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A Filosofia

do
Progresso

Pierre-Joseph Proudhon

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PREFÁCIO
A França exauriu os princípios que outrora a sustentavam. Sua consciência está
vazia, assim como sua razão. Todos os escritores famosos que ela produziu no último meio
século - os de Maistres, os Chateaubriands, os Lamennais, os de Bonalds, os Cousins, os
Guizots, os Lamartines, os Saint-Simons, os Michelets, católicos, ecléticos, economistas,
socialistas e membros do parlamento - não deixaram de prever esse colapso moral que,
graças à misericórdia de Deus, à tolice do homem e à necessidade das coisas, finalmente
chegou. Os filósofos da Alemanha ecoaram os profetas da França, já que finalmente o
destino de nossa pátria se tornou comum a todo o mundo; pois está escrito que, como a
sociedade francesa é, assim se tornará a raça humana.
A Igreja, que outrora nos vangloriamos de ser a mais antiga, não é mais nada além
de uma instituição de conveniência para nós, protegida mais pela polícia do que pela
simpatia. Retire o braço secular e o subsídio do Estado, e o que se tornaria daquela Igreja
Gálica, a glória da qual fazia Bossuet estremecer, a última fortaleza da cristandade, agora
caída aos ultramontanos? ...
Um homem, após ter lido a profissão de fé do vicário de Savoia, os sermões de
Robespierre, o Catecismo dos maçons, as Paroles d'un Croyant, as Lettres sur la Religion
de M. Enfantin, a Histoire de la Révolution de M. Bûchez e o preâmbulo da Constituição de
1848, poderia dizer a si mesmo: Há, neste país, a necessidade de um conselheiro da igreja,
e ela será satisfeita a qualquer preço. Tragam de volta os jesuítas! - É por isso que ainda
somos, depois de fevereiro, da religião de nossos pais.... Isso lhe faz murmurar: lhe é
repugnante que a religião de trinta milhões de almas, uma coisa tão santa, permaneça à
discrição de um chefe de Estado, ele mesmo perfeitamente desinteressado na questão. O
que você poderia ter feito melhor? Eu lhe darei uma centena de palpites.
A antiga monarquia poderia se comparar a um casamento contraído sob o regime de
propriedade conjunta, que, dado o desentendimento entre o casal, foi convertido em
casamento parafernal. Pensava-se que, se o marido fosse tornado o simples administrador
dos bens da esposa, a harmonia seria perfeita e imperturbável entre eles. Todo ano, com
grande pompa, o rei vinha apresentar suas contas à nação, que, por sua parte, através de
seus representantes, escusava o rei. Desse encontro cerimonioso e solene nasceu, da
maneira natural, a Lei, a terceira pessoa na trindade constitucional. Mas, quaisquer
precauções que fossem tomadas, o diálogo constantemente acabava em disputa. —Não é
este o caso, o homem obstinadamente insistia. A paz só pode existir no lar se a esposa
obedecer sem falar, e o marido falar por sinais. E, além disso, hoje de fato é apenas uma
questão de negociação! .... Agora estamos casados, como dizem nos subúrbios, no décimo
terceiro, morganaticamente.1
A democracia, como foi formulada pelos atos de 1793 e de 1848, sucumbiu à lógica
de sua aplicação. Quem ousaria afirmar hoje, no sentido da Réforme, a soberania popular,
o sufrágio universal e direto? Sete vezes em oito anos, as pessoas foram convocadas para
manifestar sua vontade, para agir como soberanas; sete vezes elas responderam, como
Thiers: O povo reina e não governa!

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Nota do Tradutor da Edição Inglesa: No décimo terceiro: isto é, "no décimo terceiro arrondissement
de Paris", que, antes de 1860, tinha apenas 12 arrondissements - isto é, falsamente casado, ou
"vivendo em pecado".

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A Burguesia! O que ela exigiu em 89? Sieyès o disse: Tudo! Ela não tentou
esconder isso. Uma vez que a aristocracia foi despojada, e os bens nacionais colocados à
venda, a burguesia gritou que a revolução estava realizada, que havia apenas anarquia
para além disso. Ela favoreceu todos os governos traidores, traindo no próprio ato de
preservar e estabelecer a ordem.... O que ela tem exigido desde 1830? Doações, prêmios,
posições, monopólios, privilégios, actions de jouissance, concessões, canais, minas e
ferrovias, ou seja, ainda e sempre: TUDO. Qualquer governo que seja dado a ela,
monarquia, república ou império, ela recebe com ambas as mãos. O povo não teria, exceto
por ela, o Direito ao trabalho, invocado pela primeira vez por um burguês de 89, Malouet.
Para melhor tomar posse de tudo, a burguesia toma crédito por uma ideia socialista, se
forma em companhias, se coloca sob a patronagem do Estado, que ela torna seu
organizador, contratante e fornecedor. Quanto a se produzir, através do trabalho e da
genialidade, da conquista agrícola, mercantil ou industrial, ela não se lembra mais como. O
mínimo empreendimento, para essa burguesia degenerada, parece uma revolução. Para
aplainar um montículo, ela tomaria a enxada emprestada do Estado. Apenas o tamanho das
anuidades não a assusta. Anuidades! Este é o seu Positivismo: ela o inventou antes de M.
Comte.
A Burguesia está doente de gras-fondu: enquanto instituição, ela deixou de existir
nas ordens política e social. No lugar dessa palavra, que ninguém mais ouve, colocou-se
capital, um termo de avareza, e, em oposição ao capital, um temo de inveja, o assalariado.
O assalariado é o nível revolucionário, inventado pelo capital. Essas duas palavras-chave
entraram na linguagem do povo. É por isso que nada está acabado! O capital, assim como
os salários, está, de agora em diante, à discrição dos príncipes; e, agora que o príncipe
toma emprestado toda a estabilidade do povo, não há nada estável, nem a religião, nem o
governo, nem o trabalho, nem a propriedade, nem a confiança.
Graças aos ecléticos modernos, não temos nenhuma filosofia. Graças aos novelistas
e aos românticos, estamos no fim da literatura. Os dançarinos nos produziram estatuário, e
os modistas, pintura. Hoje em dia, na pátria do bom gosto, fazemos livros, pinturas, estátuas
de mármore, da maneira que fazemos decorações de latão ou poltronas: artigos de Paris,
para exportação transatlântica.
Enquanto o trabalho na bolsa, organizado com privilégio, justifica a teoria dos MM.
Malthus e Dupin, e nos faz duvidar mais e mais da realidade de uma ciência econômica, a
prerrogativa central, sempre invasiva, esmaga as instituições, mina, modifica e revoga
incessantemente um sistema de leis que mal duraram cinquenta anos! A justiça, cega pelo
comércio, não sabe de nada do que acontece na Bolsa e, se o soubesse, não poderia fazer
nada. Enquanto javalis e ursos selvagens devastam os campos da nação, ela caça sapos e
lagartos. Mais inepta ainda, a propriedade aplaude o despotismo e, a salvo de insultos
vindos de baixo, acredita que nenhum decreto vindo de cima pode lhe aguardar. Ha, ha!
Vocês esmagaram a anarquia; vocês terão o Estado em toda sua glória.
Atingidos no coração, os antigos partidos dinásticos perderam, junto com a
compreensão dos fatos, uma consciência de sua posição: tão irritados contra o golpe de 2
de dezembro que eles se arrependem não ter dado o golpe eles mesmos. O mesmo frenesi
de absolutismo os possui: eles acreditam, por conta dessa inveja do comércio, inspirar no
povo uma inveja dos ricos?
O que! Bourbon, filho mais velho da França, você ainda nutre um rancor contra a
Revolução! Você não foi capaz de se reconciliar com 89! Aquela brava burguesia lhe deixa
com medo: Mounier lhe parece vermelho, Mirabeau, um terrorista, Chateaubriand, um ateu!
Tão hostil à carta quanto seu avô, é ainda no lit de justice de 23 de junho de 1789 que se

