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José Van Dcn Bcssclaar

As palavras
têm a sua história

EDIÇÕES A P P A C D M D ISTRITAL DE BRAGA


BR A G A • 1994
u tcaçoes periódicas costumavam antigamcnte ser clum
ctitios ( — «Mensageiros»), nome dado, entre outros, ao M ercúrio l
redigido por Antônio de Sousa de Macedo (50 números, de 1663
ao M ercure d e France (1889-1965).

G. O deus Thot dos egípcios não íoi apenas o inventor da escrita e o


escriba dos deuses, mas também o grande mágico e o sabedor de altos
segredos. Na época helenistica loi identiliçado pelos gregos com Hermes,
ficando com o nome Hermes Trisménistos (= «o três vezes grande Hermes»).
As revelações secretas do deus estão parcialmente conservadas no chamado
Corpus H erm eticum , uma coleção de uns 40 tratados (em forma de dialogo),
uns longos, outros breves; uns completos, outros incompletos. Os mais
antigos deles remontam ao século III a.C.; os mais recentes, ao século III d.C.
Aqueles tratam de assuntos astrológicos, cosmogónicos e alquímicos, mis­
turando doutrinas egípcias com especulações gregas; estes, influenciados pelo
gnosticismo (cf. ittfra, § 224 A) pelo judaísmo e pelo cristianismo, ensinam
os métodos de «auto-salvação». São tratados, em geral, muito obscuros, so
acessíveis aos iniciados; dai o termo herm ético {= «ocultista»). Contudo, a
expressão «hermeticamente fechado» não se refere ao caráter obscuro do
hermetismo, mas deve sua origem a um truque atribuído ao habil deus, que
sabia lacrar um tubo de vidro de tal maneira que não deixava entrar o ar.
E errônea a expressão «aritmeticamente fechado», que é uma especie da eti­
mologia popular.

Dioniso I Baco

§ 28. Zeus desceu, numa chuva de ouro, sobre Sémele. lilha de Cadmo
(o rei de Tebas), tornando-a mãe de Diónysos (lat. Dionysus, port. «Dioniso»),
cujo nome muitos explicam como «filho de Zeus». Sabemos hoje que ja por
volta de 1500 a.C. Dioniso era venerado na ilha de Creta como deus da vege­
tação e da fecundidade num culto extático e popular; antigamente julgava-
-se que era um deus importado em data relativamente recente. A religão aris­
tocrática de Homero relegou-o para o segundo plano, mas, ao aburguesar-se
a vida helênica no século VI a.C., revigorou o seu culto, sem que o deus con­
seguisse integrar-se no grupo dos deuses olímpicos propriamente dito.
Circulavam muitos mitos sobre a sua infância, que aqui deixamos de lado.
Só mencionamos a sua expedição semi-militar aos países orientais, inclu­
sive a índia, que resultou numa marcha triunfal. Jã acompanhado de uma
turma extática, composta de homens (os chamados «sátiros», meio-homens,
meio-bodes, com dois chifres na testa e pernas de bode) e mulheres (as cha­
madas «mênades», que se entregavam com frenesi à música, dança e orgia).
Aspirava-se ao estado de delírio coletivo nas festas noturnas de Dioniso, nas
quais participavam principalmente mulheres, as chamadas «bacantes», assim

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denominadas por ser «Bacon (gr. Bakklw s: lat. Bacchus) um apelido muito
usado do deus. Na vida cotidiana, Dioniso ou Baco era o lautor do vinho e
da embriaguez, a ponto de se usarem os suhst. gr. hákkhns e lat. bacchus
metonimicamente no sentido de «vinho» O culto de Dioniso /Baco foi
adotado pelos romanos já no século V a.C\, que cedo o equipararam ao
deus itálico lAbcr Patcr■( = «Pai Libertador [dos cuidados]»?), o protetor da
viticultura.

A. A palavra «sátiro» (gr. satyros) quer dizer «com falo /pênis ereto».

B. A palavra «sátira» (lat. satura >-tira) e de origem latina, nào tendo


nada a ver com o suhst. gr. satvros. É a forma feminina do adj. lat. satur,
que significa «cheio, saturado»; o suhst. subentendido é lanx (= «prato, tra­
vessa»). Satura [/mu] era um «prato cheio» de diversas espécies de frutas,
geralmente destinado a ser oferecido aos deuses, nomeadamente, a Ceres;
o termo, aplicado a um gênero literário, queria dizei «miscelânea». Com
efeito, a mais antiga satira latina apresentava uma grande variedade de
assuntos (política, moral, cenas da vida cotidiana, etc.), como também
versos alternados com trechos prosaicos, e contava anedotas humorísticas
e picantes, misturadas com violentas inveetivas pessoais. O poeta Lucilio foi
o fundador da sátira literária (I80-IU2 a.C.), escrita em diversos metros.
Horacio ((>5-8 a.C.) abrandou o tom violento das satiras e redigiu-as em versos
hexamétricos, no qual foi seguido por Juvenal (60-140) e outros.

