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A ver…
Peguemos o repertório das rádios da capital na virada dos anos
1950 pros 60. O repertório era vastíssimo: tudo em grandes
quantidades. Muita música centro-americana, do Caribe ao México,
com uma avassaladora quantidade de boleros e toda a variedade de
ritmos cubanos agrupada sob o rótulo de ―salsa‖. Uma onda forte de
guarânias paraguaias, muitíssima música pop norte-americana de
então (swing, fox, temas de filmes, standarts variados), tangos dos
anos 1930 e 40 e todos os sucessos da música brasileira de todas as
épocas. Os ―estrangeirismos‖ eram tantos que exigia-se dos locutores
– muitos deles contratados por concurso – conhecimentos de francês,
inglês e italiano (além de empostação de voz, boa presença de palco
e alguma noção de música erudita).
Pois então: por música brasileira entendia-se aquela feita 90%
no Rio de Janeiro, por cariocas, baianos, mineiros e um que outro
paulista ou pernambucano. Com todas as rádios e orquestras
gaúchas, a situação era a mesma. Nesse repertório variado, a partir
do final dos anos 1930, o único compositor local a entrar nesse
repertório era Lupicínio Rodrigues (além de sucessos isolados que
estourassem nacionalmente, como o Fiz a Cama na Varanda). Entre
os anos 1930 e 50, um E.T. que baixasse no Rio Grande do Sul
concluiria que os gaúchos tinham uma curiosa espécie de bloqueio
que os impedia de compor música que tocasse no rádio ou virasse
disco. O próprio Lupi, já em 1939, reclamava na Revista do Globo: Um
sambista, no Rio, à primeira composição, já vê o seu nome enchendo
as páginas das revistas, ecoando pela rua, e, mais do que isso, passa
logo a ganhar dinheiro… Mas aqui não acontece o mesmo. É preciso
um autor fazer sucesso para que se acredite nas suas possibilidades.
Os próprios meios radiofônicos da capital não ajudam o compositor a
aparecer.
Como já vimos, pouco tempo antes não era assim. Até meados
dos anos 30, a cidade fervilhava de bons e populares compositores
como Octávio Dutra, fazendo uma música que começava a soar
original, a ter uma cara porto-alegrense.
Algo houve para que fosse assim.
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Virgílio, o próprio
Dilú Mello
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Borges, 1938
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Onze da noite, início dos anos 40, Largo dos Medeiros: Luiz
Telles e seus amigos dali seguiam pros cabarés. Telles corria de
cabeça pra baixo, plantando bananeira (com uma pequena ajuda dos
seus amigos para a aterrissagem), só pra chamar a atenção e
sacanear os sonolentos que olhavam pelas vidraças dos cafés. Ainda
falaremos muito dele.
O lendário clube, onde o pessoal caçava uma fauna das mais sortidas e
diferenciadas...
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Cinemas trocavam a programação a cada três dias. E estamos
chegando ao ápice da Pequena Broadway: o trecho da Rua da Praia
entre a General Câmara e a Payssandu (futura Caldas Junior).
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O cartaz completamente art decó - como aliás, toda a exposição
O grandioso cassino
No censo de 1940, Porto Alegre já tá toda grandinha: 272 mil
habitantes. Destes, 132 mil homens e 140 mil mulheres – apenas sete
mil trabalhando fora de casa, que a cidade era terra de gente direita!
Duzentos e trinta mil brancos, 19 mil negros e 22 mil… pardos (!) –
além de, contados um a um, 92 amarelos (!!!). Eram 228 mil católicos,
21 mil protestantes, 12 mil espíritas e quatro mil israelitas (exceto este,
os outros números foram ligeiramente arredondados pelo pouco
metódico autor destas mal-traçadas).
