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Herança de ódio
Oduvaldo Viana

Coordenação e edição de texto


L aura do Carm o

e d iç o es Casa de Rui Barbosa

Rio de Janeiro, 2007


S O N H O S S O N O R O S : A S R A D IO N O V E L A S .

L ia C a labre"

O rádio chegou no Brasil em 1923, despertando paixões. A lguns ho­


mens de ciência, como os pioneiros Roquete-Pinto e H enrique M orize
viam no veículo um precioso caminho para a solução dos males do anal­
fabetismo e da ignorância que grassavam no país. Os empreendedores,
como o pioneiro Renato M urce, acreditavam no poder infinito de co­
municação do veículo e na sua transformação em um grande negócio.
A lguns intelectuais, como Álvaro M oreira, viam o rádio como um novo
veículo de expressão.
Em seus oitenta anos de existência, o rádio brasileiro lançou modas,
ultrapassou barreiras geográficas, revolucionou práticas cotidianas, inven­
tou e consolidou gêneros de programas de enorme sucesso. Nas décadas
de 1940 e 1950 o número de emissoras de rádio cresceu vertiginosamente,
exercendo um a atração tal sobre o público ouvinte que fez com que o pe­
ríodo entrasse para a história como os “anos dourados do rádio brasileiro”.
As radionovelas ocuparam um lugar de destaque nesse período.
M ais de meio século depois, pode-se dizer que as radionovelas são ao
mesmo tempo famosas e desconhecidas. Famosas, por serem sempre ci­
tadas, como é o caso de O direito d e n a scer , presença obrigatória em qual­
quer menção ao m undo das novelas (radiofônicas ou televisivas). Mas
também desconhecidas, pois as novas gerações não têm nenhum a noção
do que tenha sido, ou do que possa ser, um a novela radiofônica, onde a
im aginação individual com plementa a ausência das im agens, possibili­
tando aos heróis e aos vilões ter tantas faces quantos sejam os ouvintes
que acompanhem atentos o desenrolar das tram as.

11 Doutora em Histórica Social pela Universidade Federal Fluminense e chefe do Setor de


Política Cultural do Centro de Pesquisa da Fundação Casa de Rui Barbosa.
27
A prim eira radionovela transm itida no Brasil, Em busca da fe lic id a ­
de, foi ao ar em 5 de junho de 1941, pela Rádio Nacional do Rio de
Janeiro. E ra um a adaptação de Gilberto M artins12 do original cubano
de Leandro Blanco. Isso não quer dizer que as emissoras brasileiras não
realizassem radiodram atizações. Eram comuns os “teatros em casa”,
os “radiatros”, os inúm eros esquetes teatrais presentes nos [integrando
os] m ais variados program as das emissoras de rádio de diversas regiões
do país, ou ainda algum as dram atizações em dois ou três capítulos. Em
1933, o jornal paulistano Folha da N oite, entrevista Oduvaldo V iana so­
bre sua atuação no radioteatro da Rádio Record.13 No caso carioca, a
Rádio M ayrink Veiga começou a realizar suas prim eiras experiências
com dram atizações radiofônicas em 1932, lançando, em 1937, o progra­
ma T eatro p elo s ares.
N a própria Rádio N acional, criada em 1936, desde o final da década
de 1930, aos sábados, era apresentado o program a Teatro em casa, que
consistia na radiofonização em um a única apresentação de um a peça
teatral. H avia ainda G ente d e circo , de A m aral G urgel, um a história se­
m anal seriada, lançada no início de 1941.
Na verdade, o que estava sendo lançado com Em busca da felicid a d e
era um novo modelo, algo diferente do que até então as emissoras costu­
m avam apresentar. As radionovelas eram histórias seriadas, irradiadas
às segundas, quartas e sextas-feiras ou às terças, quintas e sábados. A
duração variava, indo de um mês até dois anos, como foi o caso de Em
busca da felicid a d e, que ficou em cartaz de 1941 até 1943. Podemos afir­
m ar, entretanto, que a m édia era de dois meses de duração.14

