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DISCURSOS

LAUDELINO FREIRE

PEDRO II
E A

ARTE NO BRASIL

DISCURSO DE RECEPÇÃO
NO

- INSTITUTO HISTÓRICO

„?

a a D RIO DE JANEIRO
IMPRENSA NACIONAL a 1917
PEDRO II E A ARTE NO BRASIL

discurso proferido em 30 de setembro


de 1916 na Escola Nacional de Bellas
c4rtes, por occasião do encerramento
das festas commemoratilas do primeiro
centenário artístico e da XXIV expo-
sição annual de bellas artes.

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Exmos. srs. Membros da Mesa (*)

Minhas senhoras, senhores:

Pedro II e a arte no Brasil -


eis o thema sobre que tenho a honra de
entreter-vos por algum tempo, em cumpri-
mento da. incumbência a mim comrnettida
e a que me não pude furtar, posto que nisso
tivesse insistido.
Meus agradecimentos ao erudito professor
Araújo Vianna e ao sr. Baptista da Costa, di-
rector dosta Casa, aos esforços de ambos os
quais deve a arte brasileira a brilhante com-
memoração do seu primeiro centenário.

(*) dr. Carlos Maximiliano, ministro da Jus-


tiça, dr. Homero Baptista, conde de Affonso
Celso, conselheiro Jo2o Alfredo, dr. Max Flciuss,
dr. Goulart cie Andrade, dr. Araújo Vianna, se-
nhora Julia Lopes de Almeida, dr. Souto Maior
e sr. J. Baptista.
Bom vedes, na breve epigraphe desta pa- vanta, entre os espíritos livres, as intelligcn-
lestra, que não venho fazer uma conferência cias que se não fecham e corações que não
sobre a personalidade de Pedro II, conside- batom aos impulsos embevecidos do radica-
rada nos múltiplos aspectos em que ella lismo político—essa consciência de to:los nós
poderá ser trazida ao tribunal da his- e, porque não dize-lo, da própria pátria, que
toria . começa a reconhecer no soberano desthro-
O assumpto, por" vasto, senão tambom as nado o espirito integrante da nacionalidade
circumstancias, excedem o momento. Apenas brasileira. E essa consciência, senhores, é a
á memória venerando, do excelso patriota, justiça da historia.
virei trazer... quô ? O tacto culminante da vida política do um
Que poderei trazer-lho? 1'alavras ungidas povo é, sem duvida, aquelle com que elle, nas
da mais profunda sinceridade, virtude que só energias latentes da própria raça o nas aspi-
se aninha nos corações reconhecidos ; reco- rações nascentes do espirito de nacionalidade,
nhecimento de ânimos agradecidos aos ser- sabe afíirmar e concretizar num facto, a sua
viços por elle prestados à cultura deste for- soberana vontade de existir com vida dis-
moso paiz; as mesmas homenagens, essas tincta, de viver livremente, dirigir-se por si,
flores e carinhos com que tendes, com que engrandecer-se com as próprias forças e no-
temos, todos nós, nestas festas do joeirar dos bilitar-so ao calor do próprio e não alheio
bons, exalçado a memória dos servidores das patriotismo.
letras e das artoi, outros tantos Mecenas, Quando um povo, doutrina Latino Coelho,
que aqui também souberam proteger os seus quando um povo intenta mostrar ao mundo
Horâcios e Vergilios; finalmente, virei de- quais são os títulos, que lhe asseguram o
positar no pedestal da sua grandeza e ma- direito á independência, não é apontando na
gnanimidade essa consciência que já se le- carta as suas fronteiras e allcgando a exis-
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pela mesma consciência, que em cada um se


tencia material, que pôde nos amigos excitar
lhe desperta no reconhecimento de que —
o respeito da sua liberdade e conter nos
«Esta é a ditosa pátria rainha amada».
cubiçosos os impulsos da ambição. Não lhe
Desde o momento em que o destino reuniu
basta ser apenas uma fortuita aggregação de
três raças, sob este céu brasileiro, dando-lhes
homens cousociados para mais commoJamonte
a finalidade de uma vida histórica, desde esse
subsistirem no estreito circulo de uma vida
sem nome e sem reflexo. E' preciso que na momento, pela contiguidade e continuidade
natural, começou a formação de um povo,
seiva da nação exista insuflado e vivacissimo
herdeiro das virtudes e vícios dos mesmos fa-
o bafejo, que um espirito alimentado de uma
ctores etn contacto.
idéa, de uma tradição e de uma gloria, lhe
Ao cabo de um desenvolvimento três vezes
esteja animando o corpo sem cessar. E' for-
secular—firma-se a unidade ethnica concre-
çoso que os seus feitos lhe assignalem lugar
tizada no typo brasileiro, já inteiramente in-
illustro no presente contubornio das nações, e
attestem que esse povo, cooperando efli- confundível e diferenciado das antigas raças
que o constituíram. E era essa raça que des-
cazmente naprogressão da humanidade, é
pontava DO campo da vida reclamando os seus
necessário ao concerto o harmonia do mundo
civilizado.
Já no limiar do século passado, como alvas
. direitos, propugaando pela igualdade das con-
dições naturaes, c por fim, almejando a in-
dependência para a sua pátria.
luminosas de uma aurora de liberdade, des-
pontara, com a raça e o instincto de nacio- Sobretudo era a liberdade a aspiração su-
nalidade, os primeiros clarões da indepen- prema do povo que no transcurso da sua vida
dência poliüca. de colônia, tão potentes affirmações houvera
Brasileiros, sentem todos a mesma intima dado do seu espirito de autonomia, desde a
solidariedade pelos seus destinos, unidos todos roacção valorosa contra o domínio hollandôs
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até os excessos de zelo patriótico revelados na Errado é o critério da posteridade, quando,


