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2 | Agost0 2008

a Miss x
De Salomé

Desde a configuração do pintor Gustave Moreau. As características descritas


pelo escritor francês propagaram-se na literatura e nas
da imagem da mulher fatal, artes plásticas da iconosfera europeia, dando lugar a um
arquétipo de mulher que, posteriormente, receberia o
na segunda metade do século epíteto de fatal. Tentar perceber o motivo do abundante
recurso a esta figura, por parte não apenas de literatos e
XIX, até à apropriação artistas – cientistas e filósofos também se apoderaram
da imagem para “ilustrar” as suas teorias –, obriga a
e actualização do modelo ultrapassar os limites convencionais da História da Arte e
da análise literária, pois a existência de uma certa atitude
oitocentista pelos meios masculina face à mulher não explica por si só a prolifera-
ção de composições em torno da femme fatale.
icónicos de massas, foram Na arte, nada surge de forma espontânea e apro-
fundar as causas deste fenómeno através de abordagens
múltiplas as personagens interdisciplinares representa uma interessante linha de
investigação para os estudiosos da iconografia artísti-
que encarnaram o poder ca. A limitada dimensão do presente texto exclui uma
análise detalhada do porquê, o que não nos impede de
inebriante e devastador sugerir que um bom ponto de partida seria o estudo da
confluência de factores já explorados – como a correlação
da sexualidade feminina. literatura-pintura e a influência da sensibilidade esteticis-
ta, decadentista e simbolista –, com outros ainda pouco
A evolução da sua imagética, indagados, como o impacto social e mental da Revolução
Industrial, o puritanismo e a dupla moral burguesa, as
considerada misógina primeiras conquistas da mulher em matéria de liberdade
e o progressivo afastamento dos seus tradicionais papéis
ou sexista por alguns sectores enquanto esposa e mãe, bem como o temor às doenças
venéreas, consequência de relações extraconjugais e de
da sociedade, originou prostituição – questões estas de grande repercussão na so-
ciedade masculina da época, depositária de uma cultura
um repertório iconográfico e de um ambiente intelectual que, ao longo dos séculos,
contribuiu para afirmar a ideia do domínio e superiorida-
que ainda hoje é explorado de do homem em relação à mulher. A perda de controlo,
de poder, sobre esta e sobre a posição que devia ocupar
na civilização foi encarada com inquietação e medo, mas
também com a ânsia erótica inerente à tentação do que se
embora a formulação da imagem literária e ar- sabe perigoso e proibido. Não foi Eva, primeira mulher e
tística da femme fatale se tenha materializado durante a mãe de toda a humanidade, o motivo da ruína de Adão?
segunda metade do século XIX, o termo apenas surgiu na A causadora da primeira perversão?
Europa quando o século chegava ao fim. Uma aproxima-
ção ao perfil visual e psicológico que a distingue aparece A imagem plástica | Que a representação da mu- Dante Gabriel Rossetti,
de forma expressa na novela À Rebours (1884) de J. K. Lilith, 1866-68,
lher na arte foi obra do género masculino não é nenhum óleo sobre tela,
Huysmans, quando o protagonista descreve fascinado a segredo. A presença de mulheres artistas nos livros de 96 x 85 cm.
beleza sobre-humana e perversa da Salomé de A Aparição, História é, sobretudo, marginal; figuras como Sofonisba Delaware Art Museum,
Wilmington.
Anguissola, Lavinia Fontana, Artemisia Gentileschi, Jose- Cortesia Delaware
texto Fernando Montesinos fa de Óbidos, Luisa Roldán, Angelica Kauffmann, Berthe Art Museum

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Extra_Femmes Fatales na arte

