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Poeta da liberdade
Fiz d’esta nova deidade
A dama do meu pensar
Prostrei-me aos pés da donzella
Heide com ella e por ella
A minha terra cantar!
(Palmeirim, Poesías).
O chefe d’este neo-romantismo, entre burocratico e piegas,
artificial, sem raizes no coração de uma gente prosaica ou devassa;
o chefe d’esse romantismo, cujos derradeiros foram Chagas e
Thomaz Ribeiro, «christão, portuguez e bacharel formado», (Prol. do
D. Jayme, 2.ª ed.); o chefe de uma eschola arrebicada e pedante, foi
Castilho, um velho Fontes da poesia!
Ao seu temperamento feminino ou infantil agradavam as ternuras
doces dos Byrons do Terreiro-do-Paço; e, se lá no fundo tinha uma
ironia aguda para os crivar de epigrammas antigos, vingando-se,
não podia deixar de os lisongear, de os acolher, de os encher de
louvores e mimos, chamando Isto a um, Aquillo a outro: um
congresso de genios! A hypocrisia natural em sociedades que,
tombando na chateza do utilitarismo, não querem confessar, por um
resto de pudor esthetico, o americanismo dos seus sentimentos e
motivos; esse estado de desaccordo da intelligencia moral, da
esthetica e da pratica, reclamava o governo politico de um homem
como Fontes, e o governo litterario de outro homem tambem vasio
de idéas, repleto de sábia poetica, um arcade como Castilho.
E se o primeiro cantava em discurso a «locomotiva, e sobre a
locomotiva o progresso!» se o primeiro obedecia á corrente do
Capitalismo moderno: o segundo, cantando a Felicidade pela
agricultura, o Hymno do trabalho, obedecia á corrente do
fourierismo; e ambos recebiam e davam a iniciação propria da
edade do Fomento, nas suas duas faces.
Capitalismo, Socialismo, eis ahi, com effeito, o que se achava no
fundo da Regeneração; sem que os nossos regeneradores tivessem
uma consciencia nitida do que faziam e do que eram. Succede quasi
sempre assim aos homens, e muito mais succedia então, quando
tudo apparecia ainda confuso, indeterminado, n’um crepusculo de
Liberdade ainda confessada, n’uma combinação ainda vaga dos
elementos futuros das questões sociaes. Fourier, Saint-Simon,
Owen, Cabet: capitalistas ou socialistas? As duas cousas a um
tempo. Era o socialismo pelo capital: tambem na politica era a
liberdade pela riqueza. E por cima da vasta confusão de idéas e
preconceitos, de phrases ingenuas e astucias calculadas, havia
apenas na sociedade portugueza um desejo ardente de paz, riqueza
e goso. Os jovens politicos aprendiam corajosamente o can-can
com as francezas do Jardim mythologico.
Esta consequencia immediata da iniciação do Fomento, apoz a
longa historia das duras campanhas liberaes, levava a mocidade
regeneradora a não presentir as inconsequencias das suas
opiniões, nem o caracter ás vezes infantil das suas distracções.
Emigrados da miseria, no dia da abastança não se fartavam de
gosar; e no seio da paz, assim como as lettras eram uma distracção
amena de homens graves, assim o era a politica. Lisboa teve o quer
que é de rococó burocratico e litterato, n’esses tempos doirados da
mocidade regeneradora, em que,—como creanças perante um
brinquedo, a locomotiva,—se via no Salamanca e na cohorte dos
hommes d’affaires que desciam da Europa a faire-le-Portugal, uma
aurora do futuro, sarjada de rails, com aureolas de clarões de
fornalhas entre nuvens de um forte cheiro a sebo queimado.
Se Castilho tinha os seus saraus, onde os poetas de fartas
melenas iam recitar peças lyricas ou hymnos trabalhadores, os
politicos pisavam tapetes em salões celebres que recebiam de
portas abertas uma pleiade de estadistas novos—os filhos da
Liberdade! Os nomes conhecemol-os todos; mas talvez já não
lembrem algumas das diversões interessantes das noites de
comadres. Cada cavalheiro tirava á sorte a comadre, na quinta-feira
propria; e cada comadre, uma dama, tinha uma divisa: Liberdade,
Democracia, Joanna-d’Arc, Corday, a Padeira? Não: imagens de
agora, vivas. Uma era a Prosperidade-publica, e saiu a Fontes;
outra a Camara-dos-deputados, e saiu a José-Estevão; outra a
Fazenda-nacional, e saiu a Cazal-Ribeiro; outra a Imprensa-
periodica, e saiu a Sampaio; etc. (Rev. penins. Chron. fev. de 56)
Não tivemos razão de chamar á Regeneração um cezarismo de
secretaria?
Quasi vinte annos levou a dissipar-se (51-68) esse neo-
romantismo da geração em que primeiro se enxertaram as idéas
sociaes modernas, pelos modos e fórmas que esboçámos
rapidamente. Outros modos, fórmas diversas: um neo-setembrismo,
um socialismo platonico, a Iberia, a Republica, vieram entretanto
invadindo os cerebros de outras camadas, e forçando as anteriores
a congregarem-se definitivamente em partido conservador. Foi o
que já vimos, faltando-nos ainda estudar as novas influencias do
periodo da Regeneração.
Depois de 68 nada ha que regenerar, ou todos regeneram de um
modo egual. Depois d’esta epocha, e consummada uma tal ou qual
restauração da riqueza nacional, todos apparecem convertidos ao
opportunismo pratico. Não ha mais distincções de partidos, ha
apenas grupos diversos. Não ha mais programmas, porque ha a
liberdade pratica bastante e toda a ideologia liberal morreu. Os
bandos politicos já não têem rotulos, basta-lhes o nome dos chefes:
é o d’este, o d’aquell’outro. E uns succedem-se aos outros, até que
... Ponto. Não precipitemos o discurso.
2.—O IBERISMO
O leitor sabe que nos ultimos reinados da dynastia de Aviz a
politica de fusão dos dois estados, já ao tempo unicos na Peninsula,
inspirou por mais de uma vez a côrte portugueza.[41] Sabe tambem
a deploravel historia da annexação de Portugal, e a da occupação
castelhana, mais deploravel ainda. Em 1640 uma conspiração
palaciana, com a protecção dos jesuitas e da França, restaura a
independencia portugueza, levantando a dynastia de Bragança. No
meiado do xvii seculo acontecia o que succedera no seculo xii e no
fim do xiv: as tres dynastias portuguezas foram, nos seus primeiros
periodos, o symbolo da independencia nacional.
Á maneira, porém, que com o tempo se obliterava a lembrança
das crises successivas, renascia, com as complicações dynasticas,
o pensamento natural da união. Assim aconteceu no tempo de D.
Fernando; assim desde D. Affonso v até 1580. E quando foi a crise
peninsular, determinada pela invasão franceza, D. João vi, do Rio,
onde se achava, viu despontar a perspectiva da união, e a côrte
voltou a ser iberica. O duque de Palmella estava então enviado junto
á Regencia de Cadix (1809-10) e dizia-se do Brazil que se o throno
viesse a pertencer a Carlota Joaquina, uma esquadra iria leval-a a
Hespanha, e essa solução teria «as vantagens de preparar e facilitar
a reunião das duas monarchias». (Off. no Conimbricense, n. 3664)
—Depois, na crise dynastica, determinada em Portugal pela morte
de D. João vi, voltavam os planos ibericos.
A ambos os pretendentes se attribue o pensamento de resolver,
por meio do iberismo, o problema em que se viam afflictos. (Port.,
seus gov. e dyn. op.)
Logo que a volta de D. Miguel em 28 levou Saldanha a emigrar, o
Cid portuguez escrevia de Londres para o Rio a D. Pedro excitando-
o, acenando-lhe com planos ibericos, conforme já vimos. (Liv. prim.
I, 3) Em 31, regressado D. Pedro á Europa, e emquanto não havia
ainda decisão assente sobre a marcha a seguir, Saldanha d’accordo
com o general Mina foi a Londres convidar o principe para a
empreza, a que Palmerston se teria opposto. (Carnota, Mem.)
Pensaria D. Pedro n’um imperio mais ou menos
napoleonicamente liberal, herdando Fernando vii e expulsando D.
Miguel? D’este, diz se, como já vimos, que no mais desesperado
momento da guerra teria pensado em correr sobre Madrid, ao tempo
quasi desguarnecida, tomal-a, e fazer causa commum com D.
Carlos, então a ponto de vencer.
Qualquer que seja o grau de verdade d’estas allegações, é facto
que, resolvida a questão dynastica em Portugal, vencedor o
liberalismo, a sua historia deploravel arraigou em muitos a opinião
unionista. Palmella toda a sua vida dizem ter affirmado que
«Portugal, depois da separação do Brazil, não tinha mais remedio
do que unir-se á Hespanha». Do lado opposto, vimos Passos
confessar na tribuna que o futuro nacional estava na união. A
opinião do duque de Palmella firmava-se naturalmente na historia do
paiz que vivera por quatro seculos da exploração de territorios
ultramarinos, e que desde 20 se achava reduzido ao canapé
europeu de D. João VI, porque o resto das suas colonias, armazem
de escravos apenas, de nada valia desde que o tráfico dos negros
era prohibido. As finanças nacionaes, exprimindo a ruina economica
portugueza, eram o commentario eloquente da doutrina e a causa
immediata mais grave das agitações da politica.
Chegaram as idéas de união a inspirar os actos das côrtes de
Lisboa e de Madrid? Querem alguns que sim: o futuro o dirá,
quando se poderem vêr os tombos das embaixadas e ministerios.
Como se sabe, Portugal, alliado á Hespanha pelo tratado de 34 que
expulsara D. Miguel, tinha mandado uma divisão com o conde das
Antas auxiliar Isabel II a expulsar D. Carlos. No theatro da guerra,
diz-se, o conde e o general Cordoba teriam projectado
combinações, que dos seus gabinetes faziam tambem Mendizabal e
o primeiro marido de D. Maria II. Esse principe morreu breve, mas a
nossa rainha casou-se logo, e em 38 já tinha os seus dois primeiros
filhos. Por casar ainda em 44 a rainha de Hespanha, accrescenta-se
que adquirira grande acceitação a idéa de um duplo enlace de
Isabel II com o herdeiro de Portugal, e de D. Luiz com a infanta
hespanhola. (Borrego, Hist. de una idea, ap. Rios, Mi mision, etc.) O
doutrinarismo vingou porém em Hespanha; Guizot casou a rainha
em 46, de modo a tornar provavel a successão de Montpensier ao
throno; esteve a ponto de haver uma guerra; e, dissipada a
esperança de enlaces dynasticos, veiu a intervenção hespanhola de
47 em Portugal terminar completamente este episodio da historia
moderna do iberismo. (Rios, Mision)
Os emigrados que, ás centenas, o doutrinarismo hespanhol
expulsava para Paris eram ibericos; e emquanto no exilio os
progressistas do reino visinho punham a união no seu programma,
em um canto afastado do mundo, em Macau, estava, consul pela
Hespanha na China, D. Sinibaldo de Más que converteu ao iberismo
o bispo portuguez. (Ibid.) Fôra isto em 50; e no anno seguinte deu-
se a Regeneração, cuja physionomia moderna o leitor conhece.
O escasso ou nenhum valor que o utilitarismo dá ás idéas, a
importancia exclusiva ligada ao fomento material estavam dizendo
que a união encontraria adeptos entre os moços. Não seria a visão
de um imperio poderoso, como o que D. João II planeara, como o
que enchia democraticamente os sonhos de Passos. Era a
demonstração rigorosa e exacta de quanto havia a ganhar,
apagando as linhas raianas, unificando a economia, subordinando a
rede da viação a vapor á geographia commercial da Peninsula, em
vez de a torturar por motivos politicos. «Fraternidade, Egualdade,
União, entre portuguezes e hespanhoes», trazia como epigraphe o
livro de D. Sinibaldo, traduzido em portuguez e prefaciado pelo
joven Latino Coelho. (A Iberia, por D. Sin. de Mas: tr. Lisboa 1853)
Os embaraços, com que então se luctava entre nós para levar a
cabo o caminho de ferro de Leste, eram o motivo immediato para
declarar urgente a união que agora procedia de razões economicas,
como se vê, sem se ligar a chimeras politicas, no genio de homens
que tinham o espirito afinado pelo tempo. D. Sinibaldo dizia que se
nós queriamos o caminho de ferro, adherissemos á união. Como?
