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Sem Título,
2005-06, gelatina e prata,
120 x 140 cm.
40 Cortesía da artista
41
Símbolo de
conhecimento,
espiritualidade,
virtude e clareza,
da Arte
bem como metáfora
da inconsistência da
realidade e da vaidade
do homem, a natureza
versátil, mundana
Espelho
e sobrenatural do
espelho desde sempre
fascinou os artistas.
A sua iconografia
artística reflecte a
poderosa influência
que este objecto –
capaz de reproduzir
imagens – exerceu
sobre o pensamento
humano
No
Texto
Fernando Montesinos
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David Ticiano Sir John ?????
LaChapelle Vénus no espelho, Tenniel Enit autatio del
40 Museum, c. 1555, óleo sobre Alice do outro lado utpatum ex eugait 41
2007. © David tela, 157,5 x 139,1 cm. do espelho, 1865 pratinc ipsusto
LaChapelle. © National Gallery of consed te digna feu
Cortesia La Monnaie Art, Washington, DC faci blan ut praestie
de Paris Cortesia Museum of modolum euis
Fine Arts, Boston euguer si.
L
agos e represas de águas crista-
linas foram os primeiros espelhos co-
nhecidos, superfícies através das quais o
homem primitivo se observou e tomou
consciência de si mesmo. Ponto de par-
tida de um acto onde se misturam ilusão
e realidade e que ainda hoje estimula a
imaginação; desde épocas remotas que
o espelho encerra em si os segredos e
os enigmas que a humanidade nele quis
guardar. Pela sua capacidade de duplicar a realidade, foi
considerado como um modo de aceder à esfera do divi-
no, do mágico, um objecto sagrado e transcendente para
muitas culturas, usado só pelos detentores de dons espe-
ciais. Sábios e filósofos da Antiguidade e da Idade Média
não escaparam ao fascínio do espelho, veículo de reflexão
e sabedoria, e grandes figuras históricas, como Catarina de
Médicis, Henrique IV e Isabel I de Inglaterra, usaram-no
como instrumento de clarividência. Imbuído de uma aura
que ultrapassa a sua forma, tamanho e suporte material,
o significado e o poder de sedução da imagem reflectida
foram-se alterando e dilatando ao longo do tempo e a lite-
ratura e as artes visuais são disso fiéis testemunhos.
Mágico e perverso
O papel do espelho na literatura pode ser sintetizado,
quase como sinédoque, em duas obras que o cinema
-- de Walt Disney e agora de Tim Burton -- ajudou a
imortalizar: Branca de Neve, conto popular compilado
pelos Irmãos Grimm, e Através do espelho, sequela de As
aventuras de Alice no país das maravilhas, de Lewis Car-
roll. Na primeira, o espelho pertence à cruel madrasta da
protagonista, que todos os dias lhe perguntava: “Haverá
alguém mais belo do que eu?”. De todas as vezes, o ob-
jecto mágico diz que não, até ao dia em que respondeu
que Branca de Neve era a mais bela. A não-aceitação da
verdade transmitida desencadeia toda uma série de actos versátil, mundana e sobrenatural
perversos contra a heroína -- incluindo uma tentativa de
homicídio --, que traduzem a ira e a inveja de quem já do espelho desde sempre fascinou
não pode ser a mais formosa. O espelho é assim testemu-
nho e motor de um medo visceral, da inevitabilidade da os artistas. A sua iconografia
passagem do tempo e da inerente perda de beleza física.
Na segunda história, a personagem principal, Alice, artística reflecte a poderosa
medita sobre o mundo do outro lado do espelho, sur-
preendendo-se ao comprovar que pode passar através influência que este objecto –
dele e descobrir, em primeira-mão, o que aí se passa.