denunciar a discriminação de género no mundo da arte,


em particular, e na sociedade por extensão, colocando
cartazes na cidade de Nova Iorque onde se podia ler: “As
mulheres têm que estar nuas para entrar no Metropolitan
Museum? Menos de 5% dos artistas da Secção de Arte
Moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”.
Esta realidade, todavia tão próxima no tempo, conec-
ta com a habitual assunção da mulher como objecto
artístico e ideal de beleza, virtude ou pecado, e com a
interpretação que muitos pintores da segunda metade do
século XIX realizaram do novo tipo de mulher que estava
a nascer: subversiva e distante da passividade de outrora
como consequência das transformações sociais e políticas
da época. De qualquer modo, sempre existiram mulheres
desta índole nas lendas, no folclore e, inclusive, na vida
real de quase todas as culturas e civilizações, mas a génese
do modelo situa-se na segunda metade do século XVIII e
na primeira metade do XIX, em figuras como a Adelaide
da peça teatral Götz de Berlichingen, de Goethe; Matilde
do romance The Monk de Matthew Gregory Lewis; a Belle
Dame sans Merci de John Keats ou a rainha egípcia de
Une Nuit de Cléopâtre, de Théophile Gautier.
Apesar desta profusão de imagens literárias, a cul-
minação em termos pictóricos chegaria através de duas
correntes artísticas desenvolvidas na segunda metade do
século XIX: o Pré-Rafaelismo e o Simbolismo, que culti-
varam a iconografia da femme fatale num espaço visual
sem precedentes, mediante um carnaval de máscaras
bíblicas, mitológicas, históricas, lendárias e literárias,
outorgando uma dimensão conceptual e alegórica àquela
mulher emergente, digna de veneração e de desconfian-
ça pela sua extraordinária beleza; tentadora, ameaçante
e portadora de dor e desgraça. A senda foi traçada pelo in-
glês Dante Gabriel Rossetti, membro da Irmandade Pré-
Rafaelita, e pelo francês Gustave Moreau, pintor de difícil
Morisot, Marie Bracquemond, Mary Cassatt ou Camille classificação, considerado baluarte do movimento Sim-
Claudel são raras excepções de talento (re)conhecido que, bolista. O primeiro plasmou na sua obra a dualidade Eva
contudo, confirmam a consideração deste tipo de activi- (pecado)/Maria (pureza) tão característica do pensamen-
dades como essencialmente “masculinas” e impróprias to religioso da época. E, por vezes, foi mesmo mais longe.
de uma mulher. Convém igualmente recordar que quase Assim, através da recriação da personagem demoníaca
até à primeira metade do século XX, as escolas de arte Lilith (1866-68) configurou, em código eufémico, uma
foram dirigidas por homens; os historiadores e críticos de visão da mulher fatal sugerida por meio da linguagem das
renome eram homens e os júris dos concursos compostos flores, da sinuosa inclinação do pescoço e da ostentosa
por homens. Portanto, neste contexto de monopólio mas- e dourada cabeleira. Segundo a tradição hebraica, Lilith
culino, a representação da imagem feminina através de foi a primeira companheira de Adão, aquela que surgiu
códigos e discursos alternativos tornou-se praticamente como igual das mãos do Criador e que preferiu fugir do
invisível ou mesmo inexistente. Seria necessário aguardar Éden e unir-se ao maior dos demónios a renunciar à sua
até às décadas de 60 e 70 do século passado, para assistir independência. Um ano depois da execução da pintura,
ao início de certas alterações e à revisão da História da Rossetti pediu informação sobre esta personagem ao
Arte e da crítica. Começaram, então, a realizar-se estudos editor de Athenaeum, Ponsonby A. Lyons, que lhe respon-
que retiraram da sombra artistas de todos os tempos e deu, de forma irónica, que Lilith foi a primeira mulher
o trabalho da mulher autora e sujeito de arte passou a forte e a primeira defensora dos direitos da mulher. Segu-
estar acessível às novas gerações de criadores, construin- ramente, o comentário não estava alheio à actividade dos
do imagens diferentes das estabelecidas e questionando movimentos feministas ingleses desse período. Também
estereótipos baseados, mormente, na dicotomia “mascu- o protagonista de Fausto de Goethe pergunta a Mefistófe-
Capa do livro The Four lino” versus “feminino”. Herdeiro deste espírito reivindi- les, como Rossetti a Lyons, quem foi Lilith, ao que o ma-
Dreams of Miss X cativo, o colectivo Guerrilla Girls, em 1989, uniu-se para ligno responde: “A primeira mulher de Adão. Observa a

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sua linda cabeleira, o seu único ornamento. Quando ela ce. Essas mulheres são desastres dos quais ficam sempre
agarra um homem não o solta facilmente”. Na obra de vestígios no corpo e na alma. Há homens que matam
Rossetti, Lilith surge num aposento privado do Paraíso, por elas, outros que se extraviam”.
a pentear o seu longo cabelo ondulado e observando-se, A banalização do tema pelo decorativismo Art
ensimesmada, num espelho de mão, consciente da sua Nouveau e Art Déco reduziu a imagem a ornamento de
beleza divina. Rosas, dedaleiras e uma papoila acompa- jarras, jóias, candelabros, vitrais, espelhos, etc. A desin-
nham a figura, talvez atributos florais do lado escuro tegração do mito tornou-se assim efectiva, pelo menos
do eterno feminino. Enquanto em Londres a mulher até à sua recuperação pela indústria do celulóide. O
fatal se transfigurava em Lilith, em Paris, com o pincel cinema, melhor ainda do que a pintura, apropriar-se-ia
de Gustave Moreau, metamorfoseava-se em Salomé. da imagem mítica da femme fatale e fabricaria estrelas
A obra de 1876, intitulada A Aparição, alude à morte cinematográficas imbuídas de muitas das suas qualida-
de João Baptista por decapitação, funesto resultado des eróticas e carismáticas.
da dança orgíaca perante Herodes. A cabeça do Santo,
suspensa e aureolada, fixa o olhar na jovem da Galileia, Cinema, publicidade e arte contempo-
quem, surpreendida e extasiada diante do arrepiante rânea | Em 1915, Theda Bara protagonizou o filme
espectro, não manifesta qualquer arrependimento. Se a Escravo de uma paixão. Nascia assim a primeira mulher
Lilith de Rossetti é a mulher auto-suficiente, que recusa fatal do cinema mudo norte-americano. A consagração
a intervenção do homem e de Deus no seu destino, a chegaria dois anos mais tarde, com Cleópatra, ficando co-
Salomé de Moreau é a virgem sedutora, hipnótica, que nhecida desde então como a vamp. Outras actrizes, como
com um simples meneio obtém o que quer, por mais Louise Brooks (A Caixa de Pandora) e Marlene Dietrich
ambicioso que seja o seu pedido. A obra de ambos os (O Anjo Azul), também alcançariam o êxito encarnando
artistas supôs a irrupção profética de uma imagem desapiedadas amantes. No entanto, não foi na Europa que
feminina cujas características se estenderam por toda a a figura da femme fatale alcançou a sua máxima expres-
Europa, levada ao extremo da ficção por autores como são, mas em Hollywood, no cinema negro dos anos 40
Rops, Khnopff, Klimt, Franz von Stuck, Jean Delville e 50, demonstrando que o arquétipo funcionava para os
ou Munch. milhões de espectadores que acudiam às salas de cinema.
Na aparência física da femme fatale apreciam-se E assim continuou durante as décadas seguintes, pro-
uma série de coincidências: beleza sublime, pele mar- porcionando bons filmes e imortalizando beldades. As
mórea, cabelos longos – cobreados ou dourados mais intensas de finais do século XX foram, sem dúvi-
– e olhos verdes, por vezes violáceos. Em relação aos da, Kathleen Turner (Noites Escaldantes), Sharon Stone
seus rasgos psicológicos, sobressai a sua capacidade de (Instinto Fatal) e Linda Fiorentino (A Última Sedução).
subjugar o varão e a sua frialdade imperturbável, o que As mais recentes e desconcertantes, Jess Weixler (Teeth)
não a impede de usar uma voluptuosa sensualidade. e Amber Heard (All the boys love Mandy Lane), em dois
Uma das descrições mais esclarecedoras surge numa trabalhos enquadrados nos parâmetros da comédia e do
passagem de La Cara de Dios, do espanhol Valle-Inclán: terror adolescente, respectivamente. O primeiro retoma
“A mulher fatal é a que se vê uma vez e nunca se esque- o mito castrador da vagina dentada, enquanto o segundo

Gustav Klimt,
Friso de Beethoven
(As Forças Inimigas),
pintura sobre estuque,
1902. Österreichische
Galerie Belvedere,
Viena.Cortesia
Österreichische
Galerie Belvedere
Extra_Femmes Fatales na arte

sítio web da marca britânica, sinal do apetite voyeurístico


para com a menos exemplar e mais fatal das top models.
Por seu turno, a arte contemporânea, oscilando entre
leituras perpetuadoras do modelo finissecular e descons-
truções de arquétipos femininos, recuperou a ideia da
surpreende por dar rosto angelical e corpo flawless a uma mulher fatídica associando-a à proclamação da liberda-
amoral e vestal personagem que mata sem motivos e sem de individual. No ponto de vista masculino, a mulher
mover um dedo. continuou a ser interpretada sob o prisma do seu olhar,
A femme fatale encontrou também na publicidade um ora passiva ora activa, sempre objecto de desejo ou de
terreno fértil para expandir o seu imaginário, por vezes receio. Tal aconteceu com artistas das vanguardas e ainda
com propostas diferentes da mulher erótica procedente acontece. Este gosto pela femme fatale parece estar longe
de fantasias masculinas. Assim, em 1973, a L’Oréal lançou de passar de moda, como demonstram os
a primeira campanha “Because I’m worth it / Porque eu 6,76 milhões de dólares pagos por Smoker #9 (1973) de
mereço”, slogan ideado por uma mulher, Ilon Specht, e Tom Wesselmann, num leilão, em Maio, na Christie’s de
declamado pela própria modelo do anúncio. Muitos anos Nova Iorque. A obra concentra o simbolismo do para-
depois, não só continua a ser utilizado como se converteu digma iconográfico no cigarro sustido por uma elegante
no emblema de todos os produtos da empresa francesa. mão e no lascivo fumo que sai lentamente de uma boca
Nesta variante da mulher fatal, dirigida abertamente ao de lábios vermelhos e exuberantes, elementos descontex-
mercado feminino, continua a considerar-se a beleza tualizados apresentados à escala monumental +
como uma qualidade fundamental. O matiz diferencial,
a incitação à beleza já não se faz unicamente para agradar
aos homens, mas para gostar de si própria. Mais recen- Las hijas de Lilith
Tom Wesselmann, Erika Bornay
Smoker #9, 1973, temente, a empresa de lingerie Agent Provocateur editou Cátedra, Madrid, 2004
óleo e gesso liquitex quatro curtas-metragens – Four Dreams of Miss X – nas
sobre tela, quais, sob a direcção de Mike Figgis, a modelo Kate Moss Idols of Perversity
210,8 x 227,3 cm. Bram Dijkstra
Cortesia relata diversos sonhos e mostra os seus encantos sem Oxford University
Christie’s Images rubor. A publicação na internet dos anúncios colapsou o Press, New York, 1986

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