De um modo pratico e simples: casando o rei portuguez com a
herdeira hespanhola, D. Pedro V com a princeza das Asturias,
«construir-se-ha o caminho de ferro a Badajoz». (Iberia) Fontes
passava por partidario d’esta combinação (Rios, Mision); e um dos
publicistas mais graves e entendidos escrevia assim: «O paiz menor
tem um varão reinante, o paiz maior tem uma princeza por
successor ao throno». (Cl. Ad. da Costa, Mem. sobre Portugal e a
Hespanha) Emquanto D. Sinibaldo se fixava mais sobre as
condições de politica internacional, sobre as opiniões da geração
nova, sobre as considerações de geographia commercial e politica,
determinando já a capital—Santarem—ao mesmo tempo que
desenhava a futura bandeira iberica quadricolor: Costa, o estatistico,
alinhavava os algarismos, multiplicava os calculos para demonstrar
as riquezas que nos viriam da união. Era um iberismo positivo,
pratico, regenerador.
Mas com este novo espirito portuguez tinha-se tambem insinuado
em Portugal um corpo de sentimentos modernos, ainda mal definido
em idéas, mixto de socialismo humanitario e republicanismo
cosmopolita, federalista: a atmosphera necessaria de idealismo que
alimentava o espirito dos moços, formando a vanguarda dos
partidos revolucionarios portuguezes de 51 a 68, forçando os
regeneradores a tornarem o Fomento solidario da Conservação.
Concebe-se facilmente como a semente do iberismo devia germinar
em um solo bem preparado pelas idéas cosmopolitas e
humanitarias, pois que estas idéas, em vez de penderem para o
lado dos antigos liberalismos, se alliavam á doutrina do fomento
economico eivada de socialismo, democratico e não cesarista. Além
d’isto o phenomeno singular do pessimismo portuguez, oriundo do
caracter apathico do povo, justificado pela historia, corroborado com
eloquencia pelas miserias presentes, conduziam a vanguarda da
geração nova a vêr na solução iberica a conclusão natural da
historia patria.
Latino, publicista imaginoso, artista nas idéas, no temperamento,
no estylo, apresentava no seu prologo á Iberia as opiniões vagas e
nebulosas da gente que, ligada partidariamente á Regeneração,
como José-Estevão se achava ainda, se não satisfazia já com o
mutismo politico regenerador. Latino via auroras para além do
zollverein peninsular. Não via Fontes «sobre a locomotiva o
progresso?» Mas o progresso do ministro era a riqueza apenas; e
as auroras do publicista eram a Humanidade, uma Republica
europêa, a Paz universal! «Se a federação europêa não é tão cedo
possivel, não será mesquinho o nosso desejo, se aspirarmos á
diminuição progressiva do numero dos Estados independentes.—A
peninsula iberica que já formou uma só nação pela conquista,
poderá, deverá ser um só paiz pela fusão espontanea». (Prol. da
Iberia, anon.) Era tambem a opinião de Cazal Ribeiro que
acclamava a Iberia, sob a fórma de uma republica federativa. (Rev.
lusit. maio 53) Era tambem a opinião do moço, mallogrado Nogueira,
(Fed. iberica, 54; ap Th. Braga Sol. pos. da pol. port.) que chorava
sentidamente a nossa dolorosa situação: «Minha pobre patria!
escuta a voz do ultimo e mais obscuro de teus filhos. Sacode essa
nuvem de harpias que especulam com a tua passada grandeza,
para se nutrirem em teu corpo extenuado! Quando volverem dias
mais auspiciosos lança-te resolutamente na vanguarda do
movimento peninsular, onde tu e os teus briosos companheiros tens
tudo a ganhar e nada a perder». (ap. Iberia, tr. port.) Tambem o
prologo da Iberia dizia: «Portugal, só, como está, desajudado,
moribundo, que poderá jámais tentar? Exhauriu-se de forças na
lucta: precisa que lhe injectem sangue novo. É, depois da Turquia, o
povo mais atrazado».
3.—O SOCIALISMO