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extrai de você a esperança de uma terceira restauração! Você sabe disso, no entanto; seu
senhor Henri IV se tornou rei da França por um traço da mente: Paris é bem digna de uma
missa, ele disse. Ele pensava esse tanto sobre a pregação. Você não acredita que Paris
também seja bem digna de liberdade? ...
E vocês, senhores de Orleans, que deveriam ter sido para a França, de acordo com
a frase de Lafayette, a melhor das repúblicas; tão-somente vocês que a burguesia não
restaurará, vocês não têm uma única palavra para o pobre trabalhador? O socialismo
nasceu sob seu pai: o velho rei teria sido muito feliz, se tivesse jogado ao diabo os 150
milhões para suas fortalezas! Existe, então, também uma incompatibilidade entre seu título
e nossas aspirações? Ouça a oferta popular: Vinte-e-cinco milhões! Vós não sois vexados
nem um pouco por isso?
Não falemos dos republicanos. Sabe-se, ai de mim!, que a adversidade não
desencorajou seu respeito pela lei, que nunca terá havido nada entre eles além de crianças
perdidas que tomam, por grito de guerra, a ditadura, com Pompeu, em vez de César, como
ditador.
A França acredita apenas na força, obedece apenas a instintos. Ela não tem mais
indignação; parece ter achado por bem não pensar. Que povo, que governo! O poder, que
nenhuma inspiração do país ilumina, não retorna, por sua vez, qualquer ideia ao país. Ele
avança conforme as mesas viram, sem impulso visível: pode-se defini-lo como uma
espontaneidade. Assim se vê após as grandes crises, o horror das discussões e sistemas
se torna tal que governados e governantes, partidos vencidos e vencedores, todos, de novo
e de novo, fecham seus olhos, cobrem suas orelhas, à mera aparição de uma ideia.
Superstição e suicídio: essas duas grandes palavras resumem o estado moral e intelectual
das massas. A direção dos negócios está na mão dos profissionais e é para os homens de
ação; esperem um pouco mais os ideólogos! Fala-se do isolamento do atual poder em meio
a populações silenciosas: o fato é que as populações não têm nada a dizer ao poder. Elas
devolvem a ele seu lugar nos céus; elas acreditam em sua vocação, em sua predestinação,
assim como acreditam nele em si. Que ele fale, e suas palavras serão tomadas como lei. Ita
jus esto! disseram os plebeus latinos. La révolution protege seus amados: esta é a verdade
sobre as comunicações entre o país e o governo. O alvorecer virá logo? Não sabemos nada
sobre isso, mas não duvidamos.
A política externa é como a opinião doméstica. Ela busca a si mesma, aguardando o
golpe do destino, escrevendo notas que seriam chamadas de carentes de boa-fé, se não
fossem totalmente sem sentido. Os poderes signatários do tratado de Vestefália e da
Sagrada Aliança não mais acreditam no equilíbrio europeu. Contra o ocidente em revolução,
eles invocam o barbarismo oriental, a guerra das raças, a absorção de nacionalidades.
Polônia, não mais! Itália, não mais! Hungria, não mais! Turquia, não mais, em breve! Eles
não disseram, em um sussurro: França, não mais! Ó, toque do sino de 92! ... A diplomacia
vai como a especulação e a estação. Encorajado pela chuva, o czar faz um gesto para o
imperador, que o recusa: fogo montado para a cara do soldado. Mas ele, olho fixo na mão
da Bolsa, talvez ele espere pela hora soar sobre o chauvinismo do burguês.
O papado, contudo, acredita ter se retornado aos seus dias bons - não aos dias de
Leão X, mas àqueles de Inocêncio III. Sonha com inquisição e cruzada. A expedição de
Roma contra os democratas não é suficiente para ele, ele exige uma expedição a
Jerusalém contra os muçulmanos e os gregos. É por esta razão que ele ventila, como uma
chama, a questão dos locais sagrados: Avante, Gália e Francos! Não estaríamos surpresos
se esta raça de lutadores começasse a gritar, como no passado: Deus o quer. Distribua a
eles, Pai Sagrado, seus escapulários e seus rosários: eles não trarão relíquias de volta para

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você. Reina por toda a Europa uma sombra solene, similar à escuridão com a qual os
oráculos eram cercados, nas profundezas de seus bosques de carvalhos e em suas
cavernas. Tome cuidado, Napoleão! Preparem-se, Guillaume, Ferdinand, Nicolas, toda a
companhia dos coroados! E vocês, papas e pontífices, preparem seu Kyrie eleison e seu
Requiem. Pois o espírito das nações não mais habita as tribunas; ele deixou a boca do
orador e a pena do escritor. Ele marcha com o soldado, carregado como um resplendor na
ponta de sua baioneta.
Contudo, é certo que o discurso francês, inaugurado pela antiga monarquia, não
pode perecer, não mais do que a nação pode subsistir sem unidade e sem direito.
É certo que a democracia, que não é nada mais, afinal, do que o partido do
movimento e da liberdade, não pode ser apagada da história pelas aberrações e
ingenuidade de 1848.
É certo que a burguesia tinha uma missão política e social a cumprir em relação ao
proletariado. Você preferiria, deixando a César o cuidado de nutrir os eleitores de César,
eternalizar, por seu egoísmo, o poder de uma multidão retrógrada e destituir os países de
suas liberdades?
É certo, finalmente, que a Europa é uma federação de estados tornados solidários
por seus interesses e que, nessa federação, inevitavelmente acarretada pelo
desenvolvimento do comércio e da indústria, a prioridade e a predominância da iniciativa
pertencem ao oeste. Essa predominância - obtida por Luís XIV e Napoleão, na medida em
que agiram, o primeiro em nome do princípio das nacionalidades postulado por Henrique IV
e Richelieu, o segundo em nome da Revolução Francesa, no interesse de nossa
preservação, muito mais do que naquele de nossa glória - nos ordena que a aproveitemos
uma vez mais. Deveríamos, para este fim, proceder pela estrada da conquista ou aquela da
influência? O chefe do estado francês deveria ser o presidente da república europeia, ou
você prefere permitir que ele persiga a oportunidade de ser seu monarca, ao risco de uma
terceira invasão e a rendição da pátria? ...
O que estou dizendo? Se há uma coisa óbvia para todo observador, é que a França
lucra neste momento apenas pelas próprias ideias que ela tem proscrevido; é que a
civilização moderna, fervendo com tradições e exemplos, está irrevogavelmente
comprometida com o caminho da revolução, onde nem precedentes históricos, nem a lei
escrita, nem a fé estabelecida podem guiá-la mais.
Desta forma, é necessário que realistas e democratas, burgueses e proletários,
franceses, alemães e eslavos ponham-se a buscar os princípios desconhecidos que os
governam. É necessário substituir as fórmulas empíricas de 1648, 1789, 1814 e 1848, por
uma ideia, anterior e superior, que não teria nada a temer dos sofismas diplomáticos e
parlamentares, das falhas burguesas e das alucinações plebeias. É necessário, a
humanidade aspirando saber e não sendo capaz de acreditar, determinar a priori sua rota,
escrever a história antes que os fatos sejam realizados! Queremos ser governados pela
ciência, ou abandonados à fatalidade?
Toda era é governada por uma ideia, que é expressa em uma literatura,
desenvolvida em uma filosofia e incorporada, se necessário for, em um governo. Houve, no
pensamento secreto de 1848, assim como naquele de 1793, 1814 e 1830, a coisa de uma
democracia, de uma dinastia talvez: esse pensamento tem sido desprezado... como uma
pedra angular cortada por maus pedreiros. Não deixaremos de reproduzi-lo, e qualquer que
venha a ser o porta-estandarte dos destinos franceses, príncipe ou tribuna, nós o
proclamamos, com uma fé e energia crescentes: É por este sinal que vós triunfareis!
Já se disse: O que se publica na presente situação?

