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2. Movimentos e conceitos
Objectivos de aprendizagem

Depois do estudo desta unidade didáctica, o aluno deve estar apto a:

• Adquirir uma noção breve da literatura colonial;

• Adquirir conhecimentos básicos sobre os principais movimentos de


consciencialização dos negros, que influenciaram a Negritude;

e Ter uma perspectiva resumida da Négritude.

. t
1 0 conceito de in s titu iç ã o 2.1 A literatura colonial
engloba (segundo
lite r á r ia
Jacques Dubois, em L ’in s ti-
tu tio n d e la litté r a tu r e , Bru­
xelas. Nathan/Labor, 1978)
AjDOpulação negra das colônias po,rtug3JL£S.as_qnnsfí nãn 1ia4oma-h-e muitQ.in£pos
um conjunto alargado de tex­ literatura. Os textos literários efectivamente lidos eram quase só aqueles a que
tos literários, de leitores, de os «assimilados» tinham acesso na_escolarização,_ sem continuidade de leitura
críticos, de professores, de
prêmios', de editoras e outras literária que pudesse significar sequer um público leitor de textos, europeus.
componentes ligadas a pro­ Menos se podería pensar, nesse contexto de tamanha escassez cultural e de clara
dução, circulação e funciona­
mento das entidades, valores
preponderância europeia, na existência de um hipotético público formado num
e objectos aceites como lite ­ gosto africano, que efectivamente pudesse ter acesso a textos africanos (e de
rá rio s .
todas as estéticas, línguas e povos), os pudesse ler. deles recebesse qualquer
2 O conceito de lite r a tu r a c o ­
estímulo cultural e vivencial ou sobre eles pudesse ter uma opinião informada e
lo n ia l é diferente do indicado formativa, que, portanto, produzisse efeitos noutros potenciais leitores ou modi­
pela mesma expressão no
ficasse hábitos em leitores eventuais..Por isso, a crítica literária era inexistente
Brasil. Em África, significa a
literatura escrita e publicada, enquanto actiyidade regular e, de algum modo, reguladora das indicações de
na maioria esmagadora, por aquisição/opção, da recepção de textos literários, da hermenêutica .literária,
portugueses de torna-viagem,
numa perspectiva de e.xo- conquanto episódica e avulsa.
tismo, evasionismo, precon­
ceito racial e reiteração colo­ Á criação e circulação dos textos literários nas titu.heantes instituições literárias1
nial e colonialista, em que a angolana, moçambicana, cabo-verdiana, são-tomense e guineense (com a exten­
visão de mundo, o foco nar­
rativo e as personagens prin­
são europeia ou «metropolitana» relacionada com África), a .partir da segunda
cipais eram de brancos, colo­ metade da década de.40, segundo os padrões europeus, era diminuta, lacunar,
nos ou viajantes, e, quando descontínua e improcedente. Quanto a uma perspectiva de autenticidade afri­
integravam os negros, eram
estes avaliados superficial­ cana, segundo os padrões já então vigentes nalgumas sociedades africanas, como
m ente, de modo exógeno. a nigeriana, queniana, ganesa ou egípcia, a actividade literária podia ser vista
folclórico e etnocêntrico, sem
profundidade cultural, psico­
como. um mero epifenómeno de validação colonial. Quer isto dizer que vigorava
lógica, sentimental e intelec­ a literatura colonial2, nas quatro primeiras décadas..da-uctua-Uséoulo, incen­
tual.
tivada a sua" produção com prêmios e o reconhecimento das entidades oficiais.
3 Uma n o v e le ta assumida co­
Em geral, os textos literários designados como «de cor local» (para utilizar uma
mo angolana pelos manuais,
mas não todos. Russel Ha­ expressão muito significativa) ver-mAUim sobre,tom:is dn ccúoniy.flção^eni que as
milton. na L ite r a tu r a a f r i ­ figuras de brancos ou de negros.estereotipados.(estes vistos como coisas ou seres
c a n a , lite r a tu r a n e c e s s á r ia -
/, não lhe concede qualquer
inferiores) eram predominantes, raro surgindo, umailrrura .de africano, huma-
espaço. nizado, um tema ou uma perspectiva, que. demonstrassem uma consideração
profunda por uma realidade alheia a esquemas europeus. Nessa «literatura portu­
4 Salvato Trigo. E n s a io s d e
lite r a tu r a co m p a ra d a a fr o - guesa de África» incluíam-se, por vezes, certos textos que preludiavam uma
- l u s o - b r a s ile ir a , Lisboa, fugajto exotismo e à superficialidade da análise literária da realidade, como Nga
Vega, s. d. (1986), pp. 135-
-136. Convém deixar claro
/fzmMnl._de..Troni?,..-em An-gola^-ou-o&-poema-s--do-complexo...da. cor* .do,são-
que não conseguimos descor­ -tomense Costa Alegre:.
tinar como pode a literatura
colonial ser integrada nos Tal literatura interessará, hoje, apenas como curiosidade ou documento
currículos escolares, numa
época em que cada vez se lê
historiográfico para estudo_da mentalidade colonial da época, mau grado haver
menos a grande literatura, ainda quem preconize que o seu ensino seria útil para a formação do público
seja portuguesa ou de outras estudantil e do leitor, assim «privado do contacto com obras valiosas» e impe­
latitudes, e a esm agadora
maioria da colonial não tem
dido de continuar a «desenvolver alguns dos (...) valores perenes, que enformam
qualquer valor, mesmo em a nação que fomos, a que somos e a que queremos ser»4. Qra essa literatura era
termos documentais, pouco
inc.entivada-oíicialmente. para funcionar como instrumento ideológico do estado
ou nada acrescentando ao sa­
ber adquirido. colonial, sobretudo para um público europeu (em Portugal) e colonial (os colo-