revolução de 1817, entremeados os dois acon- no fazer o seu julgamento, diminuo cs gran-
tecimentos pelas guerras civis dos mascates e des feitos dos patriotas, dos homens illustres,
emboabas e pela conspiração de que foram que foram os factores da historia, e desce a
principais protagonistas o Tiraderites, Cláudio, pesar-lhes as fraquezas o faltas, esquecendo
Ignacio Alvarenga e o cantor do Marilia de que não deixam de ser humanas as mais so-
Difceu. berbas frontes que se elevem porventura aos
Era um novo espirito, que despontava para laureis das coroas immortais.
a vida, symbolizando as mais altas e gloriosas Não vejo em D. Jofio VI o homem inculto c
aspirações, com a consciência de que «quando descuidado de si mesmo. Nello defronto coma
as naçõo.s teem apenas um organismo, sem ter personalidade de ura rei que se collocou á al-
o sopro e a inspiração, qoe o possa vivificar, tura do momento histórico; nelle vejo a pri-
quando são apenas corpo e não espirito, a am- meira figura do nosso alvorecer de vida autô-
bição dos estranhos potentados passa sobre noma o o primeiro que soube afagar a con-
ellas esmagando-as, como a charrua do agri- sciência nacional, que já no octonio de Nassau
cultoi 1 , ao abrir o sulco direito, vai trun- começara a despontar em busca da sua liber-
carido e escondendo as hervas humildes e ras- tação. Nelle vejo, finalmente, o factor que,
teiras». resumindo uma aspiração de três séculos,
Cora desprezo das restricções ou contro- preparou o advento da independência.
vérsias que se possam levantar em torno da Não procuro ver em Pedro I os deslizes
interpretação dos succcssos históricos — em e amores ardentes a damas e marquezas,
três nomes, tirante o patriarcha, está princi- e nem o quero como viandante de subter-
palmente resumida a obra da nossa iudo- râneos. Nelle quero o actor principal da
pendeucia. cpopéa brilhante da independência de um
U
da população tendiam a aííirrnar-se ; no
povo; aquella, para nós, fulgurante perso-
Ceará, onde Pinto Bandeira levantava o brado
nagem, de cujo peito partira o brado da nossa
de uma restauração impossível ; em Pernam-
primeira redcmpçao, no grito de INDEPEN-
buco, na Bahia, no Rio Grande do Sul. Na ca-
DÊNCIA OU MORTE; aquello, emfim, que,
pital do império.. .os assassinios eram diários,
diante da infidelidade das suas tropas, de-
a tropa insubordinava-se por qualquer coisa,
clarou:
os ódios de nacionalidade estuavam com vio-
«Não quero que ninguém se sacrifique por
lência. ..
rainha causa», e cora a larga visão do esta-
Acostumadas á vida isolada das colônias,
dista, soubera garantir o throno para seu
as velhas capitanias aspiravam separar-se
filho, ao mesmo tempo que abrira á vida po-
do grande todo e distribuir-se em pequenos
lítica brasileira, com a abdicação de 7 de
grupos, como a America Hespanhola. A si-
abril, a phase da integração nacional.
tuação afigurava-se tão grave, que mesmo
E' nesse instante que seu filho, sob tutela,
depois de tudo quanto se fizera por serena-la,
desponta na vida publica, para apenas pouco
os homens mais reflectidos só encontravam
tempo depois surgir coroado aos 15 annos de
um remédio—violar a Constituição e dar ao
idade-corôa que soube honrar até o momento
menino de 15 annos o que ella só concedia ao
em que lh'a arrancara o curso natural dos
maior de 18.»
acontecimentos sociais.
E o facto da maioridade condensa no mo-
Está no consenso de todos que, quando Pedro
mento o principio da salvação de uma nacio-
II recebera o throno, o paiz inteiro era um vul-
nalidade e dera ensejo de apresentar-se no
cão. Desencadeavam-se as revoltas e os motins.
scenario da historia uma raça capaz de se
«Houve-os no Amazonas, que queria se-
transformar num povo, integrado na sua
parar-so do Pará ; no Pará, no Maranhão, no
consciência moral, e apto a collocar-se no ca-
Piauhy, onde as diflerentes raças componentes
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itiiuho das suas legitimas aspirações, dos seus
pessoa do joven irnporantc o seu melhor c
diroifos o glorias. E para presidir a toda essa
mais prestirnoso protector e amigo.
grande obra de construcção agigantada, eis
A vida artística, que se começava a formar
que se nos depara, como emissário da pro-
com o aproveitar D. João VI as habilitações
videncia ou do destino—a figura de Pedro II,
de alguns artistas franceses que, como elle,
vulto á altura da grandeza moral do um
vieram ter ás nossas plagas, em virtude d:js
Marco Aurélio.
succossos políticos occorridos ern França, por
occasião de subir ao ihrono Luiz XVIII, movi-
menta-se auspiciosamente até 1830.
Mal empunhara D. Pedro o sccptro impe-
De Brct, Montigny, Lê fireton, Folix Emílio,
rial, a consciência se lhe despertara no reco-
Henriguo Silva e Porto-alogre são os prin-
nhecimento da importância do saber, quer
cipais factores deste curto mas brilhante
para o homem, quer para a colloctividade.
período.
Ao mesmo passo que se aperfeiçoava nos es-
Para logo, porém, á essa movimentação
tudos das línguas, na geographia, na historia
cm torno das artes nascentes, que &c vinha
religiosa, na mathematica, na literatura, nas
accerituandOjSe seguira um período de inteiro
scicncias naturais e na pintura, sob a di-
desanimo c amortecimento da eclosão ar-
recção do vários professores, entre os quais
tística .
figuraram—Roque Schuch, Fclix Emílio, bispo
No período da regência a arte ficara suflb-
de Chrysopolis, marqucz de Sapucahy, Ale-
cada e quasi privada do impulso bemfazente
xandre Vanelli o Simplicio de Sá, cuidava da
que lhe houveram imprimido os seus primeiros
iustrucção do seu povo.
servidores; e no que lhe concerne teve razão
Não somente as artes, senão também scien-
Port i-alegre em dizer que o que estava em
cias o letras desde logo começaram a ter na
andamento, parou.
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Só no anno da maioridadc ella se revigora. phael Mendes de Carvalho, ficando desde en-
Iniciarara-so então as exposições publicas e tão estabelecidos os concursos annuais para o
oíliciais e instituiram-se prêmios para os ex- prêmio de viage n á Europa.
positores que nellas mais só distinguissem. Em cada pensionista poder-se-ia affirmar
E não só fizeram esperar os salutares effeitos o apparecimento de um artista.
destas primeiras meiidas: — abre-se á vida Em Í8,'J2, o Governo ampliara para cinco o
artística um perioio do fecunda animação. prazo então de três annos concedido ao pen-
Realizaram-se annualmente exposições pu- sionista. Em 1854 fora collocada a pedra fun-
blicas e gerais até 1850, sem interrupção, damental da Pinacothcca imperial.
com a concorrência de artistas nacionais e A Academia sofírera reformas importantes,
estrangeiros, todos devidamente recompensa- dando-se-lhe, nos seus cursos, disposições
dos nos seus méritos. mais methodicas Fora instituído, na reforma
Alrnoida Torres, ministro do Império do ga- de 55, decretada pelo visconde de Bom Re-
binete de 2 de fevereiro de 1844, uccontuan- tiro, o ensino da historia das artes, esthetica
do as vantagens desses prnmios, disso que « a c archcologia.
Munificencia imperial galardoando com dis- A carreira das bcllas artes, como profissão
tincções os autores das principais obi'as que liberal, quasi ficara no mesmo plano» das de-
figuravam nas exposições annuais da Acade- mais.
mia de Bollas Artes, ia despertando entre os Os alumnos distinctos eram admittidos na
que as cultivam, salutar rivalizado, e estimu- Repartição de Obras Publicas, Casa da Moeda
lando os aluamos a se esforçarem para mere- e outros eslabolecimentos.
ce-las ». As excellcntes disposições do Governo, em
Em setembro de 1845 mandava o Governo prol da arte, concretizadas em uma seqüência
viajar c aperfeiçoar-se na Itália o pintor Ra- de benefícios reais, encontraram dedicados
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executores. A respeito de Felix Emílio Tau- fessores ao cumprimento dos seus devores, a
nay, a cujas mãos fora confiada a direcção da todos animando, suggcrindo idóas, dispen-
sando auxílios, dando conselhos e propondo
Academia pelo espaço de 17 annos, escrevera
medidas.
Pedro II :
Transposta a primeira metade do século, as
« Devo-lhe muitíssimo, principalmente quan-
artes plásticas, com o período de prepara-
to ao amor do bello c seu cultivo. »
ção que tinham tido, incremcntaram-se, en-
Porlo-alogro fora outro baíalhador infati-
trando na sua phase de desenvolvimento,
gavel pela formação do nosso rne'o artís-
sempre progressivo em todo o transcurso do
tico.
segundo império. Chegámos a ter pintores da
Serviu ás artes desde o começo da phaso
ordem de Pedro Américo, Victor Meirelles,
histórica, quando apenas era discípulo de
Zeferino, Duarte, Pedro Pores, Amoedo, Al-
Do Bret até mesmo depois de deixar o cargo
meida Júnior, Bcrnardelli, Decio, Aurélio,
de direcíor da Academia, por cujo progresso
Firmino Monteiro, Parreiras, Belmiro, Oscar
jamais se desinteressou. Neste ponto a sua
da Silva, Weingartner, além de dezenas de
acção se fez sentir de modo notável. Nenhum
outros bons cultores da grande arte; archi-
esforço poupou, cercando alumnos e artistas
tectos do valor de Jacintho Rebello, Betten-
de cuidados patcrnais, incutindo-lhes o ver-
courí da Silva; gravadores corno Silva Gomes,
dadeiro amor pelo estudo e preoccupando-se
Silva Santos, Gustavo de Faria; e eseulptores
de tudo quanto lhes dissesse respeito. Bondoso,
do mérito de Francisco Pamphiro, Chaves
mas severo, soube sempre collocar acima de
Pinheiro, Almeida Reis e Rodolpho Bernar-
tudo os interesses do ensino, bem pouco se lhe
dclli.
importando com quaisquer resentimentos que
A musica fora também cercada dos cuidados
porventura podesso provocar a sua acçao do
reais.
director. Prendia habilmente alumnos e pro-
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Criado o Observatório por Francisco Manoel, entrega dos prêmios escolares, e aos artistas
fora mais tarde reorganizado e tornado official. mais distinctos as latiroas conquistadas.
Temos uma pleiade brilhantíssima de cultores A Academia Imperial elevou-se á altura do
distinctos, honrando sobremodo a nossa cul- uma instituição modelar. Com o cunho de se-
tura musical. Bastaria cilar-vos da época os veridade, moralidade e harmonia da sua di-
nomes de Carlos Gomes o Henrique de Mes- recçao e corpo docente, tornara-se um verda-
quita. deiro centro de cultura. A sua administração
Pedro II dispensara cuidados especiais á fora confiada á autoridade da ordem do Felix.
Academia e ao Conservatório de Musica, que, Emílio, Porto-alegre, Thomaz Santos, Nicolau
sob seu governo, sempre estiveram anncxados. Tolentino, Moreira Maia o Maximiano Mafra,
Trazia-os sob a sua iramcdiata assistência, bondosos e illumiuados espíritos, que, irma-
preoccupando-se até corn as mínimas particu- nados no mesmo sentimento de amor patrió-
laridades que lhes dissessem respeito. Em tico, eíHcientemente concorreram para o on-
favor dos professores, como dos alumnos, grandocimento da nossa preparação artística..
suppria generosamente as deficiências rcgula- O mérito era devidamente reconhecido e
montares. Animava com a sua presança a galardca Io com estímulos c recompensas, dis-
todas as festas escolares que se realizavam. tribuídas mediante a criteriosa selccção d»
Assistia em pessoa a todas as solemnidades mais capaz. Os certamens, quer entre alurn-
trimensais de distribuição de prêmios aos nos, quer entre artistas, realizavam-se com
aluranos mais capazes bem como aos ccr- indefectível seriedade, e nelles somente eram
tamens annuais das exposições publicas. Era conferi los prêmios o distincçõos honoríficas,
bello o ver-se como a alma se lhe expandia em aos que realmente se revelassem merecedores.
effusões de alegria, quando elle próprio, com A tudo, finalmente, presidia, a autoridade
as suas augustas mãos, fazia aos alumnos a escrupulosamente severa de Pedro II.
Não se detinha, porém, o grande monarcha nos esse conjuncto de formosas telas ante as
em servir á arte, desenvolve-la, engrandeco-la quais o espirito vacilla em pronunciar-se en-
com os recursos c medidas officiais. Consul- tro o que de finamente delicado encontra no
tando o interesse do Estido, nem sempre era Descanço do modelo, e o do arrojado e
possível a dotação orçamentaria que seria grande na Partida da Monção. Não teríamos
mister. Então, a exponsas próprias, chamou Xeferino da Costa, nem Daniel Berárd.
a si a educação c formação do não pequeno Não teríamos emfim esse grupo numeroso
numero de artistas. de tão bons artistas, todos auxiliados e forma-
E para maior esplendor da sua bondade pa- dos pelo desvelado protector.
rece que a dádiva soberana presentia as apti- Não comprehendia Pedro II que a protecção
dões daqiiellcs que, nas envergaduras do gênio, do Estalo, senão também a que lhe cumpria
a tão grandes alturas sabe/iam alçar o enge- dispensar, se limitasse ao período de formação
nho e nome brasileiro. do artista.
«Sc não fosse o imperador, eu não seria Continuava a anima-lo, não só facilitando-
Carlos Goraes »; se não Fosse o imperador, di- lhe collocação e novos auxílios, como fazcn-
remos, não (criamos Pedro Américo — o que do-lhe encommondas de trabalhos, incum-
significaria não possuirmos essas obras que bindo-o de decorações e adquirindo-lhe as
para sempre hão de immortalizar a intelli- grandes obras pnra a Galeria Nacional. Nisto
gcncia dessa raça, e que na sua maior expres- está um dos traços inapagavois da sua grande
são se chamam — Guarany ou Batalha de dedicação e elevados propósitos.
Avahy. Aqui temos a nossa Pinacotheca publica,
Não teríamos Victor Meirelles seguindo ás por elle fundada e por olle mesmo enrique-
pegadas luminosas do seu emulo e irmão no cida das grandes obras, a que se alevantara,
gênio. Não teríamos Almeida Júnior dando- nos seus maiores vôos a arte nacional.
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O que nas mais subidas irradiações da ins- amor do espirito protector, que a trazia sob
piração, nos poude dar o pincel na arte de os seus patornais cuidados.
Appolles, ou o cinzol na arte de Phidias, aqui Senhores, não é dilficil a transição da arte
tendes n'A Batalha de Avahy ou na seclu- « que realiza no inundo sensível e exterior, o
ctora Carioca ; na Batalha dos Guararapes conceito subjectivo do bello » para a musica,
ou na formosa Moema; no Jugurtha na que agita todas as profundezas do ser, por
prisão ou no Retrato de Montigny, na Ma- emoções intraduziveis que nos elevam a essa
gnanimidade de Vieira; na Paizagem na transfusão de vida palpitante.
Itália ou no Obulo da Viuva ; na Elevação Na transparência de toda a sua inexcedivol
da Cruz ou na Iracema ; n'0 Ultimo Tamoyo magestade, sentado no seu throno de oiro e
ou no Descanço do modelo ; nas Exéquias luz, brilha e resplandece, como astro do pri-
de Atalá ou Exéquias de Camorini; nos meira magnitude na profundeza do céu bra-
Arrufos e nos Bandeirantes; c do outro sileiro, o iminortal cantor do Guarany.
modo, na allogoria do Parahyba, no busto Se as harmonias que lhe brotaram d'alma,
de João Caetano e na Faceira, no Martyrio não nas. podemos prende-las, arrancando-as
de S. Sebastião, ou no Christo e a adul- das alturas puríssimas a que se libou o gonio
tera. nas suas envergaduras criadoras — tenhamo-
A Pinacotheca também se enriquecera de las nas pinacothecas dos nossos corações, já
innumeros trabalhos de artistas estrangeiros, como affirmação do poder o força da nossa
quer mandados vir da Europa, quer directa- raça, senão também como balsamo ás vicissi-
mente adquiridos dos que até aqui vieram ter, tudes da vida, voltada para o ideal da arte e
ou aqui se domiciliaram. da natureza, ideal que não tem fôrma, mas
Seria impossível ciar-vos conta do toda a que é infinitamente superior á matéria.
riqueza que cila • possuo, accumulada pelo Elevara Pedro II de tal modo a cultura que,
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sem jactancia, mas com o orgulho sóbrio das officina do artista e com acclarnaçõcs deli-
coisas legitimamente conquistadas, nos pode- rantes conduz cm pallio pelas ruas de Flo-
remos julgar, em toda a America, o povo de rença o painel do mestre.
maior e mais bem apurado cultivo artístico. Não era outra a maneira por que se leva-
Da grande Republica norte-americana á Ar- va-n orn triumpho pelas ruas de Roma os
gentina, exercemos o primado no domínio das grandes cabos de guerra, que lhe augmcnta-
manifestações do bello. vam o poder sobre o mundo.
E se mais accentuado não fora elle, é que Não se detivora apenas no engrandecimento
ás bellas artes faltara a primeira e fundamen- da arte, o mecenato do generoso monarcha.
tal condição, que ó antes de tudo que o povo As letras e as sciencias mereceram-lhe não
as possa sentir com enthusiasmo. pequenos desvelos.
Ortóe quer que ellas tivessem attingido o Coincidira a regência, e logo em seguida o
mais alto grau, como na Grécia, ora porque inicio do seu reinado, com o surto da primei-
alli profundo fanatismo llies tributava o ra geração romântica. Era um grupo selecto
povo. de homens illustrcs, a cuja frente estavam
As glorias de Marathona e Salamina não se Monte Alverne, visconde de Araguaya, Porto-
sobrepunham ás obras primas dos grandes alegre, visconde de Porto Seguro, Macedo e
cultores. Gonçalves Dias. Da maioria delles, senão to-
O atheniense tanto estimava as glorias mar- dos, como de muitos outros, fora Pedro II
ciais quanto adorava as maravilhas do Par- amigo e protector. O seu patrocínio exer-
thnnão, a Minerva Colossal, o Apollo Pythico cera-se já pela amizade pessoal, já pela con-
e o Zeus Olympico. Na Itália apenas tinha o cessão de auxílios, empregos, honrarias e
grande Cimabuo concluído os últimos toques commissões. Constituira-se um centro per-
da sua Madona, o povo aíHuo em multidão á manente, de onde irradiava a bondade cm
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beneficio de todos os que, nobres pola con- vado reconhecimento pola prosperidade do
ducta, se revelavam dignos pelaintelligencia. nosso paiz devida á sabedoria, justiça e amor
Eram nelle instinctivos os rasgos de gene- ás instituições livres, que tão altamente bri-
rosidade em beneficio do quem os merecesse. lhara no Throno na Augusta Pessoa de Vossa
Dahi a lista sem conta dos escriptores de to- Magestade Imperial; é este nobre sentimento
dos os matizes, prosadores, romancistas, jor- que inspira a idéa de offcrecer e dedicará
nalistas e poetas, que devem as suas conquis- Vossa Majestade Imperial este meu trabalho
tas e a gloria dos seus nomes á rnunificencia literário, como um tributo espontâneo de
imperial. um subdito fiel ao melhor dos Monarehas.
Vivera o imperaute numa doce atraosphe- Vossa Majestade Imperial deseja ser amado
ra de reconhecimento e gratidão, cercado das pelas suas virtudes publicas e privadas, que
homenagens que lhe tributavam os seus sub- tanto edificam: e o Brasil todo o ama o o ad-
ditos, dos mais humildes aos de maior repre- mira. ..
sentação. A instrucção propagada e protegida, a com-
O visconde de Araguaya, que deve a publi- pleta liberdade da imprensa, a independência
cação do seu livro — A alma e o cérebro, á da tribuna, a tolerância dos cultos, os públicos
animação de Pedro II, que, por outro lado, empregos franqueados a todas as capacidades
lhe publicava em edição de luxo, o poema — c talentos, o dcsentravameiito do commercio;
A Confederação dos Tarnoyos — neste escre- todos estos grandes bens e os que dellcs ne-
vera: cessariamente se derivam, ahi estão para
«Não é um simples motivo de particular apresentar o Brasil como uma nação consti-
gratidão por especiais favores devidos á Vos- tuída segundo a dignidade da natureza hu-
sa Majestade Imperial, c sim um sentimento mana, e conforme os dictames da esclare-
mais patriótico de profunda admiração, e ele- cida razão e da boa política, e dar ao mesmo
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tempo de Vossa Majestade Imperial ao muudo O ensino publico era um dos objectos das
a idéa de um Príncipe perfeito, todo em- suas maiores preoccupações. Basta assigna-
penhado cm promover o bem do seu povo.» lar o cunho de moralidade e justiça que
Não ó dado vislumbrar nestas palavras, que elle soube imprimir aos concursos para o
condensam a formula habitual dos agradeci- provimento dos cargos no magistério, sendo
mentos, algo de insincero porventura pro- de admirar o seu espirito de tolerância ainda
duzido pelo espirito de aulicismo da época. mesmo para os candidatos republicanos.
Quando os sentimentos de gratidão ascendem Tinha a intima satisfação de aqui acolher
a alturas tais, é que os motivos que os ge- generosamente, fidalgamente os estrangeiros
raram não podem ser represados pela signi- de valor que visitavam o paiz, os quais sem-
ficação que tiveram e o effeito que produ- pre se fizeram amigos e admiradores seus.
ziram. Assim succedera com o príncipe Adalberto
Amigo e bom servidor de todos os homens da Prússia, em 1842, que escreveu :
notáveis do seu tempo — era também amigo e D. Pedro II tem um desenvolvimento e
bemfcitor de todas as associações scicntificas vigor muito notáveis para a sua idade...
e literárias. O Instituto Histórico e Googra- O seu maior prazer é adquirir toda sorte
phico Brasileiro, fundado ein 1838, sob o seu de conhecimentos. E' a historia o seu es-
patrocínio, por inicia:iva do visconde de tudo predilecto, mas também lhe prendem
S. Leopoldo; o Instituto da Ordem dos Advo- a attenção assumptos differentes, entre
gados ; a Sociedade de Geographia ; o Lyceu os quais a botânica. O joven soberano re-
de Artos e Oflicios; a Sociedade Propagadora vela grande talento para a arte, especial-
das Bellas Artes, que o tinha como o seu tnaior mente para a pintura, e a precocidade do
bemfeitor—todos delle tiveram concurso effl- seu caracter ahi se revela pelo interesse que
cacissimo. elle tem por tudo quanto é grande e nobre.
3
l
3S

Os assumptos preferidos pelo seu pincel, lhe dirigiram, que valem todos por uma
são os retratos dos grandes homens de gloriflcação.
Estado, celebres na historia, cujos exemplos « Alexandre Hcrculano, independente até á
elle deseja seguir. O Imperador offere- selvageria, tece-lhe louvores. Darwin declara
ceii-me da maneira mais graciosa, um re- que todos os sábios lhe devem o maior respei-
trato a óleo de Frederico, O Grande, pin- to. Lamartine colloca-o acima do grande Fre-
tado por sua magestade. Esta recordação derico. Miíre chama-lhe chefe de uma demo-
a-que dou o maior valor, é hoje o ornamento cracia coroada. Victor Hugo proclama-o neto
do meu salão de Monbijou, e ella me trará de Marco Aurélio, Gladstone aponta-o como mo-
sempre á lembrança o acolhimento afle- delo dos róis—benção o exemplo da sua raça. »
ctuoso que recebi do seu autor, tornan- Do visconde de Castilho, ouvi:
do-me tão agradável o tempo em que estive Se a fortuna um diadema em teu berço ha lançado,
na formosa terra do Brasil... Por fim, es- Desse dom casual não me atrai o esplendor;
Tens mais alto diadema, eterno conquistado;
creve o illustre viajante : — que felicidade Quem mede em Ti o Sábio, esquece o Imperador.
para esto bello paiz ser governado por um O mesmo diadema que brilha na fronte do
chefe que conhece tão bem os deveres da sábio, fulge em iguais scintillações na fronte
sua posição e que tão vivo desejo nutre de do estadista, que soube formar desta terra um
felicitar o seu povo. grande império, integra-lo, engrandeco-lo e
A sua vasta cultura e qualidades de sobe- torna-lo respeitado.
rano receberam de muitos outros sábios Realizara o monarchíi o vaticinio de Monte
iguais homenagens.
Alverne, quando numa soleinne acção de gra-
Pasteur, Agassiz, Jules Simon, Lesseps, Lon- ças, em 1833, previra :
gfellow, César Cantú, Humboldt, Lund, Aimé «O Brasil não perecerá, emquanto vir col-
Bonplant, além de outros, grandes elogios locado á sua frente um príncipe, que, conten-
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tan io o orgulho nacional, por ter nasci io Bra- mesmo Ímpeto e furor dosgran 'es furacões era
sileiro, promovendo a observância do pacto noites tenebrosas rie tempestade chr.mmcjante.
fun larnc.ntal, seguirá o impulso do sou século, Nesse momento do ovolver da nossa vida
e chamará sobre o paiz, que o viu nascer, as política, seria dado á própria lógica dos acon-
bênçãos, os applausos, a admiração da poste- tecimentos inquirir, como inquiria Pilatos no
ridade. » julgamento de Christo — Qwid enim mali f cit
Mas parece, senhores, « que aos laureis, de istc ?
que só tecem ;:s coroas immortais, já vêem Que mal fez clle ?
desde o p.-incipio entrciachadus os espinhos, Perraitti que vos traga á reminiscencia,
paru que as frentes, que se afiguram divinas nas phrases lapidares de insiçne estilista, a
*
pela glor.a, mostrem que são humanas pela lembrança desse momento supremo d t tragé-
dor. » dia divina, no qual a vida humana, já des-
Bem só não pôde comprehonder como ura ponta com osello indelével da dor e da justiça.
povo vive/ido nu prosperidade crescente das Contra Christo «crosce o coriflicto, acaslel-
suas uctividades, no gcso das liborda lês pubii- lam,-sc as ondas populares. Então o proconsul
cas e privadas, ampa/ado pela justiça de uma lhes pergunta: «Crucificareis o vosso rei V A
magistratura nobre, cercado do ré peito o sym- resposta da multidão em grita foi o raio, que
pathia das demais nacionalidades —- no soio desarmou as evasivas de Herodes: «Não co-
desse mesmo povo se formem o desenvolvam nhecemos outro rei, senão César». A esta
os elementos latentes na elaboração de uma palavra, o espectro de Tiberio se ergueu no
transformação radical da sua vida política. fundo da alma do governador da província
E' que a força do determinismo na historia, romana. O monstro d:i Gáprca, traído, consu-
ora tom essa inconsciencia collectiva, que es- mido pela febre, crivado de ulcoras, gafado
capa á explicação dos sociólogos, ora tem o de lepra, entrelinha em atrocidades os seus
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últimos dias. Trai-lo era perder-se. Incorrer fiem se tinham accendido as primeiras alvas
perante clle na simples suspeita de infideli- cio sol, cujos raios a podessem testemunhar.
dade era morrer. O escravo de César, apavo- Totrica escuridão, pavoroso instante de
rado, cedeu, lavando as mãos em presença do trevas no ambiente e nos corações. Dir-se-â
povo: « Sou innoconte do sangue deste justo ». que a scena era das que só se consummam
E entregou-o aos crucificadores. Eis como nas profundezas da noite tenebrosa.
procede a justiça, que se não compromctte. Ei-la dcscripta por testemunho pessoal:
A historia premiou dignamente esse modelo «Um côche negro, puxado a passo por dois
da suprema cobardia na justiça. Foi justa- cavallos, que se adiantavam de cabeça baixa,
mente sobre a cabeça do pusillanimo que como se dormissem andando. A' frente, duas
recaiu antas de tudo em perpetua infâmia o senhoras de negro, a pé, cobertas de véus,
sangue do justo ». como a buscar caminho para o triste vehiculo.
E muitas vezes é esta a justiça da historia. Fechando a marcha, um grupo de cavalleiros,
A manhã de 15 de novembro alvejara. que a perspectiva nocturna detalhava em ne-
Com a consciência do dever cumprido, de gro perfil. Divizavam-se vagamente, sobre o
animo forte, com a serenidade de um justo, grupo, os penachos vermelhos das barretinas
verdadeiramente olympico, na mudez da sua de cavallaria.
resignação, recebe PeJro II o choque da bru- O vagaroso comboio atravessou em linha
talidade dos acontecimentos que se desen- recta, do paço, em direcção ao molhe do cais
rolam e ei-lo compellido, ainda sob o fragor Pharoux.
procelloso dos successos, ao caminho do exílio. E' aqui o embarque ? perguntou timida-
A scena é triste e commoveute. Passa-se ás mente uma das senhoras. Um cavalleiro, que
três horas de uma madrugada, quando se não parecia offlcial, respondeu com um gesto largo
tinham ainda erguido os effluvios da alvorada, de braço e uma attenciosa inclinação do corpo.
40 , 41
l
/
Por meio dos l.impcões quo ladeiam a eu-j Pedro II manteve-se á altura do momento.
irada do molhe, passaram as senhoras. Se- Ferido pela gran !e dor de lhe não ter sido
guiu-as o cocho fechado. da Io o presidir a sua obra, até os instantes
Quasi na extremidade da amurada, o carro derradeiros da sua existência, jamais dos seus
parou e o sr. D. Pedro de Alcântara apeou- lábios saiu palavra amarga, queixa ou rocri-
se — um vulto indistincto, entre outros vultos minação. Na dureza do exílio, aos amigos fe-
distantes — para pizar pela ultima vez a ridos como elle, pelo destino, emprestava o
terra da pátria... calor das suas en.irgias moraes — « Consolom-
Dentro de poucos minutos, ouvia-se um li- se, como eu, dizia, procurando servir ao Bra-
geiro apito, echoava no mar o rumor igual sil em qualquerponto do mundo ».
da helice da lancha, reapparecia o clarão Emquanto Bis-narck, escreve o illustro
da illuminação interior do barco ; e, sem que dr. Aflbnso C:il-s;), omquanto Bismarck, o
se pudesse distinguir nem um só dos passa- apregoado hornem forte do século, cai Io de
geiros, a toda a força do vapor, o ruido da menos alto do que olle, offjrocia ao mundo o
helice e o clarão vermelho afastavam-se da dosconsolador espectaculo da desgraça sem
terra ». altivez, despeitada e trcfega, —elle, num os-
Afastava-se, sim, pela ultima vez desta tracismo mais c 'uel que o do estadista allemâo
terra quo olle tanto amara, a figura impo- baldo de recursos materiais, traído pelos
nente do seu grande servidor. E quando ao seus amigos do peito, repellido por um povo
singrar dos mares, essa figura de nós mais se em prol de cuja felicidade empenhara cin-
apartava, tanto mais em caracteres menos coenta aunos de dedicadi.ssimos esforços,—não
indecisos nos horizontes da pátria, uma inter- articulava uma exprob:ição, nem recriminava
rogação se desenhara, nas justas apprehen- ninguém, afrontai! Io o destino hostil com di-
sões pelos seus destinos. gni.iado invencível, — sublime rei Lear, —• a
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uem a ingratidão dos filhos longe de pertur- de grandes e pequenas desgraças que se haviam
bar, ou diminuir, exalçava cada vez mais as de succeder para, tornando-lhe mais trágico
tendências aflectivas e a razão». o epílogo da luminosa existência, cnvolve-lo
Vede na amargura destes versos a grandeza numa maior transparência do luz e lança-lo
do espirito, que se não conturbou, ante o com maior sympathia aos braços da poste-
grande infortúnio: ridade .
Se os homens lhe arrancaram a pátria,
Não maldigo o rigor de iníqua sorte, Deus lhe levara a esposa.
Por mais atroz que seja e sem piedade,
Arrancando-me o throno e a magestade, Perdoai, senhores, se porventura vos posso
Quando a dois passos só estou da morte !
tocar ás fib:*as do sentimento, trazunilo-vos
Do jogo das paixões minh'alma forte om linguagem simples e cornmoveiora esse
Conhece a fundo a triste realidade, novo aspecto de um soffrcr tão g -ande.
Pois, se agora nos da felicidade,
Amanhã tira o bem, que nos conforte. Divulgada a noticia de ter fallecido repen-
tinamente, no Gran lê Hotel 'o Porto, a ex-
Mas a dor que excrucia, a que maltrata,
A dor cruel que o animo deplora, imperatriz, nem um só instante se demora-
Que fere o coração e quasi o mata,
ram os senhores visconde da Ouri Preto e
l<r ver da jnüo fugir, â extrema hora, dr. Affonso Celso, amigos leais, em levar ao
A mesma bocca lisongeira e ingrata,
Que tantos beijos nolla poz outr'ora !
esposo succumbido o conforto da sua pre-
sença. Encontraram-no ainda de animo forte.
Que dor seria essa, tão grande, tão pro- Aqui estão palavras de Affonso Celso :
funda, a cujo peso não sobrevivera o animo Após uma pausa, perguntou o Imperador a
forte do esclarecido monarcha ? meu Pai :
Na via crucis a que fora lançado o coração « — E não pensa em regressar ao Brasil ? !
do patriota, ainda não ficara esgotada a serie — Estou banido, Senhor.
44 4S

