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exposição A Invenção da Glória. D.

Afonso V
e as Tapeçarias de Pastrana

Gloriosas
O Museu Nacional
de Arte Antiga e o Museu
Nacional do Prado apresentam
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exposições monográficas
de tapeçarias flamengas
que rememoram o valor histórico,
artístico e simbólico destas peças
monumentais. Duas séries
soberbas, autênticos objectos
de luxo mostrados de forma
íntegra, que vale bem
Texto Fernando Montesinos a pena conhecer

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A Tomada de Tânger “A Invenção da Glória. D. Afonso V e as de Figueiredo (1872-1937) e Reynaldo dos San-
atribuída à oficina
de Passchier Grenier,
Tapeçarias de Pastrana” é o título da mostra que tos (1880-1970) acabaram por identificá-las em
Tournai, último quartel está patente no Museu Nacional de Arte Antiga Pastrana, num péssimo estado de conservação,
do século XV, lã e seda, (MNAA) e que, pela primeira vez em Portugal, escurecidas e mutiladas.
Pastrana (Guadalajara),
Colegiada de Nossa Senhora
apresenta a série de quatro monumentais panos 15
da Assunção de armar que narram as conquistas de D. Afonso À imagem do rei
Fotografia © Pol Mayer, V no Norte de África, em 1471. Produzidos nas As quatro tapeçarias, restauradas no ano passado
Bruxelas
oficinas de Tournai, no último quartel do século em Malinas, na Manufactura Real De Wit, sob o
XV, por encomenda do monarca, abandonaram patrocínio da Fundação Carlos de Amberes (Espa-
o país no século XVI, por razões que a História nha) e da Fundação Inbev-Baillet Latour (Bélgica),
não conhece com certeza. Desde o século XVII representam o desembarque, o cerco e o assalto de
que se conservam na Colegiada de Pastrana, em Arzila e a tomada de Tânger, esta última de dife-
Guadalajara, edifício que alberga um dos mu- rente resolução visual em relação aos outros panos.
seus paroquiais mais interessantes de Espanha, A importância destas peças, tecidas em lã e seda, é
sobretudo pelo conjunto de tapeçarias antigas que fulcral a vários níveis: se por um lado se trata de um
custodia. Em Portugal, até início do século XX, dos exemplos mais representativos de tapeçarias do
chegou a acreditar-se que as tapeçarias estavam século XV, de extraordinária qualidade e grandes
desaparecidas, mas os historiadores da arte José dimensões, por outro, destacam-se pela sua raridade,

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exposição A Invenção da Glória. D. Afonso V
e as Tapeçarias de Pastrana

franciscano fundado pelo rei, em 1470, em cumpri- Assalto a Arzila


(pormenor)
mento de um voto a Santo António pelo auxílio nas atribuída à oficina de
conquistas africanas. Passchier Grenier, Tournai,
A génese do projecto de conservação e restauro último quartel do século
XV, lã e seda, Pastrana
que permitiu devolver o esplendor às tapeçarias de (Guadalajara), Colegiada de
Pastrana encontra-se no labor de investigação levado Nossa Senhora da Assunção
a cabo durante a preparação da exposição “Tapices Fotografia © Pol Mayer,
Bruxelas
flamencos para los Duques de Borgoña, el Empe-
rador Carlos V y el rey Felipe II”, organizada pela
Fundação Carlos de Amberes e celebrada na Abadia O Desembarque
em Arzila
de São Pedro de Gante, de 20 de Novembro de 2008 atribuída à oficina de
a 29 de Março de 2009. Foi então que se estabelece- Passchier Grenier, Tournai
ram contactos com a Colegiada, com vista a uma Último quartel do século XV,
lã e seda, Pastrana
possível colaboração na mostra, que acabou por não (Guadalajara), Colegiada de
se concretizar. De qualquer modo, foi confirmado o Nossa Senhora da Assunção
grande valor do conjunto e verificada a necessidade Fotografia © Pol Mayer,
Bruxelas
de uma urgente actuação de conservação. Durante
o amplo processo de recuperação das tapeçarias, es-
teve prevista a publicação de uma monografia, cujos O Cerco de Arzila
atribuída à oficina de
textos estão incluídos no catálogo da mostra do Passchier Grenier, Tournai,
MNAA, com informação relativa à sua proveniência, último quartel do século
história e campanha de restauro. Mas a investigação XV, lã e seda, Pastrana
(Guadalajara), Colegiada de
não culmina apenas nesta publicação, pois pretende- Nossa Senhora da Assunção
-se desenvolver uma ambiciosa iniciativa investiga- Fotografia © Pol Mayer,
pois ilustram e celebram episódios contemporâneos dora e interdisciplinar a nível europeu. Bruxelas

destinados a exaltar o poder e a glória do rei como Por tudo isto, a apresentação destas quatro tape-
conquistador e defensor da Fé. Este facto contrasta çarias no MNAA revela-se, sem dúvida, como um O Assalto a Arzila
com a generalidade das tapeçarias da época, cen- evento de excepção para a historiografia da arte da atribuída à oficina de
Passchier Grenier, Tournai,
tradas em temas bíblicos, mitológicos ou da Anti- tapeçaria, cuja relevância é por vezes esquecida. Em- último quartel do século XV,
guidade. Como sublinhou António Filipe Pimentel, bora Madrid, Viena e Cracóvia sejam algumas das lã e seda, Pastrana
director do MNAA, o conjunto de Pastrana é um cidades europeias detentoras de grandes colecções de (Guadalajara), Colegiada de
Nossa Senhora da Assunção
excepcional testemunho do processo de construção tapeçarias flamengas, em Portugal também existem Fotografia © Pol Mayer,
da imagem de um rei, Afonso V de Portugal, que, à obras interessantes que podem ser apreciadas em Bruxelas
semelhança das obras em exibição, reflecte a síntese alguns museus e palácios nacionais, como o Museu
de dois períodos: o final da Idade Média, ainda liga- Nacional Machado de Castro (Coimbra), o Museu de
do ao ideário das Cruzadas e da cavalaria, e os senti- Lamego, o Museu Francisco Tavares Proença Júnior
mentos individualistas próprios do Renascimento, de (Castelo Branco), os Palácios Nacionais da Ajuda,
memória e de afirmação face ao mundo e à História. Mafra, Sintra e Bragança, e o próprio MNAA.
De facto, é essa uma das leituras frisadas, a de panos
para a História – como apontou o director do MNAA Tapeçarias douradas no Prado
– configurando uma imagem épica, mítica e gloriosa Também pela primeira vez, o Museu do Prado, em
do rei para a posteridade. Madrid, mostra nas suas salas oito tapeçarias mitoló-
16 Com o objectivo de enquadrar e reforçar esta gicas de grandes dimensões da única série que se
visão, foram incluídas na mostra cinco peças que, conserva íntegra das dedicadas aos amores de Mer-
apresentadas em redor do pano com a cena da entra- cúrio e Herse, narrados no segundo livro do vasto
da em Tânger, associam-se à imagem do monarca: poema de Ovídio conhecido como Metamorfoses.
os Painéis de São Vicente (c. 1470), atribuídos a Nuno A exposição reconstrói assim a sequência iconográfi-
Gonçalves; o Retrato de D. Afonso V, cópia fac-símile ca da fábula de Ovídio através destas obras, actual-
do manuscrito original de Estugarda (terceiro mente distribuídas nas colecções da Fundação Casa
quartel do século XV); a Figura equestre heráldica de Ducal de Medinaceli, no Metropolitan Museum of
aparato de D. Afonso V (século XV), iluminura do Art de Nova Iorque, no Museo Nacional del Prado
manuscrito original da Biblioteca Nacional de Paris; e em colecções particulares dos Duques de Alba e
a Chave de abóbada com efígie régia (segunda metade Duques de Cardona.
do século XV), do Museu de Évora; e a Cadeira de As tapeçarias reunidas na exposição, facto inédi-
braços, dita de D. Afonso V (c. 1470), proveniente do to após a sua dispersão em 1909, são obra de Willem
Convento de Santo António do Varatojo, mosteiro de Pannemaker, activo de 1535 a 1581, e membro da

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Foram incluídas
na mostra
cinco peças que,
apresentadas
em redor
do pano com
a cena da entrada
em Tânger,
associam-se
à imagem
do monarca

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exposição A Invenção da Glória. D. Afonso V
e as Tapeçarias de Pastrana

É de Bruno Munari
uma das mais
paradigmáticas
obras da exposição:
Procurando uma
posição confortável
num cadeirão
desconfortável,
1950, doze slides,
projectados numa das
faces de um pequeno
cubo, documentam
as tentativas de
encontrar conforto no
desconforto

As tapeçarias mais célebre família de tecedores de Bruxelas. Gran- A história de amor e ciúmes protagoni-
reunidas na de artista da tapeçaria do Renascimento flamengo, zada por Mercúrio, Herse e Aglauro pode ser
trabalhou para a nobreza e para as principais casas reconstruída através destas tapeçarias.
exposição, facto reais europeias do século XVI, fornecendo obras- A descida de Mercúrio à Terra, o seu encon-
inédito após mestras à corte de Carlos I de Espanha (V de Alema- tro com Aglauro, Herse e Pandroso – filhas
a sua dispersão nha) e de Filipe II de Espanha (I de Portugal). de Cécrope, rei de Ática –, a sedução de
em 1909, Desde 1603, estas tapeçarias fizeram parte da Herse, e a transformação ou metamorfose
18 colecção de Francisco de Sandoval y Rojas, primeiro de Aglauro, alentada por Minerva, como
são obra de Duque de Lerma e valido de Filipe III de Espanha. castigo pela sua inveja, são as passagens
Willem de Estas obras alegórico-mitológicas, para cuja exe- essenciais, enquadradas por deslumbrantes
Pannemaker, cução foram determinantes as criações de Rafael, cercaduras ideadas por Giovanni Francesco
activo de manifestam a especial predilecção que o Duque sen- Penni (1488-1528) para enquadrar Os Actos
tiu pela tapeçaria e pela arte flamenga e italiana, evi- dos Apóstolos da Capela Sistina, cartões en-
1535 a 1581 dente também em outras vertentes da sua actividade comendados a Rafael (1483-1520) pelo Papa
enquanto coleccionador. Por este motivo, o Retrato Leão X. Nas bandas decorativas, personifica-
a cavalo do Duque de Lerma, pintado por Rubens ções dos quatro elementos, das estações do
em 1603, ano em que os panos passaram a integrar a ano, da passagem do tempo e da vida, bem
colecção ducal, também aparece na mostra, tal como como as figuras das Parcas, constituem um
uma série de estampas das Loggias Vaticanas de Gio- grupo alegórico que é complementado com
vanni Volpato, fonte iconográfica das cercaduras ou as representações femininas das Virtudes
bandas decorativas do conjunto. cristãs ou das Artes Liberais.

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Passeio O ciclo de tapeçarias, tecido em lã e seda, foi Tendência iniciada este ano pela Fundação Carlos de
de Mercúrio e Herse
ouro, prata, seda e lã,
executado na segunda metade do século XVI, Amberes em Bruxelas e Guadalajara (“Los Tapi-
443 x 672 cm, Bruxelas, incorporando fios metálicos de ouro e prata para ces de Pastrana”), e continuada em Mântua (“Gli
c. 1570, Madrid, Museu realçar o relevo, o colorido e a luminosidade dos arazzi dei Gonzaga nel Rinascimento. Da Mantegna
Nacional do Prado
panos. O custo elevado que alcançou o conjunto a Raffaello e Giulio Romano”, Palazzo Te) e Paris
Aglauro corrompida demonstra a sua utilização como símbolo de poder (“Trésors de la Couronne d’Espagne. Un âge d’or de
pela inveja e riqueza, obra de arte e jóia ao mesmo tempo. la tapisserie flamande”, Galerie des Gobelins). Tren-
ouro, prata, seda e lã,
440 x 650 cm, Bruxelas, c.
A intensidade, o brilhantismo e a abundância dos dy ou não, estas iniciativas são oportunidades únicas
1570, Córdoba, Colecção fios metálicos, o carácter clássico e renascentista e, talvez, irrepetíveis. Contudo, no caso da mostra
Duques de Cardona dos cenários, o uso da perspectiva geométrica, a lisboeta, é possível que as tapeçarias de Pastrana
sumptuosidade da ornamentação, a minuciosidade regressem mais uma vez a Portugal, em 2012, no
dos pormenores e da paisagem e a natureza huma- âmbito de Guimarães Capital Europeia da Cultura +
nística das personagens fazem da série de
Os Amores de Mercúrio uma das mais belas tape-
çarias concebidas no século XVI, comparável às
tapeçarias da colecção real dos Áustrias.
A maior parte das tapeçarias foram objecto de “A Invenção da Glória.
intervenções de conservação, realizadas na Fundação D. Afonso V e as Tapeçarias
de Pastrana”
Real Fábrica de Tapeçarias de Madrid, com vista à Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
sua apresentação nas melhores condições possíveis. Até 12 Setembro
O Museu do Prado e o Museu Nacional de Arte http://mnaa.imc-ip.pt
Antiga confirmam – mediante duas exposições de “Los amores de Mercurio
obras-primas – o renovado interesse dos grandes y Herse. Una tapicería rica
museus europeus pela tapeçaria antiga, objecto sim- de Willem de Pannemaker”
Museu Nacional do Prado
bólico e de luxo por excelência, às vezes mais esti- Até 26 Setembro
mado e caro do que as pinturas dos grandes mestres. www.museodelprado.es

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