Nu m Quanto a substantivarão do ad| satura, ct. s upi a, 25 A, nota,

C. A palavra «ménades» (gr. mainádes) relaciona-se com o substantivo


gr. tuania; cf. supra, § 24 A.

D. A etimologia da palavra B ákkhos é obscura. Alguns consideram-na


como vocábulo pré-helênico, interpretando-a no sentido de «Touro» (símbolo
da potência varonil); outros vêem nela uma exclamação.

E. Quanto à oposição existente entre as palavras «dionisíaco» e «apo-


líneo», cf. supra, § 24 C.

F. O subst. lat. dèliríum {= «delírio») compõe-se da prep. de- + do


subst. lat. Ura (= «sulco»). Quem «delira» está «fora do sulco» (termo agrí­
cola) —* «fora do caminho reto /certo».

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C». O naturalista Plínio (Naturahs Historia, III, 8) dá-nos a seguinte infor­
marão sobre a origem da palavra -Lusitânia»:

Litsuni en in i I.ibcrt Patns. O hnncat de Pai Libero |= Haco], ou


aut h s s a t n r u m c o b a c c h a m t u m o delírio tios que m m ele celebravam
huíiic» d c d is sr la is ila m a r um baeanal deu o norne a I.usilánia

Ora, o subst. lat. Instou (= -o brincar») e o subst. gr. lyssa ( = «o delírio»)


loram interpretados como nomes proprios, dando origem aos utiiropônirnos
Lusus (tilho de Libero = Baco) e Lys{s)a (um dos seus companheiros). Tal Luso
ou Lysa seria o progenitor do povo lusitano, erro de interpretarão a que
devemos o titulo de Os Lusíadas (= «Os descendentes de Luso»),

H. A terminarão -r(a)í/n, que pelo latim provem da terminarão grego


-((tildes, designa descendência nos chamados «patronimicos», isto e, sobre­
nomes derivados do nome do pai (ou avó, etc.). Exemplos: Atrtda (= «lilho
de Atreu», a sabei, Agamémnon ou Menelau) e Htietada (= «filho/ descen­
dente de Enéias»).

Dioniso e o drama grego

§ 29. O culto de Dioniso deu origem, não só a festas devassas e orgiacas.


mas também ao drama grego. O nascimento do drama grego deu-se no fim
do século VI a.C., na cidade de Atenas. Aqui se seguem umas breves noticias
sobre as fases da sua evolução e sobre os vestígios que as representações
teatrais deixaram nas línguas modernas.

A. O subst. gr. drám a deriva do verbo gr. dráõ (= «fazer, efetuar, cum­
prir»), com o qual se relaciona o adj. gr. draslikós (= «drástico, enérgico*).
Muitos julgam que o emprego primordial desta categoria de palavras não
é profana, mas sacral. O verbo dráõ empregava-se originariamente sobre­
tudo no sentido de «render um culto religioso, praticar uma cerimônia reli­
giosa». Com efeito, a origem do drama grego não se pode separar do culto
prestado a Dioniso. Aliás, também o teatro medieval tem raizes nitidamente
litúrgicas e bíblicas.

B. A fase imediatamente anterior ao nascimento da tragédia é consti­


tuída pelo «ditirambo», isto é, um hino em louvor de Dioniso, o qual era can­
tado e, ao mesmo tempo, dançado por um corpo de baile (o chamado khorós
[= «coro»]) em redor do altar do deus. De acordo com a tradição, o poeta
Aríon de Lesbos (ca.600 a.C.) teria dado perfeição artística ao ditirambo, que,
antigamente não passava de um canto rústico, promovendo-o à categoria de

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gênero literário. O mesmo poeta teria introduzido o costume de disfarçar
os coristas em «sátiros», que, como ja vimos (cí. supra, § 28), eram mcio-
-homens e meio-bodes. Ora, a palavra grega que significava «bode» era trágos.
Dai o canto executado pelas coritas veio a ser chamar-se tragõidta (lat. tra-
goedia', port. «tragédia»), palavra composta de trágos (= «bode») e óidè
(= «canto»; cf. o subst. port. «ode»).

Non I A pal.isKi -diluambo- (gt ththxtutnbin>)<: tlc ungem ubvcura Alguns vêem nela
um «tnpudeo» Ktimologia pouco convincente
\ou 2 O subst gi kltoros (=«coro») significava ui iginariamenlc -pista- [de
dam,'a canto], relacionando-se com os subst gr. khtutos e lat ln>rti4S (= -sitio
cercado-, d ]} IM* A) Mais laide, porem, loi se aplicando ao conjunto
dos que dançavam, e cantavam, linalmente, passou a designar também o baile
e o canto executado.
Noiv 3 Ü coro dam;ava e cantava na «orquestia» (gi orkhfslru), palavra relacionada
com o verbo gr cikhotniu ( «movimenlai-se»l No século XVII o termo veio
a sigmticui a parte do teatro, reservada aos músicos, e só no secu Io XVIII Iicou
com o sentido de «coniunto dos músicos [instrumentais]-.

