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A Era do Rádio

Dante Santoro, Radamés Gnattali e Paulo Coelho foram os


primeiros grandes nomes porto-alegrenses de uma geração que viu
nascer e crescer o mais importante veículo de comunicação de música
em qualquer canto do mundo: o rádio. Do final dos anos 1920 até o
começo da década de 50, ele foi tão importante para o
desenvolvimento da cultura brasileira que a época ficou conhecida
como A Era do Rádio.

* * *

Ainda que desde 6 de abril de 1919 já existisse a Rádio Clube de


Pernambuco (antes mesmo da primeira emissora norte-americana), a
data oficial da estreia da radiofonia brasileira é 23 de abril de 1923,
quando o doutor Roquete Pinto inaugurou a Rádio Sociedade do Rio
de Janeiro. Pouco mais de um ano depois, sete de setembro de 1924,
em Porto Alegre, era inaugurada a Rádio Sociedade Rio-Grandense,
com 300 sócios e fundada por, entre outros, o Coronel J. Ganzo e o
jornalista Décio Coimbra, do jornal A Federação. Além do compositor
Tasso Corrêa, várias vezes diretor do Conservatório de Música de
Porto Alegre.
Três anos depois - oito de fevereiro do mesmo 1927 em que é
inaugurada a Usina do Gasômetro - Carlos Ribeiro de Freitas bota pra
funcionar a segunda emissora local, a Rádio Sociedade Gaúcha. As
transmissões só iniciariam dia 19 de novembro, no sexto andar do
edifício do Grande Hotel, esquina da Rua da Praia com a Caldas
Júnior. Nem auditório a emissora tinha, e sua programação original,
ainda que recebesse artistas convidados para apresentações ao vivo,
basicamente reproduzia discos na frente de um microfone segurado
pelo locutor na frente da corneta do gramofone. Quase sempre música
erudita. Radamés Gnattali estava sempre ali. Uma orquestrinha
regida por Sotero Cosme tocou na inauguração.
(Na verdade, se poderia até começar essa história muito antes,
com o padre e físico (!!!) porto-alegrense Landell de Moura. Ele foi o
autor da primeira transmissão de ondas eletromagnéticas, em plena
Avenida Paulista, na São Paulo de 1894. Suas ondas percorreram oito
quilômetros de perplexidade causando, nesta ordem: espanto, susto,
repressão, indiferença e esquecimento. Mas isso já é outra história…).
Cada vez menos precária a Rádio Gaúcha reinaria absoluta por
quase uma década, com direção musical da maior estrela de então,
nosso velho conhecido Octavio Dutra. Mais Paulo Coelho
(piano), Nilo Ruschel e Alcides Gonçalves (cantores), Paulino
Mathias (sax e clarinete) e atrações como o Regional do Piratini –
um verdadeiro ninho de cobras, com Dutra no violão, Piratini na
flauta, seu irmão Periquito na outra flauta, clarinete, sax alto e sax
tenor, Carne Assada no cavaquinho e, no pandeiro, o futuro
cantor Caco Velho, aquele mesmo que vendia cigarros batucando no
tabuleiro e chamou a atenção de Paulo Coelho.
Octavio sairia da rádio em 1934, e o lendário Regional se
transferiria para a Rádio Difusora, que justamente nesse ano acabava
com a hegemonia da Gaúcha – a Rádio Sociedade Rio-Grandense
transmitira, de forma intermitente, por poucos meses. Na nova
emissora, a formação seria menor – um quarteto – e um pouco
diferente: Carne Assada, Caco Velho e Piratini, mais Japonês no
violão.
Filho de italianos (seu pai era cantor lírico), Piratini nasceu
Antônio Francisco Amábile, em 20 de setembro de 1906, em Porto
Alegre. Morador do então 4º Distrito, tocava flauta desde criança, com
16 anos fundara o bloco carnavalesco Passa Fome e Anda Gordo, e
entrou pra rádio não como músico, e sim como contador de anedotas.
Corriam os anos 20 e ele dirigia um grupo de atores amadores que
tinha, entre outros, os futuramente famosos irmãos Walter e Ema
D‘Ávila.
Até se estabelecer como flautista, tentou as profissões de ator e
jornalista – editou um jornalzinho em italiano, chamado D´A Guria, do
qual se intitulava diretor, redator, entrevistador, filósofo, senador e
engraxate. Mas, a partir do regional, ganhou tanto nome que logo
tomaram o caminho mercosulista tão comum para os músicos porto-
alegrenses das mais variadas épocas: foi-se a tocar em Buenos Aires.
Contratados pela Radio Belgrano, em 1938 os rapazes cumpriram
uma exitosa temporada de cinco meses pela Argentina, Uruguai e
Paraguai. Na volta, vão parar na Rádio Farroupilha, onde Piratini fica
até sua morte, em 29 de julho de 1953. Morte tão sentida que a rádio
tocou música clássica o dia inteiro, de luto. Afinal, ele era então uma
das maiores estrelas da radiofonia local, graças ao seu programa de
calouros A Hora do Bicho, apresentado por décadas, sempre aos
domingos – um dos mais populares dos anos 40 e 50 (no A Hora do
Bicho, desfalcado de seu líder, que assumia a apresentação,
o Regional do Piratini se transformava no Regional do Carne
Assada).

Mais uma puta matéria legal chupada da Revista do Globo... Lê aí que


vale a pena
Piratini também compôs algumas canções conhecidas em seu
tempo, como Mãe Preta e Navio Negreiro, e pelo menos um
clássico: (Cevando o) Amargo, em parceria com Lupicínio
Rodrigues. Chegou também a realizar o primeiro filme falado do
estado, em 1940 – um curta-metragem chamado Cachorricídio. De
quebra, ainda fundou a Casa do Artista Rio-Grandense, destinada a
auxiliar músicos já de alguma idade, que já tiveram melhores dias na
vida. Um empreendedor.
/
Caco Velho feliz da vida no Baixo Acústico

Já seu pandeirista Caco Velho nasceu Mateus Nunes, em 12 de


março de 1909, em Porto Alegre. Estreou como músico nesse
regional, em 32, e, cheio de suíngue e nascido pra sambar, logo soma
ao cargo de pandeirista o posto de crooner. Foi um grande boêmio,
membro da mesma turma que reunia Lupicínio Rodrigues, Alcides
Gonçalves e seus irmãos, Johnson e outros tantos. Ainda na
Gaúcha, se transformaria num curinga de primeira, se virando como
pianista, contrabaixista ou baterista. Foi uma das principais causas do
sucesso da excursão do Regional do Piratini por terras hermanas, e
seu momento alto era justamente a interpretação do samba Caco
Velho, de Ary Barroso, que lhe rendeu o apelido. Em 37, como vimos
anteriormente, era pandeirista e cantor do jazz do pianista Paulo
Coelho, que tocava então no Bar Florida. Em 1940, vai tentar a vida
em São Paulo e se dá muito bem. Começa na orquestra de um
cassino, três anos depois é contratado pela Rádio Tupi PRG 2 e
começa sua consagração graças a vocalizações que lhe rendem os
epítetos de O Sambista Infernal e O Homem Com Uma Cuíca na
Garganta. Já era uma das maiores estrelas da emissora quando
estreou em disco, no ano seguinte, cantando o amigo Lupicínio
Rodrigues — o samba Briga de Gato, a que se sucede, no ano
seguinte, Que Baixo!, parceria de ambos.
O que se ouve ali é um cantor de um suíngue bastante diferente
de qualquer outro surgido antes dele – Cyro Monteiro incluído.
Improvisando polirrítmicas imitações de uma cuíca de uma forma tão
musical que nunca parece número de circo, volta e meia o cara
explode em improvisos vocais que serpenteiam nos intervalos da
melodia como um ensandecido jazzista. Sem perder nunca a
perspectiva do samba.

Caco já coroa, e ainda cheio de chinfra

Caco Velho hoje é um nome quase esquecido, a não ser por


alguns fanáticos cultores que o guardam como uma seita. Vale
procurar. Seu maior sucesso foi o samba Meu Fraco é Mulher. E,
como tudo que ele gravou, é nada menos que espantoso. Não é à toa
que tanto Túlio Piva quanto Wilson Simonal diziam que o cara era o
cara. E considerado moderníssimo, a verdadeira vanguarda paulista
da virada dos 40 pros 50, sempre acompanhado pelos melhores
grupos, como o lendário regional do violonista Rago. Ou então como
vocalista da orquestra do maestro Georges Henri, que tocava na
Boate Oásis, ao lado de feras como o saxofonista Bolão e o
trombonista e futuro chefe de orquestras paulistas Osmar Milani.
Ao longo da década de 50, aparece em filmes clássicos
como Carnaval Atlântida e vira habituée de jam sessions de jazz no
clube L´Amiral (tocando, e bem, contrabaixo). Emplaca como cantor e
compositor o hit Porto Rico, um samba-rumba, e faz eventuais
apresentações no Rio de Janeiro, onde também é conhecido, amigo
de gente como Dorival Caymmi e Ângela Maria – chegam a dividir os
três um show na boate carioca Casabanca em 1951, onde Caymmi
lançava Ângela.
Aí pinta uma oportunidade em Paris, e lá vai ele. Fica dois anos
por lá e, quando volta, se surpreende com o fato de que as portas
pareciam todas fechadas.
Grava alguma coisa, como um compacto só com músicas
de Túlio Piva, pela Copacabana, em 1961. Mas não consegue
retomar a carreira e passa a se dedica a administrar casas noturnas
paulistas. Desiludido, vai novamente pro exterior. Mora uns tempos em
Los Angeles, outros em Lisboa, até que, em 1970, volta
definitivamente para São Paulo. Bate novamente em antigas portas,
em busca de shows ou oportunidade de gravar, mas o cenário havia
mudado definitivamente. Mais uma vez, ninguém se interessou.
Morre em 14 de setembro de 1971, novamente dono de casa
noturna. Como compositor, deixa pelo menos um clássico: Mãe Preta,
parceria com nosso conhecido Piratini, Antônio Amábile, gravada até
pela portuguesa Amália Rodrigues (que mudou a letra para Barco
Negro, e, com essa canção, no filme Os Amantes do Tejo, se tornou
um nome internacional).

***

Eram cinco e meia da tarde do dia três de outubro de 1930


quando as forças comandadas por Osvaldo Aranha e Flores da Cunha
saíram do Quartel da Brigada, atravessaram a Rua da Praia e
invadiram o Quartel General do Exército. Enquanto o governador
Getúlio Vargas se fazia de morto e trabalhava normalmente no Palácio
Piratini, Aranha e Flores almoçaram tranquilamente no Grande Hotel e
depois saíram a passear pela rua principal da cidade, dissolvendo,
assim, as preocupações dos comandantes da 3ª Região Militar, então
alarmados com os boatos de que uma revolução estava pra estourar.
A coisa começara a esquentar em março, quando Getúlio perdeu as
eleições pro paulista Júlio Prestes, o que deixou mineiros, gaúchos e
paraibanos especialmente descontentes. E aí, assassinam João
Pessoa, em um crime que uns dizem que foi passional, outros,
político. Não importava: o paraibano era o candidato a vice do gaúcho,
e era o pretexto que faltava para incendiar a revolta.
Washington Luis se mandando

Mais de 50 mil gaúchos se alistam nas forças revolucionárias,


pra marchar ao Rio de Janeiro e tomar o poder. Incendiado o estopim
nesse dia três, em 24 de outubro de 1930 Washington Luís estava
deposto (a posse de Julio Prestes seria a 15 de novembro) e Vargas
assumiria as rédeas do país por um looooongo tempo. Falando em
rédeas, alguns dos gaúchos que chegaram com a revolução
amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, num
supremo desaforo. Mais simbólico, impossível.
Com Vargas no poder, o Brasil mudaria radicalmente. Em todos
os aspectos. E isso inclui até mesmo a música da capital do estado de
onde ele partiu para a capital federal.

Sente o drama: isso era o que o DIP fazia...


Getúlio sempre soube do grande potencial do rádio e estimulou
de todas as formas o seu crescimento. No governo federal, amplo de
poderes, começou mais uma revolução: em 1932 (mais precisamente,
no decreto 21.111, promulgado dia primeiro de março), autoriza que
até 10% da programação das rádios seja ocupada por publicidade (os
reclames). Num meio que até então vivia num universo de
amadorismo, sustentado por idealistas e/ou visionários, Getúlio
apostava na segunda opção: em 1936, seu homem de confiança
Lourival Fontes – que viria a ser diretor-geral do poderosíssimo DIP, o
Departamento de Imprensa e Propaganda – escrevia na revista A Voz
do Rádio: Dos países de grande extensão territorial, o Brasil é o único
que não tem uma estação de rádio “oficial”. (…) Essas estações
servem como elemento de unidade nacional. (…) Não podemos
desestimar a obra de cultura realizada pela rádio e, principalmente, a
sua ação extraescolar. Quatro anos depois, em 1940, o governo
compra a falida Radio Nacional e transforma seus inimagináveis 50
kW em tudo isso que já estava lá nas entrelinhas do texto de
Lourival…

Gaúchos amarram cavalos no Obelisco: a mística caudilhesca tão


típica do RS

A ver…
Peguemos o repertório das rádios da capital na virada dos anos
1950 pros 60. O repertório era vastíssimo: tudo em grandes
quantidades. Muita música centro-americana, do Caribe ao México,
com uma avassaladora quantidade de boleros e toda a variedade de
ritmos cubanos agrupada sob o rótulo de ―salsa‖. Uma onda forte de
guarânias paraguaias, muitíssima música pop norte-americana de
então (swing, fox, temas de filmes, standarts variados), tangos dos
anos 1930 e 40 e todos os sucessos da música brasileira de todas as
épocas. Os ―estrangeirismos‖ eram tantos que exigia-se dos locutores
– muitos deles contratados por concurso – conhecimentos de francês,
inglês e italiano (além de empostação de voz, boa presença de palco
e alguma noção de música erudita).
Pois então: por música brasileira entendia-se aquela feita 90%
no Rio de Janeiro, por cariocas, baianos, mineiros e um que outro
paulista ou pernambucano. Com todas as rádios e orquestras
gaúchas, a situação era a mesma. Nesse repertório variado, a partir
do final dos anos 1930, o único compositor local a entrar nesse
repertório era Lupicínio Rodrigues (além de sucessos isolados que
estourassem nacionalmente, como o Fiz a Cama na Varanda). Entre
os anos 1930 e 50, um E.T. que baixasse no Rio Grande do Sul
concluiria que os gaúchos tinham uma curiosa espécie de bloqueio
que os impedia de compor música que tocasse no rádio ou virasse
disco. O próprio Lupi, já em 1939, reclamava na Revista do Globo: Um
sambista, no Rio, à primeira composição, já vê o seu nome enchendo
as páginas das revistas, ecoando pela rua, e, mais do que isso, passa
logo a ganhar dinheiro… Mas aqui não acontece o mesmo. É preciso
um autor fazer sucesso para que se acredite nas suas possibilidades.
Os próprios meios radiofônicos da capital não ajudam o compositor a
aparecer.
Como já vimos, pouco tempo antes não era assim. Até meados
dos anos 30, a cidade fervilhava de bons e populares compositores
como Octávio Dutra, fazendo uma música que começava a soar
original, a ter uma cara porto-alegrense.
Algo houve para que fosse assim.

Getúlio recém-entrado no Palácio do Catete


A explicação defendida aqui tem a ver com os dois: Lupicínio e
Getúlio. A partir do sucesso do primeiro e do nacionalismo unificatório
e programático do segundo, de uma hora pra outra, os compositores
gaúchos passaram a querer ser ―brasileiros‖ (com todas as aspas
possíveis). Mesmo que já, obviamente, o fossem. E, na verdade,
estivessem tentando ser… cariocas.
Em seu fundamental O Mistério do Samba, o antropólogo
Hermano Vianna analisa a questão a partir do ponto de vista da capital
federal. A sua pergunta é: como, em poucos anos, o samba passa de
artigo perseguido pela polícia a fator de unidade e orgulho nacional? O
segredo, segundo ele, é Vargas, um político espertíssimo e, desde
seus tempos de deputado estadual, muito ligado aos artistas. Getúlio
se aproxima dos músicos sediados no Rio e adota o samba como
bandeira da unidade cultural, que é essencial para seu projeto
nacionalista. Afinal, esse é o mesmo governo que em 1937 vira uma
ditadura – o Estado Novo – cuja primeira atitude simbólica é proibir os
hinos e queimar as bandeiras de todos os estados da União. O novo
governo instalado aí seria dos mais centralizadores da história
nacional.
Por exemplo: os 17 jornais em alemão (das mais variadas
tendências políticas) que circulavam no Rio Grande do Sul foram
proibidos de circular e/ou tiveram suas redações invadidas e
destruídas. O mesmo com os 22 escritos em italiano – tudo em nome
da unidade nacional.
Obviamente, essa adoção do samba como ―ritmo oficial‖ não era
por Getúlio ter algum trauma com milongas ou valsas campeiras da
sua São Borja natal. Era, simplesmente, porque o samba era, ao lado
do choro, a grande música do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. A
Capital da República. A cidade onde também estavam as principais
gravadoras e rádios, distribuindo suas ondas e seus produtos para
todo o Brasil. Como bem sintetiza Hermano: No campo da música, o
samba vira símbolo nacional, ao passo que as canções “caipiras”
paulistas e os ritmos nordestinos começam a ser vistos como
fenômenos regionais.
A música do Rio Grande do Sul então, nem vista era…
Apesar da evidente ligação com o fascismo italiano e o nazismo
alemão (passeatas com centenas de jovens ostentando bandeiras
com a suástica aconteceram em várias cidades do Estado, incluindo
Porto Alegre; 500 militantes nazistas vieram da Alemanha diretamente
para a capital gaúcha ao longo da década de 1930), a política de
unificação persegue violentamente atitudes vistas como ―separatismo
étnico‖. Um exemplo basta para esclarecer o nível de estupidez
xenófoba a que se chegou.
O compositor e cantor porto-alegrense Cláudio Levitan conta
que seu pai e seu tio faziam parte de um grupo de russos, poloneses e
húngaros, muitos deles judeus, que ensaiava num salão sobre o Clube
Xangri-lá, esquina da General Câmara com a Rua da Praia. Tocavam
e cantavam música russa, com um grande coro e uma orquestrinha
formada por violinos e todos os tipos de bandolins e balalaicas.
Juntando-se a eles, um grupo de dança, cujos bailarinos também
tocavam. Uma bela noite, a polícia política de Vargas invadiu o local,
quebrou todos os instrumentos e prendeu alguns russos, que
desapareceram para sempre.
É mole?
E então Lupicínio.
Parafraseando Caetano Veloso falando de Raul Seixas, em
Lupicínio tudo o que não é portenho & tangueiro é carioca demais.
Claro, há exceções, como o xote Felicidade e Cevando o Amargo e
Jardim da Saudade. Mas foram, na maioria, obras de juventude, feitas
quando ele servia ao exército em Santa Maria. E certamente não foi
com seus xotes que Lupi se tornou o músico gaúcho mais conhecido
até então: Eu adoro a guarânia, adoro tango e adoro bolero. Taí.
Genial como era – e, a partir dos anos 40, também bem-
sucedido – Lupi fez escola. E fez escola ignorando totalmente o
convívio que teve com os mesmos músicos que, nas décadas de 1910
e 20, misturavam schottischs, polcas, valsas, mazurcas, habaneras,
batucadas negras, tarantelas italianas, fandangos ibéricos e algumas
das quase extintas raízes açorianas. Ele conta vários desses
momentos em suas crônicas publicadas em jornal, décadas mais
tarde: Fechei os olhos e comecei a ver desfilar em minha mente todo o
Carnaval do passado. Carnaval do Prof. Octavio Dutra, do Mestre
Alberto. (…) Ver um mestre Alberto se dar ao luxo de formar para o
Bloco dos Tesouras uma frente com cem violinos acompanhados por
mais de duzentos instrumentos de corda, fora os metais e a
bateria. (…) Pelotas e Rio Grande, aonde sempre foi o Q.G. do
carnaval do Rio Grande do Sul.
Ou: Deixei por último, como sobremesa, o maior de todos eles, o
professor de quase todos que citei nesta relação: o velho maestro
Otávio Dutra, o rei da valsa (…) Vejam, meus amigos, a fartura de
ontem e a miséria de hoje.
Só que, mesmo somando a isso tudo o fato de ter um pai músico
amador (de choro), ele cresceu sob a sombra da consagrada geração
de Ary Barroso e Noel Rosa. Pra complicar, ainda tem a vinda de Noel
a Porto Alegre, em 1932, integrando os Ases do Samba. Já
consagradíssimo, foi apresentado ao garoto de então 17 anos, que já
tinha até ganho prêmios como compositor. Ouviu as primeiras pérolas
lupicínicas e decretou: esse menino vai longe. Aí, abençoado por
deus, queriam o quê? Que ele fosse compor milonga?
Em 1936, o escritor gaúcho Odacir Beltrão já definia o Brasil
como ―terra do samba e do golpe‖. Lupicínio também contava que, ao
final de uma excursão por estas terras sulistas, Benedito Lacerda lhe
revelara seu espanto com a fidelidade com que se fazia samba no Rio
Grande do Sul. Tão bem quanto no Rio de Janeiro. E completava Lupi,
deixando escapar um orgulho de rapper com boné de marca
americana: Naquele tempo, nós chamávamos os paulistas de
“quadrado”. O samba paulista é de há muito pouco tempo. Na mesma
ocasião – a histórica entrevista para o Pasquim, na década de 70 –,
ainda faria uma diferenciação entre seu trabalho e o de Teixeirinha
que vale por um resumo do que se disse acima: A diferença é que eu
faço música popular. O Teixeirinha faz música regional.
Música popular = samba carioca.

* * *

O mesmo fenômeno da nacionalização na marra se dá no


carnaval porto-alegrense.
Como já comentamos, até o começo dos anos 1930, o dito-cujo
era pulado ao som de charlestons, polcas, schottischs, tangos e até
valsas. E todos esses ritmos, em pouquíssimo tempo, passam a ser
vistos com ―estranheza‖: no final da década, a festa já era
definitivamente do samba e da marchinha, produzidas industrialmente
na Capital Federal para o consumo intenso das províncias. A coisa
radicaliza no Estado Novo, quando Getúlio ordena a obrigatoriedade
dos enredos históricos nos desfiles das Escolas de Samba cariocas −
dando-lhes em troca polpudas subvenções, que rapidamente
transformam as escolas em modelo a ser copiado por todo o território
nacional.
Nesses mesmos anos, os jazz gaúchos tinham, em sua maioria,
pelo menos um violino e, muitas vezes, um bandoneon, necessários
para enfrentar o repertório de tangos, valsas e milongas tão sulistas.
Pois em 1940, a coisa já está tão incorporada que, no concurso de
carnaval promovido pela prefeitura de Porto Alegre, havia apenas
duas categorias: samba − vencida por Cada Vez Que Te Vejo,
de Lupicínio Rodrigues (chamado então pela Revista do Globo de ―O
Filósofo da Cadência‖, numa nítida alusão a Noel Rosa, ―O Filósofo do
Samba‖); e marcha – onde Johnson e Caco Velho levam o primeiro
lugar, por Palhaço. Hoje parece óbvio: Carnaval = marchinhas e
sambas. Até então, ao menos no Rio Grande do Sul, não era.

Um livro fundamental, "O Mistério do Samba", do Hermano Vianna

Feche-se o raciocínio sobre a unificação da música brasileira


com dois argumentos. Primeiro, Hermano Vianna: ―Um samba
bastante conhecido diz: ‗Quem Não gosta de samba bom sujeito não
é, é ruim da cabeça ou doente do pé‘. (…) Na cartilha dessa ortodoxia,
o samba nacional, produto do relacionamento de diferentes grupos
sociais, acabou se transformando em agente ‗colonizador‘ interno, em
regra de boa conduta, em possibilidade única de ser brasileiro. O
indefinido tornou-se a regra da definição“.
O outro é um testemunho de época – o que é sempre muito
interessante porque contextualiza uma realidade concreta para quem,
décadas depois, procura agulhas em palheiros abandonados. Quando
morre Octavio Dutra, em 1937 – curiosamente, mesmo ano do
Estado Novo −, a revista gaúcha A Hora da Saudade publica em seu
necrológio um rápido artigo, não assinado, que diz muito sobre
identidade. Comenta do recém-finado que era um dos mais typicos
cultores e creadores da música popular porto-alegrense. Observem
que não dissemos brasileira, mas porto-alegrense. Mas, porto-
alegrense, brasileira é! − hão de retorquir-nos. Perfeitamente, mas,
dentro da música popular brasileira cabe um gênero, uma expressão,
que é nossa, exclusivamente nossa, portoalegrense. É a música que
em princípios deste século − valsas, mazurkas, chorinhos − se fazia
ouvir nos bailes familiares da então inconfundível Cidade Baixa, ou
nas saudosas serenatas, que constituirão um capítulo destas crônicas,
Pois bem: foi desta música porto-alegrense, com frases bem nossas,
embora brasileiras, que Octavio Dutra se fez. (…) Dotado de um (…)
um grande poder de interpretação do lyrismo porto-alegrense, ele
criou um tipo de valsa que fez escola. (…) Pode-se dizer que a valsa
porto-alegrense (grifo meu) perde, com a morte de Octavio Dutra, a
sua expressão mais típica.
O quadro de aborto dessa música porto-alegrense que então
possivelmente se gerava fica mais grave a partir da década de 40.
Com a indústria do disco solidificada em terras cariocas, não se tem
nem sombra de um estúdio onde se pudesse registrar a música feita
na cidade. Durante 40 anos, os porto-alegrenses que não saíram do
estado simplesmente não gravaram. Como se não bastasse, a Rádio
Nacional, encampada por Getúlio em 1940 – mesmo ano da criação
do salário mínimo −, se transforma n‘O Himalaia dos Índices de
Audiência, definindo, transmitindo e ensinando, de Natal a Pelotas, o
que deveria ser ―A Música Brasileira‖. Às rádios locais só restava
copiar não só o estilo, mas até mesmo o repertório da Rádio Nacional.

Outro livro fundamental: "Rádio Nacional: o Brasil em Sintonia", de Luiz Carlos


Saroldi e Sonia Moreira

À música escrita na capital e no interior do Rio Grande do Sul


restavam o esquecimento – para trabalhos mais urbanos – ou uma
crescente interiorização – para os que, de alguma forma,
pertencessem ou pudessem se aproximar do universo criollo, folk,
galponeiro ou seja lá o nome que se queira usar. E é só graças à essa
música que a situação esboça uma reação no Pós-Guerra. Em 1947,
os interioranos Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, estudando na capital
e loucos de saudade do pago, fundam o Departamento de Tradições
Gaúchas do Grêmio do Júlio de Castilhos. No ano seguinte,
inauguram o seminal CTG 35. Eram rapazes orgulhosos e saudosos
de sua cultura, que sentiam totalmente reprimida pela política getulista
e soterrada pelo American Way Of Life empurrado goela abaixo pela
Política de Boa-Vizinhança norte-americana (entre 1937 e 1950, tal
política fez Hollywood produzir nada menos que 78 filmes sobre o
tema da integração!).
Barbosa, Paixão e sua turma começam então a recuperar e
sistematizar a cultura interiorana − mas a partir da capital, e
preenchendo tanto com informação como com criatividade os espaços
em branco. Não estariam sós. A mesma década ainda vê nascer os
primeiros volumes do fundador O Tempo e o Vento − do gaúcho de
Cruz Alta Érico Veríssimo, cujo último volume sairia só em 1963. E
tanto a republicação dos esquecidos Contos Gauchescos, do
pelotense Simões Lopes Neto, quanto a criação do Grupo Quixote, de
poesia − obcecado, que nem o Partenon Literário (lembram?), por uma
poesia nossa, com características nossas.
(Também é dessa década a popularização do aspecto mais
curioso do Carnaval porto-alegrense: as tribos carnavalescas.
Nascidas em 1945 com a pioneira Tribo dos Caetés - campeã por oito
anos consecutivos – a coisa seguiu com os Xavantes e os Tapuias.
Hoje quase extintas, as tribos tinham fantasias e coreografias que
eram uma espécie de paródias dos índios do sul – o que é ainda mais
espantoso quando se sabe que, muitas vezes, as tribos são formadas
por índios ‗de verdade‘, o que gera peculiares espetáculos de
autoparódia. Nos anos 60, já em declínio, foram trocando o samba e
marcha-rancho originais pelo que Renato Maciel de Sá Jr. definiu no
segundo volume do seu Anedotário da Rua da Praia como ―ritmos
primários e inexpressivos, oriundos das sessões de baixo batuque
(!!!)‖. E aí começaram a fazer a misturança com índios americanos de
filme de bangue-bangue.)
Em busca da raízes... do bangue-bangue: a Tribos dos Comanches!

Voltando ao CTG 35: o que todo o Estado, a partir da capital, vai


conhecer a partir dele já é uma música nova, recriada a partir dos
ritmos que, muitas vezes, tinham saído de Porto Alegre rumo ao
interior há menos de 50 anos. Agora, faziam o caminho inverso. O
vanerão, por exemplo, já vinha com a cara que foi tomando ao longo
de décadas de interiorização pelas diferentes regiões do Rio Grande
− chegava ainda habanera ou, no máximo, vanera (o próprio
nomevanerão é uma das tantas criações do movimento
tradicionalista). O mesmo havia acontecido com o xote (ex-schottisch),
a polca, a mazurca…
Aí, em plena década de 1950, depois de apenas uma geração,
ninguém na capital queria lembrar como era que se compunha nos
tempos de Octávio Dutra. Nem haveria mais como imaginar, a partir
das suas descendências, o que seria um vanerão urbano, um xote
urbano, ou sabe-se lá que gênero novo que poderia ter sido gerado. A
música de Porto Alegre estava suspensa como um gênero próprio,
soterrada pelo talento de uma genial e geograficamente distante
geração de duas dúzias de cariocas (ou mineiros e nordestinos
migrados para o Rio), que sistematizaram uma mistura de elementos
urbanos em forma de samba e de marcha − em todas suas infinitas
variantes. E que soterraria, na nascente indústria cultural brasileira,
muitas das nascentes manifestações regionais.
Pra fechar, matéria da Folha da Tarde de sete de junho de 1941:
Agora, é preciso que exista (sic) meios eficientes para que os
nossos compositores sejam mais conhecidos. Não possuímos aqui
uma gravadora de discos. Que fazer, então? O rádio é o veículo
indicado.
Os compositores de Porto Alegre começam a aparecer
vitoriosamente. Depois que LUPISCINIO RODRIGUES (sic) abriu o
caminho, demonstrando que as melodias nascidas aqui poderiam
também percorrer todo o Brasil com sucesso, notou-se um
interessante movimento entre os autores locais. Disto resultou
aparecer uma série de coisas bonitas em matéria de música popular.
Sambas, principalmente. E a coisa pegou, Hoje, já se enumera uma
boa parcela dos que compõem entre nós as melodias populares do
Brasil. (…)Tudo isso está muito bem. Agora, é preciso que
exista (sic) meios eficientes para que nossos compositores sejam mais
conhecidos. Não possuímos aqui uma gravadora de discos. Que fazer,
então? O rádio é o veículo indicado. É assim que deve ser. Os
cantores de Porto Alegre devem criar para si os seus próprios
repertórios integrados unicamente por melodias de compositores
porto-alegrenses.
Não aconteceu.

* * *

Quem entra arrebentando, no ano do centenário da Revolução


que lhe dá nome – 1935 –, é a Rádio Farroupilha. E chega querendo
tudo do bom e do melhor, tanto que já chega tirando da
Gaúcha o Jazz de Paulo Coelho e o maestro italiano Salvador
Campanella – que vai ser figura central da emissora ao longo das
décadas seguintes. A quarta emissora de Porto Alegre entra em cena
como a mais potente do Brasil: são 25 kW, que só seriam superados
dois anos depois, pelos 26 kW da Tupi de São Paulo (ambas do
mesmo dono, o poderoso Assis Chateaubriand, chefe das Emissoras
Associadas, então aliado do governo de Getúlio).
A inauguração da emissora conta com as presenças
ilustríssimas de Carmen Miranda e Mário Reis, dois dos maiores
cantores do momento, importados da capital federal para o evento. Já
o elenco contratado pela autointitulada ―A Mais Potente‖ vai reunir
Paulo e sua orquestra, Horacina Corrêa e, entre outros, o grande
cantor Alcides Gonçalves – que vai, inclusive, armar com Coelho a
dupla ―O Gordo e o Magro‖.
Nesse mesmo ano de 1935, dois escritores dividem os
comentários literários na cidade. Erico Verissimo, que lançava seu
segundo romance, Caminhos Cruzados – e ganha com ele o prêmio
nacional de romance do ano dado pela Fundação Graça Aranha. Por
outro lado, seu então amigo Dyonélio Machado causava impacto com
o revolucionário Os Ratos. O livro de Dyonélio seria um clássico, o de
Érico ficaria como um detalhe em sua obra – mas, mesmo assim, seu
sucesso seria imensamente maior que o do amigo. Os dois nunca
resolveram bem a questão.

Erico em 1937, um lorde

Dyonelio em 1935, comunista, preso político anos a fio

Em 1937, Getúlio acha que sete anos no poder não foram


suficientes e dá um golpe, instituindo o Estado Novo. No Rio Grande
do Sul, o governo intensifica o combate aos cassinos, com aprovação
da imprensa conservadora, e vários deles fecham – ainda não como
irá acontecer em 1946, quando são postos fora da lei pelo presidente
Eurico Gaspar Dutra.
Neste mesmo 37 morre uma lenda da fotografia da cidade:
Virgílio Calegari, que desde 1893 foi o principal responsável pelos
registros clássicos que hoje se tem da Porto Alegre da Belle Époque.
Seu Atelier Calegari forneceu material pras principais revistas da
cidade – Máscara, Kodak e a gloriosa Revista do Globo. Sem falar nas
medalhas: ouro e prata na Exposição de Saint Louis (EUA), em 1904;
Paris, 1906; Londres, 1907; Rio de Janeiro, 1908; Roma, 1911… E
ainda tem na parede o título de Cavaliere do Império Italiano ganho do
próprio rei Vitor Emanuel III. Que tal?
Agora, uma pequeníssima palhinha da genialidade do cavaliere
Calegari:

A Praça da Matriz em 1890

Os últimos acendedores de postes de gás da cidade, em 1901


Olha o que é essa foto reunindo o pessoal da associação dos ciclistas, em 1900

E essa aqui, com o velho sátiro se fazendo de inocente, o título é "retrato de


moças"

Virgílio, o próprio

A cidade vivia também o florescer da geração boêmia que vai


reinar até meados dos anos 1960. Por quatro décadas, a vida seria
uma festa para nomes como Johnson, Rubens Santos, Alcides
Gonçalves ou o já tão citado Lupicínio – que formavam uma espécie
de confraria, com eventuais associações e dissidências.
Outro da turma era Ovídio Chaves, já citado como um dos
incontáveis discípulos de Octavio Dutra. Nascido dia 27 de julho de
1910 na então minúscula Lagoa Vermelha (320 km ao norte de Porto
Alegre), Ovídio trabalhava como músico desde os 15 anos,
começando como um dos violinistas da orquestra que tocava no
cinema de sua cidade. Sai de lá só em 1932, para estudar no
Conservatório de Música de Porto Alegre. Acaba estudando violão
com Dutra e virando jornalista do Correio do Povo, como seu irmão, o
também compositor Hamilton Chaves.
Já tinha lançado três livros de poesia quando, em 1939, tenta
pela primeira vez compor alguma coisa. E arrasa: aos 29 anos, sua
primeira canção é justamente um dos maiores sucessos nacionais já
saídos de Porto Alegre: Fiz a Cama na Varanda, parceria com a
cantora maranhense (nascida em Viana, em 25 de setembro de 1913,
mas criada em Porto Alegre) Dilú Mello.

Dilú Mello

Formada em violino pelo mesmo Conservatório aos 13 anos de


idade (com medalha de ouro), é Dilú quem, em 1943, registra a
canção pela primeira vez. Neste momento, depois de formar-se
também em canto lírico e pesquisar o folclore gaúcho, ela já está no
Rio de Janeiro e agravação é sucesso instantâneo: Fiz a Cama… foi
regravada dezenas de vezes, por gente tão diferente quanto Nara
Leão ou Inezita Barroso (além de mais de uma versão rock-balada, e
até uma tradução de sucesso para o francês). Ovídio nunca repetiu o
sucesso da primeira iniciativa, mas teve cerca de duas dezenas de
músicas gravadas por artistas de alcance nacional – só Dilú gravaria
mais cinco, até 1955. E nos mais variados estilos: de toadas de
jangadeiros de nítida inspiração caymminiana, até uma
gauchesca Meia-Canha.
Nos anos de 1950, foi dono de meia dúzia de casas noturnas,
como o Clube da Música e o Piano Drink – que ficava sobre palafitas
dentro do Guaíba, e cuja ponte se levantava quando a casa enchia…
ou quando se aproximada um chato. Mas a mais famosa empreitada
foi o mitológico Clube da Chave, frequentado
por Lupicínio Rodrigues e João Gilberto, onde cada sócio tinha uma
chave e só entrava com ela. Foi a primeira boate da cidade que não
poderia ser confundida com um cabaré ou bordel. As pessoas iam ali
para beber (sua própria bebida, que ficava num armário também
chaveado), conversar, ouvir música e, no máximo, armar uma parada
a ser resolvida em outro lugar.

Ovídio em meados dos anos 50

Já com 51 anos de idade, mudou-se para o Rio, onde trabalhou


como redator na Rádio Nacional, ficou algum tempo preso durante a
ditadura militar, virou hippie já sessentão (daqueles que fazem e
vendem artigos de couro em feirinhas) e morreu dia três de agosto de
1978 (dois anos antes, seu sexto de livro de poesia, ABC de Paquetá,
lhe deu o prêmio de poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de
Letras).
Seu irmão Hamilton Chaves também foi uma figura múltipla.
Como jornalista, trabalhou na Revista do Globo, na Última Hora, n‘O
Clarim e na Rádio Gaúcha. Como compositor, além de parceiro
de Lupicínio Rodrigues (falaremos mais sobre ele no capítulo de
Lupi), chegou a ganhar alguns festivais de música. E ainda se arriscou
no cinema, em diversos cargos públicos e até na diretoria do Grêmio
Foot-Ball Porto-Alegrense.
Hamilton coordenando a imprensa durante a legalidade. De paletó e gravata, ao
lado do Brizola

E se falamos de músicos que, de uma forma ou de outra,


chegam a se estabelecer com algum renome, também há o outro lado.
Ao longo dos anos 1930 e 40, quem quisesse entrar na vida artística
da capital – principalmente se viesse do interior –, tinha que, quase
invariavelmente, pagar um pedágio: os cafés do Mercado Público. Era
nas mesas de mármore de estabelecimentos como o Java e
o Naval que conjuntos improvisados na hora sabatinavam os novatos.
O processo era uma seleção natural de crueldade darwiniana: sempre
que chegava alguém novo, chamavam pra roda e davam um jeito de
puxar o tapete do sujeito. Se ele escapasse de errar feio, tinha alguma
chance. ―Tinha muito banditismo…‖, lembrava em 1999 Zezinho
Baptista: nos anos 1950 e 60, baterista da lendária Orquestra de
Karl Faust; nos anos 40, um guri de Osório tentando a vida na capital
com um pandeiro debaixo do braço.
Das três da tarde até as nove da noite, aquilo parecia um show
de variedades. Tinha de tudo, com os músicos passando o pires ao
final de cada apresentação e conseguindo pelo menos garantir a janta
e, talvez, a pensão. A coisa durou até 1953, quando o último pires foi
passado – pelo cantor e acordeonista Marino Coronel.
Se fossem aprovados nesse teste inicial, os aspirantes podiam
até conseguir uma vaga nas rádios da cidade. Foi assim que
apareceram figuras importantes como o notável arranjador e multi-
instrumentista (tocava piano, guitarra, trompete, clarinete e todos os
saxofones) Alcides Macedo, o futuro Maestro Macedinho.
Nascido em Tupanciretã (389 km a noroeste de Porto Alegre),
Macedinho vai pra capital no começo da década de 1930, indo
procurar adivinhem quem? O onipresente Octavio Dutra. Octavio o
introduziu na roda do Café Gaúcho, uma das mais prestigiosas do
Mercado. A partir daí, o tupanciretanense passa 20 anos de trabalho
duro, fazendo um pouco de tudo, até conseguir o posto de diretor
do Regional da Rádio Farroupilha – o que contava com feras
como Arthur Elsner no acordeom e Antoninho Maciel no violão.
Sairia dali no final da década de 1950, para integrar, com destaque,
a Orquestra de Karl Faust, na Rádio Gaúcha (e quem assume a sua
vaga no regional é um jovem flautista de assombroso talento: Plauto
Cruz).
Com o fim das orquestras, Macedo só tem nova chance em
1979, quando é convidado para ser maestro da Banda Municipal de
Porto Alegre. Ali, vai reger muitos dos melhores músicos de sua
geração, todos já na terceira idade, mas ainda fazendo miséria. Para a
banda, escreveu grande parte de seus melhores arranjos e músicas –
nos mais variados ritmos, sempre com brilho, conhecimento de causa
e originalidade (ainda que, a bem da verdade, não fosse exatamente o
regente mais perfeccionista do mundo…) O único disco da Banda –
lançado pela prefeitura em LP na década de 1990 – tem unicamente
composições de Macedo, que morreu pouco depois.

Primeira formação da banda, em 1927

O raríssimo LP da Banda já coroa, com quase 70 anos de idade


(Surgida em 1926 por ordem do intendente Otávio Rocha,
a Banda Municipal de Porto Alegre teve como primeiro maestro
José Leonardi, e uma curiosa formação composta por sopros,
percussão, violoncelos e contrabaixo. Chegou a ser Banda Sinfônica
nos anos 40, teve até um maestro cego – Arthur Elsner, claro – e
acabou esvaziada com a criação da OSPA, nos anos 50. Só bem mais
tarde é que retomou o prumo, com uma formação que tinha figuras
lendárias da música da capital como o baterista Natalício, o
tubista Lola e o Maestro Lua no trompete. Hoje, com uma idade
média bem mais jovem, segue garbosa e faceira, em projetos como
o Encontrabanda.)

* * *

Falta descrever o dia na Porto Alegre dos anos 1930 a 50. O


programa obrigatório era o footing na Rua da Praia, descrito à
perfeição por um sujeito que nem era nascido na época, o jornalista e
escritor Rafael Guimaraens. Tá lá no seu livro Rua da Praia – Um
Passeio no Tempo:

Mulheres, homens e crianças, todos praticavam o footing. Mas o


protagonismo é delas, das mocinhas sorridentes que desfilam pela
passarela realçada de vitrines elegantes, coração palpitando sob os
olhares e galanteios dos engravatados que se agrupam ao longo da
Rua da Praia.
Recato e malícia marcam encontro. O flirt está no ar.
Elas saem em grupos ou se fazem acompanhar por senhoras
vigilantes. A programação depende do dia. Se é sábado, as lojas
estão abertas. (…) Uma boa parada na Krahe, (…) Casa Louro ou a
Sloper (…) perfumes importados da Casa Lyra. (…) As joias e relógios
da Masson cintilam. A vitrine da bombonière convida ao pecado da
gula. Diante da Livraria do Globo, senhores circunspectos passam a
limpo as vicissitudes do mundo.
(…)
Poucos passos adiante, os calçados finos da Casa Seabra
complementam-se com o variado sortimento de meias da Casa
Coelho. Quase grudadas, a Casa Victor e a Coates disputam quem
oferece as últimas novidades em eletrodomésticos. Segue
o footing rumo à Praça da Alfândega, para um sorvete no Café
Colombo (às vezes era chamada de café, às vezes de confeitaria) ou
alguma guloseima na Confeitaria Central.

É bom lembrar que, de 1937 a 1943, na primeira administração


Loureiro da Silva (foram duas), Porto Alegre se remodelou. Loureiro
ganhou o apelido de ―O Poeta da Cidade‖: abriu a Farrapos - ligando o
Centro à Zona Norte -, plantou jardins, ergueu monumentos,
redesenhou ruas e avenidas. Tocou o redirecionamento e a
canalização do Arroio Dilúvio, o Hospital de Pronto-Socorro, o Centro
de Saúde Modelo e a Prefeitura Nova. Estreou as sinaleiras e quebrou
o monopólio da luz e dos bondes, que era todo da Cia Brasileira de
Força Elétrica, subsidiária da americana Electric Bond & Share.
Isso, pelo lado bom.
Pelo mau, o cara se aproveitou da ditadura do Estado Novo e
usou as leis de exceção do momento para desapropriar sem dó mais
de 900 casas de gente pobre. Quando um coitado era visitado por
―João Macaco‖ – o funcionário público João Pereira Duarte – já sabia
que em instantes chegaram as pás e picaretas pondo tudo abaixo,
mesmo quando os moradores se recusavam a sair.
Resultado: cinco quilômetros de Farrapos custaram míseros 12
mil contos, incluindo obras, iluminação e desapropriações. Em 1935, o
Viaduto da Borges, por exemplo, tinha custado 35 mil contos para os
intendentes Otávio Rocha e Alberto Bins. Não era jeito, era força.

Borges, 1938

* * *
Onze da noite, início dos anos 40, Largo dos Medeiros: Luiz
Telles e seus amigos dali seguiam pros cabarés. Telles corria de
cabeça pra baixo, plantando bananeira (com uma pequena ajuda dos
seus amigos para a aterrissagem), só pra chamar a atenção e
sacanear os sonolentos que olhavam pelas vidraças dos cafés. Ainda
falaremos muito dele.

O Largo, numa foto clássica do Virgílio Calegari

Era o Largo dos Medeiros a primeira Esquina Democrática da


cidade, como bem lembrou Rafael Guimaraens no seu livro sobre a
Rua da Praia. Nos anos 1920, era ali que, fora do expediente, seriam
certamente encontrados tanto Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha e
Flores da Cunha quanto figuras diferentes, como o Barão de Itararé
Aparício Torelly ou o Padre Landell de Moura. Seria assim pelas
quatro décadas seguintes. Afinal, nos quatro vértices do Largo
estavam a Livraria Americana, as confeitarias/cafés Colombo e Central
(cujos donos eram os irmãos Medeiros que deram nome ao Largo) e o
Edifício Chaves Barcellos. Foi ali que se comemorou a greve geral de
1917. Ali se concentraram as comemorações pela Revolução de 30.
Ali se protestou contra o nazismo em 1942. E, como conta Rafael, ali o
pessoal ia nem que fosse para ouvir pelo alto-falante a voz do locutor
Mendes Ribeiro, da Rádio Guaíba, narrando a vitória do Brasil contra a
Suécia na Copa de 1958.
Confeitarias, cafés e bares. A Colombo – também chamada de
Café Colombo –, com seus três andares, reinaria absoluta em luxo e
refinamento desde os anos 1910 até os 30. Pra se ter uma ideia, nos
anos 20 tocava na sua orquestra Alessandro Gnattali, o pai de
Radamés. Nos anos 30, Paulo Coelho e sua turma. Tudo com o plus
a mais de estar situada no Edifício Chaves Barcellos, a primeira obra
porto-alegrense do genial arquiteto alemão Theo Wiederspahn.

O prédio da Central. Não era um gênio esse Theo?

Perto dali, havia ainda o bar Antonello, onde se conheceram


Erico Verissimo e Mario Quintana; o Bela Gaúcha, sede do jovem
Lupicínio; e o ―17‖, ao lado do Clube do Comércio, onde a música era
das típicas e só se tocava tango.
Roteiro boêmio dos anos de 1930 a 60: Chalé da Praça XV,
Gambrinus, Treviso, Hubertus, Pelotense, Bela Gaúcha e, daí… pros
cabarés.O Clube dos Caçadores era o top: chiquérrimo, caríssimo e
com cassino. Era frequentado por tipos como Flores da Cunha,
Osvaldo Aranha, Raul Pilla e Getúlio Vargas e animado, em sua
melhor época, pelo Jazz-Band de Paulo Coelho. Memórias de Carlos
Reverbel:

Embora funcionasse como cabaré e casa de jogo, o Clube dos


Caçadores era de tal categoria, ostentava tanta classe, que sua
qualificação como clube, mesmo no sentido britânico da expressão,
não chegava a tornar-se chocante, sendo aceita com algumas
reservas e poucas restrições somente pelos frequentadores mais
conspícuos e por uns poucos sobreviventes da era vitoriana. Foi, sem
dúvida, um dos redutos mais apetecidos e apetitosos da extinta
civilização porto-alegrense.
Nos salões dos Caçadores o uso de cocaína era quase público.
Não havia muitos consumidores habituais, mas quem costumava
cheirar tal pó não era mal visto, pois o hábito ainda não estava
revestido do aspecto criminoso conferido pelo tráfico. (…) Pelo
contrário. A droga até emprestava certo status aos que tinham
condições de adquiri-la.

O lendário clube, onde o pessoal caçava uma fauna das mais sortidas e
diferenciadas...

Inaugurado em 1926, o prédio de seis andares do Clube é hoje o


Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo. E, apesar do que conta
Reverbel, acabou derrubado pela tradição e a família gaúchas:
apelidado de Palácio das Lágrimas pelos mais conservadores (que
choravam de desespero – desejo? – com tanto laissez-faire), acabou
fechado. Seus donos se mandaram pro Rio e, com o know-
how adquirido, fundaram nada menos que o Cassino da Urca.
Bom. Depois dos Caçadores, em diferentes épocas dessas três
décadas, vieram algumas casas mais bacanas: a Boite Marabá – que
tinha, além de orquestra e típica, um pequeno combo de meia dúzia
de figuras, liderado por Marino dos Santos. O Maipú – da Margot,
que começou sua carreira no Cabaret da Margot –, animada por feras
como Arthur Elsner e o bandoneonista Juvenal de Paula Guedes.
Mais o Istambul e o American Boite. Todos com um jazz (com o
tempo, inflados para orquestra) e uma típica de tango.
Falando de Marino, nos anos 30 ele fazia parte de uma turma
inseparável: o violonista Boquinha, o cantor Sadi Nolasco e os
sempre presentes Paulo Coelho e Alcides Gonçalves. Saíam dos
cafés e das rádios e invariavelmente iam pra noite e pras serenatas,
que podiam terminar às oito da manhã.
Mais Reverbel:

Nas noites do Treviso a camaradagem não tinha preconceitos.


Os pais das moças bem-nascidas confirmariam com satisfação a
teoria de que os jornalistas não davam bons maridos ao se depararem
inadvertidamente com um grupo de repórteres em animado bate-papo
com as estrelas dos cabarés da cidade. As prostitutas bebiam ao
nosso lado, nos contavam suas vidas e muitas vezes se tornavam
nossas amigas. E não era incomum a situação de um estudante de
parcos recursos ser sustentado pela namorada prostituta e com ela
frequentar bares e restaurantes. Era um espécie de redistribuição de
renda: a moça tirava dinheiro do senhor rico e repassava parte dele
para o rapaz pobre. O vínculo, pelo menos entre a jeunesse dorée,
dava um certo prestígio e criava uma aura de marginalidade poética.

Sigamos anos 30 adentro, com uma cidade cujas opções


musicais já variavam do samba feito na Ilhota e no Areal da Baronesa
até a Rádio Gaúcha tocando discos com Stravinsky regendo a sua
Petrouchka.
Coluna Rádio, Folha da Tarde, 12 de junho de 1936:

Em microphone não adeanta botar voz. Já se foi o tempo em que


o cantor p’ra ser bom necessitava rebentar suas cordas vocaes e os
tympanos da gente ao mesmo tempo. A questão hoje está toda Ella na
melodia. Quanto melhor a voz se justapor ao microphone, melhor será
o cantor. Pode-se dizer, por ahi, que Fulano tem boa voz. Mas não
adeanta. O principal é saber si elle fez intimidade com a rodellinha
Metallica, si sua voz passa por dentro della como si fosse um
desdobramento de sua própria garganta. Tomemos como exemplo o
sr. Edgar Lafourcade (…)tem uma voz de respeito, optima para o
palco. O microphone, porém, faz questão de blandícia, serenidade,
smorzamento, sussuro, beijos de melodia na bôcca do apparelho. Do
contrário elle estrilla.
Novos tempos, realmente. Onde o rádio não para de ganhar
importância não só como veículo de entretenimento como também
numa verdadeira revolução estética e de costumes.
Se em 1935 juntou um povo em volta da Farroupilha pra ver
Carmen Miranda e Mário Reis inaugurando a emissora, em maio de
1937, 30 mil pessoas vão ver o jazz de Clóvis Mamede tocando em
festa promovida pela Folha da Tarde – então com um ano de vida –
em parceria com a Difusora.
E chegamos a 1937. Estado Novo. Getúlio proíbe o
funcionamento de todos os partidos políticos. Ironicamente, isso
obviamente inclui o PPR, Partido Republicano Rio-grandense, onde
nasceu, cresceu e se criou o então ditador. Um dos resultados
imediatos é o fechamento do lendário A Federação, jornal que desde
1883 era a voz oficial da cidade e do Estado. Fundado por Julio de
Castilhos, teve uma série de diretores futuros nomes de rua: Venâncio
Ayres, Octavio Rocha e Maurício Cardoso. Sempre combativo e
alinhadíssimo ao governo e ao partido que só então abandona o
poder, depois de quase meio século.
Já quem cresce na parada é o Correio do Povo, que, coerente
com a postura que sempre terá, não disfarçou sua simpatia pelo novo
governo autoritário – ainda que lá no em seu primeiro editorial, de 1º
de outubro de 1895, seu chefão Caldas Junior afirmasse, do alto dos
seus 27 anos de idade, que Independente, nobre e forte – procurará
sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma facção
partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna.
(Caldas Junior começara sua carreira como redator do A
Reforma, principal inimigo d‘A Federação, ligado ao Partido Liberal de
Silveira Martins, a principal oposição aos positivistas que mandavam
na área. Tinha a ideia de fazer um jornal novo, efetivamente desligado
do eterno maniqueísmo gaúcho, na época representado por
positivistas e antipositivistas. Só que morre em 1913, de overdose de
um remédio experimental para ―limpar o sangue‖ (!). E aí quem vai
marcar o século como O Homem do Correio é seu filho, Breno Caldas,
que assume a empresa em 1933 e ali se torna o Poderoso Chefão da
Caldas Junior – que, no seu auge, reunia Rádio Guaíba, TV Guaíba,
Folha da Manhã, Folha da Tarde, Correio do Povo. Só sairia do posto
em 1984, quando seu império veio abaixo.)

* * *
Cinemas trocavam a programação a cada três dias. E estamos
chegando ao ápice da Pequena Broadway: o trecho da Rua da Praia
entre a General Câmara e a Payssandu (futura Caldas Junior).

Olha o furdunço na frente do Cinema Central, em 1932.

O Clube de Cinema de Porto Alegre só seria fundado – por uma


turma liderada pelo jornalista P. F. Gastal – em 1948. Mas tudo
começava ali, 10 anos antes: uma grande agitação em torno da sétima
arte, que começa a explodir em 1913, com a inauguração do primeiro
cinema propriamente dito da cidade, o Guarany – mais um belíssimo
prédio assinado por Theo Wiederspahn (hoje Banco Safra). Na
sequência, vão chegando o Cinema Central (1921, o ―cinema das
elites‖, onde homem só entrava de terno e gravata e Radamés
Gnattali era uma das figuras da então considerada melhor orquestra
de cinema da cidade), o Imperial (1931), o Cine Rex (1936) – que
antes fora o Petit Casino e a Sala Beethoven – e o Roxy (1938). Além
disso, havia os que já existiam para outras finalidades e viraram
cinemas: Variedades (1908), o já citado Recreio Ideal(1908, destruído
para a construção do prédio do Imperial), o Smart-Salão (1909), o
Odeon(1910) e o Íris (1913). Todos ali: Rua da Praia, no entorno da
Praça da Alfândega.
Já perguntei antes: não era um gênio esse Theo?

(Sala Beethoven: tinha como sócios o maestro Tasso Corrêa,


diretor do Conservatório de Música, e o empresário Arthur Pizzoni.
Inaugurada em 1931, queria combinar loja de instrumentos e partituras
com sala de concertos destinada à música de câmara. Inaugurou com,
entre outros, Radamés Gnattali. Fechou, poucos meses depois, com
o último concerto do ídolo maior de Radamés, Ernesto Nazareth. Os
porto-alegrenses não estavam lá muito interessados em concertos de
música de câmara. A Beethoven virou loja apenas, e mudou várias
vezes de endereço. Segue em atividade, numa galeria da Senhor dos
Passos.)
A inauguração do Imperial Cine Theatro, com suas 1.632
poltronas, seu prédio de 11 andares (o primeiro arranha-céu da
cidade) e a exclusividade de projeção de Romance, primeiro filme
falado de Greta Garbo, ficou na história. Nilo Ruschel conta no seu
livro Rua da Praia:

A massa humana jogava-se com violência contra os gradis de


separação e os que vieram atrás levavam tudo por diante. Ferros e
bronzes retorcidos, vitrines espatifadas, espelhos partidos. E lá dentro,
finalmente, a estraçalhada satisfação dos sobreviventes.
Um concerto do Club Haydn no Imperial.

O Imperial vai ser por décadas o principal cinema da cidade. E,


na condição de Cine Theatro, vai receber, por exemplo, a já citada
excursão dos Ases do Samba (Mário Reis, Francisco Alves & Cia).
Antes de ser o último dos grandes cinemas do centro a fechar as
portas, em 2005, vai ser pioneiro no Cinemascope (1954), no projetor
de 70 mm e no som quadrifônico. Em 2012, o prédio se prepara para
ser a sede da Caixa Cultural.

E o desenho do primeiro arranha-céu da cidade.

* * *
O cartaz completamente art decó - como aliás, toda a exposição

Em 1939 é finalmente desmontada a hollywoodiana Exposição


do Centenário da Revolução Farroupilha, que finalmente urbanizou o
Parque da Redenção – mudando seu nome para Parque Farroupilha
(que, diga-se, até hoje não emplacou totalmente). A exposição em si
foi do vinteeeee de seteeembro ao 20 de dezembro de 1935. Um
milhão de pessoas passaram por ali. Só olhando as fotos pra ter
noção da grandeza da coisa: mais de três mil expositores vindos de
oito estados, do Uruguai e de várias cidades do Rio Grande do Sul,
numa ação conjunta entre o governador Flores da Cunha e o prefeito
Alberto Bins. Tinha até cassino! Sem falar nos grandiosos pavilhões
(dos quais ainda há lembranças em vários recantos do Parque),
iluminados por SEIS VEZES mais lâmpadas que o total existente
então no resto da cidade.

O grandioso cassino
No censo de 1940, Porto Alegre já tá toda grandinha: 272 mil
habitantes. Destes, 132 mil homens e 140 mil mulheres – apenas sete
mil trabalhando fora de casa, que a cidade era terra de gente direita!
Duzentos e trinta mil brancos, 19 mil negros e 22 mil… pardos (!) –
além de, contados um a um, 92 amarelos (!!!). Eram 228 mil católicos,
21 mil protestantes, 12 mil espíritas e quatro mil israelitas (exceto este,
os outros números foram ligeiramente arredondados pelo pouco
metódico autor destas mal-traçadas).

A Av. João Pessoa à esquerda, o resto quem conhece deduz fácil

Todo esse pessoal vivia em 50 mil residências, a maioria – 29


mil – de madeira. Um terço da população era analfabeta: 60 mil porto-
alegrenses acima de 10 anos. Achou ruim? A média nacional era
muito pior: mais da metade (55%) dos 41 milhões de brasileiros não
sabia nem ler nem escrever em 1940.
Vinte e quatro mil operários trabalhavam em 675 fábricas. As
principais, invariavelmente, de descendentes alemães: Renner, Wallig,
Gerdau, Neugebauer, Bier e Bopp. Além disso, havia 2.104 casas
comerciais, com 20 mil funcionários, oito mil funcionários públicos, seis
mil servindo no exército, brigada militar e polícia civil, e três mil
profissionais liberais – na sua maioria advogados, médicos, dentistas e
contadores.
Mas quem eram os grandes músicos porto-alegrense (residentes
ou não na cidade) nesses anos 40?
Haja fords... O dia da Inauguração

Vista aérea geral


Haja lâmpada

* * *

Originalmente a banda da casa do luxuosíssimo Hotel-Cassino


Quitandinha (em Petrópolis, no Rio), que lhe batizara, o Quitandinha
Serenaders foi um dos melhores conjuntos vocais de uma época –
anos 1940 e 50 – onde os piores já eram muuuito bons.
Os Serenaders competiam taco a taco com Os Cariocas, Os Titulares
do Ritmo, Quatro Ases e Um Coringa, Anjos do Inferno e mesmo o já
pleistocênico Bando da Lua. Podiam não ser os mais populares, mas
arrasavam no vocal, no glamour, charme e elegância. Com todos
esses atributos somados aos olhos e ouvidos das moçoilas, chegaram
ao posto de campeões de cartas da Revista das Moças, o que não era
pouca balaca.

Alberto, galã
Pois o grupo tinha nada menos que três gaúchos: Luiz Telles, o
futuro galã de cinema Alberto Manuel Miranda Ruschel (Estrela,
21/02/1918 – Rio, 18/01/96) , futuro astro de O Cangaceiro e outros 32
filmes) e Francisco „Chico‟ Pacheco. Já o quarto elemento era um
carioca de peso: o violonista e compositor Luiz Bonfá, futuro craque da
Bossa Nova.
Nem com a proibição do jogo e o fechamento dos cassinos, em
1946, os caras desistiram. Desceram de Petrópolis paro o Rio e
seguiram cantando e vestindo de tudo, mas sempre com ênfase nas
canções gaúchas – folclóricas ou não – interpretadas de bombacha e
lenço! Eram uma espécie de Conjunto Farroupilha, mas com um
repertório um pouco mais aberto. Em 47, por exemplo, causaram
grande frisson nos cinemas porto-alegrenses ao aparecerem num
filme da Atlântida (quase certamente Este Mundo é um Pandeiro)
lançando para o sucesso um xote de Lupicínio Rodrigues. Sim!
E que xote: Felicidade, o futuro clássico.
Quando, em 1953, Bonfá decidiu partir para carreira solo, o
grupo acabou. Mas, antes, Telles ainda tentou encaixar um
desconhecido e talentoso protegido seu, chamado João Gilberto.
Tentou… mas o baiano reclamava de tudo, achava tudo careta. Quem
acabou assumindo, ainda que durante um curto período, foi Paulo
Ruschel, irmão de Alberto e autor do clássico absoluto Os Homens de
Preto, deixando o quarteto 100% gaúcho.
E nada mais natural. Afinal, Alberto, Luiz e Paulo haviam
começado juntos na música, em 1942, em Porto Alegre,
no Conjunto Universitário. Foi justamente esse trio que chegou ao
Rio em 1943 junto com a Caravana Universitária do RS para a VI
Olimpíada Universitária de Jogos e Esportes. E lá decidem ficar, para
tentar a vida… como músicos.
Paulo, aliás, merece mais que um parêntese: nascido em Passo
Fundo (280 km a noroeste de Porto Alegre), dia 11 de maio de 1919,
além de cantor e compositor, foi ator e escultor, premiado e tudo.
Cruzando suas artes, criou o troféu da Califórnia da Canção, a
Calhandra. Além de Os Homens… compôs mais pelo menos dois
outros clássicos regionais: Roda Carreta e Iemanjá. Quando se
desmancha definitivamente o Quitandinha, bate aquela inexorável
saudade do pago e ele se manda de volta para o interior do Rio
Grande do Sul, estabelecendo-se numa fazenda em Cruz Alta. Ali,
trabalha como escultor e compõe canções regionalistas. Ainda na
década de 50, mora uns tempos em São Paulo, trabalhando em rádio
e TV. Mas volta definitivamente para Porto Alegre e morre de ataque
cardíaco em 1974, dia seis de junho – ou cinco de julho, os registros
variam. Tinha apenas 55 anos e decidira há pouco retomar a carreira
musical. Estava no meio de uma turnê pelo interior do estado junto
com a cantora lírica Déa Mancuso).

A Calhandra de Ouro

Já Luiz Telles, do qual pouco se sabe, morreu em 1984, com 69


anos.
Os anos 50 também foram os do sucesso de Alcides
Gerardi e Osmar Safety. Especialista em Dorival Caymmi, Alcides
(Rio Grande, 15/05/1918 – Rio, 01/03/1978) emplacou em 58 a melosa
Cabecinha no Ombro (aquela mesmo…) e virou cantor de guarânias e
boleros.
Já Osmar Lima dos Santos “Safety” era trompetista e
compositor. Nasceu em Pelotas em 1917 e foi o maior especialista
local em música cubana, num dos períodos mais populares dos sons
caribenhos por estas terras subtropicais.
E há Tatuzinho. Nascido Ary Valdez, por volta de 1906, mudou-
se pra terras cariocas não se sabe exatamente quando. Era tão
convicto no seu analfabetismo que, no lugar da assinatura, desenhava
um tatu. Mesmo assim, conseguiu algum sucesso – tocava bem e
chegou a ser reserva de Noel Rosa no Bando dos Tangarás, em 1930.
Gravou discos, fez parte do regional de Dante Santoro, e tornou
célebre um número de humor no Cassino da Urca: entrava com um
enorme estojo de violoncelo e, dali, tirava seu minúsculo cavaquinho.
Hoje parece bobo. Na época também parecia, mas o pessoal já tava
bêbado mesmo…
Só que, pra inveja geral, em 39 casou-se com a belíssima Elizeth
Cardoso. Tiveram um filho, mas o tatu fugiu da toca já na lua-de-mel, e
nunca nem conviveu com a criança. Ao longo dos anos começou a
alternar estados de depressão e insanidade, até voltar pro sul nos
anos 1950. Empregou-se tocando violão elétrico em algumas casas
noturnas, o que fazia com tanta dedicação quanto a que usava para
sustentar usinas e mais usinas de álcool, geralmente em parceria com
o amigo Lupicínio Rodrigues. Morreu no comecinho da década de
60, cada vez mais biruta (foi internado algumas vezes, e volta e meia
saía pelado pelas ruas).
Jessé Silva também é dessa geração. Nascido em Erebango
(339 km a norte de Porto Alegre, perto de Erechim) dia 26 de agosto
de 1919, esse era fera. Décadas passadas de sua morte, seu mito
segue intocado entre os chorões da cidade, e não é pra menos.
Aos 10 anos de idade tinha estudado violino, teoria e solfejo
com Olga Fossati, mandava bem também no violão, bandolim e
cavaquinho e já ganhava um dinheirinho acompanhando os filmes,
ainda mudos, do Cine Erechim (registre-se: aprendeu a ler
música antes de aprender a ler palavras escritas). Outras das
peculiaridades do guri era o jeito com que muitas vezes tocava o
violino: com um palito de fósforo usado como se fosse uma palheta.
Compositor inspirado desde os 11 anos de idade (sério: o que é que
botavam no leite dessas crianças do começo do século XX?!?), muda-
se com a mãe primeiro para Porto Alegre – onde vai estudar, claro,
com Octávio Dutra – e, logo depois, em 1937, para o Rio de Janeiro.
Lá, o que lhe ajudou muito foi ser sobrinho de Pery Cunha. Chorão,
gaúcho e ex-integrante d‘Os Ases do Samba – Francisco Alves, Noel
Rosa, Mário Reis e o pianista Nonô –, Pery era, naquele momento, o
bandolinista mais importante do país. Tinha ido para o Rio no final dos
anos 1920, e logo estava no grupo Os Gaturamos, rival do Bandos dos
Tangarás, de Noel e Almirante. Inspirado no seu ídolo, o bandolinista
pernambucano Luperce Miranda, Pery se tornou um dos mestres
fundadores da linguagem do instrumento na música brasileira. No fim
da vida, voltou a Porto Alegre e, em 1972, era um dos integrantes do
regional comandado pelo Professor Darcy no bar Chão de Estrelas.
Voltando a Jessé.
Em 1940, ele entra pra FAB (Força Aérea Brasileira) como piloto
e radiotelegrafista. Nessa condição, corre o Brasil e chega a viajar até
os Estados Unidos antes de se aposentar aos… 27 anos – com mais
de três mil horas de voo e o posto de sargento. Logo se concentraria
no raro violão de sete cordas e conheceria Jacob do Bandolim, com
quem tocaria em rádios, teatros, saraus e estúdios de gravação –
gravaram juntos pelo menos três 78 rpm, num total de seis músicas.
É como contou na clássica entrevista de Lupicínio
Rodrigues ao Pasquim na década de 1970 (entrevista onde ele,
Jessé, também falou muito): minha formação musical foi aqui no Rio
de Janeiro. Eu sou gaúcho mas vim beber água e aprender violão
aqui, na fonte.
Via Jacob, chegou a Pixinguinha, e acabou, em 1958, no Grupo
da Velha Guarda. Tava tudo certo, mas teve o primeiro ataque de
saudade e voltou pro interior do Rio Grande do Sul. Não aguentou
muito tempo: em 1962 (ou 63, as fontes variam), se muda pra Porto
Alegre. Com o currículo que tinha, foi imediatamente contratado pela
Rádio Gaúcha e eleito vice-presidente do Sindicato dos Músicos. De
quebra, se casa.
Mas a época era de vacas magras pro choro. O negócio foi se
entrosar com o pessoal do samba, Lupicínio e Túlio Piva à frente.
Jessé: Eu, chegando no Rio Grande do Sul, tinha que procurar o
Lupicínio. O problema foi meu: procurar e encontrar o Lupicínio.
Em 1965, juntou nada menos que 50 violonistas para
acompanhar Orlando Silva num show no Auditório Araújo Viana, numa
façanha de grande repercussão na mídia local. Mas vai ser só em
meados da década de 1970, com o renascimento do seu gênero
preferido, que volta a se apresentar com frequência em shows e
recitais por todo o Rio Grande do Sul. Chega até a ganhar o prêmio de
Melhor Arranjo na IV California da Canção de Uruguaiana, em 1974.
Em 1977, Meu Pensamento, composto e interpretado por ele (e
gravado anos mais tarde, no álbum coletivo Porto Alegre 84), leva um
honroso segundo lugar no I Festival Nacional do Choro – Brasileirinho,
com que a Rede Bandeirantes de TV celebrava o renascimento do
gênero. No ano seguinte, no mesmo festival, não vai tão longe, mas
classifica outra obra sua: Sinuoso.
A partir daí, foi se aproximando de uma nova geração, e monta o
regional Vibrações com, entre outros, os netos de Túlio –
Rodrigo e Rogério Piva – o pandeirista Giovanni Berti e Lúcio do
Cavaquinho. O regional tocou muito numa década de ouro do
chorinho na capital: os anos 1980. Também é sócio-fundador
do Regional do Theatro São Pedro, junto com Lúcio e Giovanni,
mais Plauto Cruz (flauta), Ayrton do Bandolim, Fernando do
Ó (surdo) e o Professor Darcy Alves (violão). Com esse grupo,
acompanhou de Altamiro Carrilho a Ademilde Fonseca, e sedimentou
sua lenda.
Morreu de câncer, no auge, como referência central do samba e
do choro da sua cidade, dia 15 de setembro de 1988. Tinha 69 anos,
tocava violão havia 60. Pra tristeza geral, a doença o impediu de
gravar todos os violões de seu segundo LP (o primeiro fora Sambas e
Sambas, nos anos 60), lançado naquele ano, junto com uma biografia
escrita pelo jornalista Danilo Ucha.

O único LP de Jessé

Durante toda sua vida Jessé estudou violão, diariamente, horas


a fio. O repertório ia, tranquilo, de Bach a Villa-Lobos, passando,
evidentemente, por Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Tocava de tudo,
mas sua paixão era efetivamente o virtuosismo harmônico e melódico
do chorinho. O cara viu o gênero entrar e sair de cena mais de uma
vez. E repetia: O choro não morreu, nem vai morrer. Mas está na UTI.
De vez em quando toma um fôlego.

* * *

Relembrando e ordenando: em oito de fevereiro de 1927 estreia


a primeira emissora da cidade, a Rádio Gaúcha. Em 27 de outubro de
1934, sete anos depois, vem a Rádio Difusora Porto-Alegrense. No
meio disso, em 32, tem o decreto aquele do Getúlio que libera a
propaganda no novo meio de comunicação. E aí, em 35, já num
mundo novo de possibilidades, a Farroupilha entra rachando.
1936, Rádio Difusora. Tango rolando a mil.

Porto Alegre terá então, por 22 anos, as mesmas três emissoras


– até a inauguração da Rádio Guaíba, em 1957. E a coisa fica assim:
em 1950, segundo o Anuário do Rádio, Gaúcha em primeiro,
Farroupilha e aí Difusora. Oito anos depois, já segundo o IBOPE,
é Farroupilha em primeiro lugar (38%), a estreante Guaíba em
segundo (20%) e Gaúcha em terceiro (9%). E dados de Ibope
começam a fazer sentido, já que, meses antes, fora inaugurada a
primeira moderna agência de publicidade da cidade, a MPM, e muita
coisa vai mudar a partir daí. É bom lembrar que estamos em pleno
governo Juscelino, com o PIB crescendo quase 10% ao ano,
desenvolvimentismo e um Plano de Metas investindo pesado no
crescimento na industrialização do país. O mundo está mudando, o
Brasil está mudando, Porto Alegre está mudando.
Essa transição marca o auge da popularidade dos programas de
auditório. O Auditório Associado, usado basicamente pela Farroupilha,
ficava na rua Siqueira Campos esquina com a Leonardo Truda, e era
frequentadíssimo – a rádio também era dona de um grande sobrado
nos altos do viaduto Otávio Rocha, na Duque de Caxias com a Borges
de Medeiros.
Já o da Gaúcha – inaugurado em 1950 – tinha 660 m2, 237
lugares, e ficava no décimo primeiro andar do Edifício União, na
mesma Borges, ainda melhor posicionado: menos de 100 metros do
Mercado Público, ponto de encontro oficial de músicos em busca de o
que hoje se chamaria uma ―gig‖, um trampo, um bico, um trabalho
praquela noite.
O Auditório da Gaúcha nos anos 50.

A Farroupilha e a Difusora, desde 1943, pertenciam a Assis


Chateaubriand, fazendo parte da sua rede de Emissoras Associadas,
opositoras ao então ditador Getúlio Vargas. Já a Gaúcha havia sido
comprada em 1951 por um grupo bastante ligado ao então presidente
recém-eleito para voltar ao poder nos braços do povo. Isso dava uma
barbada pra emissora: os artistas contratados pela poderosa e estatal
Rádio Nacional do Rio de Janeiro eram emprestados pra Porto Alegre.
Até Francisco Alves, o mais popular cantor do Brasil, pintava na área,
facinho, facinho.
Aí, em 1952, Chateaubriand manda pra Porto Alegre o
pernambucano Jesuíno D‘Ávila com uma missão: bombar (no bom
sentido) a Farroupilha. O cara começa revalorizando o time de
primeira que a emissora já tinha: uma orquestra de 38 músicos e um
elenco de radioteatro com 45 atores. Mais um acervo de 19 mil discos,
com 600 novos comprados a cada mês. Na música, as maiores
estrelas eram os maestros: o italiano Salvador Campanella, o alemão
Alfred Hülsberg (que foi se agauchando como poucos, e fez escola
como arranjador de música regional) e o gaúcho Roberto
Eggers (veterano nascido em 1899, respeitado na área erudita, autor
de óperas e de pelo menos um sucesso popular: Tango de Amor).
Além disso, claro, havia o grupo vocal da casa, o
sensacional… Conjunto Farroupilha.
Rádio Farroupilha, anos 1950. Jeito e força.

Começa a lotar o auditório da emissora.


A Grande Orquestra era a mais completa do broadcasting local:
a base era uma big band com todos os naipes fechados no
padrão Glenn Miller (o grande referencial da época, com cinco saxes,
quatro trompetes, quatro trombones, guitarra/violão, piano, contrabaixo
e bateria, mais ritmistas e cantores). Acrescente uma orquestra de
câmara (primeiros violinos, segundos violinos, violas, cellos,
contrabaixos, oboé, clarinetes, fagote, trompa). Segundo o radialista
Glênio Reis, chegaram a ser mais de 60 músicos. E pelo menos uma
curiosidade, revezando-se entre cello e sax alto: o suíço Walter
Smetak, que depois se radicaria na Bahia e seria um vanguardista
compositor e inventor de instrumentos, um dos mentores dos
tropicalistas.

O Conjunto Farroupilha, anos 1950. Muita manha.


Esse timão se subdividia, conforme as necessidades, no Jazz
de Breno Baldo, Conjunto Melódico ou Trio. E não era a única fonte
de músicos da rádio. Tinha também o Regional de Antoninho
Maciel e a típica de tango. Só pianistas contratados, a rádio tinha três,
cada um para uma especialidade. Além de uma infinidade de cantores,
com vários especialistas para cada ritmo ou estilo. Sua arma maior era
justamente o gigantismo.
Hülsberg e seu concorrente Karl Faust – da Gaúcha – tinham
algo em comum: todos foram parar na cidade em 1954, a convite do
maestro húngaro Pablo Komlós, que estava montando a Orquestra
Sinfônica de Porto Alegre e precisava de músicos para completar
naipes que não tinham grande oferta (Faust era violista, Hülsberg,
oboísta).
Desde a década de 40, e indo até o início dos anos 60, havia
uma grande rivalidade entre quem cantava, tocava ou integrava as
orquestras da Farroupilha e da Gaúcha. Também, pudera…

Regional de Antoninho Maciel. Com uma cantorinha que, aos 14 anos, já era bi -
campeã dos melhores do ano no rádio gaúcho. Elis, 1959.

* * *

E 1954 é também o ano de quê?


Muito bem! – suicídio de Getúlio Vargas.
Manhã do dia 24 de agosto. Na medida em que chega à
população a notícia do acontecido, uma comoção popular sem
precedentes toma a capital. Quando, às 10 da manhã, vai pra rua a
edição extra da Folha da Tarde com a manchete Suicidou-se Getúlio
Vargas, o povo, ensandecido, sai quebrando tudo que pudesse estar
ligados às ―forças ocultas‖ a que o finado creditava seu ato final na
carta de despedida rapidamente divulgada.
Reza a lenda que quem começou a confusão foi um lavador de
carros apelidado Pirata, porque tinha um olho só. Ele teria gritado ―–
Vamos pro Diário!”. E lá se foi a massa ensandecida rumo aoDiário de
Notícias, uma das empresas de Chateaubriand, a força oculta mais
aparente. Entram na redação, quebram geral, jogam tudo pela janela e
ainda tascam fogo. Animadaço, o pessoal segue: sede da UDN,
redação do jornal O Estado do Rio Grande, consulado dos Estados
Unidos e até as pobres das Lojas Americanas que não tinham nada a
ver com isso – só o nome. Ok, Rua da Praia tava justiçada.

Capa da Última Hora, no calor da mesma.

Aí a massa sobe pela Borges rumo a mais uma empresa das


Associadas de Chatô: a Farroupilha. Desta vez a ordem foi um pouco
diferente: invadiram igual, mas primeiro incendiaram as coisas, e só
depois atiraram pelas janelas. O acervo de 78 rpms (o maior do
Estado) provocou uma verdadeira metáfora de invasão marciana: uma
nuvem de discos voadores voou pelo vão do viaduto. A Difusora e o
auditório da Siqueira Campos também entraram no rolo: no total, 40
prédios foram invadidos e quebrados.
Passionais, os porto-alegrenses? Nada! Só tinham repetido o
terror e pânico de 1917, quando, em função da Primeira Guerra
Mundial, quebraram tudo que fosse ou parecesse alemão: a livraria
Krahe, a Sociedade Germânia, a Bromberg, o Novo Hotel Schmidt e
por aí vamos. E repetiram a dose em 1942, com a Segunda Guerra e
de novos os alemães como inimigos: Casa Lyra, Laboratório Bayer, de
novo a Krahe e por aí vamos.

* * *

Pois, em 1957, quem estava bastante alquebrada era a


velha Gaúcha – quase falindo, mas mantendo as aparências. É
quando o jovem animador de auditório Maurício Sirotsky Sobrinho e
três sócios compram a empresa. Chega cheio de ideias e mais ainda
de ambições. Contrata muita gente e aposta numa rádio com forte
interação com o público, em transmissões ao vivo não só nos seus
auditórios – então com entradas disputadas quase aos tapas entre
as macacas de auditório –, mas também teatros e cinemas. Era assim
o seu Programa Maurício Sobrinho, quando transmitido
pela Farroupilha, do auditório da Siqueira Campos. Agora, com a troca
de emissora, ele iria para o Cine Castelo da Avenida Azenha, muito
maior.
A primeira investida de Maurício na Gaúcha é a mesma de
Jesuíno na Farroupilha, anos antes: valorizar os funcionários. Começa
por seus 36 atores de radioteatro e pela big band de 18 músicos
dirigida por Karl Faust. Karl, a princípio, iria trabalhar na OSPA e
na Farroupilha, mas alguma coisa o fez mudar de ideia. E tava certo:
já em 1956 sua orquestra foi eleita a melhor do rádio pela Revista da
TV (sim, antes mesmo de haver televisão na cidade já havia a Revista
da TV – o pessoal meio que se precipitou – e era a quinta revista a
tratar desse showbizz: Revista do Rádio, Rouxinol,
Radiolândia e Revista do Globo).

Primeira formação da Ernani-Marino, ainda na Gaúcha, 1941.


Melhor para a Gaúcha, que naquele momento havia acabado de
perder a prestigiosa Orquestra de Ernani & Marino, que se
dissolvera. Aproveitando muitos dos músicos que ficaram pendurados
no pincel, a grande inovação da orquestra do alemão foi o capricho
com que ―Fausto‖ – como foi apelidado imediatamente – trabalhava.
Arranjo novo era primeiro passado com todo mundo. Aí cada naipe ia
para uma sala, ensaiar separadamente cada respiração, cada acento,
cada mínimo detalhe que fizesse quatro ou cinco músicos soarem
como um só. Era um padrão de excelência inédito até então. Por isso,
não foi de espantar que, na virada dos anos 50 pros 60, eles levassem
por seis anos consecutivos o título de Melhor Orquestra. Além disso,
encantavam os artistas de fora que vinham se apresentar na rádio
acompanhados por eles. E a Gaúcha ainda aproveitava os talentos
individuais do pessoal para compensar com qualidade a falta de
quantidade de elementos do seu cast.

Formação clássica da Ernani-Marino, 1952.

Um exemplo perfeito era o primeiro sax alto da orquestra (e,


anos depois, claronista e timpanista da OSPA) Giovanni Porzio .
Giovanni tocava sax na orquestra, atacava de pianista de jazz, de
música erudita, de música brasileira ou de tango, com amplo domínio
de cada uma das linguagens – que, diga-se, tem até hoje. Além disso,
os músicos que passaram pela orquestra de Fausto eram, em grande
parte, o que havia de melhor então. Já se falou antes do
saxofonista Macedinho e do baterista Zezinho. Mas no piano, por
exemplo, se alternaram feras como Délcio Vieira e o então muito
jovem Ruy Barros. Na guitarra e violão, também trazido
da Farroupilha, Paulo Coelho (nada a ver com o pianista e compositor
de décadas anteriores muito menos com o mago de décadas depois).
E, é claro, o veterano e consagrado Marino dos Santos, importado
com as maiores honras direto do Rio de Janeiro. Maurício também
contrata da principal concorrente Primo e Seu Conjunto Melódico e
uma jovem cantora revelada pelo Clube do Guri: Elis Regina.
A reação vem rápido: em 1958, n‘Os Melhores do Rádio da
prestigiada Revista do Globo, quase todos os escolhidos são da
Gaúcha. Melhor arranjador e melhor orquestra para Karl Faust, melhor
instrumentista para Paulo Coelho, melhor cantora para… Elis
Regina. Já. Aos 13. Ainda falaremos dessa menina.
Em 1959, na eleição da Revista TV, Elis e Karl repetem o feito.
Faust ganha Melhor Maestro. Alfred Hülsberg leva Arranjador.
Demosthenes Gonzalez, Compositor. E Norberto Baldauf, Conjunto
Instrumental – o mais importante de todos os conjuntos melódicos,
montado, ensaiado e experimentado aos poucos nos corredores da
rádio. Outros de quem ainda falaremos muito.
Correndo por fora na briga entre as duas emissoras vinha
a Difusora, que não tinha lá um imenso plantel, mas era onde
começara a já citada Orquestra de Ernani & Marino. Também lá
atuaram como pianistas, desde o final dos anos 40, craques
como Arthur Elsner, Aderbal D‟Ávila e o próprio Norberto Baldaulf.
E era na Difusora que se tocam os arranjos de nosso velho
amigo Armando Albuquerque, lembram dele?
(É interessante pensar como se trabalhava numa época em que
viajar com uma banda era muito caro e playbacks eram inimagináveis.
Cada cantor de renome nacional embarcava no avião com uma
pastinha, onde havia a partitura de seus acompanhamentos e as
partes extraídas para cada instrumento. Chegava na hora – muitas
vezes na hora mesmo, sem nenhum ensaio prévio –, distribuíam as
partes e era isso: Deus ajudava se quisesse. Por isso era tão
importante a leitura de partituras à primeira vista. Aliás, era comum a
pergunta ―você é músico?‖ querendo dizer ―sabe ler partitura?‖)
Todas as rádios tinham programação ao vivo, nesses
moldes, todas as noites. Além de horários variados ao longo do dia e
quase tudo ao vivo no final de semana. Emprego não faltava.

* * *

E há de se falar com mais vagar dos nossos cantores e cantoras


do rádio. Afinal, eles viviam uma realidade muito peculiar e quase
esquizofrênica: não eram heróis nacionais como os astros das
emissoras cariocas, mas faziam muito sucesso local, basicamente,
cantando um repertório já consagrado por esses intérpretes. O que
hoje seria chamado de cover.
No mais das vezes, até a escolha do repertório do sujeito era
feita pela direção artística da rádio, que também se encarregava de
encomendar os arranjos a este ou aquele maestro. Ao intérprete,
restava pouco mais que escolher o tom. Salvador Campanella, por
exemplo, recebia a programação mensal das emissoras associadas e,
a partir desse playlist, definia o que seria tocado na Farroupilha, por
quem e com quais arranjos. Como hoje os radialistas de emissoras
pop comerciais fazem com as paradas da Billboard.

Salvador Campanella, chamado carinhosamente pelos músicos da orquestra de


Nossa Senhora da Bronca

Além disso, sempre que podiam, as emissoras locais


importavam os Franciscos Alves, Nelsons Gonçalves, Ângelas Marias,
Marlenes, Emilinhas, Caubys e Hebes. Tratados como milagres que os
santos de casa jamais fariam.
Mas foram muitos os cantores nos anos 1930 a 1960. Alguns
alcançaram fama e popularidade regional, eram figurinhas carimbadas
da Revista do Rádio e só não foram além porque empacavam na
velha dificuldade em gravar um disco (uns poucos foram ao Rio ou a
São Paulo e lá registraram algo, mas sem maior repercussão
nacional). De qualquer forma, eram os maiores heróis da nossa Era do
Rádio.
Num levantamento superficial, deixando muita gente de fora e
colocando lado a lado artistas de diferentes gerações:
Fernando Collares, estrela de programas como as Grandes
Audições Panambra-Bendix, na Farroupilha; Os irmãos Guilherme e
Gilberto Braga; Roberto Giannoni – outra descoberta do Clube do
Guri; Edy Polo; Sérgio Dias – irmão de Rubens Santos; Vaine
Dutra; Renê Martins; Zé Bode; Francisco Lopes; Valdir do
Carmo; Teresinha Monteiro; Gessy Dávila; Neusa Teresinha; Lucy
Natália; Alvaiade; El Chamaco – que só cantava boleros, merengues
e salsas; Heitor Barros – o moreno da voz loira (!!!); Armando de
Alencar – o Príncipe do Rádio.

Fernando Collares, pouco antes de falecer, ao lado de um compositor de quem


falaremos: Luiz Mauro

Sem contar precursores, como Alcides Gonçalves – de quem


muito falaremos – e Horacina Corrêa, de quem já falamos. Também
da turma de Lupicínio, Johnson– o boxeur-cantor – e Sady
Nolasco, o homem do chapéu de palha. E o mítico Alberto Dias,
o Carusinho. Esse, tinha originalmente a voz que lhe rendeu o
apelido mas, não contente, fazia qualquer coisa pra chamar atenção:
cantar comendo – de cabeça pra baixo – era apenas uma delas.
Emendar canções por 48 horas sem parar foi outra. Resultado: a
danada da voz, se sentindo explorada, pediu as contas. O jeito foi
seguir apenas como compositor – pelo menos emplacou dois
sucessos: Na Aldeia, gravada por Sílvio Caldas, e Segura o Bonde, hit
local de Horacina. Pra segurar as contas, virou especialista em
tratamento de calos. Nem ao menos eram calos vocais: eram calos
dos pés mesmo.
Reunião de heróis de uma geração: Guilherme Braga e Ary Rêgo, século XXI, no
programa de Glênio Reis

Passando Elis Regina pra categoria hors-concours, o grande


nome desse mundo que sobreviveu ao seu fim foi outra moça que
também iniciou carreira muito jovem, e nos mesmos anos 1950: a
santa-mariense (286 km a oeste de Porto Alegre) de quatro de janeiro
de 1938 Antônia Lourdes Bretas Rodrigues, que entrou no terceiro
milênio adentro como o grande nome ainda em atividade dessa
geração, lenda da boemia porto-alegrense.
Lourdes surgiu no programa Colégio Musical, apresentado pelo
mesmo Ary Rêgo d‘O Clube do Guri, e com uma ideia parecida:
valorizar os talentos infantis. Aí, em 1952, ganhou o concurso A Mais
Bela Voz Estudantil do Rio Grande do Sul. Resultado: foi parar no
mais importante e assustador programa de calouros do Brasil: o de
Ary Barroso, naquele momento na TV Tupi do Rio.
Ganhou de novo.
Tinha 14 anos.
A partir daí, só foi. Contratada da Farroupilha, praticamente uma
criança, era a única voz feminina do programa de rádio Roteiro de um
Boêmio, do ―padrinho‖ Lupi – na verdade, Lourdes é que, anos mais
tarde, seria madrinha de Lupinho, o filho de Lupicínio. Sobre seus
tempos na Farroupilha, um depoimento da própria, bastante
esclarecedor:
O LP Utopia, e Lourdes Rodrigues, nunca relançado em CD

Nós éramos assim as maiorais no Rio Grande do Sul, tudo era a


rádio Farroupilha. Então todo mundo queria cantar na rádio
Farroupilha, tocar na rádio Farroupilha, atuar nos programas, muita
gente fazia testes em novelas (…). A rádio Farroupilha comandava
tudo. E assim nós éramos rivais e os fãs clubes se pegavam mesmo.
O fã clube da Lourdes Rodrigues, o fã clube da cantora Guacira – da
rádio Gaúcha –, Vera Lúcia, fora a Nilza Terezinha que depois veio
trabalhar conosco. Tinha umas outras cantoras também. A rádio Itaí
também criou um cast de cantores e músicos muito bom. (…) Aí
vieram para a rádio Farroupilha, porque (…) quem era bom a rádio
Farroupilha contratava. E havia rivalidade muito feia, mesmo, brigas
de auditório. Era uma beleza.

O único CD de Lourdes, esgotado


Com o declínio do rádio, Lourdes ganha um programa seu na TV
Piratini chamado nada menos que A Rainha Canta. Depois, com a
entrada do videotape, foi lady crooner de vários conjuntos de baile
até se radicar na noite, na boemia, num meio eminentemente
masculino, mas onde sempre se impôs pelo vozeirão e o talento. Ao
longo das décadas de 1960 e 70 se tornou uma das figuras centrais da
turma, firmando seu jeito absolutamente pessoal de cantar. Clube dos
Cozinheiros, Batelão, Chão de Estrelas, Gente da Noite, Clube da
Saudade, Vinha D’Alho… Lourdes era uma estrela em todas essas
casas. Paralelamente, ia levando a vida de professora e, mais tarde,
de funcionária de cartório. E acumulando títulos: Rainha do
Rádio, Rainha do Carnaval, Favorita dos Estudantes, Favorita dos
Militares, A Voz Morena da Radiofonia Sulina, A Patativa do Rio
Grande… Sem contar os prêmios de melhor intérprete na imensidão
de festivais regionalistas dos anos 1980 e 90.

Lourdes no século XXI

Em 2000, foi um dos maiores destaques do CD Porto Alegre


Canta Tangos, coprodução portenho-portoalegrense lançada com
shows de grande repercussão (e sempre destacando sua
performance) em Porto Alegre, Buenos Aires e no Festival de Tango
de Roma. No mesmo ano, lançou, também pela Secretaria Municipal
de Cultura de Porto Alegre, Dona Divergência, produzido e arranjado
por Toneco da Costa e com alguns dos melhores músicos de
variadas gerações da cidade. Inexplicavelmente, apenas seu segundo
trabalho, numa longa carreira como a dela – há ainda o LP Utopia,
gravado em 1985, só com músicas de dois compositores que
provavelmente bancaram o lançamento independente, Flávio Soares e
Paulo Rogério.
Em 2012, completa cinquenta anos de carreira.