- E'exacto... estamos... nem mo lem- tempo de desconforto e de reconhecimento,


brava, — concluiu com tristíssimo sorriso. fazendo com a mão, molhada de pranto, sen-
E, mudando de assumpto, discorreu sobre tido gosto de adeus.»
varias matérias, enumerando as curiosidades E o seu estro mais acrisolado pelo soffri-
do Porfo, indicando-nos o que de preferencia meuto recorda as tristezas tão sentidas de
deveríamos visitar. Não alludiu uma única sua alma :
vez á Imperatriz.
Corda que estala em harpa mal tangida,
Só quando, ao cabo de meia hora, nos re- Assim te vais, C doce companheira,
Da fortuna e do exilio verdadeira
tirávamos, observou baixinho : Metade de minh'alma entristecida!
— A câmara mortuaria é aqui ao lado.
Amanhã ás 8 horas ha missa de corpo presente.
Saimos. No corredor verifiquei que o meu Feriu-te a ingratidão no seu delírio,
Cahiste e eu fico só neste ahandono,
chapéo havia caido á entrada do aposento De teu sopulchro vaclllnntc cyrio.
imperial.
Voltei para apanha-lo e pela porta entra
aberta deparou-se-me tocanüssima scena. Porque tanto soffreu quem na vida só foi
Occullando o rosto com as mãos magras e pal- bom, justo, caridoso c bomfazojo, de cujas
lidas, o Imperador chorava. Por entre dedos mãos só caia o bem e de cuja alma irradiava
escorriam-lhe as lagrimas, deslizavam-lhe ao a bondade ?
longo da barba nivea o caiam sobre as es- E' que um manto de dor cobre a vida e a
trophes de Dante. historia é uma desgraça eterna.
Não tnB pude conter. Rompi também em
choro convulsivo. Sua Magestale descobriu a
face, envolveu-me num indizivel olhar, a um
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Senhores: quer aos que, maus patriotas, deslustram o


Como Sócrates, perante o seu tribunal, ideal republicano.
o ex-imperador do Brasil, poderia excla- Aos que em beneficio da prosperidade do
mar : Brasil comprehendem o alto alcance de se
« Se tudo se acaba, hade ser tão agradável « pregar á Republica o culto da justiça, como
descansar de todo, sem sonhos dos tão nume- o supremo elemento preservativo do regimen »
rosos trabalhos da vida! Se ha outra exis- impõe-se o imperioso dever de sagrar á me-
tência, que inoffavel prazer não terei em rnoria dos grandes bemfeitorcs da nacionali-
encontrar-me com os antigos sábios, reunindo dade o preito de justa admiração.
Para esses, para os que querem a pureza
me a tantas outras vicümas do julgamentos
iníquos e uma vez livre das vossas mãos com- da Republica e o seu engrandecimento, para
parecendo perante aquelles que com melhor esses espíritos rectos e probos e que se não

direito se chamam juizes l Por isto não mo desviam—é imprescindível obrigação arrancar
fica no espirito nenhum resentimento, nem de aos braços da historia o vulto moral de Pé.Iro
de Alcântara, «desfigurado pelos erros de
vós, nem de meus accusadores... E'tempo
uma longa tradicção falsa », e conserva-lo nos
de nos separarmos, eu para morrer e vós para
seus corações, apresentando o á mocidade,
viverdes. De quem é o melhor quinhão ? Só
Deus o sabe.» que ó a segurança dos dias de amanhã, como
O nome de Pé Iro II hoje excede a política. modelo da justiça, da tolerância, da bandade
E' balsão aureolado que descansa no pan- e do patriotismo.
theão das glorias nacionais. Não mais pôde Desejo a grandeza da Republica, que é a
abrigar aos que desestimam a Republica, quer grandeza da própria pátria. Quoro vê-la, na
aos que, fieis á sua excelsa memória, olham pratica incessante de todas as virtudes, como
anjo tutelar de todas as liberdades, de todos
para o passado, que não mais pode voltar,
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os progressos c da mais intangível morali- nossos, pertencem-nos, são parte preciosís-


dade. Quero vê-la elevar-sc ás alturas purís- sima do nosso patrimônio.
simas, Iv urir rias fontes divinas a inspiração E' um supremo legado da historia, que nos
do bem c conduzir este grandioso paiz pelo preparamos para receber.
caminho do dever e da honra, era busca dos E havemos de recobel-o, porque são nossos
seus altos destinos. esses dcspojos. (Applausos ruidosos e prolon-
Quero vê-la exaltar-sc por tal maneira, gados)
que a nlo possa attingir a exclamação per-
versa do m ao patriota, a phrase humilhante
do aventurei 'o, ou a apo;tropho da Londa
Civil endereçada á joven decaída, comqnarito
moça e lin Ia:
Inda mesmo Que Deus te mergulhasse
Na luz do abysmo, d'ond<! os sOes borbulham,
E a meus olhos sequiosos, que não choram,
Tc mostrasse lavada, branca, nua,
Eu diria ao meu Deus : tem lama ainda !

Senhores.
Conhecemos todos que era desejo do
Pedro (I repoisar a cabeça em terra bra-
silorn. E es e desejo o revelava, mandando
buscar ao Brasil um pouco de terra para ser
collucada em sou sepulcro.
Custa crer que ainda aqui não estejam os
restos mortais desse Brasileiro. Elles são
A PINTURA NO BRASIL

Discurso de recepção no Instituto His-


tórico e Geographico 'Brasileiro, em 14
de julho de 1917.
Exmo. sr. Presidente,

lllustres Consocios,

Minhas senhoras, senhores:

Não é sem o embaraço natural de quem se


sente superior ás suas deficiências, mas a
quem se lhe impõe o dever de revigorar-se
nas próprias responsabilidades que o oppri-
rnem—que venho dar-vos os meus agradeci-
mentos á immensidade do vosso gesto, trazen-
do-me até ás alturas deste doutíssimo cena-
culo.
Muito bem sinto as exigências desta tribuna,
tantas vezes illuminada pela palavra—já não
invoco a dos innumeros Brasileiros que por
aqui teem passado, realçando-a com o fulgor
das suas luzes — mas pela palavra autoriza-
dissima do vosso eminente orador perpetuo,
cujas scintillações de continuo nos envolvem
c deslumbram. A indulgência com que de O Instituto é seguro abrigo desse são patrio-
certo me ouvireis, não na vos exoro, porque tismo, tão necessário na hora presente, hau-
pretenda cingir-rae com attributo que me não rido nas crystallinas fontes do instincto de na-
caiba. cionalidade, factor de todo o ponto imprescin-
Obscuro professor, profissional sem valia, dível para uma completa integração, que nos
apenas trago como credencial, se alguma pos- dê a consciência de que o Brasil é dos seus
so ter, a de ser trabalhador de vontade firme, filhos. A arte é sem debate um processo dessa
que só só alista no grupo dos que se honram integração, por ser também formula de pa-
pela dignificação do esforço. No em tanto, vós triotismo. Formula de patriotismo por ser
não quizestes escutar á minha deficiência, e uma das faces dessa verdade immutavel e
aqui estou ao vosso lado, no mesmo empenho eterna, ha dois mil annos sentida e inquirida
bemfazejo. na scena do Pretorio.
O que sem duvida em mim quizestes pre- Infinda espiral do gênio humano, que tem a
miar foi o que se vos afigurou ter eu feito em sua origem nas necessidades mais profundas
prol da arte no Brasil. E' que vos não passa do espirito, volteando ab-clerno c desviando-
despercebido o trabalho, embora modesto, se sempre, vai-nos deixando, era seus lumino-
de quem quer que se volte com carinho sos segmentos, a visão das coisas, desde a de-
para as coisas da nossa historia. De modo que gradação animal do homem tcrciario até a
rnuito bem poderiois inscrever no pórtico des- consubstanciação de todos os esforços na con-
ta Casa legenda semelhante á que inscre- quista dos máximos esplendores da civiliza-
vera Platão no pórtico da sua Academia: ção contemporânea, que já offusca ao. próprio
«Aqui não entro quem não 1'ôr patriota ». gênio criador.
Sim. Aqui não entra quem não sentir o ver- A arte dá-nos fragmentos dessa espiral do
dadeiro culto de amor pelas coisas da pátria. luz, quando os espíritos privilegiados na tor-
56 S7

íura das emoções, sabem concretiza-los atra-1 dividual. Nasce, é certo, das profundezas do
vês da capacidade emotiva e do ambiente que espirito ; nasce com o homem para logo tor-
os inspira. Parcellas da verdade sentida; nar-se phenomeno social, sujeito, portanto, â
quando a buscamos nas manifestações collecti- influencia do meio, da raça e da cultura, dos
vás, nas energias da raça, nas aspirações da costumes e motivos que a suggerem.
nacionalidade, nas luctas pelos ideais, nas Em que momento da nossa historia teve a
manifestações da bondade e solidariedade en- pintura o seu primeiro surto? Como evolu-
tre os homens; verdade ainda dos quadros mo- cionou desde a primitiva graphica, a que
rais, como da paizagem do meio physico; em dera origem a apaixonada donzella, filha de
summa, de todaj as manifestações do senti- Debutados, para conservar a imagem do
mento, da intelligencia e liberdade de um noivo, até a pintura de Apellos na Aphrodita
povo. que surgiu das espumas brancas das vagas ?
No desejo de trazer-vos, á hora da minha Não ha cultura sem antecedente, porque
iuvestidura, pequena contribuição histórica não ha offeito sem causa. Toda civilização
sobre um dos mais importantes ramos das presuppõe uma origem ; todo progresso uma
taellas artes, não me será dado senão deter- phase anterior na evolução.
me em ponto de vista synthetico. Se no primeiro alvorecer da vida intelle-
Ha vaidade nossa quando nos arrogamos ctual não foram porventura nativas e au-
lalar na existência de uma pintura nacio- tóchtones as idéas iniciais, se não brotaram
nal ? Ou a que possuímos — não vai além dos espontâneas na gleba feracissima da Grécia
-vagos murmúrios e reflexos de alheias inspi- todas aqueüas mésses copiosas, ceifadas pela
rações aqui exiladas ? sciencia e pela arte, é que, apezar do seu
Tendo as suas origens nas fontes da vida — gênio criador, diz Latino Coelho, não podiam
a arte não só reveste apenas do caracter in- os hellenos operar um milagre histórico, o,
58 50

contradizendo as leis inelutaveis e severas da gem, nem foi berço da nossa formação ar-
progressão da humanidade, improvizar do tistica.
nada da sua agreste incultura primitiva um No decurso três vezes secular do trabalho
mundo do maravilhas na fantasia e na colonial, nem sequer vimos o germinar de
razão. qualquer semente que podesse ter sido lan-
A arte, para a sua verdadeira expansão, çada e permittisse o surto de uma arte qual-
precisa de uma raça que a entenda, de um quer, ainda que meramente rudimentar.
espirito que a sinta e de uma cultura que a Ouvi uma pagina de alta psychologia e
traduza. que para logo nos rovela a razão por que
Que tempo, no evolver da nossa vida histó- não trouxeram os portugueses para o Bra-
rica, foi preciso para a formação da unidade sil algo da cultura artística de que eram por-
na variedade ethnica, capaz de determinar tadores.
uma phase de progresso e servir de factor
básico á eclosão artística ? Ouvi a Ramalho Orügão:
Quanto de maior valor intellectual entrou «Para constituirmos duradouramente uma
na formação inicial da nacionalidade, tudo grande nação, isto é, para preponderarmos
devemos a Portugal, a quem coube papel por algum tempo ua direcção iutellectual do
preponderante no período de gestação da mundo, faltou-nos então, pela indisciplina do
fusão das raças primitivas. espirito, aquillo a que poderamos chamar a
Mas o brasileiro, no fazer o estudo da sua responsabilidade da gloria. O poder de que
embryologia social, recorrendo naturalmente nos investia o triumplio não o soubemos legi-
ao testemunho de historiadores insuspeitos timar com nenhum acto verdadeiramente
por sua nacionalidade, chega á conclusão de grande, tendente a tornar o mundo mais
que a velha mãi pátria não nos serviu de ori- bello, a vida mais digna, o homem mais forte,
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mais sábio ou mais justo. Criados nas guerras ( ) grupo numeroso dos seus grandes prosa-
das sortidas e da defesa dos burgos contra os dores e poetas, dos seus literatos, dos seus
Mouros e contra os Árabes, educados por sol- fidalgos e ecclesiasticos, os mais cultos — esse
dados grosseiros e por monges taciturnos, não grupo não era o que se contentava com sabor
conhecíamos as doçuras da arte nem as ale- comprar barato e vender caro, trampeando e
grias do amor... O valor com que domáramos mentindo. Era o escól daquella nacionalidade,
o oceano, o heroísmo com que entráramos na que tão capaz se mostrara para engrandecer
vida histórica, contribuindo para a civilização o uome de Portugal na civilização européa,
com o descobrimento de um novo mundo, de- quanto capaz seria para levar ás paragens
generara rapidamente em um egoísmo sór- estranhas, á sua grande colouia americana, o
dido. A índole aguerrida e aventurosa da raça culto do amor pelo sentimento do bello. A so-
fizera de nós um povo de descobridores. A po- ciedade da metrópole bifurcava-se, nes^e mo-
lítica monarchica e a educação fradesca con- mento histórico, em duas correntes perfeita-
verteram-nos em um povo de chatins, o qual, mente distinctas — uma que representava o
como diz Falcão de Rezende, se contentava espirito da renascença geral e florescimento
com saber comprar barato e vender caro, da cultura, voltada para os máximos resplen-
trampeando, enganando, jurando e men- dores do gênio e obra de Camões; outra que,
tindo. » não se importando com o Camões, se entre-
A pagina, senhores, é severa e injusta, se gara a empresas de além mar, movida por
generalizada a toda a nacionalidade lusitana; empenho de ordem puramente maíerial.
branda e profundamente verdadeira, se appli- A partilha que nos coube desse determi-
cada ao « vulgo vil sem nome », ao grosso dos uísmo histórico foi a peior. Ficámos com a
que se metteram nas aventuras e conquistas parte de gente que nos nSo podia trazer a
ultramarinas. capacidade artística.
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De outro lado, o elemento aborígene era o trazidos pelo príncipe Maurício de Nassau
gentio selvagem, homens broncos, sem sombra quando, em 1637, veio apossar-se da colônia
e visos de vontade e sentimento; e por ultimo, do norte do paiz, dos quais apenas sabemos
seria fantasia suppôr que o negro, mero os nomes de Frans Post, Zacharias Wagner
instrumento passivo da avareza e da cúbica, e Ekhout, este irmão de Gérbrandt, discí-
caldeando-se com os dois outros elementos, pulo de Rémbrandt.
podesse ser factor de eclosão artística. Os forasteiros hollandeses não encontraram
De tal fusão ethnica, evidentemente resul- terreno preparado e ambiente propicio para
tante de elementos imprestáveis, não poderia, germinarem. Tudo lhes fora esquivo e con-
para logo, derivar nenhum espirito capaz trario. Safaros o negro, o indígena e o por-
de cultura ideal. Isso, entre nós, só pode- tuguês da « cúbica dessas coisas ». E uma vez
ria ser formação do tempo e differenciaçao, expulsos, também expulsa ficara a arte pere-
como, em outros povos, fora principalmente grina, que, por accidente da historia, aqui
do lavor e aptidão da própria raça. tentara aninhar-se.
Assim fechados á possibilidade de uma flo- Perdido que foi esse ensejo em que, sob os
ração artística, momento houve, no emtanto, melhores auspícios, poderia ter despontado a
no segundo século da conquista, em que arte, outro não se nos deparou no transcurso
aqui poderiam ter ficado as primeiras se- da vida de colônia.
mentes. E' lendária por essa época a existência na
A quanto possam remontar as referencias Bahia, de um Euzebio de Mattos, como pintor
dos que do nosso passado se teem occupado é laureado. Se de facto existiu, o seu pincel e
hoje facto que se não pôde pôr em duvida, obra não transpuseram os tempos.
que os primeiros pintores que vieram ao A singular apparição da bisonha figura de
Brasil foram os seis pintores hollandeses h'ei Ricardo do Pilar, é outro episódio que
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não logrou sequer transformar-se em um ante- Sousa, Manoel da Cunha, Costa e Silva, José
cedente. Leandro, Brasiliense e Solano, nesta cidade.
Dão-lhe, é certo, virtudes morais de raros Que arte, porém, poderiam ter feito estes
encantos. Sob a sua sotaiua de monge sof- homens no meio inculto em que medraram ?
fredor o arredio das paixões mundanas, pul- As condições mesologicas do Brasil, no ter-
sava um coração de incomparavel bondade ceiro século da sua civilização, ainda não per-
que, unida á doçura da sua palavra, era o mittiam o surto de uma arte superior. No
allivio de quanto desgraçado se acercava do seio da sociedade em que elles viviam, for-
claustro de S. Bento. Posto que muito tivesse mada por um conjuncío de elementos ruins e
produzido segundo o testemunho de Porto- explorada pela ganância, crueldade, intriga
alegre, que salienta como a obra prima do c fcreza da época, seria inadmissível a exis-
frade benedictino a Imagem do Salvador, tência de grandes artislas. A arte que en-
pertencente áquelle mosteiro, nenhuma in- tão irrompera não podia deixar de ser aca-
fluencia exerceu. Não teve discípulos e por isso nhada, inferior, balda de inspiração. Era
não chegou a ser um precursor da pintura. principalmente o producto da fé religiosa,
Passou a vida dentro das quatro paredes do (|ue lhe determinara e traçara o circulo das
claustro a que se condemnara, entregue a um inspirações.
mysticismo mórbido, que de todo o afastara Fora áquelle reduzido grupo de medíocres
do convivio com os homens. Assim vivera pintores sacros, retratistas c decoradores que
trinta annos, vindo a fallecer em 1700. aqui viera encontrar a corte de D. João
Só na segunda metade do século XVIII e VI.
que surgiram os precursores. E estes foram O rei, querendo aproveitar a capacidade
—José Joaquim da Rocha com os seus discí- de artistas franceses que, como elle, fora-
pulos, na Bahia ; José de Oliveira, JoSo de gidos, vieram buscar asylo ás nossas plagas,
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e que lhe buscaram a sua real e graciosa pro- E tais foram as difflculdades para a rea-
tecção para serem empregados no ensino lização dos fins a que se obrigaram que só
das artes, criou, por decreto de 12 de agosto de dez annos mais tarde, a 2i> de novembro de
1816, a primeira escola de instrucção artís- 1826, ficara definitivamente installada a pri-
tica no Brasil. meira academia artística.
Houve por bem mandar que se lhes pa- Por essa época, do primitivo grupo apro-
gassem pensões que ainda, por effeito da sua veitado, que em começo se compunha de 11
real munificencia e paternal zelo pelo bem artistas, restavam apenas Grand Jean de Mon-
publico, lhes fizera mercê para a sua subsis- tigny e João Baptista De Bret.
tência, doterminaiido-lhes firmassem contracto E' na pessoa deste eminente artista que a
pelo tempo do seis annos, o que posterior- pintura brasileira entra na sua phase orgâ-
mente foi feito. nica, já hoje dividida em duas grandes épocas
Os termos do decreto real afastam desde —uma de formação e outra de desenvolvi-
logo a hypothese de terem sido mandados mento.
contractar no estrangeiro artistas que aqui vi- Da primeira, que se estende até 1860, foi
eram ter em virtude dos successos políticos elle o factor principal. Coube-lhe formar o
Decorridos em sua pátria por occasião de subir primeiro grupo de pintores nossos, que foram
ao throno Luiz XVIII. —Porto-alegre, Francisco Amaral, Francisco
Com o aproveitar-lhes as habilitações, de Sousa Lobo, Arruda, Carvalho dos Reis,
prestou D. João inolvidavel serviço á nossa Simplicio, Moreira e Affonso Falcoz. Em
cultura. julho de 1831, com a consciência do dever
E' facto que essa colônia de franceses, tão cumprido, regressou á pátria. Aqui, porém,
liberalmente aproveitados em prol da nossa deixara o seu grande esforço frutificando, e
nacionalidade, para logo entrou a desfazer-se. assegurada á cultura artística a continuidade
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necessária na pessoa dos discípulos, que mais bertar-se da estreita prcoccupação do estilo
tarde se fizeram mestres. decorativo e do gênero sacro, e em cujo tra-
De Brot leccionara a pintura histórica. Sc- balho não se deixara de fazer sentir a acção
cundara-o no magistério o vulto, por muitos de pintores estrangeiros, que aqui se vieram
títulos sympathico, do Felix Emílio Taunay, o domiciliar. Fordinando Krumoltz comnosco
secundo barão deste norne, a cargo de quem, convivera dez aunos, elevando a pintura do
desde 1824, ficara o ensino da paizagem. retrato; Júlio Lê Chevrel, por espaço de um
Da aci;ão inicial e conjuncta destes dois lustre cooperou esforçadamente para o des-
illustres artistas franceses, resultará a forma- envolvimento da pintura de gênero; Vinet,
ção, já cm nosso meio, de pintores, cujo me- nosso hospede de vinte anuos, foi um interpre-
recimento não pôde ser contestado. te fiel da natureza brasileira, em contraste
Entre estos cxcellem Augusto Muller e com a technica amaneirada, minuciosa, mas
Agostinho da Moita, os maiores artistas da todavia, inconfundível do seu emulo Facchi-
época de formação, seguiudo-se-lhes Corrêa netti; Baptista Boi-cly iniciara a pintura a
de Lima, Maximiano Mafra e Leão Falliére. pastel; e Henrique Flciuss, delicado aquare-
Augusto Muller, nome hoje injustamente lista, foi o grande propulsor das artes gra-
esquecido, foi o mais notável artista da sua phicas.
geração e um dos maiores pintores brasileiros. A despeito dos progressos da technica e da
A sua arte é larga o vigorosa. Juçrurtlta na evolução gradativa da pintura dos claustros e
prisão e o Retrato de Montigny, que fi- das igrejas, das irmandades e dos conventos
guram na Galeria Nacional, são disto com- para a pintura de todos os gêneros—faltava,
provação. comtudo, á arte a indispensável liberdade e,
Com estes primeiros artistas começara a consequentemente, um mais largo conceito
acccntuar-so a tendência da pintura para li- esthetico. Começava ella a expandir-se, é
70 7i

certo, mas detida nos círculos, que lhe traça- De um lado, a guerra do Paraguay, a ques-
ram a realeza e a igreja. Ao espirito áulico tão do elemento servil e a lucta religiosa aba-
que se impunha ao artista, seguia-se-lhe uma lam as consciências e agitam fortemente a
espécie de determinação tácita para que «não alma nacional; de outro chegam-nos os ecos da
ultrapassasse as raias de uma mediocridade guerra franco-prussiana, do advento da Repu-
discreta». blica em Hespanha, a queda do segundo Im-
Dahi a ausência, nos pintores da época, do pério napoloonico c imrnediata proclamação
que poderíamos chamar « o instincto de nacio- da Republica em França.
nalidade », único capaz de mover o artista, A vida literária attinge á phase brilhante
como representante da sua raça, a contrapor- da segunda geração romântica. Os poetas
se aos excessos do idealismo da sociedade do identificam-se, communicam-se com o meio
tempo e beber inspirações na harmonia da social em que florescem; e a sua poesia, un-
crença com o sentimento pátrio. gida de sinceridade, já é a expressão da alma
Tal fora a situação a que attingira a pintu- de um povo, ao cabo de três séculos de vida
ra até 1860. histórica e de algumas dezenas de annos de
Transposta a primeira metade do século, fir- vida autônoma.
mados estavam os factores fundamentais da Como a literatura, a pintura não poderia
vida constitucional do paiz—a independência, deixar de reflectir os salutares efleitos de
o throno e a ordem. O Brasil firmara-se na tão poderosos elementos de renovação, e nesse
poliüca, prosperara na sua economia e desen- ambiente de maior liberdade espiritual, em
volvera a sua cultura. mais dilatado campo de inspirações, entra a
Acontecimentos de varias ordens e de pro- desenvolver-se nas propicias condições que o
cedências internas e externas reflectem-se meio já lhe proporcionava.
sobre a nossa consciência. E é precisamente nesse momento histórico
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que nos apparoccm as figuras dominantes de cipulos que preparara e que vieram a formar
Victor Meirollos e Pedro Américo. as gerações de 79 e 84. A nenhum outro
Através do século decorrido—foram elles pintor foi dado exercer acção mais significa-
os que firmaram a época de verdadeiro des- tiva e preponderante.
envolvimento da pintura, ao mesmo passo A obra de Pedro Américo, porém, sobre-
que foram os seus maiores representantes. leva-se na unidade criadora das manifesta-
Iniciaram o que se poderia chamar a nacio- ções do gênio.
nalização da arte, passando a pintura a inspi- Em nenhum momento da nossa desenvo-
rar-se no sentimento das coisas pátrias e lução, tivera a pintura pincéis que a tradu-
embeber-se em motivos propriamente nacio- zissem com accentos de inspiração tão subida,
nais. Arrancaram-na dos laços em que a de mais nobre pensamento e superioridade de
detinha a estreiteza do meio e elevaram-na expressão. Se o sentimento, a correcçao es-
a concepções mais amplas e á cultura de thetica de cada um tem por vezes, uma
todos os gêneros. Revestiram-na de fôrmas feição especial, traduzindo-se na variedade
brilhantes e a souberam concretizar em telas dos themas, acçõos e episódios de que se
que nos honrariam em qualquer meio adian- occuparam, não raro a emoção os unificara
tado e culto. Por fim, emulos e competidores, no mesmo culto do amor cívico, do enthusi-
na verdadeira lucta artística, se tornaram os asmo pelos feitos da historia, pelas crenças
nossos maiores mestres. e lendas dos nossos homens e da nossa cul-
A influencia de Victor sobreexcede a de tura.
Américo no ministrar o preparo technico, na Não vos fatigarei com o estudar a signifi-
dedicação ao magistério, no esforço cm prol cação da obra de cada um destes do's gran-
da formação de uma escola brasileira, asse- des Brasileiros. Delia apenas vos procurarei
gurando a continuidade da cultura nos dis- transmittir a impressão da identidade de sen-
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timentos que os irmanara na criação da epo- Moema. Lamenta a desgraçada tanto amor
péa na pintura. tão mal correspondido, solta sentidissimas
As primeiras manifestações do talento de queixas, chama clamorosamente o esposo que
Victor Meirelles se concretizaram na Primeira lhe foge : entretanto... impellida de um zéfiro
missa no Brasil e na Moema, trabalhos de sereno, vai-se afastando a nau, que leva o in-
fina e apurada arte. A Primeira missa grato, seu único amor, alma da sua existência,
foi o primeiro quadro do pintor bra- ainda ha pouco tão doce: a infeliz, cega, louca
sileiro exposto no salão de Paris. Com a de amor e desespero, se arremessa ás ondas,
Moema, o autor conquistara a laurea do fonde-as impetuosamente, a paixão que a ar-
nosso salão de 66. rebata dá-lhe forças sobrehumanas, avizinha-
O então director da Academia, conselheiro se da nau, pôde emfim segurar-se ao leme,
Thomaz Gomes, em publica solemnidade se mas já exhausta, e quasi sem alento, com voz
lhe refere com grande carinho : intercortada, diz:
« Obra de maior valor... Desenho, colorido,
Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,
transparência aérea, effeitos de luz, perspe- Quando eu a fé rendia ao teu engano;
Nem me offenderas a escutar-me altivo,
ctiva, exacta imitação da natureza era seus Que é favor, dado a tempo, um desengano;
mais bellos aspectos, elevam essa composição 1'orém, deixando o coração captivo
Com fazer-te a meus rogos sempre humano,
magistral á categoria de original de grande Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu fino amor tão crua morte?
preço. O assumpto, todo nacional, é uma das
nossas lendas mais tocantes. Diogo, o Cara- 1'erde o lume dos olhos, pasma e treme,
1'allida a cor, o aspecto moribundo,
murú, regressa á Europa em uma nau fran- Com mSo já sem vigor, soltando o leme,
cesa, levando em sua companhia a esposa mais Hntre as salsas escumas desce ao fundo.
Mas na onda do mar, que irado freme,
amada, a formosa Paraguassú e abandonando Toríiando a apparecer desde o profundo :
« Ah Diogo cruel! », disse com magua,
a outra, que talvez o amasse mais, a bella 13, sem mais vista ser, sorveu-se nagua...
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O painel representa o final deste drama tão Por seu lado, Pedro Américo se estreava
pathetico, omittido pelo poeta; as ondas resti- nos mesmos vôos de inspiração fecunda o
tuem á terra o corpo gentil da i afortunada grandiosa.
Moema, que repousa sobre a areia de uma Pintando a Carioca, quando ainda não
praia orina e silenciosa. Tudo nolle respira tiuha os seus 21 annos completos, não quiz
melancolia, rnas tudo é suave e calmo ; o céu, nella deter-se em uma nova reproducção da
límpido e sereno, sereno como rosto da mu- belleza tradicional da arte,' não « violentando
lher que soffreu muito, e já se não queixa. a uympha grega », exilando-a dos valles da
Na superfície do mar apenas se entrevê brando Arcadia para as florestas e fontes da Gua-
movimento; leves crespos de água vêem lenta- nabara.
mente, como que receiosos, beijar a victima A nympha da Carioca é brasileira, e a sua
de tão malfadado amor ; não se atrevem, po- belleza a das nossas patrícias; a sua Ca-
rém, a faze-lo, e recuam sem toca-la : á di- rioca, aprecia um critico francez, a mãe
reita e não longe vê-se um bosquezinho de d'agua, a náiade, a suave filha das águas,
arbustos com mui pouca espessura, cujas ulti- do perfume e dos raios do sol americano, ó
mas ramas com difflculdade se deixam mover morena como uma audaluza, de cabellos
pelo sopro do terral; á esquerda e defronte, negros como a aza da tormenta e flanco
o mar tranquillo : a scena é illuminada pela avelludado, com ondulações da serpente c
claridade da manhã, tão branda e suave que graciosa virgindade das espaduas da onça in-
se harmoniza com a melancolia geral da com- domável. Antevê-se naquelles olhos fitos,
posição, e a torna mais sentida. Moema sella naquelles profundos olhos luminosos, o res-
a reputação do mestre, que despontara bri- plendor mysterioso do horizonte em noites de
lhante á sua estréa, na segunda missa cele- tempestade chammejante, e do negro abysmo
brada no Brasil. » do mar em cujo seio floresce o coral volu-
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ptuoso e a pérola se esconde na crystallina nas correntes do naturalismo darwinista,


crysalida. oppondo-se ao impenitente espiritualismo. Na
« Como são bellos, como são penetrante- sciencia, são accrescidos os novos cursos pro-
mente irresistíveis os contornos da náiade flssionaes das cadeiras referentes ás sciencias
brasileira, cuja pelle amorenada e rica de physicas e naíuraes; surgem os estudos ori-
um sangue virgem faz o effeito das lâmpadas ginais de anthropologia, archeologia, ethno-
de alabastro coradas pela rcstea da luz in- graphia e historia natural, pelos sábios La-
terior e viva!» cerda, Laclisláo Netto, Rodrigues Peixoto,
Como Victor, Pedro Américo transportou Ferreira Penua, Orville Derby, Ilart, Fritz
também para a tela o infortúnio de Moema, Müller. Ruy Barbosa surge no scenario do
rolando á flor das águas, em urna suave trans- pensamento bras^eiro, assombrando-nos já
parência de belleza e graça. com a vastidão da sua cultura,na introducção
Todas essas manifestações, porém, não do « Papa e o Concilio ». Na política, o ideal
eram senão prenuncios de uma arte mais republicano se consubstancia em um mani-
ampla e vigorosa, com que os dois gran- festo e se concretiza em um partido. A man-
des artistas haviam de perpetuar os acon- cha indelével da escravidão recebe o primeiro
tecimentos da historia, que já eram patente golpe com a áurea lei do ventre livre. No ro-
aíFirmação do nosso espirito de nacionalidade. mance, Machado de Assis, seguido de Taunay
Chegamos ao mais brilhante decennio, no e Fraaklin Tavora, succede a Alencar, Na
qual parece que todas as forças e energias, poesia, aos últimos e geniais representantes
até então latentes, se manifestam na mais do romantismo, Castro Alves, Fagundes Va-
alta expressão de vitalidade. rella e Tobias, succedem os primeiros cul-
Na philosophia, o visconde do Rio Grande tores do parnasianismo francez, que foram —
dá á publicidade o primeiro trabalho vazado Luiz Guimarães e Machado de Assis. O cantor
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immortal do Guarany firma-se nas scintilla-
biades dos braços do vicio — por uma py-
ções do seu geriio musical.
ramide de luz, cuja base assentasse na Ba-
Finalmetito, nas artes plásticas, 6 a pintura
talha de Avahy, e em cujo ápice brilhasse a
que se eleva ao esplendor e brilho desse de-
imagem seductora da Carioca brasileira — em
cennio, entrando num período de florescência
cada uma das faces luminosas do polye-
como jamais tivera attingido.
dro refulgiria o gênio do artista, cujo ad-
Victor e Américo, depois de terem pro-
mirável pincel houvera debuxado-— A Noite
duzido, o primeiro — O combate naval do
acompanhada dos gênios do amor e do
Riachuelo e a Passagem de Humaytá, e o
estudo, Judith e a cabeça de Holophernes,
segundo — O passo da Pátria e a Batalha de
Joanna d'Arc, O voto de Heloisa, A Virgem
Campo Grande, elevam a sua nobre arte á
Dolorosa, Moyses e Abisag, Jacobed le-
altura da Primeira batalha dos Guararapes
vando ao Nilo seu filho Moyses, Voltaire
e da Batalha de Avahy, as mais potentes
abençoando o filho de Franklin, a Procla-
manifestações, ainda hoje inexcedidas, da
mação da Independência, Visão de Hamleto,
nossa cultura artistica.
Paz e Concórdia.
O autor dos « Guararapes» proseguiu no ca-
A Batalha de Avahy e A Batalha dos
minho do verdadeiro fundador da pintura
Guararapes, foram apresentadas ao publico.
brasileira, chegando por fim, pouco antes
na exposição ofncial de 79, que, por isso, as-
de fallecer, a dar-nos os seus inolvidaveis
signala o momento culminante da evolução da
panoramas, através de inauditos esforços,
pintura.
cuja narrativa seria a de uma pequena tra-
A par dos dois eminentes artistas, outro
gédia .
mestre, com a alma aberta aos bons senti-
Imaginássemos representar a producçâo do
mentos, idealista dos mais accentuados e com
excelso autor do Sócrates afastando Alci-
esmerada educação do fino colorista, serve á
6—
82 83

