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4.—A ORDEM
Por ora, não. O povo inteiro pronunciava os votos cada dia mais
formaes de uma abstenção decidida. Deixal-os, os politicos, fazer
systemas e revoluções, cartas, juntas, programmas, côrtes, leis;
deixal-os comer e engordar e devorarem-se: elles cançarão!
Já desanimados, tinham cançado Mousinho e Passos; mas havia
gente nova, para uma terceira investida, um terceiro liberalismo: a
Ordem. Mas como póde haver ordem nos factos, se as idéas são
uma desordem? Como conciliar as instituições e as idéas, quando
as primeiras, reconhecendo a aristocracia n’uma segunda camara,
a, theocracia n’uma religião d’Estado obedecem ainda ao
pensamento do primeiro romantismo, ou do tradição historica?
quando o segundo fez recuar essa tradição para o campo vago de
uma poesia, além de insufficiente para dar consistencia ao
organismo social, falsa e artificial, obra de litteratos, paixão de
archeologos e eruditos, inaccessivel ao povo? Como conciliar essas
instituições com o principio da soberania do individuo, já combinado
pela revolução com o da soberania do povo? e com o systema da
concorrencia livre, prejudicado pela revolução, tambem, com o
systema da protecção ás industrias? Essa ordem é um cháos, de
instituições e idéas. Já não ha, é claro, uma Anarchia systematica,
tal como a concebera Mousinho; mas em vez d’ella ha uma mistura
de elementos contradictorios, liberaes, democraticos, romanticos,
d’onde sae a supposta ordem da constituição de 38.
Assim, tambem, já não ha bandidos: os marechaes voltaram e
juraram; mas sob a paz apparente lavram os germens de novas
desordens. A anarchia fôra até 36 um systema. Agora pedia-se
ordem; mas as vida antiga ia continuar contra a vontade dos
homens já saciados, já desejosos de gozar em paz o fructo dos
seus trabalhos. Rodrigo apparecia á frente dos setembristas e
cartistas fusionados para o descanço: Rodrigo sceptico desde o
berço, mas talvez crente em que no scepticismo estivesse a
sabedoria, e por isso na constituição de 38 o porto desejado da vida
liberal.
Não, não podia ser: a confusão dos elementos não podia dar a
ordem nas instituições. Foi a rainha quem fez da Costa Cabral um
instrumento para restaurar a carta (1842), cudilhar Rodrigo e os
ordeiros fusionados, e os romanticos? Talvez fosse; talvez não
fosse: logo o vermos. Mas o facto é que o status quo não era viavel,
apezar das affirmações em contrario dos vencidos.
Palmella com o seu romantismo aristocratico pugnára pela
conservação de uma camara de pares vitalicia, hereditaria; mas a
revolução veiu e destruiu-a. Depois, em 38, o meio-termo creou a
camara dos senadores temporarios, electivos. É verdade que,
extincta ou protestante por miguelista, a antiga aristocracia não
podia preencher os lugares da camara; mas não é menos verdade
que um senado temporario e electivo só é viavel dentro de um
systema de representação de orgãos e classes da sociedade; sendo
uma chimera, um accessorio inutil, uma duplicação van (como agora
mesmo se vê em França), quando procede, como a camara-baixa,
do suffragio popular, directo ou indirecto.
A antiga aristocracia demittira-se, é verdade; mas a liberdade e a
concorrencia tinham creado um poder real e novo, uma plutocracia:
a classe dos burguezes ricos que não podiam deixar o seu poder, os
seus interesses, á mercê dos acasos das eleições; que não
pactuavam com o individualismo, nem com a democracia, querendo
para si o dominio seguro a que de facto lhes dava direito o seu
poder estavel. Derrubadas todas as authoridades em holocausto á
doutrina, só uma não podiam os doutrinarios destruir: o dinheiro. O
dinheiro, pois, creou para si uma doutrina nova, que teve por
defensor Costa-Cabral. Era um quarto, ou quinto liberalismo que
surgia e vencia todos os anteriores.
Guizot e Luiz-Philippe tiveram de fazer em França o mesmo que
D. Maria ii e Cabral fizeram cá. Aos burguezes diziam—enriquecei-
vos! e ás instituições e garantias reformavam-nas no sentido de
crear e consolidar a nova aristocracia dos ricos. Era uma fórma de
Ordem que escapou ás previsões dos romanticos: os seus medos e
coleras tinham-se voltado e consumido contra a democracia! O
inimigo surgia abruptamente d’onde o não esperavam, e bateu-os
com a maxima fortuna. Restaurou-se a carta, sem ser necessario
um tiro: é verdade tambem que da mesma fórma caíra em 10 de
setembro. Os romanticos sinceros, ingenuos, esperando a acção
dos meios moraes, esqueciam a força dos elementos positivos: a
ordem que tinham fundado era uma bola de sabão. Um sopro
desmanchou-a.
E assim devia ser tambem, perante a natureza das doutrinas. Pois
se a unica fonte da authoridade moral e politica era o individuo, pois
se a propriedade era a sagração de uma personalidade soberana,
onde se havia de ir buscar o mandato, senão á vontade da maioria?
como se havia de desconhecer a importancia suprema da riqueza?
Porque protestavam, pois, contra os setembristas, chamando
ignaras ás maiorias? e contra os cabralistas chamando nomes aos
argentarios? Ou o dominio do numero, ou o imperio do dinheiro: eis
ahi onde a liberdade conduzia fatalmente. Onde conduziria, senão á
affirmação de uma authoridade cega do numero ou das forças
brutas, a doutrina que negára a authoridade social em nome da
natureza do individuo?
Falhára a conclusão democratica; mas ia vencer a aristocracia
nova: assim terminavam no absolutismo illustrado os diversos
liberalismos.
NOTAS DE RODAPÉ: