das obras, realizada nos dias imediatos à sua
receção, apontava para pinturas muito estragadas, como O martírio de um Bispo (atribuído à
Escola de Rubens), “faltas sensíveis de tinta original” em alguns quadros, “que se deixam
vêr o panno em que foi pintado”, alguns rasgões nas telas e fendas nas tábuas. Os dois
quadros de Vernet, por sua vez, apresentam-se “ambos deteriorados em consequencia de
muita sujidade e de mau verniz que lhes aplicaram”. “Péssimos restauros” e “alguns
retoques” são também assinalados, bem como “más limpezas”. Quanto às esculturas,
identificam-se maus restauros e lacunas nos dedos, tanto na Santa Madalena, como na
Considerações Finais
O interesse suscitado pela coleção de pintura pertencente à rainha D. Carlota Joaquina de
Bourbon tem despoletado diversos estudos, que permitem conhecer hoje importantes
características das obras que a integraram, bem como os mecanismos que conduziram à
sua dispersão, após a morte da soberana, entre os herdeiros, o mercado da arte e a
Academia Real de Belas-Artes de Lisboa. A aquisição pelo Estado português de 27 obras
pertencentes àquele acervo (25 pinturas e 2 esculturas), no leilão que se inicia no Paço da
Bemposta, em 1847, também se encontra clarificada, tendo-se vindo a aprofundar o
conhecimento histórico, artístico e material de algumas delas. Neste contexto, os estudos
que, em 2014, se dirigiram ao Êxtase de São Francisco, desde há umas décadas atribuído a
Luca Giordano67, permitiram colocar em evidência novas e importantes questões
relacionadas com a proveniência desta obra e de outras que também pertenceram à coleção
de D. Carlota Joaquina, bem como com os intrincados meandros das partilhas do espólio
deixado por morte da soberana.
Propusemo-nos, neste estudo, fazer uma abordagem global do Palácio do Ramalhão e dos
seus recheios, procurando contribuir, através de novos dados documentais, para a
reconstituição do projeto de D. Carlota Joaquina para aquele lugar. Interessou-nos a
protagonista, o edifício e as peças que foram preenchendo os amplos espaços da residência
sintrense, aspetos fundamentais no estudo da colecionadora. Carlota Joaquina integrava o
grupo dos “possuidores de galerias ou gabinetes de objectos d’arte”68, que no século XIX e
inícios do século XX, definiam o estatuto de colecionador. Faltam-nos, porém, respostas
para perguntas tão elementares como: quando? onde? a quem? ou em que circunstâncias
foram adquiridas tantas obras que integraram as suas coleções? Estabelecer os agentes e
Conhecer as vivências do Palácio e dos seus acervos durante os 14 anos em que a corte
esteve ausente no Brasil, nomeadamente, como foram protegidas as obras de arte e outros
objetos de valor durante as invasões francesas, constituiu, igualmente, um desafio, que
continuamos a encarar com grande expectativa.
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VIII SEMINÁRIO DO MUSEU D. JOÃO VI
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL COLEÇÕES DE ARTE EM PORTUGAL E BRASIL NOS SÉCULOS XIX E XX 29
ARTE E SEUS LUGARES: COLEÇÕES EM ESPAÇOS REAIS
XAVIER, Hugo, O Marquês de Sousa Holstein e a formação da galeria Nacional de Pintura da Academia de
Belas-Artes de Lisboa, Tese de Doutoramento, Lisboa, FCSH/UNL, 2014.
1
D. Carlota Joaquina de Bourbon, Figura popular, 1795, PNA, Inv. 2930.
2
Terão desaparecido no incêndio que deflagrou no Palácio da Ajuda, em 1974. Cf. Ayres de CARVALHO, A
galeria de pintura da Ajuda e as galerias do século XIX, Lisboa, s.n., 1982, p. 24. Sobre os dotes artísticos de
D. Carlota Joaquina veja-se Cyrilo Wolkmar MACHADO, Collecção de Memorias …, Lisboa, Imprensa de
Victorino Rodrigues da Silva, 1922 (1ª ed. 1823), pp. 30-31.