12 O escritor Gilberto Martins foi responsável por inúmeras das adaptações apresentadas
nas rádios brasileiras.
13 Folha da Noite, io jan.1933.
14 Em um estudo sobre as novelas irradiadas pela Nacional entre 1941 e 1946, das 81 que ti­
veram o número de capítulos levantados, 22 possuíam até 20 capítulos, 52 de 21 a 30 capí­
tulos e somente sete ultrapassaram 31 capítulos. Ver os anexos da dissertação: AZEVEDO,
Lia Calabre. Na sintonia do tempo: uma leitura do cotidiano através da produção ficcio­
nal radiofônica (1940/1946). Niterói, 1996. Dissertação (mestrado em História Social das
Idéias) - Departamento de História, Universidade Federal FluminenséTfatterói, 1996.
28 .... /
No caso dos autores brasileiros, o pioneirismo é de O duvaldo Viana,
com o lançamento de sua prim eira radionovela, pela Rádio São Paulo,
ainda em 1941. Em 1939, O duvaldo tinha ido m orar em Buenos Aires
com a fam ília. Sua intenção inicial era a de escrever para o cinem a, e
logo foi contratado pela Rádio El M undo para fazer um program a sobre
o folclore brasileiro. Nesse período as radionovelas já faziam m uito su­
cesso na A rgentina, e O duvaldo foi convidado a escrever um a radiono­
vela para a emissora em que já atuava. O sucesso foi im ediato. Segundo
o escritor:

[...] lá na “Rádio El Mundo” comecei. Daí por diante, ao ser


apresentado a alguém, excluindo os intelectuais, é claro, rara­
mente eu ouvia qualquer referência ao escritor de teatro. A mi­
nha popularidade, daí por diante, era a novela. No setor femi­
nino então chegava a me irritar. Ninguém se lembrava de nada
que eu havia feito, a não ser “las novelas”.1’

Em dezembro de 1940, assim que retornou ao Brasil, O duvaldo V ia­


na ofereceu as novelas escritas cm Buenos Aires para diversas emissoras
de rádio, mas somente Vítor Costa, diretor de radioteatro da Rádio N a­
cional, se interessou pela idéia. O m aior problem a para lançar as nove­
las no Brasil estava em convencer os anunciantes das possibilidades de
sucesso do gênero, já que isso im plicava no patrocínio de um mesmo
program a em três horários semanais. A Rádio N acional do Rio de Janei­
ro term inou irradiando a novela cubana patrocinada pelo creme dental
Colgate, enquanto Oduvaldo V iana lançou a sua novela em São Paulo.
Quando a radionovela chegou ao Brasil, o gênero já fazia um gran ­
de sucesso no restante da Am érica L atina. A prim eira radionovela em
Cuba foi ao ar em 1931 e, na A rgentina, em 1935.1516 C uba tornou-se um

15 VIANA, Deocélia. Companheiros de viagem, São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 68.


16 Ver: GONZALEZ, Reynaldo. Prehistoria de Ia radionovela. Revolucion Y Cultura, n. 2, feb.
1986. p. 68-69.
29
grande exportador de novelas radiofônicas para toda a Am érica Latina.
Essa situação está bem ilustrada no romance de Vargas Llosa, Tia Já lia e
o escrevin h a d or , am bientado em L im a, na década de 1950.17
O protagonista de Tia Jú lia trabalhava em um a rádio peruana onde
as radionovelas irradiadas eram cubanas. O dono da emissora comprava
os textos sem ter a m enor idéia do conteúdo, mas as histórias sempre
faziam m uito sucesso junto ao público ouvinte. Parte do romance é cen­
trado na tentativa da emissora de produzir seus próprios textos a partir
da contratação de um escritor exclusivo. V arga Llosa retrata como as
radionovelas, com seus horários regulares de irradiação, organizavam o
cotidiano dos limenhos.
No caso do Brasil, os textos cubanos eram considerados excessiva­
mente dram áticos e necessitavam passar por algum as adaptações para
agradar ao grande público, como foi o caso de Em busca da felicid a d e.
A iniciativa de colocar a novela no ar veio da Standart Propaganda, a
agência de propaganda do crem e dental Colgate. A agência escolheu o
horário m atinal, e a novela era irradiada às segundas, quartas e sextas
às 10h30min. Os atores m ais consagrados do teatro da Rádio Nacional,
como Celso G uim arães e Ism ênia dos Santos, se recusaram a entrar em
cena nesse horário.18 Muitos consideravam que seria um fracasso, pois o
horário tradicional das radiodram atizações era o noturno.
A novela estreou com um cast que contava com poucos veteranos
e m uitos atores jovens. Participaram de Em busca da felicid a d e: Rodol­
fo M ayer, Zezé Fonseca, ísis de Oliveira,. Iara Sales, Floriano Faissal,
A m aral G urgel, L u iz Tito, Lourdes M ayer, Francisco Moreno, Flora
M ay, Saint-C lair Lopes, Heber de Bôscoli, Alda Verona, Brandão Filho,
Sílvio Silva e Paulo F erraz. A direção era de V ítor Costa, na locução
com ercial atuavam A urélio de A ndrade e M aria H elena, e a sonoplastia
ficou a cargo de Edmo do Vale.19 A história era o grande dram a de um