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Eis aqui a situação: nossa tarefa é enfrentar, através da reflexão, a necessidade de
coisas; é começar novamente nossa educação social e intelectual; e, como um partido
fundado na própria natureza da mente humana não pode perecer, é dar à democracia a
ideia e a bandeira de que ela carece.
Até agora, a democracia seguiu as formas do governo monárquico, da política
monárquica e da economia monárquica. É por isto que a democracia sempre foi apenas
uma ficção, incapaz de se constituir. É hora de ela aprender a pensar por si mesma; de ela
postular o princípio que é próprio dela e, ao se afirmar de uma maneira positiva, de ela levar
a termo o sistema de ideias sociais.
As duas cartas que vocês lerão foram escritas no fim de 1851. Elas deveriam ter
aparecido na La Presse, em resposta às questões de um crítico instruído. M. ROMAIN-
CORNUT, quando o golpe de 2 de dezembro ocorreu. - Elas podem ser consideradas como a
profissão de fé filosófica e social do autor.
Nada persiste, disseram os antigos sábios: tudo muda, tudo flui, tudo devém;
consequentemente, tudo permanece e tudo está conectado; por consequência adicional,
todo o universo é oposição, balanço, equilíbrio. Não há nada, nem fora, nem dentro, à parte
da dança eterna; e o ritmo que a comanda, pura forma da existência, ideia suprema à qual
qualquer realidade pode responder, é a concepção mais elevada que a razão pode
alcançar.
Como, então, as coisas estão conectadas e são engendradas? Como os seres são
produzidos e como eles desaparecem? Como a sociedade e a natureza são transformadas?
Este é o único objeto da ciência.
A noção de Progresso, levada a todas as esferas da consciência e da compreensão,
se torna a base da razão prática e especulativa, deve renovar todo o sistema de
conhecimento humano, expurgar a mente de seus últimos preconceitos, substituir as
constituições e os catecismos nas relações sociais, ensinar ao homem tudo que ele pode
legitimamente saber, fazer, esperar e temer: o valor de suas ideias, a definição de seus
direitos, a regra de suas ações, o propósito de sua existência...
A teoria do Progresso é o trilho da liberdade.
Antes de publicar, com a procissão de provas que é necessária, o conjunto de
nossas visões sobre essas elevadas questões, pensamos necessário consultar o público e
nossos amigos sobre a sequência a ser dada a nossas pesquisas. Ousamos esperar que a
crítica não faltará para esta primeira amostra: estaremos felizes se, informados por
conselhos salutares, formos capazes de levantar um canto do véu que rouba de nós a
luz! ....
__________

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A FILOSOFIA

DO PROGRESSO

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Usus et impigrae simul experientia mentis


Paulatim docuit pedetemptim progredientis.
LUCRETIUS, De rerum natura.

PRIMEIRA CARTA

DA IDEIA DO PROGRESSO
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Sainte-Pélagie, 26 de novembro de 1851

SENHOR,
Antes de reportar ao público acerca de minhas várias publicações, você deseja, para
maior exatidão, perguntar-me como eu vislumbro o todo, como eu entendo a unidade e as
conexões.
Este desejo de sua parte, senhor, não poderia ser mais legítimo, e a questão é tão
justa quanto é razoável. Não há nenhuma doutrina onde não haja unidade, e eu não
mereceria uma hora de investigação, como pensador ou como revolucionário, se não
houvesse algo, na multidão de proposições, que às vezes são muito díspares, que eu já,
cada uma por seu turno, sustentei e neguei, algo que as conecte e forme a partir delas um
corpo de doutrina. Em tempos passados, perguntava-se a um homem que vagava longe de
sua casa: Qual é o seu Deus? Qual é sua religião? .... É o mínimo que se poderia exigir de
um recém-chegado, saber qual, em última instância, é seu princípio.
Eu não sei como lhe agradecer o suficiente, senhor, por essa elevada
imparcialidade, por essa boa fé na crítica, que o faz buscar, antes de tudo o mais, não a
fraqueza do escrito - que é apenas muito aparente - mas seu verdadeiro pensamento, o
valor exato de suas afirmações. Em todas as operações judiciais é necessário, antes de
pronunciar a sentença, ouvir o réu: o mais justo julgamento é aquele que resulta do
testemunho e das confissões do acusado.
Eu vou, senhor, tentar satisfazer sua exigência ou, melhor, vou me entregar, de
mãos e pés amarrados, à sua justiça, apresentando a você aqui, não uma defesa, mas uma
confissão geral. Tome-me, então, se puder, pelo meu testemunho. Não terei o direito de
apelar de sua sentença.
__________

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I

Aquilo que domina todos os meus estudos, seu princípio e fim, seu ápice e base, em
uma palavra, sua razão; aquilo que dá a chave para todas minhas controvérsias, todas
minhas disquisições, todos meus lapsos; aquilo que constitui, enfim, minha originalidade
enquanto pensador, se eu puder reclamar tal coisa, é que eu afirmo, resoluta e
irrevogavelmente, em todo e qualquer lugar, o Progresso e que eu nego, não menos
resolutamente, o Absoluto.
Tudo que eu já escrevi, tudo que eu já neguei, afirmei, ataquei, combati, eu escrevi,
eu neguei ou afirmei em nome de uma única ideia: o Progresso. Meus adversários, pelo
contrário, e você logo verá que eles são numerosos, são todos partidários do absoluto, em
omni génère, casu et numero, como Sganarelle disse.
O que, então, é o Progresso? - Por quase um século, todos têm falado sobre ele,
sem que o Progresso, enquanto doutrina, tenha avançado sequer um passo. A palavra é
declamada: a teoria ainda está no ponto em que Lessing a deixou.2
O que é o Absoluto, ou, para melhor designá-lo, o Absolutismo? - Todos o repudiam,
ninguém o quer mais; e, ainda assim, eu posso dizer que todos que são cristãos,
protestantes, judeus ou ateus, monarquistas ou democratas, comunistas ou malthusianos:
todos, a blasfemar contra o progresso, são aliados do Absoluto.
Se, então, eu pudesse, por um instante, pôr meu dedo na oposição que eu coloco
entre essas duas ideias e explicar o que eu quero dizer com Progresso e o que eu