3
Carmen GARCÍA-FRIAS Checa, Nuevas aportaciones al studio de la collección pictórica de Calos IV en el exilio
in Actas de las Jornadas de Arte e Iconografia sobre Calos IV y el arte de su reinado. Seminario de Arte e
Iconografia ‘Marqués de Lozoya’, Madrid, Fundación Universitaria Española, 2011, pp. 211-261.
4
Idem, ibidem, pp. 231 e 234.
5
A descoberta de nova documentação tem permitido a Carmen Gacía-Fría desenvolver o estudo do conteúdo
dos lotes da herança de Carlos IV, nomeadamente daqueles que couberam a D. Carlota Joaquina, estando
previstas novas publicações sobre o tema. Cf. Celina BASTOS, “Percurso de uma obra”. Luca Giordano Êxtase
de São Francisco. Lisboa, MNAA, 2014, pp. 26-27, nota 1.
6
ANTT, Casa das Rainhas, Lº 234. Inventário de toda a mobilia que Existe no Real Paço do Ramalhão da
Princeza N. Snrª feito em Julho de =1807=
7
José PRESAS, Memorias Secretas de la Princesa del Brasil, Burdeos, Casa de Carlos Lawalle Sobrino, 1830,
Cap. XXVI, p. 277.
8
Celina BASTOS, op. cit., pp. 10-11.
9
Uma “rica herdeira brasileira”, conhecida pelo cognome “montanha de oiro”. Era casada com José Street de
Arriaga Brum da Silveira, um homem de origem irlandesa, nascido nos Açores, que “gosta de ostentação”, como
testemunha William Beckford. William BECKFORD, Diário de William Beckford em Portugal e Espanha, Lisboa,
Empresa Nacional de Publicidade, 1957, pp. 77-78.
10
Tinha acumulado no seu currículo diversas responsabilidade e reconhecimentos: Marechal de Campo, fidalgo
Cavaleiro da Casa Real, cavaleiro da Ordem de Cristo e futuro Governador da Colónia do Sacramento no
Uruguai.
11
O termo é o utilizado pelo próprio escritor inglês.
12
William BECKFORD, op. cit., pp. 157-158.
13
18 de março de 1802. Cit. por Francisco COSTA, Beckford em Sintra no Verão de 1787 – História da Quinta e
Palácio do Ramalhão, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1982, p. 72
14
José de Monterroso TEIXEIRA, José da Costa e Silva (1747-1819) e a receção do Neoclassicismo em
Portugal: a clivagem de discurso e a prática arquitetónica, Tese de Doutoramento em História, Universidade
Autónoma de Lisboa, 2012, vol. I, p. 343. A documentação consultada não permite, por enquanto, assumir esta
autoria.
15
Pressupomos que seja o pintor Manuel da Silva, uma vez que a sua presença é constante durante toda a
empreitada.
16
ANTT, Casa das Rainhas, Mç. 235, NT164, cx. 13, Relação dos Documentos de despeza feita no Paço e
Quinta do Ramalhão 1811.
17
ANTT, Casa das Rainhas, Mç. 241.
18
ANTT, Casa Real, Cx. 3697. Contas do Ramalhão 1802-1803.
19
Casa das Rainhas, Mç. 241.
20
ANTT, Casa das Rainhas, Lº 234.
21
ANTT, Casa Real, Plantas, Almoxarifado do Ramalhão, nº 314 e nº 315.
22
Celina BASTOS e Anísio FRANCO, “Para memória futura: interiores autênticos em Portugal” in Mendonça,
Isabel (ed.), Casas Senhoriais Rio-Lisboa e os seus interiores. Estudos luso-brasileiros em arte, memória e
património, Rio de Janeiro, s.n., 2014, pp. 69-103.
23
Que no documento surge identificada como “Irmida”.
Dora Wordsworth, Journal of a few months’ residence in Portugal, and glimpses of the south of Spain,
24