17 O romance é uma espécie de narrativa de juventude de Vargas Llosa misturado cgm al­
gumas doses de ficção. \
18 Depoimento de Floriano Faissal (set. 1976). Museu da Imagem e do So m , Rio de Janeiro.
19 Álbum de Em busca de felicidade.


casal, de classe alta, que tinha um a filha de criação. A m enina era fruto
de um a relação extraconjugal m antida pelo m arido com a em pregada
que m orava na residência do casal. Em um determ inado momento, a
m enina descobre a verdade e decide m orar com a m ãe. A m ulher pro­
cura se separar do m arido e viaja para os Estados Unidos onde sofre um
acidente. A menina se apaixona pelo filho do patrão, m as vê a relação
im pedida pelo desnível social existente entre os dois. Quando finalm ente
a m enina vai se casar, o rapaz morre em um acidente de carro. E assim
vai se desenrolando a tram a, fazendo com que, toda vez que um dos
personagens chegue perto da possibilidade de ser feliz, algo de trágico
aconteça, justificando o seu nome: Em busca da felicid a d e.
A intenção inicial da Standart era a de contratar o cast de atores e
Vítor Costa, o diretor de radioteatro, tirando-os da Rádio N acional. A
agência com praria o horário de transmissão (o que no início da década
de 1940 era um a prática m uito comum) para transm itir suas novelas. O
diretor da Rádio N acional, Gilberto de A ndrade, não perm itiu que o
diretor de radioteatro se transferisse para a agência de publicidade com
a equipe de atores. Em contrapartida propôs a Vítor Costa quç a Rádio
Nacional produzisse, ela própria, as novelas, vendendo-as para os pa­
trocinadores e para outras emissoras. Este últim o passava a receber co­
missão sobre todos os program as que tivessem a atuação dos elementos
do radioteatro. Como praticam ente todos os program as irradiados pela
emissora tinham quadros de radioteatro, tal acordo se tornou altam ente
rendoso para Vítor C o sta.20
Tudo indicava que o lançamento de Em busca da felicid a d e seria um
sucesso. Porém, com o intuito de avaliar com m aior precisão a audiên­
cia da novela, a Standart organizou um concurso entre os ouvintes. Foi
produzido um álbum com fotos dos artistas e com o resumo da radiono­
vela, do que havia sido apresentado até aquele momento. Para recebê-lo
os ouvintes deveriam escrever para a emissora enviando um rótulo de

20 Depoimento de José Mauro a Lourival Marques por ocasião dos festejos dos 40 anos da
Rádio Nacional.
3
Colgate, o patrocinador da novela. O sucesso do concurso foi imediato.
Somente no prim eiro m ês de promoção chegaram 48 m il pedidos, um
núm ero m uito acim a do esperado pelo patrocinador, fato que o levou a
suspender a promoção. A pronta resposta dos ouvintes à sondagem de
audiência se tornou um marco na história das radionovelas e é um fato
sempre rem em orado nos depoimentos e reportagens sobre o tema.
A popularidade da p rim eira novela era imensa. Floriano Faissal, ao
representar o dr. Mendonça, passou a ser freqüentem ente procurado por
ouvintes em busca de seus serviços de “m édico”. O ator relem bra um
caso em especial:

Uma vez apareceu uma senhora lá e eu fazia o dr. Mendonça,


um homem extraordinário, que cuidava de todo mundo, e ela
queria que eu receitasse para ela um remédio para o fígado. Era
uma senhora, coitadinha, velhinha. Aí eu lembrei que, quando
eu era garoto, sofria do fígado e às vezes me davam uma infu­
são de folha de abacateiro, aquilo era horrível, amargo. Faziam
aquele chá, colocavam na geladeira e eu ao invés de beber água
bebia aquilo. Então eu receitei para ela a folha de abacateiro.21

A radionovela E m busca da felicid a d e também era gravada nos es­


túdios da Standart perm itindo a distribuição para outras emissoras.
Tratava-se de um sistema misto pois os artistas que eram da Nacional
recebiam pela gravação, e a emissora recebia pelo horário de transmissão
da novela que depois tam bém iria ao ar através de outras emissoras. Se­
gundo o ator Saint-C lair Lopes, o elenco da novela saía da rádio à noite,
depois de encerrada a program ação, e ia para os estúdios da Standart
gravar os capítulos. No dia seguinte, pela m anhã, todos deveríam estar
na emissora para os ensaios e as transmissões ao vivo.
O público alvo das radionovelas era o fem inino, os grandes anun­
ciantes desse tipo de program ação eram , em geral, os fabricantes de