C. Embora Anon fosse natural de Lesbos, uma ilha eólica, trabalhou


principalmente nas cidades dóricas do mundo grego (Corinto, Sicilia, Magna
Grécia, etc.). Por isso mesmo, compôs as suas obras poéticas (hoje perdidas)
no dialeto dorico. Assim se explica que os coros da tragédia ática, os quais
têm por modelo o amigo ditirambo, continuassem a ser redigidos no dialeto
dórico. Coisa semelhante (não idêntica!) se deu na Península Ibérica, onde
a língua galego-portuguesa era praticada por castelhanos, leoneses, etc.

D. Os ditirambos tratavam originariamente so episódios da vida de Dio-


niso. Com o tempo, porém, foram introduzidos também assuntos a outros
deuses e heróis.

§ 30. É muito provável que o relerido Arion, para variar os seus diti­
rambos, neles inserisse trechos métricos, já não cantados, mas declamados.
A designação de tal declamador era Hypukrités (= «responsor»); o termo
sugere que o declamador respondia a perguntas que lhe eram propostas pelo
dirigente do coro, o chamado corifeu (gr. korypháios; lat. coryphaeus). A ino­
vação, por mais importante que fosse, não resultou na ação dramática
propriamente dita. Para tal era necessário que o responsor já não contasse
«epicamente» as aventuras do seu herói, mas passasse a representá-lo «dra­
maticamente». identificando-se com ele e «entrando-lhe na pele». Por outras
palavras, o «responsor» épico devia transformar-se em «ator» dramático.
Ao que parece, o passo decisivo neste sentido foi dado pelo poeta Téspis de
Atenas, que em 534 a.C. introduziu um ator na cena. Para possibilitar um
diálogo, outros dramaturgos introduziram um segundo ator e, mais tarde,

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um terceiro. Salvo uns poucos I mementos, pei dn íimi se as oliras dos him ia
dores da tragédia. Só chegaram aos nossos dias sele pe<,us ■oinpleias <lr
Esquilo (525-456 a.C\), sete de Sojoeles (4Ó6 406 ,i < ) e de/enov e <l<* I; 111 ipides
(480-406 a.C.).

A. O subst. gr. hypnkrilés (lal. hvpocnto', poi t «liipoc riia») passou <ouio
vimos do signilicatlo de «responsor» ao de «aloi ». < o n i o um atoi deve ser
capaz de simular e dissimular tudo, a palavra In ou, nas línguas modernas,
com o sentido de «hipócrita», evolução semánlíi a que se deve pi uiupalmeote
ao seu emprego pelos autores do Novo Testamento.

B. A palavra «conleu» (gr. kinyphnins) nada tem a ver com o subst


«coro» (gr. khorns), mas deriva do subst, gr. knryphé ( «cume, ponto
culminante»).

C O ator «representa» outra pessoa. Tal ato chama-se em latim huma­


nista im p ersim a tio e em inglês: inipersonation (lil. = «entrar na personali­
dade [de outrem]»).

D. A palavra «cena» deriva do subst. gr. skené (lat. scaena), que signi­
fica a «tenda, barraca», em que se guardavam os requisitos teatrais. Origi-
nariamente, a skené era uma instalação provisória, como o indica o próprio
termo; com o tempo, passou a ser uma construção permanente, que servia
também de fundo para o palco (gr. proskéniun).

E. Os atores trágicos usavam borzeguins de solas altissimas: kóthom oi


(gr.), cothum i (lat.) ou «coturnos» (port.), e uma máscara: prósopon (gr.) e
persona (lat.); cf. infra, § 59 B.

§ 31. Também a comédia está estreitamente ligada ao culto de Dioniso.


A palavra gr. kom oidia (lat. com oedia) quer dizer «canto de cortejo [carna­
valesco]». Com efeito, em certas festas do deus organizavam-se, na Atica e
outras regiões da Grécia, cortejos carnavalescos em que homens, a cavalo
ou a pé, mascarados e trajados de animais, de hérois, de reis, etc., desfilavam
pelas ruas das cidades, improvisando críticas às autoridades locais, ridicu­
larizando costumes e modas, e fazendo troças de opiniões e idéias. Parece
que desses cortejos, geralmente, licenciosos e até obscenos, se originou a
comédia grega, que chegou a ser gênero literário na Sicília e, nos primeiros
decênios do século V a.C., se introduziu em Atenas. 0 mais importante come-
diógrafo ateniense foi Aristófanes (446-385 a.C.), de quem possuímos ainda
onze peças completas. Suas comédias constituem um comentário satírico aos
acontecimentos discutidos do ano, e fazem zombaria dos mais ilustres per­
sonagens (por exemplo, Sócrates e Eurípides).

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