2
A ideia de Progresso não é nova. Ela não havia escapado aos antigos. (Vide de l'Idée du Progrès,
de JAVERY, 1 vol. in-8", Orléans, 1850.) Platão e os estoicos, Aristóteles, Cícero e uma multidão de
outros, sem contar os poetas e mitólogos, claramente a entendiam. Entre os modernos, ela foi
expressa por Pascal e cantada, como se fosse, por Bossuet, em seu Discours sur l'histoire
universelle, compostos na imitação de Daniel et de Florus. Ela foi reproduzida, com nova força, por
Lessing, serviu como lema à seita dos Illuminati de Weisshaupt e fez, na época da Revolução
Francesa, a originalidade de Condorcet. Mas é sobretudo em nosso século que ela foi postulada com
brilhantismo. Todas as escolas socialistas a invocaram como o princípio de sua crítica e, até um certo
ponto, a fizeram parte de seus sistemas. Sabe-se a divisão histórica de Saint-Simon: Teocracia,
Feudalismo ou governamentalismo, Indústria; - aquela de August Comte: Religião, Metafísica ou
filosofia, e Positivismo; - aquela de Fourier: Édenismo, Selvageria, Patriarcado, Barbárie, Civilização,
Garantismo, Harmonia. O Progresso serviu para que Pierre Leroux rejuvenescesse o dogma da
metempsicose, e, uma coisa ainda mais estranha, Bûchez acredita que encontrou ali a última palavra
do Catolicismo. Seria inútil enumerar, não apenas todos os escritores, mas todos os teóricos, todos
os sectos e escolas que são dominados pela ideia do Progresso. A Democracia, por sua vez, tomou
posse dela, sem suspeitar que tal aquisição era tão incompatível com suas doutrinas oficiais quanto
com a própria teologia. Não esquecemos a Revue du Progrès, que Louis Blanc compôs até cerca de
1840. Muito recentemente, um outro autor democrata, Eugène Pelletan, a tomou como assunto de
uma publicação que não carece, diz-se, nem de filosofia, nem de interesse. Sob o nome de Liberté
absolue, ainda é o Progresso que é afirmado pelo editor-em-chefe de la Presse, M. de Giradin.
Finalmente, não há ninguém, mesmo entre nossos mais amargos conservadores, que não
reivindique o Progresso: em sua linguagem, o Progresso, oposto à Revolução, indica um movimento
tão lento que é o equivalente de uma estase.
Apesar de todos esses estudos, pode-se dizer que o Progresso permanece, dentro da
filosofia, no estado de um simples fenômeno: enquanto princípio, ele não entrou em especulação. Ele
ainda não é nem uma verdade, nem um mero erro. Conquanto fora concebido como o próprio ser dos
seres, dificilmente se pudera ver ali qualquer coisa além de um acidente da criação, ou uma marcha
da sociedade em direção e um estado culminante e definitivo, que cada um tentara prever ou
descrever, de acordo com suas aspirações individuais, à moda dos legisladores e utópicos de todas
as eras.

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considero o Absoluto, eu teria lhe dado o princípio, o segredo e a chave de todas as minhas
polêmicas. Você possuiria o elo lógico entre todas as minhas ideias e você poderia, com
apenas essa noção, lhe servindo como um critério infalível em relação a mim, não apenas
estimar o conjunto das minhas publicações, mas prever e sinalizar com antecedência as
proposições que, mais cedo ou mais tarde, eu devo afirmar ou negar, as doutrinas das
quais eu terei me feito defensor ou adversário. Você seria capaz, digo eu, de avaliar e julgar
todas as minhas teses pelo que eu tenho dito e pelo que eu não sei. Você me conheceria,
intus et in cute, tal como eu sou, tal como eu tenho sido toda minha vida e tal como eu me
encontraria em mil anos, se eu pudesse viver mil anos: o homem cujo pensamento sempre
avança, cujo programa nunca estará terminado. E, qualquer que seja o momento de minha
carreira em que você viesse a me conhecer, qualquer que seja a conclusão que você
chegasse em relação a mim, você sempre teria que me absolver em nome do Progresso, ou
me condenar em nome do Absoluto.
O Progresso, no sentido mais puro da palavra, que é o menos empírico, é o
movimento da ideia, processus; é movimento inato, espontâneo e essencial, incontrolável e
indestrutível, que é para a mente o que a gravidade é para a matéria (suponho eu, com os
vulgares, que mente e matéria, deixando de lado o movimento, são algo) e que se
manifesta principalmente na marcha das sociedades, na história.
Disso se segue que, a essência da mente sendo movimento, a verdade - isto é, a
realidade, tanto na natureza quanto na civilização - é essencialmente histórica, estando
sujeita a progressões, conversões, evoluções e metamorfoses. Não há nada fixo e eterno
além das próprias leis do movimento, o estudo das quais forma o objeto da lógica e da
matemática.
Os vulgares, pelo qual eu quero dizer a maioria dos savants, assim como os
ignorantes, entendem o Progresso em um sentido inteiramente utilitário e material. O
acúmulo de descobertas, a multiplicação das máquinas, o aumento no bem-estar geral,
todos através da maior extensão da educação e da melhoria dos métodos; em uma palavra,
o aumento da riqueza material e moral, a participação de um número sempre maior de
homens nos prazeres da fortuna e da mente: tal é, para eles, mais ou menos, o Progresso.
Certamente, o Progresso é isso também, e a filosofia progressista seria míope e teria
poucos frutos se, em suas especulações, ela começasse por colocar de lado a melhoria
física, moral e intelectual da classe mais numerosa e mais pobre, como as fórmulas de
Saint-Simon diziam. Mas tudo isso nos dá apenas uma expressão restrita do Progresso,
uma imagem, um símbolo, (como devo dizer?) um produto: filosoficamente, tal noção de
Progresso é sem valor.
O Progresso, mais uma vez, é a afirmação do movimento universal,
consequentemente a negação de toda forma e fórmula imutável, de toda doutrina de
eternidade, permanência, impecabilidade, etc., aplicadas a qualquer ser que seja; é a
negação de toda ordem permanente, mesmo daquela do universo e de todo sujeito ou
objeto, empírico ou transcendental, que não mude.
O Absoluto, ou absolutismo, é, ao contrário, a afirmação de tudo que o Progresso
nega, a negação de tudo que ele afirma. É o estudo, na natureza, na sociedade, na religião,
na política, na moral, etc. do eterno, do imutável, do perfeito, do definitivo, do inconversível,
do indivisível; ele é, para usar uma frase tornada famosa em nossos debates
parlamentares, em todo e qualquer lugar, o status quo.3

3
Por que o governo despótico também é chamado de absoluto? Não é apenas porque o príncipe ou
déspota coloca sua vontade acima da vontade da nação, seu bel-prazer no lugar da lei.

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Descartes, raciocinando inconscientemente, de acordo com os preconceitos da
antiga metafísica, e buscando uma fundação inabalável para a filosofia, um aliquid
inconcussum, como se dizia, imaginou que a encontrara no eu e postulou este princípio:
Penso, logo sou; Cogito, ergo sum. Descartes não percebeu que sua base, supostamente
imóvel, era a mobilidade em si. Cogito, penso, essas palavras expressam movimento; e a
conclusão, de acordo com o sentido original do verbo ser, sum, ειναι, ou ‫(היה‬haïah), ainda é
movimento. Ele deveria ter dito: Moveor, ergo fio, Movo-me, logo devenho!
Dessa definição dupla e contraditória de progresso e absoluto primeiro se deduz,
como corolário, uma proposição bastante estranha para nossas mentes, que foram
moldadas por tanto tempo pelo absolutismo: é que a verdade em todas as coisas, o real, o
positivo, o praticável, é o que muda ou pelo menos estar suscetível à progressão,
conciliação, transformação; ao passo que o falso, o fictício, o impossível, o abstrato é tudo
que se apresenta como fixo, inteiro, completo, inalterável, infalível, não suscetível à
modificação, conversão, aumento ou diminuição, resistente, por conseguinte, a toda
combinação superior, a toda síntese.
Assim, a noção de Progresso nos é fornecida de maneira imediata e antes de toda
experiência, não o que se chama de critério, mas, como diz Bossuet, um preconceito
favorável, por meio do qual é possível distinguir, na prática, aquilo que pode ser útil
empreender e perseguir daquilo que pode se tornar perigoso e mortal, —uma coisa
importante para o governo do Estado e do comércio.
De fato, entre os muitos projetos de melhoramento e reforma que são produzidos
diariamente na sociedade, é inquestionável que se descobre alguns úteis e desejáveis, ao
passo que outros não são. Ora, antes que a experiência tenha decidido, como se pode
reconhecer, a priori, entre o melhor e o pior, entre a coisa prática e a especulação falsa?
Como você escolhe, por exemplo, entre propriedade e comunismo, federalismo e
centralização, governo direito pelo povo e ditadura, sufrágio universal e direito divino? ....
Essas questões são tão mais difíceis, uma vez que não há carência de exemplos de
legisladores e de sociedades que tomaram por regra um ou o outro desses princípios e uma
vez que todos os contrários igualmente encontram sua justificativa na história.
Para mim, a resposta é simples. Todas as ideias são falsas, isto é, contraditórias e
irracionais, quando se as toma em um sentido exclusivo e absoluto ou quando se permite
ser levado por esse sentido; todas são verdadeiras, suscetíveis à realização e ao uso,
quando se as toma elas junto com outras ou em evolução.
Assim, quer você tome como lei dominante da República, seja a propriedade, como
os romanos, ou o comunismo, como Licurgo, ou a centralização, como Richelieu, ou o
sufrágio universal, como Rousseau, —qualquer que seja o princípio que você escolha, uma
vez que, em seu pensamento, ele toma precedência sobre todos os outros, —seu sistema é
errôneo. Há uma tendência fata à absorção, à purificação, exclusão, estase, que leva à

Personalidade e arbitrariedade no poder são apenas uma consequência do absolutismo. O


governo é chamado de absoluto, primeiro porque está em sua natureza concentrar, seja em um único
homem, em um comitê ou uma assembleia, uma multiplicidade de atribuições, a essência das quais
deve ser separada ou seriada, de acordo com uma dedução lógica; em segundo lugar, porque, uma
vez que essa concentração seja realizada, todo movimento ou Progresso se torna impossível no
Estado e, assim, na nação. Os reis não são chamados os representantes de Deus? .... É porque eles
simulam, como aquele alegado ser absoluto, universalidade, eternidade e imutabilidade. —O povo,
pelo contrário, todo divisão e movimento, são a encarnação do Progresso. É por isto que a
democracia é avessa à autoridade: esta retorna à outra apenas através da delegação, meio termo
entre liberdade e absolutismo.

11
ruína. Não há uma revolução na história humana que não possa ser facilmente explicada
por isso.
Pelo contrário, se você admitir, em princípio, que toda realização, na sociedade e na
natureza, resulta da combinação de elementos opostos e de seu movimento, seu curso está
traçado: toda proposição que vise seja avançar uma ideia devida ou obter uma combinação
mais íntima, um acordo superior, é vantajosa para você e é verdadeira. Ela está em-
progresso.
Por exemplo, a filosofia moral e a experiência das sociedades não se pronunciaram,
de uma maneira definitiva, sobre a questão de se, em uma legislação aperfeiçoada, o
divórcio é permitido. Nunca se falha em citar, nessa conexão, os exemplos dos romanos,
dos gregos e dos orientais, os sentimentos da Igreja Grega e da Igreja Reformada, a
autoridade de Moisés e do próprio Jesus Cristo. Ante essa massa de testemunhos,
pergunta-se de que importa a opinião da França e dos outros países governados pela
disciplina católica. —Eu admito, por mim, que não fico muito movido por essa
argumentação, que seria fácil fazer servir à defesa da poligamia, com efeito, até mesmo da
promiscuidade. Os antigos socialistas, como muitos entre os modernos, não se abstiveram
disso. Eu não me pergunto qual foi nos séculos passados e qual ainda é na maioria das
nações o estado da mulher, a fim de deduzir, por comparação, o que seria adequado
produzir entre nós; eu busco aquilo que está a caminho de se tornar. A tendência é à
dissolução ao à indissolubilidade? Esta é a questão para mim. Ora, me parece óbvio,
independente das considerações sobre interesses domésticos, moral, dignidade, justiça e
até mesmo felicidade, que pode se afirmar aqui que a monogamia latina, sustentada e
enobrecida pelo catolicismo, demonstra uma tendência triunfante à indissolubilidade; me
parece que a igreja grega continuou estacionada neste ponto, que a igreja protestante tem
sido retrógrada, e que o código francês, com suas exceções para a nulidade, ainda é a
expressão mais avançada do Progresso. Adicionemos que a questão do divórcio, resolvida
na afirmativa, implicaria uma retrogradação de toda a ordem política e social, uma vez que,
no fim da questão do divórcio, existe uma outra questão de desigualdade, como se viu a
partir da teoria saint-simoniana. É isto que eu chamo de um preconceito favorável; uma vez
que, para mim, perguntar se introduziremos o divórcio em nossas leis é perguntar,
implicitamente, se retornaremos ao feudalismo através do capitalismo, se o governo será
despótico ou liberal, em suma, se seremos progressistas ou reacionários.
Tal, então, é, na minha opinião, a regra de nossa conduta e de nossos julgamentos:
existem graus de existência, de verdade e do bem, e o mais extremo não é nada além do
que a marcha do ser, o acordo entre o maior número de termos, ao passo que a unidade
pura e a estase é equivalente ao nada; é esta própria ideia, toda doutrina que secretamente
aspira à prepotência e à imutabilidade, que visa se eternalizar, que se lisonjeia dar a última
fórmula da liberdade e da razão, que, consequentemente, esconde, nas dobras de sua
dialética, exclusão e intolerância; que alega ser verdadeira em si mesma, pura, absoluta,
eterna, à maneira de uma religião e sem consideração para com qualquer outra; essa ideia,
que nega o movimento da mente e a classificação das coisas, é falsa e fatal, e mais, ela é
incapaz de ser constituída na realidade. É por isto que a igreja cristã, fundada sobre uma
ordem supostamente divina e imutável, nunca foi capaz de se estabelecer no rigor de seu
princípio; por isso que cartas monárquicas, sempre deixando latitude demais para a
inovação e para liberdade, são sempre insuficientes; por isso, pelo contrário, que a
Constituição de 1848, apesar das desvantagens com as quais abunda, ainda é a melhor e
mais verdadeira de todas as constituições políticas. Ao passo em que outras

12
obstinadamente se postulam no Absoluto, apenas a Constituição de 1848 proclamou sua
própria revisão, sua perpétua reformabilidade.4
Com isto entendido, e a noção de Progresso ou movimento universal introduzida no
entendimento, admitida na república das ideias, enfrentando seu antagonista, o Absoluto,
tudo muda em aparência para o filósofo. O mundo da mente, como aquele da natureza,
parece virado por sobre sua cabeça: lógica e metafísica, religião, política, economia,
jurisprudência, moral e arte, todas aparecem com uma nova fisionomia, revolucionada de
cima para baixo. O que a mente havia acreditado ser verdade até este momento se torna
falso; aquilo que ela havia rejeitado como falso se torna verdadeiro. A influência da nova
noção se fazendo sentir por todos e mais a cada dia, disso logo resulta uma confusão que
parece inextricável aos observadores superficiais e como o sintoma de uma loucura geral.
No interregno que separa o novo regime do Progresso do antigo regime do Absoluto, e
durante o período enquanto as inteligências passam de um ao outro, a consciência hesita e
tropeça entre suas tradições e suas aspirações; e, como poucas pessoas sabem como
distinguir a dupla paixão que obedecem, separar o que elas afirmam ou negam de acordo
com sua crença no Absoluto daquilo que elas negam ou afirmam de acordo com seu apoio
ao Progresso, disso resulta, para a sociedade, a partir dessa efervescência de todas as
noções fundamentais, uma confusão de opiniões e interesses, uma batalha de partidos, na
qual a civilização logo seria arruinada, se a luz não conseguisse se fazer vista no vazio.
Tal é a situação em que a França se encontra, não apenas desde a revolução de
Fevereiro, mas desde aquela de 1789, uma situação pela qual eu culpo, até um certo ponto,
os filósofos, os publicistas, todos aqueles que, tendo uma missão de instruir o povo e de
formar opinião, não viram ou não quiseram ver, que a ideia do Progresso sendo, de agora
em diante, universalmente aceita—tendo adquirido direitos da burguesia, não apenas nas
escolas, mas até mesmo nos templos—e finalmente elevada à categoria de razão, as
antigas representações das coisas naturais, assim como as sociais, são corrompidas e que
é necessário construir novas, por meio dessa nova lanterna do entendimento, da ciência e
das leis.
Dimsit lucem à tenebris! A separação de ideias positivas, construídas sobre a noção
do Progresso, das teorias mais ou menos utópicas que sugerem o Absoluto: tal é, senhor, o
pensamento geral que me guia. Tal é o meu princípio, minha ideia em si, aquela que forma
a base e cria as conexões em todos os meus julgamentos. Será fácil para mim mostrar
como, em todas as minhas controvérsias, eu tenho pensado para obedecê-la: você dirá se
eu tenho sido fiel.
__________

II.

Desta forma, eu mantenho, e é uma das minhas mais inabaláveis convicções, que,
com a noção de Progresso, toda nossa antiga lógica aristotélica, toda aquela dialética
escolástica fica sem valor e que devemos nos livrar dela rapidamente ou então falar coisas
sem sentido por toda nossa vida. O que se toma por raciocínio hoje, uma miscelânea de

4
O governo absoluto é, assim, a priori, impossível. Também, o crime dos déspotas é muito menos na
perpetração de sua ideia do que em sua vontade de cometê-la: é esta vontade sem poder que cria o
liberticídio.

13
ideias absolutistas e progressistas, é apenas uma associação fortuita e arbitrária de ideias,
um anfiguri brilhante, um phébus precioso ou sentimental. Não lhe citarei exemplos: nossa
literatura contemporânea, do ponto de vista das ideias e deixando de lado a questão da
forma, é, em meu julgamento, apenas um desperdício imenso. Ninguém mais entende seu
vizinho ou a si mesmo, e se, às vezes, particularmente em assuntos do partido, alguns
parecem entrar em acordo, é porque algum resíduo de preconceito os faz repetir as
mesmas palavras e frases, sem atribuir o mesmo significado a elas. Uma vez que a noção
de Progresso entrou em nossas mentes, o Absoluto tendo preservado a maioria de suas
posições, o caos está em todas as cabeças; e como o Progresso, em algum grau, se impõe
a todos com uma força invencível, o mais insano ainda é aquele que, acreditando-se livre
dele, finge não ser louco.
Eu tenho feito o que pude, na medida em que minha força permitiu, sem dúvida com
mais boa vontade do que aptidão, lançar um pouco de luz sobre essa escuridão: não cabe a
mim dizer em que medida eu tenho tido sucesso, mas eis aqui, mais ou menos, como eu
tenho procedido.
O movimento existe: este é meu axioma fundamental. Dizer como eu adquiri a noção
de movimento seria dizer como eu penso, como eu sou. É uma questão à qual eu tenho o
direito de não responder. O movimento é o fato primitivo que é revelado de uma só vez pela
experiência e pela razão. Eu vejo o movimento e eu o sinto; eu o vejo fora de mim e eu o
sinto em mim. Se eu o vejo fora de mim, é o porquê eu o sinto em mim, e vice-versa. A ideia
de movimento é, assim, dada de uma só vez pelos sentidos e pelo entendimento; pelos
sentidos, uma vez que, a fim de ter a ideia de movimento, é necessário tê-lo visto; pelo
entendimento, porque o movimento em si, através do sensível, não é nada real e porque
tudo que os sentidos revelam em movimento é que o mesmo corpo que, apenas um
momento atrás, estava em um certo lugar está, no próximo instante, em outro.
A fim de que eu possa ter uma ideia de movimento, é necessário que uma faculdade
especial, que eu chamo de sentidos, e uma outra faculdade, que eu chamo de
entendimento, concordem, em minha CONSCIÊNCIA, em me fornecê-la: isto é tudo que eu
posso dizer sobre o modo dessa aquisição. Em outras palavras, eu descubro o movimento
fora porque eu o sinto dentro; e eu o sinto porque eu o vejo: na base, as duas faculdades
são apenas uma; o interior e o exterior são duas faces de uma única atividade, é impossível
para mim ir além.
A ideia de movimento obtida, todas as outras são deduzidas dela, intuições assim
como concepções. É um erro, em minha opinião, que, entre os filósofos, alguns, tais como
Locke e Condillac, tenham alegado explicar todas as ideias com a ajuda dos sentidos;
outros, tais como Platão e Descartes, negam a intervenção dos sentidos e explicam tudo
através do que é inato; os mais razoáveis, finalmente, com Kant à sua frente, fazem uma
distinção entre ideias e explicam algumas através da relação dos sentidos e outras através
da atividade do entendimento. Para mim, todas as nossas ideias, sejam intuições ou
concepções, vêm da mesma fonte, a ação simultânea, conjunta, adequada e, na raiz,
idêntica dos sentidos e do entendimento.
Assim, toda intuição ou ideia sensível é a apercepção de uma composição e é, ela
mesma, uma composição: ora, toda composição, quer ela exista na natureza ou resulte de
uma operação da mente, é o produto de um movimento. Se não fôssemos nós mesmos
uma força motriz e, ao mesmo tempo, uma receptividade, não veríamos objetos, porque
seríamos incapazes de examiná-los, de restaurar a diversidade a sua unidade, como Kant
dizia.

14
Toda concepção, pelo contrário, indica uma análise do movimento, que ainda é, em
si, um movimento, o que eu demonstro da seguinte maneira:
Todo movimento supõem uma direção, A -> B. Esta proposição é fornecida, a priori,
pela própria noção de movimento. A ideia de direção, inerente à ideia de movimento, sendo
adquirida, a imaginação toma posse dela e a divide em dois termos: A, o lado a partir do
qual o movimento vem, e B, o lado para onde ele vai. Esses dois termos dados, a
imaginação os sumariza nesses dois outros, ponto de partida e ponto de chegada ou, de
outra forma, princípio e objetivo. Ora, a ideia de um princípio ou de um objetivo é apenas
uma ficção ou concepção da imaginação, uma ilusão dos sentidos. Um estudo completo
demonstra que não há, nem poderia haver, um princípio ou um objetivo, tampouco um
começo ou um fim, para o movimento perpétuo que constitui o universo. Essas duas ideias,
puramente especulativas de nossa parte, indicam, nas coisas, nada mais do que relações.
Conceder qualquer realidade a essas noções é criar para si uma ilusão deliberada.
A partir deste conceito duplo, de começo ou princípio e de objetivo ou fim, todos os
outros são deduzidos. Espaço e tempo são duas maneiras de conceber o intervalo que
separa os dois termos assumidos a partir do movimento, ponto de partida e ponto de
chegada, princípio e objetivo, começo e fim. Considerado em si mesmos, tempo e espaço,
noções igualmente objetivas ou subjetivas, mas essencialmente analíticas, não são, por
causa da análise que lhes deram origem, nada, são menos que nada; eles têm valor de
acordo com a soma de movimento ou de existência que se supõe que contenham, de modo
que, de acordo com a proporção de movimento ou existência que ele contém, um ponto
pode valer uma infinidade, e um instante, a eternidade. Eu trato a ideia de causa da mesma
maneira: ela ainda é um produto da análise, que, após ter-nos feito supor, no movimento,
um princípio e um objetivo, nos leva a concluir, ao supor ainda mais, através de uma nova
ilusão do empirismo, que o primeiro é o gerador da segunda, tanto quanto no pai vemos o
autor ou a causa de seus filhos. Mas é sempre apenas uma relação ilegitimamente
transformada na realidade: não há, no universo, uma causa primeira, segunda ou última; há
apenas uma única corrente de existências. O movimento é: isso é tudo. O que chamamos
de causa ou força é apenas, como aquilo que chamamos de princípio, autor ou motor, uma
face do movimento, a face A; ao passo que o efeito, o produto, o motivo, a meta ou o fim, é
a face B. No conjunto das existências, essa distinção não tem mais lugar: a soma das
causas é idêntica e adequada à soma dos efeitos, o que é a própria negação de ambos.
Movimento ou, como dizem os teólogos, criação é o estado natural do universo.
Da ideia de movimento, eu deduzo ainda, e sempre pelo mesmo método analítico,
os conceitos de unidade, de pluralidade, de mesmo e de outro, o que, por sua vez, me leva
àqueles de sujeito e objeto, de mente e matéria, etc., aos quais eu retornarei em breve.
É assim que, com a ajuda de uma única noção, sobre a qual eu admito, além disso,
a impenetrabilidade, porque ela é a própria existência e a vida, com a noção, digo eu, de
movimento e de Progresso, eu consigo dar conta da formação de ideias e explicar todas as
intuições e concepções, as primeiras por meio da composição, as últimas por meio da
análise. Esta não é, imagino eu, a rota que tem sido seguida até o momento pelos filósofos
que especularam sobre o movimento: não fosse por isso, eles teriam há muito feito uma
aplicação de seu método à prática social; há muito eles teriam revolucionado o mundo. Pois
tal é a teoria das ideias, e tal é a economia da raça humana.
__________

15
III.

A teoria das ideias me leva àquela do raciocínio.


A partir do momento em que eu concebo o movimento como a essência da natureza
e da mente, segue-se que o raciocínio, ou a arte de classificar ideias, é uma certa evolução,
uma história ou, como eu às vezes chamei, uma série. Disso, segue-se que o silogismo, por
exemplo, o rei dos argumentos da antiga escola, tem apenas um valor hipotético,
convencional e relativo: é uma série truncada, apropriada apenas para produzir a
balbuciação mais inocente sobre o mundo, por parte daqueles que não sabem como
retorná-lo à sua completude, provocando sua reconstrução completa.
O que eu digo sobre o silogismo deve ser dito sobre a indução baconiana, sobre o
dilema e sobre toda a antiga dialética.
A indução, permanecendo estéril nas mãos dos filósofos, apesar da declaração de
Bacon, retornaria como o instrumento da invenção e a mais feliz fórmula da verdade, se
fosse concebida, não mais como um tipo de silogismo tomado em sentido inverso, mas
como a descrição completa de um movimento da mente, inverso àquele indicado pelo
silogismo, e traçado, assim como no silogismo, por um pequeno número de marcas.
O dilema, considerado os mais fortes dos argumentos, não mais seria considerado
nada além de uma arma de má fé, a adaga do salteador que lhe ataca na sombra, por trás e
pela frente, na medida em que não tenha sido retificado pela teoria da antinomia, a forma
mais elementar e a mais simples composição do movimento.
Mas isso não é tudo que a reforma dos instrumentos dialéticos influencia. Ainda é
necessário saber, e nunca perder de vista, que mesmo o método mais autêntico e mais
certo de raciocínio não pode sempre, por si só, levar a uma distinção completa da verdade.
É, eu disse em outro lugar, na classificação das ideias, assim como naquela de animais e
plantas, como nas próprias operações matemáticas. Nos dois reinos, animal e vegetal, os
gêneros e as espécies não estão, em todo lugar e sempre, suscetíveis a uma determinação
precisa; eles são bem definidos apenas nos indivíduos localizados nas extremidades da
série; os intermediários, comparados a esses, são frequentemente inclassificáveis. Quanto
mais se prolonga a análise, mais se ver surgir, a partir da observação de características,
razões a favor e contra qualquer dada classificação. É o mesmo na aritmética, naquelas
divisões onde o dividendo, estendido até quantas casas decimais você queira, não pode
nunca ser resolvido em um quociente exato. É assim com ideias, e todos aqueles que
examinaram os tratados de jurisprudência, que se ocuparam com julgamentos e com
precedentes, o sentiram; ideias, digo eu, não são sempre, qualquer que seja a sutileza da
dialética que empregamos, completamente determináveis; há uma massa de casos onde a
elucidação sempre deixará algo a ser desejado. E, como se todos tipos de dificuldades se
reunissem para atormentar o dialético e levar o filósofo ao desespero, nunca é nos casos
duvidosos que a massa dos humanos hesita e se divide: por um estranho capricho, eles
apenas batalham e disputam as soluções mais bem demonstradas...
Em suma, e para concluir este artigo, eu afirmo que o antigo método de raciocínio
sobre o qual a filosofia subsistiu até o presente e no qual nossa geração foi criada, está - de
agora em diante - provado falso, que ele é tanto mais falso e pernicioso conforme admite
hoje, em seu velho arsenal, um novo instrumento de guerra, o Progresso: a partir do que eu
concluo que nossa lógica deve, tão logo quanto possível, ser reformada pela construção
dessa nova ideia, sob a pena de infâmia e suicídio.
__________