21 Depoimento de Floriano Faissal. Museu da Imagem e do S o m , Rio de Janeiro


produtos de lim peza e de higiene pessoal.22 U m a pesquisa do IBOPE,
realizad a em janeiro de 1944, apontava a seguinte audiência para o pe­
ríodo de 10 às l l h da m anhã: 69,9% de m ulheres, 19,5% de homens e
10,6% d e crianças.23 O horário m atinal concentrava os maiores índices
diários de audiência fem inina. Os textos com erciais que acompanhavam
as radionovelas, dirigidos para a “prezada ouvinte”, refletiam a valoriza­
ção da presença fem inina no mercado consumidor. Eram apresentados
produtos que lim pavam m elhor, facilitando o serviço feminino no lar,
ao lado dos que em belezavam a m ulher, deixando-as tão lindas como
as estrelas de H ollywood ou sintonizadas com as últim as novidades tec­
nológicas surgidas nos países desenvolvidos. Até meados da década de
1950, a Sydney Ross foi a m aior patrocinadora das novelas, seguida por:
A ntisardina - o crem e da m ulher fem inina; Óleo de Peroba; Colgate
- Palm olive; Toddy do Brasil e P erfum aria M yrta Eucalol. A p artir de
1955, os patrocinadores começaram a variar m ais, podendo ser encon­
tradas empresas de eletrodomésticos como a A m o S/A e a W alita ou de
lingerie como a D eM illus, Mourisco ou Alteza.
A produção de radionovelas envolve um a série de profissionais. Den­
tro dessa grande engrenagem , há a figura do autor dos textos ficcionais
radiofônicos. Escrever para o rádio é fazer um teatro cego, no qual os
ruídos, a música e os recursos de voz são m uito m ais importantes do que
em outros meios. Dentro do conjunto dos escritores, aqueles que se de­
dicavam ao rádio eram vistos como produtores de subliteratura, mesmo
nos tempos áureos d a novelas radiofônicas. Segundo Guiusepe G hiaro-
ne muitos escritores utilizavam o artifício do pseudônimo para se escon­
derem e não serem malvistos pelos literatos e intelectuais da época:

22 Segundo Renato Ortiz as radionovelas têm origem nas soapoperas, concebidas como ve­
ículos de propaganda das fábricas de sabão, surgidas nos Estados Unidos na década de
1930. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural.
São Paulo: Brasiliense, 1991- p. 44- 45-
23 IBOPE, Serviço de Rádio, Rio de Janeiro, 1944.

33
Esse pseudônimo era um dos sinais dos nossos preconceitos,
nós mesmos, nós que vivíamos cheios de literatura e que fre-
qüentávamos o bar Amarelinho. Nós tínhamos um certo des­
prezo pelo literato do rádio. Nós considerávamos, como todos os
outros, que fazer rádio era fazer subliteratura e que o escriba de
rádio era um escritor de segunda categoria, meio maldito e tal, o
que eu acabei sendo.24

Em um levantamento sobre as radionovelas transm itidas pela Rádio


Nacional no período entre 1941 e 1959, foram localizados 807 títulos
e um total de 118 autores.25 Desse total de autores, 23 deles foram res­
ponsáveis por 71,6% do total das novelas irradiadas através da Rádio
Nacional. Os resultados obtidos foram os seguintes: Oduvaldo Viana (75
novelas), Gastão R Silva (75 novelas), Carlos G utem berg (64 novelas),
Raim undo Lopes (31 novelas), A m aral G urgel (30 novelas), G hiaroni
(28 novelas), Eurico Silva (28 novelas), Cícero Acaiaba (24 novelas), Otá­
vio A ugusto Vampré (21 novelas), M ário Brassini (20 novelas), H élio do
Soveral (18 novelas), D ilm a Lebon (18 novelas), Dias Gomes (16 nove­
las), M ário Faccini (16 novelas), L u iz Quirino (16 novelas), Ivani Ribeiro
(16 novelas), H errera Filho (15 novelas), Janete C lair (13 novelas), G il­
berto M artins (12 novelas), Saint-C lair Lopes (11 novelas), W alter Foster
(10 novelas) e Álvaro Augusto (10 novelas). A reconstituição da atuação
profissional desses autores é um a tarefa difícil de ser realizada, mas m ui­
to importante para a recuperação da história do rádio no Brasil, h^uitos
desses profissionais parecem ter desaparecido no ar, sem deixar registros
nos arquivos, nas publicações ou nos documentos do período.