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nos e gente de permanência temporária), que mostrasse um imaginário de aven­
tura e mistério e acentuasse a legitimidade da visão dominadora sobre o negro.
Ver capítulo 29.1, da responsabilidade de Inocência Mata, respeitante à literatura
colonial na Guiné-Bissau.

Paga o colono (melhor: para os seus filhos, os que, de faeto, podiam prosseguir
estudos) ou o funcionário e assalariado de passagem, a literatura africana ou
negra não podia interessar porque s'e apresentava como um corpo estranho à sua
sensibilidade e compreensão. Isto porque se instituía como modo de descoberta
e valorização de uma realidade_desconhecida .ou que impugnava q ita tu sjfu p , se
o colono chegasse a tomar conhecimento. .dos ..seus textos. Fragmentários,
esparsos,. censuradas-eabsoruddos..qela.caterva dos textos débeis (como hoje se
diz do pensiero debole), os textos mais africanizantes perdiam-se, assim se
perdendo também o seu significado de revolta e acusação. No puro sentido da
vida prática, interessava a literatura portuguesa que representava um suplemento
de alma e paixão da portugalidade espalhada pelo mundo (Camões, Camilo), a
literatura que não defraudava o espírito pragmático do trabalho e sucesso em
terras a desbravar (lia-se Tomás Ribeiro, Castilho e outros). A literatura colonial
servia para devolver ao leitor a imagem do seu papel de desbravador de terras e
civilizador de gentes, reiterando-lhe a consciência de um ser de condição e
estatuto superiores1. 1 Para uma reflexão sobre a
literatura colonial, ver M a­
nuel Ferreira, O d is c u r s o n o
p e r c u r s o a fr ic a n o /, Lisboa,
2.2 Pré-história da Negritude: os renascimentos negros Plátano, 1989, pp. 231-259;
Inocência Mata, P e lo s tr ilh o s
d a lite r a tu r a a fr ic a n a e m lín ­
A Négritude lançou as suas raízes até nas. movimentos culturais protagonizados g u a p o r tu g u e s a . Pontevedra/
/Braga, Cadernos do Povo,
por negros, brancos e mestiços que, desde as décadas de 10, 20 e 30. vinham
1992, pp. 11-18.
pugnando por um Renascimento. Regro (busca e revalorização das raízes cultu­
rais africanas, crioulas e populares) principalmente em três países das Américas,
Haiti, Cuba e Estados Unidos da América, mas também um pouco por todo o
lado.

A ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrísmo surge nas Américas, princi­


palmente nos Estados Unidos da América e nas Caraíbas, como consequência
das Luzes e do Romantismo que levaramã abolição .da escravatura, à assunção
romântica do Volksgeist, à identificacão_da reaLcomposicão do mosaico cultural
de raiz popular e, logo, nacional, e, finalmente, à possibilidade de, após a Revo­
lução Francesa, os povos supostamente poderem assumir a liberdade e a igual­
dade e se poderem pronunciar (ganhar voz) na ocorrência dos movimentos de
independência ou do reconhecimento desta como alvará de igualdade cultural e
social de todos os grupos sociais. Tal como no Renascimento europeu, os três
conceitos e tipos de movimento político, cultural e literário implicam uma
comum ideia de reconhecimento e revalorização do passado próprio de cada
povo, este, no contexto específico das Américas, no sentido de grupo etno-
-social, ou seja, do negro e do indígena (este mesmo podendo ser o negro, na
ausência de outro originário). De fora fica o branco, por ser considerado exac-
tamente o causador da repressão, também cultural, que se abate sobre os outros

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\

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dois, sem excluir a participação daqueles brancos que assumem como suas, mais “a
nuns casos do que noutros, por mais ou menos tempo, as culturas deles.

2.3 A Negritude
A

O termo Négritude aparece no longo poema «Cahier d’im retour au pays


natal», de Aimé Césaire, poeta da Martinica, que foi publicacfo na revista Vo-
lontés, 10 (1939). A palavra passou a nomear o movimento que se desenrolava
. por toda a década de 30, nomeadamente em Paris, cadinho de estudantes, inte­
lectuais e políticos que marcaram profundamente a vida política e cultural do X
mundo negro.

Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor e Léon Damas protagonizaram, no


plano da agressividade, do ecumenismo e do sarcasmo, respectivamente, todas
as nuances do movimento. Foi Damas que publicou, em primeiro lugar, o livro
Pigments (1937). Seguir-se-ia o poema já citado de Césaire. Depois, de Senghor,
o artigo «Ce que 1’homme noir apporte» (1939), Chants d ’ombre (1945), Hos-
ties noires (1948), Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache (1948) A
e, finalmente, Éthiopiques (1956). A Anthologie tinha um prefácio de Jean- \—

-Paul Sartre, intitulado «Orphée noir», que ajudou a construir a celebridade da "A

recolha de Senghor, até por se tratar de um trabalho teórico, em que o problema


negro era analisado numa perspectiva marxista, que despoletaria rios de tinta.

Os fundamentos da Negritude incluem a redescoberta da história e das culturas


do continente africano e da diáspora negra no mundo. Contemporânea do
Surrealismo (em Portugal, do Neo-realismo), usou no seu discurso a compo­
nente ideológica do Pan-africanismo, já de si influenciado pelo marxismo.

Todavia, em 1939, Senghor escreveu que «a emoção é tão negra, como a razão,
branca» e que «o ritmo é a força ordenadora que define o estilo negro». "A
Começava aqui o pendor místico da Negritude em relação ao negro, considerado
de uma perspectiva essencialista e generalizante, que passava ao lado das especi-
ficidades sociais, econômicas, políticas e nacionalistas.

Aimé Césaire, em 1950, denunciava a «inaudita traição da etnografia ocidental»


e da «desumanização progressiva em virtude da qual de futuro não haverá, não
pode haver agora, senão a violência, a corrupção e a barbárie na ordem do dia
\
da burguesia». Césaire publicou Les armes miraculeuses (1946) e o texto
completo de Cahier d ’un retour au pays natal (1947), com um prefácio de André
Breton, que o conhecera na sua passagem pela Martinica.