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Alberto, galã
Pois o grupo tinha nada menos que três gaúchos: Luiz Telles, o
futuro galã de cinema Alberto Manuel Miranda Ruschel (Estrela,
21/02/1918 – Rio, 18/01/96) , futuro astro de O Cangaceiro e outros 32
filmes) e Francisco „Chico‟ Pacheco. Já o quarto elemento era um
carioca de peso: o violonista e compositor Luiz Bonfá, futuro craque da
Bossa Nova.
Nem com a proibição do jogo e o fechamento dos cassinos, em
1946, os caras desistiram. Desceram de Petrópolis paro o Rio e
seguiram cantando e vestindo de tudo, mas sempre com ênfase nas
canções gaúchas – folclóricas ou não – interpretadas de bombacha e
lenço! Eram uma espécie de Conjunto Farroupilha, mas com um
repertório um pouco mais aberto. Em 47, por exemplo, causaram
grande frisson nos cinemas porto-alegrenses ao aparecerem num
filme da Atlântida (quase certamente Este Mundo é um Pandeiro)
lançando para o sucesso um xote de Lupicínio Rodrigues. Sim!
E que xote: Felicidade, o futuro clássico.
Quando, em 1953, Bonfá decidiu partir para carreira solo, o
grupo acabou. Mas, antes, Telles ainda tentou encaixar um
desconhecido e talentoso protegido seu, chamado João Gilberto.
Tentou… mas o baiano reclamava de tudo, achava tudo careta. Quem
acabou assumindo, ainda que durante um curto período, foi Paulo
Ruschel, irmão de Alberto e autor do clássico absoluto Os Homens de
Preto, deixando o quarteto 100% gaúcho.
E nada mais natural. Afinal, Alberto, Luiz e Paulo haviam
começado juntos na música, em 1942, em Porto Alegre,
no Conjunto Universitário. Foi justamente esse trio que chegou ao
Rio em 1943 junto com a Caravana Universitária do RS para a VI
Olimpíada Universitária de Jogos e Esportes. E lá decidem ficar, para
tentar a vida… como músicos.
Paulo, aliás, merece mais que um parêntese: nascido em Passo
Fundo (280 km a noroeste de Porto Alegre), dia 11 de maio de 1919,
além de cantor e compositor, foi ator e escultor, premiado e tudo.
Cruzando suas artes, criou o troféu da Califórnia da Canção, a
Calhandra. Além de Os Homens… compôs mais pelo menos dois
outros clássicos regionais: Roda Carreta e Iemanjá. Quando se
desmancha definitivamente o Quitandinha, bate aquela inexorável
saudade do pago e ele se manda de volta para o interior do Rio
Grande do Sul, estabelecendo-se numa fazenda em Cruz Alta. Ali,
trabalha como escultor e compõe canções regionalistas. Ainda na
década de 50, mora uns tempos em São Paulo, trabalhando em rádio
e TV. Mas volta definitivamente para Porto Alegre e morre de ataque
cardíaco em 1974, dia seis de junho – ou cinco de julho, os registros
variam. Tinha apenas 55 anos e decidira há pouco retomar a carreira
musical. Estava no meio de uma turnê pelo interior do estado junto
com a cantora lírica Déa Mancuso).
A Calhandra de Ouro
O único LP de Jessé
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Regional de Antoninho Maciel. Com uma cantorinha que, aos 14 anos, já era bi -
campeã dos melhores do ano no rádio gaúcho. Elis, 1959.
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Outro sobrevivente boêmio dessa era é Plauto Cruz.
O Flauto da Plauta nasceu Plauto de Almeida Cruz, em São
Jerônimo (57 km a oeste de Porto Alegre), no dia 15 de novembro de
1929. Filho de um flautista de cinema mudo, quase um bebê já
assoprava flautinhas feitas de taquara. Aí, aos oito, ganhou uma flauta
de verdade e só foi: como Lourdes Rodrigues, aos 14 anos já
impressionava o pessoal em Porto Alegre.