arte de Apelles, elevando-a, por seu turno, segundo, bastaria para lhe ter firmado repu-
a essa transfusão e communicação de vida pal- tação a grande tela representando o Baile
pitante. da Ilha Fiscal.
Zeferino da Costa, depois do ter produzido Henrique Bernardelli c Daniel Berárd
— S. João Baptista no deserto, O obulo da entram de lança em riste para as conquistas
viuva e a Caridade, concentra a sua maior da grande ar to.
actividade na grande obra da Candelária e no No Norte, em Sergipe, a pintura eleva-se
formar discípulos, que se tornaram os repre- na palheta de lloracio Hora, produzindo tra-
sentantes das gerações que se succederam. balhos de admirável belleza, como Pery e
Faz-se também sentir no magistério a acção Cecy, A miséria e a Caridade.
áe Souza Lobo. Mas nos seus maiores traços, a pintura
Arscnio Silva traz-nos da Europa o segredo desce das epopéas das batalhas para inspirar-
de pintar gouaches, gênero então desconheci- se em assumptos de tocante serenidade, que
do no paiz. se espelha na Partida de Jacob, no Ultimo
Começam a vicejar os primeiros pintores Tamoyo, Jesus em Capharnaum c Narração
formados por Victor Meirelles, entre os quais de Philectas ; ou na simplicidade dos hábitos
sobresaem Augusto Duarte, Pedro Pores, e costumes da nossa terra, dos typos e as-
José Maria Medeiros, simples e retraídos, mas pectos do nosso meio, que se revelam no Der-
conscienciosos e delicados. Apparecem tam- rubador brasileiro, no Caipiras Negaceando,
bém os principais e mais directos discípulos no Caipira picando fumo, no Violeiro c na
de Pedro Américo—Decio Villares e Aurélio de Partida da Monção.
Figueiredo. Amoedo e Almeida Júnior, nas revelações
A pintura do primeiro prima pelo senti- do engenho artístico, que se lhes desabrocha,
mento poético, que é a sua nota pessoal; do com mais intenso brilho, na década de 80,
84 8S

são os continuadores das gloriosas tradições Dir-se-ia que ao pintar o Descanso do


dos dois dccennios anteriores. modelo o artista devessara um ponto no céo,
A bolleza moral dos sentimentos que se onde fora cmbebsr-se nas alturas puríssimas
possam traduzir no osculo materno, num para maior refracçao do seu gênio.
sonho de amor, no lyrismo bucólico, na pie- A pintura chega ao fim do segun Io Império,
dade christã e no sentimento vivo da poesia senão com o mosmo intenso brilho dos perío-
em seus aspectos mais sensíveis — eis o que dos anteriores, mas com exuberância relativa.
reçuma da obra de Amoodo, se tentássemos Se diminue o numero de finos espirites que a
traduzi-la numa synthesc. cultivem, paira ainda sobre eüa o espirito li-
De natureza tímida era o pintor predi- beral de Pedro II. trazendo-a sob a sua imme-
Iccto da Paulicóíi. — Modesto provinciano, diata assistência, de modo a dar-nos ainda
Almeida Júnior não quizera nem se preceupa- artistas da ordem de Belmiro de Almeida,
ra jamais de desligar-se dos hábitos c gestos Weingartner, Oscar da Silva, Gastagneto,
do caipira. No emtanto, nenhum pintor, mais Vasquoz, Caron e outros.
que elle, soube alçar-se á eminência do mo- E' a mesma época em que Antônio Parreiras
mento esthotico da sua época. A sua arte se inicia auspiciosamente na paisagem, sob
fora sempre inspirada pelo amor das coisas a segura orientação da pintura ao ar livre,
pátrias, especialmente da sua terra, e nesta aqui introduzida por Jorge Grirnm, para logo
orientação doixou-nos com admirável simpli- depois, tornando-se independente nos estudos,
cidade, obra imperccivel de belleza. Com que os fez por si, entrar a produzir uma obra
essa mesma simplicidade tratara de assum- na qual se não sabe o que mais possa impres-
ptos bíblicos, dando-nos o Remorso de Ju- sionar — se uma altíssima intelligencia, ou se
das e a Fuga da sacra família, obras de a audácia, o esforço e uma espantosa capaci-
mestre. dade de trabalho. Nelle se pôde dizer que o
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temperamento do artista excede a obra do não tivesse havido um cyclo de grandes paiza-
pintor. gistas. Sem apanharmos como factores os
Chegamos ao anuo de 89, o com elle che- pequenos artistas, todos proporcionalmente
gara a pintura a evidente grau de desenvolvi- iguais, como diria o próprio Taine — não
mento progressivo. Cultivaram-se todos os gê- houve da paizagem um cultor á altura do
neros. Do sacro ao nu ; do retrato ás batalhas; meio.
do.gênero histórico ao de natureza morta. Nascida tímida e sem vôos, embora mimosa
Como ultimo representante da cuidada e delicada, na palhcta"de Felix Emílio, poderia
cultura no Império, um pintor apparece que ter-se notavelmente desenvolvido com Agos-
se torna o nome representativo e de maior tinho da Motta, se os estos da sua capacidade
relevo da primeira geração que despontara artistica não tivessem sido represados por
na Republica. mórbido e enervante egoísmo.
Com Elyseu Visconti reveste-se a pintura Depois delle entrou a pintura na maior ex-
de uma expressão superiormente vigorosa, pansão de todos os gêneros, sem que, no mes-
em rasgos que transportam. mo pé destes, se ostentasse a paizagem. De
A natureza brasileira, no que ostenta de modo que, só tardiamente, e sem anteceden-
suggestivo e empolgante, de bello e maravi- tes que lhe trouxessem elementos vitais para
lhoso, não deveria deixar de produzir o paiza- a formação de uma individualidade, foi que
gista. Aqui, como em nenhuma outra parte, chegámos a ter um interprete no Sr. Baptista
deveria ter-se verificado o conceito de Taine da Costa.
— anaturcza faz o colorista ; o meio physico Mas, se consideramos a tautologia de uma
impõe ao artista os seus assumptos, aspectos technica que se reveste sempre dos mesmos
e colorido. Por isso ó estranho que no Brasil, tons, dos mesmos aspectos, dos mesmos ver-
no transcurso de todo um século de pintura, des, dos mesmos trechos, espanfamo-nos de
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vôr que na cultura da paizagera se não tenha e intelligeocia, sufficientes para nos darem
ainda verificado o conceito de Taine. a consciência de que somos um povo, dia a
Mal se começara a extinguir o impulso com- dia mais differenciado, em cujo seio pulsa o
municativo da cultura no Império, que che- sentimento da nacionalidade e apto a alimentar
glra a dar-nos não pequeno numero do bons o elevado interesse de se não confundir.
pintores, alguns dos quais de universal re- O vigor da intelligencia do typo derivado
nomo ; faltando-lhe, por outro lado, como temo-lo exuberante em qualquer ramo da
lhe tem faltado, o concurso do Estado que se actividade. Para somente me referir ás ma-
devera concretizar em uma real e efflciente nifestações da arte — ei-lo alçado ás grandes
protccção — a arte é hoje não desarvorada, alturas, dando-nos na musica um Carlos Go-
obediente á direcção de máo.s remadores que mes ou Josò Maurício, na poesia um Castro
a ciaram. Alves ou Gonçalves Dias, na pintura um Pe-
Inilhidivel é o seu declínio ao attingir o pri- dro Américo ou Victor Meirelles, e, por fim,
meiro marco secular da sua evolução. como expressão robustíssima da sua força,
Ha vinte annos ella decai. esse espirito illuminado, que se chama Ruy
E por quo esse estranho phenomeno re- Barbosa, na arte da linguagem escripta ou
gressivo, quando assegurado lhe devera estar o fallada, e em quem hoje se encarna o idioma,
necessário desenvolvimento na differenciação como Camões ou Vieira o condensaram no
da raça e no espirito que com ella brotou ? seu (empo.
Se é certo que da fusão primitiva dos ele- Mas então onde as causas da actual deca-
mentos ethnicos se derivara um typo com os dência da arte ?
caracteres pronunciados de palrador, iudo- E' que lhe falta o espirito protector de
lente e impulsivo, menos certo não será que quem, com inexcedivel empenho, velara, pro-
nelle predominam as qualidades de imaginação tegera e fizera a nossa educação artística ;
90 91

espirito bemfazejo, supplantado pelo desamor Um paiz que ainda tem como sobreviven-
actual. tes de uma extincta cultura artistas da ordem
Os Mecenas de então mediam-se pelos ful- de Rodolpho Amoedo, dos irmãos Bernardelli,
gores da intelligencia e pela extensão do sa- Visconti, Decio Villares, Belmiro e Parreiras,
ber; os de hoje medem-se pela bitola dos Ca- não precisa de pedir alheias inspirações. Basta
libans de Shakespeare. fazer passar longe dos domínios do templo de
A Republica ainda não nos deu um grande Apelles a cohorte dos menos capazes. E se tal
artista; e assim como vai não no-lo dará. nio fizermos, um decennio se não passará
O ensino cai de roldão. E' o próprio Go- sem que venhamos assistir a um naufrágio
verno quem já reconhece e proclama a ne- completo da arte no Brasil.
cessidade de batermos ás portas estranhas Pobre arte l Desventurada filha do mais
para importarmos professores. entrauhado desvelo de esclarecidos patriotas—
Pasmai: por quem esperas ? Que novo espirito, com
«Autorize o Congresso ao Executivo que azas de archanjo, poderá abrigar-te dos ven-
arranque da penúria artistas latinos, con- davaes que te açoitam e de novo illuminar-te
tractando-os por cinco anuos, com direito a o teu desejo de criação c a tua ascensão para-
renovar a obrigação, para ensinarem na Es- a luz ?
cola Nacional de Bellas Artes.» Espera. Os bons Mecenas ficaram na outra
Não ' pôde ser, não deve ser a alheia penú- margem do abysmo político.
ria que nos impõe essa necessidade. Tenho concluído». (Calorosos applausos.)
Ella nos é dictada por varias causas, dentre
as quais o injusto afastamento do magistério
artístico das nossas mais legitimas autoridades
tcchnicas.
ÍNDICE

Discurso sobre Pedro II e a arte no


Brasil 4 7
Discurso de recepção no Instituto His-
tórico 53

Rio de Janeiro — Imprensa Nacional —1917

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