Enquanto na primeira parte do conto, Alice toma con- capaz de reproduzir imagens
tacto com o mundo dos adultos, nesta segunda parte
ingressa definitivamente nele. Ao atravessar o espelho, – exerceu sobre o pensamento
a menina transpõe (no plano onírico) o umbral da sua
própria infância. O mundo que a espera no outro lado humano
é simultaneamente igual e radicalmente distinto do seu,
como num espelho, onde todos os objectos vão em di-
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versátil, mundana
e sobrenatural
do espelho desde
sempre fascinou
os artistas. A sua
iconografia artística
reflecte a poderosa
influência que este
objecto – capaz de
reproduzir imagens
– exerceu sobre
o pensamento
humano reproduzir
imagens – exerceu
sobre o pensamento
humano
????? tivas desta tendência da fotografia artística contemporânea, artista de origem indiana Anish Kapoor (Bombaim, 1954) O trabalho fotográfico de Brígida Mendes convoca de uma escultura maleável e concedendo especial protago-
Enit autatio del utpatum
ex eugait pratinc ipsusto invocadora da dimensão representativa e simbólica do es- tem igualmente utilizado o espelho para criar um processo todo um sistema de questões e práticas que confluem em nismo ao espelho e à questão da percepção da realidade,
consed te digna feu faci blan pelho, podem ser citadas Identical Twins (1967) de Diane de intimidade e de complexas percepções: “O espectador conceitos como percepção, desdobramento ou os binó- numa tentativa de provocar no espectador “perturbações”
ut praestie modolum euis Arbus, Double Self-Portrait (1979), de Jeff Wall, The Glan- tem que manejar as suas próprias emoções. O meu traba- mios realidade/ficção-verdade/engano. Esta última con- psíquicas através do choque de associar respostas mentais
euguer si.
ce (1996), de Wendy McMurdo, Sasha and Ruby (2005) de lho é só provocá-las”. Em obras como Sky Mirror (2006) traposição alcançou propósitos ilusionistas nas imagens- contraditórias. Nas esculturas da série Agnosia essa pertur-
Catarina Saraiva Loretta Lux, que enlaçam directamente com a actual sensi- e Islamic Mirror (2008), o autor utiliza espelhos côncavos espelho produzidas em 2005 e 2006, nas quais tenta ir além bação é palpável, também literalmente. O título escolhido
Solitude#2, série Agnosia, bilidade colectiva face à recriação do real e à relatividade do que reflectem os ambientes envolventes invertidos, num do confronto entre as duas categorias. ajuda a descodificar o significado das obras, já agnosia de-
2005, gesso/pvc,
79 X 56 X 10 cm. verosímil. Outra via, a da multiplicação das imagens, dos jogo de opostos -- positivo/negativo, público/privado, au- A arte contemporânea a subverter o conceito de ilusão, signa a alteração mental que leva uma pessoa a perceber os
Cortesia da artista intervenientes e das interpretações, encontra-se subjacen- tor/espectador --, confrontando as noções de espaço e obra a conseguir que o espectador assuma por enganoso o ver- objectos sem poder reconhecer a sua função. A manipu-
te no trabalho do italiano Michelangelo Pistoletto (Biella, de arte, bem como o papel da arte como elemento gerador dadeiro. Uma definição da arte que remonta à Antiguidade lação dessas peças por parte da artista provoca uma liber-
1933). A utilização do espelho como parte integrante e dis- de experiências individuais e colectivas. Os espelhos -- ”que Clássica, aos escritos de Platão sobre o carácter ilusório da tação das mesmas face à sua servidão funcional. Espelhos
tintiva das suas obras, a partir dos anos 60, permite a real duplicam, reflectem e prolongam em continuum as ima- pintura e aos de Plínio sobre Zeuxis e Parrásio. Em ambos femininos, pela sua forma e pelo repertório decorativo, o
inclusão do espectador e uma relação mais democrática gens vídeo”, segundo Isabel Carlos -- são também usados os textos o assunto central é a percepção da mentira como seu principal atributo e elemento -- a superfície lisa e es-
entre autor e receptor, salientando a tarefa reflexiva e de pelas irmãs gémeas Jane e Louise Wilson, como mostrou a verdade e não o contrário, como nos trabalhos da Brígida pelhada -- é escondida e vedada ao espectador. Esse jogo
autoconhecimento da própria arte. A reciprocidade estabe- exposição patente no CAMJAP até meados de Abril. Mendes, que apelam ao ardil do trompe l'oleil. de negações permite ao espelho assumir as mais sugesti-
lecida é inevitável, bem como esse momento de confronto Em Portugal, duas autoras têm desenvolvido parte A obra de Catarina Saraiva, ligada à estética das soft vas significações. No lugar do reflexo brotam extensões
com uma imagem que reconhecemos mas nem sempre substancial do seu corpus artístico à volta do tema do es- sculptures e a certas noções surrealizantes e neurocientífi- tentaculares, em lugar de imagem reflectida o negro que
compreendemos, tornando-nos cativos dessa partilha e in- pelho: Brígida Mendes (Tomar, 1977) e Catarina Saraiva cas, pressupõe um claro desafio ao tratamento convencio- envolve toda a obra, neutralizando, desse modo, o acto de
teracção com o eu e o(s) outro(s). No contexto britânico, o (Lisboa, 1973). nal e rígido do fazer escultura, explorando a possibilidade auto-reconhecimento.
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