Mas não ficou muito tempo: o juizado de menores cortou o seu
barato e o remédio foi voltar pra junto da família, em São Jerônimo,
indo trabalhar numa fábrica de facas. Pra alguma coisa serviu: em
1949, quando volta a tentar a sorte na Capital, garante um emprego de
chapeador num estaleiro. Ainda bem, porque levou três anos pra
conseguir a primeira grande chance: uma canja na Rádio Itaí. Estamos
em 1952, Porto Alegre só tem três emissoras e Plauto é
imediatamente contratado. O óbvio convite da muito mais
poderosa Farroupilha chega em 1956. Vai então integrar o regional da
emissora, recém-desfalcado do sopro de Alcides Macedo, que, como
já vimos, fora contratado por Karl Faust para a orquestra que estava
montando na Gaúcha.
Com o regional (flauta, cavaco, dois violões, pandeiro,
contrabaixo e acordeon), acompanha deus-e-todo-mundo, e desponta
como uma versão local de um de seus maiores ídolos, o
expatriado Dante Santoro, flautista do Regional Master Plus do Brasil,
o da Nacional. Tanto a menina Elis Regina (n´O Clube do Guri)
quanto o veteraníssimo Vicente Celestino tem a alegria de
emoldurarem-se pelos virtuosísticos contracantos de sua flauta.
Em 1961 é a vez dele ir pra Gaúcha, no Regional do
Paraná: Paraná no violão-tenor, Almirante no violão, Nadir
„Cachorrão‟ no trombone e Azeitona de ritmista. Ao mesmo tempo,
ataca – tocando basicamente flautim – na curiosa e divertida Banda
dos Carijós, liderada pelo clarinetista Hardy Vedana. O clima é de
bandinha de coreto do começo do século XX, interpretando maxixes,
dobrados e outras (já então) velharias. Criado pra tocar na Rua da
Praia, patrocinada pelos comerciantes do seu entorno, quando lança
seu segundo disco, em 1962, o grupo tem uma ideia das mais
originais: passa a tocar na boleia de um caminhão que circulava pela
capital – começava ali a sanha passadista de Vedana que, nos anos
1980, montou uma versão jazz do mesmo conceito antropológico-
musical: a Hardy Vedana and his Subtropical Jazz Band.
O impecável primeiro LP de Plauto
Lá pelo meio dos anos 1960 sua carreira tem o mesmo destino
de todos seus colegas de geração. Você vai ler de novo: com as
rádios em decadência, o lance é migrar para as boates, que logo
também entram em crise, com as mudanças de costumes ao longo da
década de 1970. Chega a tentar a vida em Curitiba, mas volta pra
Porto Alegre e começa o circuito noturno que vai seguir pelos
próximos 40 anos: bares, restaurantes e churrascarias, com eventuais
e sempre destacadas aparições em outros contextos, como as
Califórnias da Canção. Eventualmente, aparições nacionais, como nos
festivais de choro promovidos pela Rede Bandeirantes em 1977 e 78
(aqueles mesmos onde brilhou Jessé Silva) ou o Festival da Tupi, de
1979, onde nasceu a dupla Kleiton & Kledir cantando uma Maria
Fumaça arranjada e iluminada por Plauto.
Reconhecido por muitos como um dos maiores nomes nacionais
de seu instrumento no choro, sofreu a sina de nunca ter saído de
Porto Alegre. Aí, em vez de ter, sei lá, 30 discos gravados, foram
apenas dois LPs e alguns CDs. O primeiro é de 1977, foi gravado na
Isaec, e se chama O Choro é Livre – e é não só a estreia solo de
Plauto, como de boa parte de sua turma de chorões já então
cinqüentões.
Indissociáveis: o Flauto da Plauta
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Outro ponto que não pode passar batido é o mundo dos cabarés.