Os dois emblemáticos escritores da Négritude legaram-nos uma obra literária da


"A
máxima importância, mas foi Senghor que, com a presidência do seu país
(Senegal), os inumeráveis escritos teóricos e uma larga aceitação ocidental ""A

(política, literária e acadêmica), contribuiu decisivamente para a divulgação da


tendência ecumênica, dialogante, da Négritude.

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Social e ideologicamente, a Négritude constituiu-se como o processo de busca
de identidade, de conduta desalienatória e da defesa do patrimônio e do huma­
nismo dos povos negros. Recusou a assimilação a modelos externos à história
negro-africana, embora consciente dos contributos aculturativos, sobretudo nas
cidades. A Négritude pretendia a criação de um estilo próprio, no desejo de se
demarcar dos modelos e motivos históricos das literaturas ocidentais.

A poesia da Negritude distingue-se da restante literatura africana de língua


portuguesa pelo obsessivo tratamento da raça e da cor negras, qualificando-
-as com valores reais e simbólicos, reagindo, desse modo, ao racismo branco: «o
sangue negro, o sangue bárbaro» (Noémia de Sousa). Os triunfadores e mestres
negros da diáspora e do próprio continente africano são aclamados como para­
digmas exemplares a seguir pelos iniciados: Joe Louis, Jesse Owens (respec­
tivamente, pugilista e atleta norte-americanos), Louis Armstrong (jazzman
norte-americano), Césaire (negritudinista da Martinica), Toussaint Louverture
(revolucionário haitiano oitocentista), Langston Hughes, Claude Mckay (líderes
literários do renascimento negro norte-americano), Chaka (chefe guerreiro zulu),
Nzinga (rainha jaga que lutou contra os portugueses no início da colonização),
Senghor (um dos autores da Négritude).

Nega-se, dessa forma, não o valor das culturas europeias (ou quaisquer outras),
mas a sua dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial.
Chega-se assim à recusa textual da «música fútil/das valsas de Strauss» (Noémia
de Sousa), afirmando ironicamente: «cresçam sinfonias de Beethoven/e poemas
que o amigo Mussunda não entende» (Agostinho Neto).
/ /
A África, o negro e a Mãe-Negra (Mãe-Africa ou Mae-Terra) ocupam nos
textos um lugar de destaque, como referências, alusões ou temas, numa decla­
ração humanística de povos até aí apresentados e representados (na literatura
colonial) como destituídos de história, cultura e mesmo de sentimentos. Segundo
a análise de Sartre, no referido prefácio à Anthologie, de Senghor, dá-se a
revalorização (e a sobrevalorização) das culturas e modos de vida ancestrais
(tribais, clânicos), com o culto dos antepassados, o animismo e a respectiva 1 Ver, por exemplo, Alfredo
animização retórica da natureza, o pan-sexualismo vitalista, a visão eufó­ Margarido, «Negritude e hu­
manismo» (1964), in Estudos
rica e ufanista das relações sociais e familiares nas tribos e no mundo rural
sobre literaturas das nações
e natural. Ou seja, opõe-se ao mundo tecnológico e racionalista dos euro­ africanas de língua portu­
peus o mundo natural e sensitivo dos africanos, num posicionamento que guesa, Lisboa, A Regra do
Jogo, 1980, pp. 157-187, que
recebería críticas devastadoras dos homens empenhados na abertura de se faz eco do coro de críticas
África ao mundo moderno, através de revoluções socialistas h surgidas internacionalmente.

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BIBLIOGRAFIA

1. Leituras complementares

FERREIRA,Manuel, O discurso no percurso africano /, Lisboa, Plátano, 1989, pp. 57-92


e 231-259.
HAMILTON, Russeí, Literatura africana, literatura necessária - /, Lisboa, Ed. 70, 1981,
pp. 13-50.
MARGARIDO, Alfredo, Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portu­
guesa, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980, pp. 79-103.

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