24 Depoimento de Guiusepe Ghiaroni a Louriva! Marques por ocasião dos festejos dos 40
anos da Rádio Nacional..
25 A publicação de aniversário da Rádio Nacional editada em 1956 indicava que até 1955 ha­
viam sido irradiadas 861 novelas pela Nacional. Em pesquisa realizada nas colunas de
programação radiofônica dos jornais (A Noite e A Manhã) da época e nos mapas de pro­
gramação da rádio de 1947 a 1959. guardados no arquivo da emissora, consegui localizar
a autoria de 807 novelas que serviram de base para as análises apresentadas.
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A grande m aioria desses autores, além de escreverem radionovelas,
eram responsáveis pela redação e produção de program as, quadros de
dram atização, radioteatro em um só ato, séries radiofônicas, entre outras
atividades. M uitas vezes os autores escreviam e produziam suas próprias
novelas.
U m a das questões m ais evidente no resultado da pesquisa é a da alta
produtividade de um pequeno grupo de autores, como é o caso de Odu-
valdo Viana que sozinho foi responsável por 9,3% do total de novelas
irradiadas pela Rádio N acional entre os anos de 1941 e 1959. A quan­
tidade de textos produzida pelos escritores era m uito grande, e era co­
m um que situações cotidianas servissem de inspiração para os autores.
Segundo ísis de O liveira, atriz da Rádio N acional, o redator A m aral
G urgel roubava as falas dos atores e as transm itia para os personagens,
transferindo para os textos das novelas conversas, desabafos que captava
pelos corredores.26 Sobre a rotina do trabalho o escritor M ário Brassini
declarou:

O rádio satura um pouco, o rádio cansa. Eu trabalhava


monstruosamente. Havia períodos de eu ter uma novela e dois
programas por semana. Uma novela representava três capítulos
por semana, que naquele tempo não eram diárias, e os progra­
mas eram dois por semana, então eu escrevia muito. Quando não
estava no microfone, estava escrevendo, saía da rádio às lOh, 1lh
da noite, de cima da máquina de escrever.27

U m a outra questão que aparece no levantam ento foi a da grande


circulação de textos no eixo Rio-São Paulo. O duvaldo Viana, Otávio
Augusto Vam pré, Ivani Ribeiro e W alter Foster atuavam m uito m ais
em São Paulo, entretanto, vendiam seus textos para emissoras de outras
regiões do país. O sistem a m ais utilizado pela Rádio Nacional do Rio de

26 Depoimento de ísis de Oliveira. Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro.


27 Depoimento de Mário Brassini. Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro.

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Janeiro era o da manutenção d e um grupo de redatores próprios. Apesar
dos esforços, esse grupo não conseguia suprir a dem anda de novelas que
term inava sendo com plem entada pela compra de textos de autores que
não pertenciam ao quadro fixo de escritores da emissora. Outras em is­
soras optavam por com prar os textos prontos e não m anter escritores de
novelas em seus quadros. Existia o caso de alguns patrocinadores que
escolhiam o autor com o qual desejavam trabalhar, fosse para irradiação
de textos próprios ou para a preparação de adaptações. Havia ainda os
autores exclusivos das agências de propaganda, como foi o caso de G il­
berto M artins.
Um outro grupo de profissionais fundam ental para o sucesso das no­
velas é o daqueles que criam os sons, os ruídos. Edmo do Vale foi um dos
magos do som da Rádio N acional. Entre inúm eras histórias que ilustram
a capacidade criativa do principal contra-regra da N acional nas décadas
de 1940 e 1950, há uma m uito interessante sobre o program a O S om ­
bra. A série era de aventura e suspense, o que requeria uma constante
movimentação do contra-regra. Gilberto M artins era o responsável pela
tradução e adaptação da série que era um original norte-americano. Em
depoimento à Lourival M arques, para os festejos dos 40 anos da Rádio
Nacional, Edmo do Vale relem bra um dos episódios. Como um a espécie
de desafio, Gilberto entregou o script ao Edmo pouco tempo antes do
início das gravações. O contra-regra costumava chegar cedo à emissora,
verificar os Scripts do dia e fazer os arranjos necessários, mas naquele dia
isso não foi possível. Ao receber o texto percebeu que ele estava repleto
de instruções para a contra-regra. Entre ás cenas havia um a em qué o
homem era jogado em um poço com m ilhares de form igas carnívoras e
ele se perguntou como é fazer o som de um homem sendo devoradopor
m ilhares de form igas? Segundo Edmo do Vale, é aí que se tem que ter
im aginação, para que o profissional não se transforme apenas em a l­
guém que abre e fecha portas. A solução encontrada foi a seguinte:

Nós aqui tínhamos o bar, o restaurante, aí eu fui lá dentro,


peguei, naquele tempo estava aparecendo a Coca-Cola, que era
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muito efervescente e tal. A formiga pode ser aquele negócio
shixxxxx. Fui por semelhança sonora. Mandei comprar sal de
uva,28 uns pacotes, comprei duas garrafinhas da Coca-Cola pe-
guei tudo e trouxe para cá. Tapei assim o microfone, não deixei
ninguém ver o que era ali. E agora? O Vítor lá do estúdio, já
pode gravar? Já pode gravar. Quando chegou lá o pau comeu
era briga, queda, tiro, aqui uma fumaceira de pólvora danada,
que parecia guerra, guerra do Vietnã. Aí veio o momento em
que o cara cai e aí eu taquei o sal de uva dentro da Coca-Cola, foi
aquele negócio shixxxxx. O difícil é que tinha que ficar dois ou
três minutos aquele negócio e a Coca-Cola chiava mas acabava o
chiado e foi o sal de uva que ajudou.29

Entre aqueles que contribuíam para a produção das novelas, os m ais


famosos são os atores. As escalas de trabalho eram pesadas. U m a hora
antes da novela entrar no ar, o que era feito ao vivo, os atores deveríam
estar no estúdio para o ensaio. O texto era distribuído para o ensaio e ali
os atores ficavam sabendo qual seria sua atuação naquele dia. C abia ao
ensaiador estabelecer o tom da representação - com m ais gravidade, ou
humor, ou alegria. As representações eram levadas m uito a sério, tan­
to pelos atores quanto pelos ouvintes. Existem inúm eras histórias onde
ficção e realidade foram m isturadas e os atores passaram por algum as
situações difíceis por conta da personalidade dos personagens que repre­
sentavam.
Por exemplo, os traidores de m ulheres eram duram ente perseguidos
pelas ouvintes:

Numa ocasião as moças que trabalhavam no Departamento


Nacional de Café, que era no 19° andar, subiram para agredir o

28 O sal de uva era um medicamento efervescente utilizado para combater doenças do es­
tômago, fígado, rins, intestino, prisão de ventre, entres outros males.
29 Depoimento de Edmo do Vale para Lourival Marques no projeto dos 40 anos da Rádio
Nacional.
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Rodolfo Mayer. Ele fazia um homem sem escrúpulos, era casado
com uma senhora decente (Zezé Fonseca) e tinha um filho com
uma outra moça que era a Iara Sales a quem ele enganou não di­
zendo que era casado. Elas foram assistir a novela no auditório,
ficavam sentadas ouvindo porque era proibido assistir, nós não
deixávamos porque tirava o encanto da coisa. Então saímos do
estúdio, eu com o Rodolfo comentando o capítulo. As moças vie­
ram, cercaram o Rodolfo e disseram: —Você é um homem sem
escrúpulos, um ordinário, agredindo assim o Rodolfo. Então eu
tive que intervir dizendo que aquilo era só uma novela.50

H avia também as ouvintes que se apaixonavam pelas vozes dos ato­


res, criando situações embaraçosas como a que foi narrada por M ário
Lago. Em um certo dia, quando o ator estava saindo da Rádio Nacional,
um homem bêbado barrou-lhe a passagem e perguntou:

—Você conhece minha mulher?


—Não.
—Não mesmo?
—Palavra de honra.
—Minha mulher é enrabichada pela tua voz, a sem-vergo­
nha. É sim. Só vive falando nisso, e de tanto que fala eu cheguei
a pensar que tivesse um cacho entre vocês.
Não fosse que o lado direito do paletó do homenzinho estava
mais levantado, dando até para ver um pouco do cano do revól­
ver, a situação era para rir.31

O homem bêbado acabou por fim acreditando que M ário Lago não
conhecia sua m ulher e foi embora, não sem dizer alguns desaforos para
o ator.

50 Depoimento de Floriano Faissal. Museu da Imagem e do Som , Rio de Janeiro.


31 LAGO, Mário. Bagaço de beira-estrada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 54-55.

38
As radionovelas obtinham altíssimos índices de audiência e estavam
sem pre entre os program as m ais ouvidos das emissoras. A Rádio N acio­
nal, em especial, liderava a audiência em praticam ente todos os horários.
A pesquisa do serviço de rádio do IBOPE encontrou os seguintes resul­
tados em setembro-outubro de 1 9 4 3 :32

EMISSORAS HORÁRIOS
10-11 11-12 12-13 1 3 -1 4 16-17 17-18 18-19 19-20 21-22
Nacional 72,3 72,2 58,2 62,0 28,0 16,5 1 3 ,4 31,1 5 3 ,6

Tupy 5,3 4 ,5 12,6 1,5 2 3 ,0 3 9 ,7 4 0 ,5 26,0 13,8


Mayrink 7,3 7 ,2 7 ,6 6,5 2,11 8 ,9 16,2 2 5 ,0 11,1

IBOPE: Serviço de Rádio - Rio de janeiro setembro-outubro 1943.