Havia grandes, médias e pequenas casas nesse ramo de carnes que,
principalmente nos anos 1920, animavam as noites quase que
exclusivamente ao som de tangos. Tango que, na cidade, entre os
anos 1940 e 60 era sucesso até em bares como o Balú, nos altos do
Chalé da Praça XV, e cuja maior estrela era aTípica do Maestro
Zabalia (Zabalia ao bandoneon, Pajarito no violino, Marcelo Couto
no piano e Zeno Ribeiro no contrabaixo). Mas aí os cabarés já tinham
também os seus jazz – que, mais tarde, seriam trocados por pequenos
grupos com formações das mais diversas. A fase mais rica
musicalmente foi entre o final dos anos 30 e meados dos 50: toda
casa que se prezasse tinha, além de cantores, bailarinos, mágicos – e,
é claro, putas – pelo menos dois grupos musicais de boa qualidade:
o jazz, e a típica. Ambos com um número que variava entre cinco e 10
músicos cada.
Mercado maior só o dos bailes. Neles, as melhores
oportunidades apareciam, é claro, para quem tocava em alguma das
rádios locais – e que, por consequência, tinha maior renome. Havia,
claro, orquestras do interior que fizeram nome mesmo na capital,
como o Conjunto João Roberto – de Cachoeira do Sulv ou Pedrinho
e Seu Conjunto – de Bento. Mas as grandes vedetes eram mesmo as
formações locais, como a Orquestra de Karl Faust. Esses chegavam
a fazer 22 bailes num único mês. Jornadas de cinco horas de música,
mas para as quais tinham várias regalias. Uma delas: se o lance fosse
a mais de 250 quilômetros de distância de Porto Alegre, só iam de
avião… Também exigiam um conjunto melódico, para revezar
enquanto descansavam e faziam um das três trocas de figurinos de
cada apresentação. Eram a culminância de uma época (entre meados
dos anos 1920 e o final dos 60) que teve, só em Porto Alegre, mais de
uma centena de orquestras e jazz bands. Um mundo rapidamente
substituído pela febre local dos tais melódicos – mas isso é assunto
para um capítulo vindouro.
Enquanto uns ambientes cresciam, outros minguavam: o último
café com música ao vivo – o it dos anos 30 – fechou suas portas em
1950. Era o Indiana, na Rua da Praia, onde tocava um sexteto all
star de formação bastante curiosa: Chaguinha no trompete, Breno
Baldo no sax e clarinete, Antoninho Gonçalves na guitarra, o
Maestro Zabalia no bandoneón, Marcelus no piano e João Bandeira
no contrabaixo.
É justamente nessa década que o rádio chega ao auge da
popularidade, profissionalismo e faturamento. Era o centro da sala,
antes dos aparelhos portáteis. No horário das radionovelas noturnas,
como hoje acontece com a TV, 92% dos aparelhos existentes em
Porto Alegre estavam ligados. O impacto no interior só não era maior
porque só um terço dos lares gaúchos tinha energia elétrica, e o rádio
de pilha ainda não tinha se popularizado.
Anos 50: o lendário auditório da Farroupilha, com o time quase completo
Aqui, na escadaria, o time COMPLETO
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Mais um raro exemplo de cantora dessa geração que chegou ao
disco é Maria Helena Andrade. Nascida em Porto Alegre dia 12 de
maio de 1942, começou criança, como tantos dessa geração,
lançando aos 15 anos pela gravadora Mocambo, de Pernambuco, dois
78 rpm com músicas de Rubens Santos, Hamilton Chaves
e Lupicínio Rodrigues, acompanhada de Primo e seu Conjunto
Melódico. Leon Barg, o recentemente falecido expert e dono da
gravadora Revivendo, a definiu como uma cantora cuja discografia
ficou muito aquém de suas qualidades. Maria Helena foi uma das
últimas Rainhas do Rádio Gaúcho, em 1955 (aos 13!). Só voltou a
gravar em 2007, quando lançou o CD Uma Luz a Brilhar.
Nelson, em Êxtase
Cyro, Maestro
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Rua da Praia, que não tem praia, que não tem rio,
Onde as sereias andam de saias e não de maiô.
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"Glamour!"