* * *
Outro sobrevivente boêmio dessa era é Plauto Cruz.
O Flauto da Plauta nasceu Plauto de Almeida Cruz, em São
Jerônimo (57 km a oeste de Porto Alegre), no dia 15 de novembro de
1929. Filho de um flautista de cinema mudo, quase um bebê já
assoprava flautinhas feitas de taquara. Aí, aos oito, ganhou uma flauta
de verdade e só foi: como Lourdes Rodrigues, aos 14 anos já
impressionava o pessoal em Porto Alegre.
Mas não ficou muito tempo: o juizado de menores cortou o seu
barato e o remédio foi voltar pra junto da família, em São Jerônimo,
indo trabalhar numa fábrica de facas. Pra alguma coisa serviu: em
1949, quando volta a tentar a sorte na Capital, garante um emprego de
chapeador num estaleiro. Ainda bem, porque levou três anos pra
conseguir a primeira grande chance: uma canja na Rádio Itaí. Estamos
em 1952, Porto Alegre só tem três emissoras e Plauto é
imediatamente contratado. O óbvio convite da muito mais
poderosa Farroupilha chega em 1956. Vai então integrar o regional da
emissora, recém-desfalcado do sopro de Alcides Macedo, que, como
já vimos, fora contratado por Karl Faust para a orquestra que estava
montando na Gaúcha.
Com o regional (flauta, cavaco, dois violões, pandeiro,
contrabaixo e acordeon), acompanha deus-e-todo-mundo, e desponta
como uma versão local de um de seus maiores ídolos, o
expatriado Dante Santoro, flautista do Regional Master Plus do Brasil,
o da Nacional. Tanto a menina Elis Regina (n´O Clube do Guri)
quanto o veteraníssimo Vicente Celestino tem a alegria de
emoldurarem-se pelos virtuosísticos contracantos de sua flauta.
Em 1961 é a vez dele ir pra Gaúcha, no Regional do
Paraná: Paraná no violão-tenor, Almirante no violão, Nadir
„Cachorrão‟ no trombone e Azeitona de ritmista. Ao mesmo tempo,
ataca – tocando basicamente flautim – na curiosa e divertida Banda
dos Carijós, liderada pelo clarinetista Hardy Vedana. O clima é de
bandinha de coreto do começo do século XX, interpretando maxixes,
dobrados e outras (já então) velharias. Criado pra tocar na Rua da
Praia, patrocinada pelos comerciantes do seu entorno, quando lança
seu segundo disco, em 1962, o grupo tem uma ideia das mais
originais: passa a tocar na boleia de um caminhão que circulava pela
capital – começava ali a sanha passadista de Vedana que, nos anos
1980, montou uma versão jazz do mesmo conceito antropológico-
musical: a Hardy Vedana and his Subtropical Jazz Band.
O impecável primeiro LP de Plauto

Lá pelo meio dos anos 1960 sua carreira tem o mesmo destino
de todos seus colegas de geração. Você vai ler de novo: com as
rádios em decadência, o lance é migrar para as boates, que logo
também entram em crise, com as mudanças de costumes ao longo da
década de 1970. Chega a tentar a vida em Curitiba, mas volta pra
Porto Alegre e começa o circuito noturno que vai seguir pelos
próximos 40 anos: bares, restaurantes e churrascarias, com eventuais
e sempre destacadas aparições em outros contextos, como as
Califórnias da Canção. Eventualmente, aparições nacionais, como nos
festivais de choro promovidos pela Rede Bandeirantes em 1977 e 78
(aqueles mesmos onde brilhou Jessé Silva) ou o Festival da Tupi, de
1979, onde nasceu a dupla Kleiton & Kledir cantando uma Maria
Fumaça arranjada e iluminada por Plauto.
Reconhecido por muitos como um dos maiores nomes nacionais
de seu instrumento no choro, sofreu a sina de nunca ter saído de
Porto Alegre. Aí, em vez de ter, sei lá, 30 discos gravados, foram
apenas dois LPs e alguns CDs. O primeiro é de 1977, foi gravado na
Isaec, e se chama O Choro é Livre – e é não só a estreia solo de
Plauto, como de boa parte de sua turma de chorões já então
cinqüentões.
Indissociáveis: o Flauto da Plauta

Em compensação, perdeu a conta dos prêmios de melhor


instrumentista, ou as milhares de horas de palco e estúdio com gente
que vai de Orlando Silva a Nelson Coelho de Castro, de Jessé
Silva a seu amigo e rival em virtuose chorona Altamiro Carrilho.
Um mestre que em 2012 completa 68 anos de carreira, 60 deles
de forma profissional.
Como mestres foram o saxofonista Breno Baldo e o
clarinetista Marcelino Corrêa.
Baldo era um dos principais solistas da orquestra
da Farroupilha nos anos 50 e, na década seguinte, liderou alguns
grupos pequenos, sempre com seu nome à frente.
Durante muito tempo seu sax era uma das maiores atrações da
orquestra. Não, não era ele que se destacava. Era seu sax mesmo:
todo remendado com cordinhas e pedaços de arame, cujo milagre era
soar afinado. E soava… Como Breno não ganhava muito dinheiro nem
tinha grana de família, nunca pôde arrumar o instrumento nem
comprar outro melhor. Até que teve de fazer uma operação de
emergência e, na volta às atividades, recebeu de presente seu velho
sax… totalmente reformado! Quem pagou foi uma vaquinha dos 45
músicos e quatro maestros, e o resultado é que o cara levou um mês
para conseguir tocar aquele instrumento tão perfeito. Estava
acostumado às imperfeições. Acontece.
Já o compositor Marcelino Corrêa é um segredo guardado a
sete chaves por alguns dos antigos chorões de Porto Alegre. Nascido
em Santa Vitória do Palmar (500 quilômetros ao sul de Porto Alegre),
em seis de abril de 1900. Aos 18 anos, se alistou no exército, em
Jaguarão, sendo logo transferido para Juiz de Fora, em Minas Gerais.
Lá, virou músico só pra ter melhores condições na tropa. Aprendeu
primeiro clarinete e, anos depois, sax alto. Se estabeleceu em Belo
Horizonte mas, acometido da inevitável – e, como vimos e veremos,
recorrente – saudade do pago, volta para o sul em 1934,
estabelecendo-se na capital.
A partir daí, chega a atuar profissionalmente até pelo menos
1949. Mas o que gostava mesmo era das infinitas rodas-de-choro com
canjas de alguns dos músicos mais importantes das duas décadas
seguintes, a quem sempre impressionou com suas elaboradas e
muitas vezes estranhas composições. Em alguns casos, elas
chegavam a mudar alucinadamente de tom, derrubando qualquer
músico desavisado. Marcelino nunca fez sucesso, nunca foi muito
conhecido, mas é uma lenda entre os poucos que conhecem essas
composições – como o pesquisador, amigo e obcecado divulgador
póstumo Hardy Vedana, responsável pela única gravação de alguma
música sua, a valsa Horizontina, no LP que gravou com a sua
bandinha Os Carijós. O clarinetista morreu em nove de outubro de
1986, compondo ininterruptamente – músicas que dificilmente alguém
iria tocar – até os 80 anos de idade. Já doente, sua penúltima
composição foi um choro chamado, ironicamente, Breve Fechará.

* * *

Antes de seguir adiante, voltemos umas casinhas no jogo.


Primeiro, pra lembrar das tantas casas, casinhas, prédios e
edifícios arruinados com a enchente de 1941. Toda a população,
incluindo dezenas de artistas em shows beneficentes, se organizou
para ajudar os flagelados. As chuvas chegaram com a Páscoa e
custaram a parar. mas aí, quando pararam, o Guaíba continuou
subindo, graças à água que descia dos afluentes. Dia oito de maio a
cheia alcançou seu ponto máximo: o lago, estuário, rio (ou como
queira o amigo chamá-lo) estava quatro metros e 76 centímetros
acima de seu leito. Parou tudo: 70 mil flagelados, 50 milhões de
dólares de prejuízo. Foi aí que decidiram pela construção do muro da
Mauá, que separa o centro de Porto Alegre das águas que viram a
cidade nascer. Curiosamente, ele só seria construído 30 anos depois,
na ditadura seguinte (entre 1971 e 74, prefeitura de Thompson Flores).
Porto Alegre, a Veneza brasileira

Também passamos batido o crescimento da Livraria do Globo,


que se tornara uma das maiores editoras do país. Olha o time: Mario
Quintana – que estreara em livro ali, em 1940, com Rua dos
Cataventos –, Erico Verissimo (que publicaria nela suas mais de 30
obras), Dyonélio Machado, Darcy Azambuja, Vianna Moog, Athos
Damasceno Ferreira. Mais as traduções, onde a editora sedimentaria
sua fama de pioneira, em obras como Admirável Mundo Novo, do
Aldous Huxley, e As Vinhas da Ira, do Steinbeck, ambas vertidas ao
português por ninguém menos que Erico Verissimo. Ou Baudelaire,
Thomas Mann, a Comédia Humana de Balzac, Em Busca do Tempo
Perdido, do Proust… tudo isso aparecendo no país pela primeira vez,
traduzido por Mario Quintana.
Por três décadas seria a principal editora nacional, com um
catálogo de mais de dois mil títulos. E isso que não podia ter
começado de forma mais modesta: em 1899, editando – pense no
lugar e no momento – Augusto Comte, o pai do positivismo. Numa
oficininha nos fundos da livraria, fundada por Laudelino Pinheiro
Barcellos e Samuel Alves Pinto em 1883. Em 1918 havia já o
Almanaque do Globo e, com a morte de Laudelino, José Bertaso entra
como sócio. Seu filho, Henrique Bertaso, será a peça-chave para que
a editora se torne o que foi. É quando ele assume a coordenação que
chega a turma da pesada: Mansueto Bernardi, Erico e Quintana.

A livraria nos anos 1920 e nos anos 1940.

Tanto quanto dos livros, a fama da casa vem da Revista da


Globo, que começa a ser editada em 1929 (há duas versões para seu
surgimento, e ambas envolvem Getúlio Vargas, então Presidente do
Estado e, como sabemos, um grande interessado em qualquer mídia –
em troca, a revista não só vai apoiar sua candidatura à presidência da
República como também a subsequente Revolução de 30, seguindo
na fé getulista ao longo de todo o Estado Novo). A revista só para de
circular em 1967, mas aí já não tinha quase nada da importância que
teve entre os anos 1930 a 1950.
Décadas de capricho gráfico.

Outro ponto que não pode passar batido é o mundo dos cabarés.
Havia grandes, médias e pequenas casas nesse ramo de carnes que,
principalmente nos anos 1920, animavam as noites quase que
exclusivamente ao som de tangos. Tango que, na cidade, entre os
anos 1940 e 60 era sucesso até em bares como o Balú, nos altos do
Chalé da Praça XV, e cuja maior estrela era aTípica do Maestro
Zabalia (Zabalia ao bandoneon, Pajarito no violino, Marcelo Couto
no piano e Zeno Ribeiro no contrabaixo). Mas aí os cabarés já tinham
também os seus jazz – que, mais tarde, seriam trocados por pequenos
grupos com formações das mais diversas. A fase mais rica
musicalmente foi entre o final dos anos 30 e meados dos 50: toda
casa que se prezasse tinha, além de cantores, bailarinos, mágicos – e,
é claro, putas – pelo menos dois grupos musicais de boa qualidade:
o jazz, e a típica. Ambos com um número que variava entre cinco e 10
músicos cada.
Mercado maior só o dos bailes. Neles, as melhores
oportunidades apareciam, é claro, para quem tocava em alguma das
rádios locais – e que, por consequência, tinha maior renome. Havia,
claro, orquestras do interior que fizeram nome mesmo na capital,
como o Conjunto João Roberto – de Cachoeira do Sulv ou Pedrinho
e Seu Conjunto – de Bento. Mas as grandes vedetes eram mesmo as
formações locais, como a Orquestra de Karl Faust. Esses chegavam
a fazer 22 bailes num único mês. Jornadas de cinco horas de música,
mas para as quais tinham várias regalias. Uma delas: se o lance fosse
a mais de 250 quilômetros de distância de Porto Alegre, só iam de
avião… Também exigiam um conjunto melódico, para revezar
enquanto descansavam e faziam um das três trocas de figurinos de
cada apresentação. Eram a culminância de uma época (entre meados
dos anos 1920 e o final dos 60) que teve, só em Porto Alegre, mais de
uma centena de orquestras e jazz bands. Um mundo rapidamente
substituído pela febre local dos tais melódicos – mas isso é assunto
para um capítulo vindouro.
Enquanto uns ambientes cresciam, outros minguavam: o último
café com música ao vivo – o it dos anos 30 – fechou suas portas em
1950. Era o Indiana, na Rua da Praia, onde tocava um sexteto all
star de formação bastante curiosa: Chaguinha no trompete, Breno
Baldo no sax e clarinete, Antoninho Gonçalves na guitarra, o
Maestro Zabalia no bandoneón, Marcelus no piano e João Bandeira
no contrabaixo.
É justamente nessa década que o rádio chega ao auge da
popularidade, profissionalismo e faturamento. Era o centro da sala,
antes dos aparelhos portáteis. No horário das radionovelas noturnas,
como hoje acontece com a TV, 92% dos aparelhos existentes em
Porto Alegre estavam ligados. O impacto no interior só não era maior
porque só um terço dos lares gaúchos tinha energia elétrica, e o rádio
de pilha ainda não tinha se popularizado.
Anos 50: o lendário auditório da Farroupilha, com o time quase completo
Aqui, na escadaria, o time COMPLETO

A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, fundada em 1950 pelo


maestro húngaro Pablo Komlós, vem pra somar no cenário,
empregando gente muito boa e experiente como o já tantas vezes
citado Salvador Campanella: Quando entrei na OSPA eu já tinha
bastante prática, porque na rádio é necessária muita tarimba, do
contrário não se resolve nada. (…) Não dá tempo para nada, tudo é
feito muito ligeiro. E eram cinco programas noturnos de meia hora,
ensaio de duas horas. Então o negócio era feito assim: “Tá, tá, tá
pronto, cuidado com o sinal.” O maestro Pablo Kómlos (…) ia lá para
assistir a rádio e ficava bobo: como é que esse pessoal se
arranja? (…) Saía bem porque os músicos eram de primeira
categoria: (…) Breno Baldo, Rui Silva, eram 35 músicos. Foi lá da
Rádio Farroupilha que surgiu a OSPA. Toda vez que a OSPA tinha
algum concerto, despachava 22 músicos. Nós gravávamos o
programa e a OSPA fazia o concerto. Foi quando me convidaram pra
ser regente da OSPA. (…) E daí foi toda a orquestra junto.
Esse ―foi toda a orquestra junto‖ aconteceria quando a coisa
desandou, nos anos 1960. Já já falaremos disso.

* * *
Mais um raro exemplo de cantora dessa geração que chegou ao
disco é Maria Helena Andrade. Nascida em Porto Alegre dia 12 de
maio de 1942, começou criança, como tantos dessa geração,
lançando aos 15 anos pela gravadora Mocambo, de Pernambuco, dois
78 rpm com músicas de Rubens Santos, Hamilton Chaves
e Lupicínio Rodrigues, acompanhada de Primo e seu Conjunto
Melódico. Leon Barg, o recentemente falecido expert e dono da
gravadora Revivendo, a definiu como uma cantora cuja discografia
ficou muito aquém de suas qualidades. Maria Helena foi uma das
últimas Rainhas do Rádio Gaúcho, em 1955 (aos 13!). Só voltou a
gravar em 2007, quando lançou o CD Uma Luz a Brilhar.

O brotíssimo Maria Helena Andrade com o apresentador Salimen Jr.

Também é de se registrar uma das figuras mais curiosas do


showbizz nacional: Carlos Machado. O cara fundou em 1939 Os
Brazilian Serenaders de Carlos Machado, segundo suas próprias
palavras, a única orquestra do mundo cujo maestro não sabe
diferenciar um sol de um lá. Machado era sim bailarino, e dos bons,
estrela dos cabarés da Paris dos anos 1930, partner da mítica
Mistinguett, um entertainer de marca. Depois de sete anos na Europa,
voltou para mostrar justamente o que fazia melhor: animar palco e
plateia, fingindo que regia. Mas o time era de primeira e nem
precisaria de maestro: até 1946, quando acabaram os cassinos e
muitas das orquestras, passou pela Brazilian Serenaders gente como
Russo do Pandeiro, Copinha (flauta), Fafá Lemos (violino), Laurindo
de Almeida (violão), Dick Farney (piano), Marlene, Emilinha Borba,
Linda Baptista e Dalva de Oliveira. Tá bom?
E há os casos de Gaúcho (da dupla Joel & Gaúcho - nascido
Francisco de Paula Brandão Rangel, em Cruz Alta, 1911), Nelson
Gonçalves e Cyro Pereira. Estes dois últimos, músicos geniais
nascidos no Rio Grande do Sul mas – como o primeiro da lista - sem
nenhuma ligação que justificasse sua inclusão numa história da
música de Porto Alegre, como esta aqui. Só que também não dá pra
deixar de citar.

Nelson, em Êxtase

Cyro, Maestro

Nelson nasceu Antônio Gonçalves Sobral, em Santana do


Livramento, dia 21 de junho de 1919, mas logo a família se mudou
para São Paulo. Até morrer, no Rio, em 18 de abril de 1998, foi um
dos maiores cantores brasileiros da Era do Rádio, chegando já no
ocaso da estética do vozeirão, mas sendo tão bom que sobreviveu
incólume à Bossa Nova e à MPB. E põe incólume nisso: difícil ter
certeza de números absolutos, mas foi certamente um dos três
maiores vendedores de disco da história pátria: vendeu inacreditáveis
78 milhões de cópias.
Cyro teve uma trajetória parecida: aos 20 anos, se mandou
direto de Rio Grande – onde nasceu em 14 de agosto de 1929 – para
São Paulo, onde morreu em nove de junho de 2011, como regente
titular da Orquestra Jazz Sinfônica. Só não entrou no rol dos grandes
arranjadores brasileiros porque radicou-se em São Paulo e não no
Rio. Tanto que só gravou seu primeiro disco em 1997, quando
completou 50 anos de carreira entre o erudito e o popular
(como Radamés Gnattali). E olha que até um ritmo ele inventou – em
parceria com o paulista Mário Albanese: o jequibau, uma espécie de
samba em 5/4. Sem falar que, contratado da TV Record em meados
dos anos 60, era uma das estrelas da casa, regendo a Orquestra da
emissora em programas como O Fino da Bossa ou nos míticos
festivais de MPB.

* * *

E há ainda que se falar em três importantes integrantes dessa


geração de compositores tão pouco prestigiados: Jayme Lewgoy
Lubianca (Porto Alegre, 1923), Alberto Bastos do Canto (Porto
Alegre, 1923-2004) e Demosthenes Gonzalez (Porto Alegre, 08/1914
- 29/07/2000).
Jayme, judeu, nasceu e cresceu na mesma avenida Osvaldo
Aranha – coração do bairro judeu do Bom Fim – onde mora.
Imortalizou-se com Porto dos Casais, gravada até por Elis Regina na
série de discos Música Popular do Sul, da gravadora Marcus Pereira,
em 1976.
Porto dos Casais, a partitura
Revista do Globo, 1961: Alberto do Canto

Já Alberto do Canto começou a tocar piano ainda criança,


compondo já aos 14 anos de idade, sempre tendo como herói
maior Paulo Coelho. Não seria descabido imaginar que o sucesso
de Alto da Bronze (de Paulo) tenha sido a inspiração do foco das
principais das suas mais de 200 obras – cantos de louvor à
cidade: Porto Alegre – Cidade Sorriso, Parque da Redenção, Praça
Quinze e o quase hino Rua da Praia, samba-canção gravado em 1954
pelo cantor Alcides Girardi na Odeon.

Rua da Praia, que não tem praia, que não tem rio,
Onde as sereias andam de saias e não de maiô.

Rua da Praia, do jornaleiro, do camelô,


Do estudante que a aula da tarde gazeou.

Rua da Praia, da garotinha que quer casar,


Do malandrinho que passa o dia jogando bilhar.

Se as pedras do teu leito algum dia pudessem falar quantas


cenas de dor e alegria haveriam de contar…

Rua da Praia de alegres tardes domingueiras


Quando as calçadas se enfeitam de gauchinhas faceiras.
Rua da Praia, da sede do Grêmio e Internacional,
Que se embandeiram e soltam foguetes no jogo Gre-Nal.

Provavelmente é desta época o compacto duplo Férias em Pôrto


Alegre, só com canções de sua autoria: Férias em Pôrto Alegre, Pôrto-
Alegre – Cidade Sorriso, Rio Guaíba e uma homenagem ao maior de
todos (junto com Radamés Gnattali) da primeira metade do século: No
Tempo de Octavio Dutra.
Em 1959, com apoio do prefeito (e ex-colega de escola Julio de
Castilhos) Leonel Brizola, Alberto organiza o Primeiro Concerto de
Música Popular Rio-Grandense, cujo repertório é totalmente composto
de obras de… Alberto do Canto, interpretadas pela orquestra do
maestro Salvador Campanella e por uma dupla dos melhores cantores
da turma: Fernando Collares e Lourdes Rodrigues. Lotaram o Theatro
São Pedro, repetindo o feito quase 20 anos depois, num concerto da
OSPA, em 1977, com igual sucesso e o mesmo repertório.
Alberto passou a vida trabalhando como advogado, formado que
era pela mesma faculdade onde o bedel Lupicínio Rodrigues lhe
incentivava a nascente produção sambística. E, apesar de escrever,
basicamente, sambas-canção, era considerado por muitos um
compositor semierudito. Com o que concordava: como encaro
sériamente a arte musical, sinto que só poderei realizar-me nessa
nobre arte quando palmilhar êste terreno, declarou à Revista do
Globo em 1961.
Por fim, Demosthenes Gonzalez (Porto Alegre, 1914-2000). Em
1956 o cara voltara para Porto Alegre como correspondente
da Revista do Rádio no Rio Grande do Sul, redigindo as notas da
coluna Rio Grande do Sul. Começara sua carreira 20 anos antes, no
jornal carioca A Noite, tendo trabalhado no Rio e em São Paulo em
veículos importantes como a revista Noite Ilustradae a lendária Revista
do Rádio, da qual foi um dos fundadores. Paralelamente, formado em
direito, como Alberto do Canto, escrevia contos, poemas e sambas –
o primeiro data dos seus 12 anos de idade –, mas não mostrava pra
ninguém. Até o cinema tentou, como ator!
Quando, em 1951, teve – segundo ele – duas canções suas
gravadas por Leny Eversong e creditadas a outros autores (Estranho,
dada como de Osvaldo Nunes e Cabeção (!!!), e Vidas Iguais,
creditada a Osvaldo Nunes e Ciro de Souza), achou que era a hora de
levar o ofício de compositor a sério.
Em 1958, no LP Hora de Dançar, o Conjunto Norberto Baldauf
grava Louca, um de seus maiores sucessos. Começa ali a ser
reconhecido e já se anima a fundar o Clube dos Compositores, no qual
batalhará pelo reconhecimento da profissão. Provando o ecletismo,
em 1960 emplaca duas canções no LP Fandango no Galpão, da
dupla Oswaldinho e Zé Bernardes: Baile de Lampião e Noite
Escura – esta última, regravada por Ademar Silva, foi um de seus
maiores sucessos. E segue: Gilberto Braga, Caco Velho,
Teixeirinha, Mary Terezinha, Berenice Azambuja… gaúchos das
mais variadas gerações e estilos passam a gravar suas composições.
No total, foram mais de 200 canções feitas de ouvido, letra e
música ao mesmo tempo, muitas vezes enquanto seu autor andava na
rua ou de bonde. Aí corria para o amigo Alcides Macedo, o
futuro Maestro Macedinho, que era quem colocava a nova
composição no papel.

Demosthenes e J. Silvestre: O Céu é o Limite

Em 1957 ficaria famoso nacionalmente com mais uma das suas


facetas: respondendo sobre Monteiro Lobato no programa de
auditório O Céu é o Limite, de J. Silvestre. Em Porto Alegre,
trabalharia no Correio do Povo e no Diário de Notícias.
Militante de esquerda, foi preso – e torturado – muitas vezes
durante as duas ditaduras brasileiras: o Estado Novo (ficou no presídio
da Ilha Grande oito longos anos, até 1947, dois anos depois da
ditadura acabar!) e o Golpe Militar de 1964. Com a morte do amigo de
infância Lupicínio Rodrigues, meio que tornou-se depositário fiel da
sua memória, o que resultou em colunas de jornal e duas homenagens
de peso, ambas chamadas Roteiro de um Boêmio: um espetáculo de
sucesso encenado por três meses no Teatro Tereza Rachel, no Rio de
Janeiro, e um livro lançado pela editora Sulina em 1986. Mesmo ano
em que, na administração do pedetista Alceu Collares, começa a
trabalhar na EPATUR, Empresa Porto-Alegrense de Turismo, de onde
é cedido para a assessoria de imprensa das vindouras administrações
petistas na Prefeitura de Porto Alegre.

A figura que o pessoal mais lembra dele: coroa bonachão

* * *

A televisão havia estreado no Brasil no dia 18 de setembro de


1950: era a Tupi, de São Paulo – seguida pela Tupi carioca, no ano
seguinte. No extremo sul do país, a capital do estado inchara
barbaramente: Porto Alegre tinha então 394 mil habitantes, quase um
terço (120 mil pessoas) a mais do que apenas dez anos antes.
1951, como vimos, é o ano em que Getúlio Vargas volta ao
poder – dessa vez nos braços do povo, para sair da vida e entrar na
história no já citado agosto de 54.
Tudo isso pra chegarmos em 1955, quando o mundo do
showbizz radiofônico local apresenta a primeira rachadura: Assis
Chateaubriand coloca 50 aparelhos de TV na Praça da Alfândega e
transmite do Clube do Comércio a primeira demonstração da
novidade. As telinhas mostram, a poucas dezenas de metros de
distância, o que há de melhor no escrete porto-alegrense das
Emissoras Associadas: na música, a Grande Orquestra Farroupilha,
regida por Salvador Campanella, o grupo Tropeiros da Tradição,
dirigido por Paixão Côrtes e, é claro, o Conjunto Farroupilha.

O clássico indiozinho da Piratini

Não levaria nem cinco anos para essa experiência ser


transformada numa emissora com tudo o que se tinha direito: a TV
Piratini é inaugurada dia 20 de dezembro de 1959.
Para os músicos que trabalhavam nas principais rádios,
famosos, prestigiados e ganhando razoavelmente, o sonho começava
a acabar. De forma ainda mais radical do que o que acontecera já
duas vezes no século, com o cinema falado e a popularização do
rádio. No começo, ninguém se deu conta: parecia apenas uma nova
frente de trabalho que se abria, com gaúchos se mostrando pra
gaúchos (ainda não havia o videoteipe e era tudo feito ao vivo, mais
ainda do que no rádio).

Por aqui se entrava para o fascinante mundo da televisão (atualmente é o prédio


da TVE)
Mas foi tão rápido que, olhado daqui, parece aquelas epidemias
de filme-catástrofe americano: em menos de sete anos (no final de
1966) já não havia nenhum programa de auditório em nenhuma rádio
da capital. O departamento de radioteatro da Gaúcha tampouco existia
– e, no começo da década de 1970, a Farroupilha também fecharia o
seu. Se, em 1950, 40% das verbas publicitárias brasileiras iam para o
rádio e 1% para a TV, em 1969, a proporção era de 13% para 43%.

"Glamour!"

Bem que havia avisado a Revista TV, já em dezembro de 1959,


pouco antes da inauguração oficial da Piratini:

O advento da televisão em Porto Alegre é um fato consumado.


Aí está o Canal 5 com sua imagem perfeita, plantando um marco
pioneiro no Rio Grande do Sul. E com isso ganha nova força e
atualidade a pergunta que vem sendo feita: irá a televisão abalar o
prestígio mantido até aqui pelo rádio?

Quase um ano antes, em janeiro de 59, tinha sido a Revista do


Radio a perguntar em manchete: A Televisão Matará o Rádio?
Ué? Cadê o rádio que tava aqui?

Matar, não mataria, mas ia mudar radicalmente a sua estrutura.


Em 29 de dezembro de 1962, Mauricio Sirotsky e seus sócios
inauguram a TV Gaúcha, segunda emissora do Estado. E então, em
1963, o videoteipe aterrissa feito um Godzilla.
A partir da primeira fita que viajou com um programa pronto,
perdeu imediatamente o sentido manter um imenso escrete de artistas
em cada estado, quando cada rede podia ter uma orquestra só, na sua
sede – que, pra facilitar ainda mais, era onde moravam as estrelas de
maior renome nacional. Era só gravar e mandar os teipes pras
afiliadas.

Maurício Sirotsky à frente da sua TV

De uma só tacada, a Piratini demite todo o elenco de radio e


teleteatro, dissolve a Grande Orquestra Farroupilha e manda
embora até o Conjunto Farroupilha.
Demosthenes Gonzalez: Quando as emissoras de rádio e
televisão suprimiram as apresentações ao vivo de suas programações,
foi uma calamidade. Músicos e cantores ficaram desempregados;
compositores ficaram sem uma vitrine para mostrar as suas
composições. Artistas de fora não vinham mais. Era o império dos
enlatados.
A concorrência com o que se produzia no centro do país era
desigual. Afinal, eram os tempos de, por exemplo, O Fino da
Bossa (apresentado pela mesma Elis Regina que tinha acabado de
sair de Porto Alegre) e Jovem Guarda (de Roberto Carlos & Cia). Sem
falar nos festivais da canção que mobilizavam o Brasil. Não tinha
como concorrer.
Correndo por fora, havia também os enlatados americanos (os
teipes, é bom lembrar, vinham em latas), como Bat Masterson. Ao
mesmo tempo, com o rápido crescimento do número de lares com
televisão, o rádio perde a posição de destaque na sala.
No meio disso, a situação já mudara também do lado
empresarial: em 1963, Maurício Sirotsky seria o único dos sócios a se
manter quando a rede paulista Excelsior compra a Rádio e Televisão
Gaúcha S/A.
A TV Excelsior, que nascera já na era do videoteipe, era dos
mesmos donos da companhia de aviação Panair, o que facilitava
ainda mais a circulação das fitas com os programas gravados de São
Paulo para o Rio (e vice-versa) – e Porto Alegre sem gerar nada, só
recebendo latinhas.
(Oposição de primeira-hora ao governo militar, a Excelsior não
vai durar muito: resiste só até 1968 quando, perseguidíssima e à beira
da falência, vende a Gaúcha para Maurício, seu irmão Jayme Sirotsky
e Fernando Ernesto Corrêa. O trio se associa à crescente Rede Globo
– aliada com os militares – e compram também o jornal Zero Hora,
que era a antiga Última Hora, de Samuel Wainer, outro inimigo da
ditadura.)
Aí até a maior estrela internacional desse apogeu radiofônico
local já tinha voltado pra casa: dois anos depois do videoteipe, em
1965, Karl Faust pega suas coisas e retorna à Alemanha, para um
empregão que só atesta a sua excelência: produtor da gravadora
Deustche Gramophon. Até o final dos anos 1980, assinará muitas
dezenas de discos, principalmente na área de música erudita
contemporânea, mas indo também de Beethoven e Chopin, dirigindo
gravações de orquestras como a Filarmônica de Berlim e regentes
como Claudio Abbado (e sem preconceitos: até com Brian Eno chegou
a trabalhar). Quando se aposentou, ainda escreveu crítica de música
erudita até o final do milênio. É possível que siga vivo. Se sim, é um
dos últimos remanescentes da, segundo muitos contemporâneos,
melhor orquestra popular que a cidade já teve.
Mais do que isso, de um mundo onde se, por um lado, a vida de
compositor não era fácil, cantores, instrumentistas, locutores e
radioatores viviam numa espetacular bolha de prestígio local. Um
mundo muito mais simples, comunitário, provinciano. Para o bem e
para o mal. Um mundo que se acabara para sempre.
E olha que ainda nem falamos nos Beatles.

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