M uitas emissoras faziam um intervalo à tarde, em geral das 14 às


16h, e entre 20 e 21 h ia ao ar a H ora d o Brasil , program a do governo de
retransmissão obrigatória, motivo pelo qual o IBOPE não apresenta re­
sultados desses horários. Observando 0 quadro verifica-se que o horário
m atutino de novela (10 às 11 h) era 0 de m aior audiência de todo 0 dia,
no conjunto do quadro da audiência. Os horários de 13 às 14h e de 21
às 22h, nos quais comumente se transm itiam novelas, também davam
destaque à audiência da Rádio Nacional.
Para m anter essa engrenagem ficcional funcionando, a Rádio Nacio­
nal, em 1946, m antinha em seu cast exclusivo 35 atores e 25 atrizes.33 Foi
exatam ente nesse período que outras rádios cariocas tentaram também
ultrapassar a audiência da emissora criando horários de radionovelas.
Em 1946, Gilberto de A ndrade saiu da Rádio N acional e foi para a Tupi,
levando com ele vários profissionais como José M auro, Paulo Tapajós,
A lm irante, Paulo Gracindo, entre outros. Com a contratação desses
grandes astros da Rádio Nacional, a Rádio Tupi investiu contra o horá-

32 Na pesquisa original constam todas as emissoras cariocas, mas para fins de demonstração
foram selecionadas somente as emissoras que apresentam os maiores Índice de audiência.
33 Rádio Nacional, Boletim de Programação de julho de 1946.
39
rio das 9h da noite, que era o chamado horário nobre das rádios. A Tupi
lançou um a novela de O duvaldo Viana estrelada por Paulo Gracindo.
Em contrapartida a N acional lançou a novela M ãe, o maior sucesso da
carreira de G hiaroni, que estava retornando à N acional e também tra­
balhava no setor de rádio da Sidney Ross. O escritor conta como surgiu
a inspiração para a novela:

O Vítor então me chamou para fazer uma novela às 9h, em


defesa do horário das 9h. E calhou, interessante, eu que estava
casado havia pouco tempo e a minha mulher estava esperando
a minha primeira filha. Eu resolvi fazer uma novela chamada
Mãe, de certa maneira no clima de uma gestação, evidentemen­
te muito ligada a mim. Talvez por isso, não sei, a novela Mãe
aconteceu realmente, de sorte que anulou essa tentativa da Tupi,
que até simularam um rapto do Gracindo, dizendo que ele havia
sido raptado, essa coisa toda.34

Mas não era só a Rádio Tupi que buscava aproveitar o sucesso obti­
do com as novelas pela Nacional. A Rádio Globo foi criada em 1944 e,
logo de início, contratou da Rádio Nacional o escritor A m aral G urgel,
que passou a ser o diretor artístico da nova em issora, levando também
algum as estrelas como Zezé Fonseca. Apesar de não conseguir retirar da
N acional o lu gar de campeã de audiência, as novelas de todas as emisso­
ras costumavam fazer grande sucesso. M ário Lago conta que a mãe dele
era um a ouvinte fiel: “acom panhar novela era um a cachaça da velha,
que acompanhava todas ao mesmo tempo, os horários anotados num
caderninho para não perder nenhum a”.35 ,
A Rádio Nacional era um a verdadeira escola de talentos. Investia no
constante aprim oram ento profissional de seu cast, realizando rigorosos

34 Depoimento de Giuseppe Ghiaroni a Lourival Marques por ocasião dos festejos dos 40
anos da Rádio Nacional.
35 LAGO, Mário. Op. dt. p.77-
40
ensaios, experim entando novos modelos e formatos de programação,
atuali zando os equipam entos e fornecendo infra-estrutura para a execu­
ção das idéias que surgiam .
Apesar da concorrência das outras emissoras de rádio, o setor de ra-
dioteatro da Nacional continuou a crescer e a m onopolizar a atenção dos
ouvintes. Em 1953, o cast da emissora contava então com 51 atores, 41
atrizes e 9 infanto-juvenis.36
Em 1950, o Anuário do Rádio publicou um a pesquisa revelando os
melhores program as de 1949 com os seguintes resultados:

PROGRAMA HORÁRIO DIAS PATROCINADORES ESTAÇAO ÍNDICE


PRK30 20:30 6 ,!. Eucalol Nacional 39, 7%

Radionovela 20:30 Colgate-Palmolive Nadonal 38,1%


Radionovela 21:05 Oleo de Peroba Nacional 35,5%

Radionovela 13:05 2 I!,4 “,6 “ Antisardina Nacional 34 ,5%

Radionovela 10:30 2 *,4 “, 6 “ Sabão Cristal Nacional 34 , 4%

Hora do pato 13:30 Domingos Guarafna Nacional 33, 4%

Radionovela 10:30 3as.sas,sáb. Perfumaria Myrtha Nacional 32, 4 %

Coisas do arco da velha 14:30 Domingos Sabão Platino Nacional 30,6%


Alma do sertão 21:05 5as. Vale Quanto Pesa Nadonal 30,6%
Há remédio para tudo 21:05 Sábados Café Predileto Nadonal 30 ,1%

Fonte: Publicidade & Negócio: Anuário do Rádio - março de 1950

A eficiência técnica e profissional tornava a R ádio N acional extre­


m am ente atrativa para os patrocinadores. Os dados presentes na tabela
acim a indicam que o radioteatro da N acional era m uito bem aceito com
índices de audiência próximos aos do program a PRK30, considerado
um dos maiores program as humorísticos da história do rádio brasileiro.
A Rádio N acional era um a espécie de modelo, de m eta alm ejada pela
grande m aioria das emissoras de rádio. Com horários muito valorizados,
era comum ocorrer disputas entre as agências para patrocinar horários

36 Revista do Rádio, 17 mar. 1953. p. 23.

41
e program as da Rádio N acional. Tal fato já não ocorria com o conjunto
do sistema radiofônico. O tratam ento dispensado pelas agências às em is­
soras de rádio era bastante diferenciado.
Em um a pesquisa de 1951, realizada pelo A nuário Brasileiro do R á­
dio com as agências de publicidade, uma das questões colocadas foi a
de quem produzia os program as dos clientes das agências. O resultado
foi de 31,2% dos program as feitos exclusivamente pelas agências; 31,2%
dos program as feitos pela emissora sob a orientação artística e com ercial
da agência; 25,1% dos program as produzidos pela emissora cabendo à
agência a parte com ercial e 12,5% dos program as ficavam totalmente
a cargo das emissoras. Quando se tratava das emissoras do interior, a
opção era de 46,2% pelo envio d cscripts\ 30,7% pelo envio de program as
gravados e 23,1% pela compra de program as existentes.37
Em 1951, foi ao ar pela Rádio Nacional o m aior fenômeno de audiên­
cia em radionovelas em toda a Am érica L atina: O direito d e nascer. Texto
original de Felix C aignet com tradução e adaptação feitas por Eurico
Silva. O original possuía 314 capítulos, o que correspondia a quase três
anos de irradiação. No elenco estavam N élio Pinheiro, Paulo G racindo,
Talita de M iranda, Dulce M artins, Iara Sales, entre outros. O d ireito d e
nascer surpreendeu todos os críticos e todas as previsões que afirm avam
que o radioteatro era um gênero em decadência e que o público brasilei­
ro não se interessava por tram as longas.
Em abril de 1952, com a novela ainda sendo irradiada, A N oite Ilus­
trada publicou um a reportagèm de Nestor de H olanda sobre a m an u­
tenção do fenômeno de popularidade após m ais de um ano de irrad ia­
ção. Inúmeras crianças eram batizadas com os nomes dos personagens
principais: Alberto Lim onta, M aria Helena e Isabel Cristina. M amãe
Dolores virava nome de praça, de creche e tem a de m úsica. O cronista
registrava ainda que:

37 ANUÁRIO Brasileiro do Rádio. PN ,a.u, 1951-1952, Rio de Janeiro, p. 95.


42
De norte a sul, graças às ondas curtas e médias da Nacional,
não se fala em outra realização radiofônica. Ninguém mais se
preocupa com outros programas com tamanho fanatismo. Ho­
mens sisudos, homens de negócios, senhoras que não são muito
afeitas ao vício comum de ouvir rádio sistematicamente, moci­
nhas casadoiras, rapazes que não têm mais em que pensar, avós e
solteironas, todos se agarram ao receptor às segundas, quartas e
sextas, às 20 horas. É a hora da novela!38

O custo da produção das radionovelas era muito alto e pôde ser m an­
tido enquanto as verbas de publicidade afluíam em grande quantidade
para o rádio. Com o crescimento da televisão, ocorreu um fenômeno de
m igração dos patrocinadores para o novo veículo. As verbas publicitá­
rias não cresceram na mesma proporção que a m ultiplicação do núm ero
de emissoras de rádio e de televisão. A falta de recursos financeiros foi,
em grande parte, responsável pelo abandono do gênero pelo rádio. Ao
longo da década de 1960, algum as emissoras ainda m antinham alguns
horários de radionovelas ou de program as de radioteatro. Mas na década
de 1970 o gênero desapareceu, apesar de algum as tentativas isoladas de
reativá-lo. Da época de ouro das radionovelas restam as m em órias dos
pioneiros, as histórias contadas nos corredores.

38 A Noite Ilustrada. 15 abr. 1952. p. 8-11

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