16
IV.

Se, da lógica e da dialética, passarmos à ontologia, encontramos, depois da


introdução da ideia de Progresso, impossibilidades não menos numerosas e não menos
graves, que surgem de observações análogas e pedem pela mesma reforma.
Tudo que nossos tratados de física, química e história natural contêm de ideias
gerais sobre o corpo, assim como sobre a inteligência, é extraído das especulações de
Aristóteles, Abelardo, Descartes, Leibniz, Kant, etc., o que se chamou na Idade Média de
universais e categorias: Substância, causa, mente, matéria, corpo, alma, etc. Uma única
noção, a mais importante, não recebeu seu contingente, o Progresso.
Sem dúvida, não se fala mais para nós de qualidades ocultas, de entidades,
quidades, do horror do vácuo, etc. Tudo isso desapareceu da ontologia, mas somos mais
avançados? Não é verdade que todos os nossos cientistas, sem exceção, o mesmo com
nossos psicólogos, ainda são, por bem ou por mal, dualistas, panteístas, atomistas,
vitalistas, materialistas, até mesmo místicos, partidários finalmente de todos os sistemas, de
todos os sonhos aos quais a antiga ontologia deu luz? ...
Não consigo me evitar de notar, de passagem, a ilusão que, por tantos séculos, fez
os filósofos desfiarem tantos absurdos ontológicos.
A condição de toda a existência, depois do movimento, é, inquestionavelmente, a
unidade; mas qual é a natureza dessa unidade? Se consultássemos a teoria do progresso,
ela responde que a unidade de todo ser é essencialmente sintética, que é uma unidade de
composição.5 Desta forma, a ideia de movimento, ideia primordial de toda inteligência, é
sintética, uma vez que, como acabamos de ver, ela se resolve analiticamente em dois
termos, que representamos através desta figura, A -> B. Similarmente, e por maior razão,
todas as ideias, intuições ou imagens que recebemos de objetos são sintéticas em sua
unidade: elas são combinações de movimentos, variados e complicados ao infinito, mas
convergentes e únicos em sua coletividade.
Essa noção do UM, de uma só vez empírico e intelectual, condição de toda
realidade e existência, tem sido confundida com que aquela do simples, que resulta da série
ou expressão algébrica do movimento e, como causa e efeito, princípio e objetivo, começo e
fim, é apenas uma concepção da mente e não representa nada real e verdadeiro.
É deste simplismo que toda a dita ciência do ser, a ontologia, tem sido deduzida.
Foi dito que a causa é simples; - consequentemente, o sujeito é simples, e a mente,
a expressão mais alta da causa do eu, é igualmente simples.
Mas, como Leibniz observou, se a causa é simples, o produto dessa causa deve
ainda ser simples: isto é, a mônada. Se o sujeito é simples, o objeto que ele cria para se
opor a si mesmo, não pode ser simples, assim a matéria é simples também: isto é o átomo.
Vamos extrair a consequência: causa e o efeito, o eu e o não-eu, mente e matéria,
todas essas simplicidades especulativas que a análise deriva da noção única e sintética de
movimento, são concepções puras do entendimento; nem corpos nem almas existem, nem
criador nem criado, e o universo é uma quimera. Se o autor da monadologia fosse de boa-
fé, ele teria concluído assim, junto com Pyrrho, Barclay, Hume e os outros.

5
Protágoras diz: Não há nada, exceto em relação a alguma outra coisa. O um é, assim, apenas uma
hipótese; o eu não é um ser: é um FATO, um fenômeno, e isso é tudo.

17
Desta forma, o sistema das mônadas, apesar do gênio de seu autor, permaneceu
sem partidários: ele era claro demais. Testemunhe a pobreza, ou a covardia, da razão
humana! Preservamos, como artigos de fé, a simplicidade da causa, a simplicidade do eu, a
simplicidade da mente, mas afirmamos a composição de criaturas e a divisibilidade da
matéria: é sobre esta estranha transigência que repousa a ontologia dos modernos, sua
psicologia e sua teodiceia! ...
Com a ideia de movimento ou progresso, todos esses sistemas, fundados sobre as
categorias de substância, causalidade, sujeito, objeto, espírito, matéria, etc., caem ou,
antes, se dispensam em explicações de si mesmos, para nunca reaparecerem de novo. A
noção de ser não pode mais ser buscada em um algo invisível, seja espírito, corpo, átomo,
mônada ou que seja. Deixa de ser simplista e se torna sintética: não é mais a concepção, a
ficção de um je ne sais quoi indivisível, imodificável, intransmutável (etc.): a inteligência, que
primeiro postula uma síntese, antes de atacá-la com uma análise, não admite nada a priori
desse tipo. Ela sabe o que a substância e a força são, em si mesmas; ela não toma seus
elementos como realidades, uma vez que, pela lei da constituição da mente, a realidade
desaparece enquanto busca resolvê-la em seus elementos. Tudo que a razão sabe e afirma
é que o ser, assim como a ideia, é um GRUPO.
Assim como, na lógica, a ideia de movimento ou progresso se traduz naquela outra,
a série, assim, na ontologia, ela tem como sinônimo o grupo. Tudo que existe está
agrupado; tudo que forma um grupo é um. Consequentemente, é perceptível e,
consequentemente, é. Quanto mais numerosos e variados os elementos e relações que se
combinam na formação do grupo, tanto mais poder centralizador se encontrará ali e tanto
mais realidade o ser obterá. À parte do grupo, há apenas abstrações e fantasmas. O
homem vivo é um grupo, como a planta ou o cristal, mas de um grau maior do que esses
outros; ele é mais vivo, tem mais sentimento e mais pensamento, na medida em que seus
órgãos, grupos secundários, estão em um acordo mais perfeito uns com os outros e formam
uma combinação mais extensa. Eu não mais considero que o eu, que eu chamo de minha
alma6, como mônada, governando, da sublimidade de sua chamada natureza espiritual, as

6
Sabemos que o significado original das palavras alma e espírito é fôlego, respiração. É de acordo
com esta imagem material que os antigos conceberam sua pneumatologia, que colocava a alma nos
pulmões e, bastante logicamente, a negava às pedras e plantas, uma vez que elas não poderiam ser
vistas respirando. Mais tarde, por sua vez, a chama se tornou o termo de comparação, e a alma foi
alojada no sangue. O sangue de um animal é sua alma, diz a Bíblia. Descartes a colocou na glândula
pineal. É surpreendente que as descobertas da física moderna não tenham levado a uma revolução
mais radical na pneumatologia. Todos os corpos que irradiam calor, luz e eletricidade, estão todos
em um estado de perpétua absorção e exsudação, todos são penetrados e envolvidos por um fluido
que normalmente é invisível, mas que às vezes se torna aparente, como na combustão, em
descargas elétricas, na aurora boreal, etc. É através deste fluido, que gostamos de considerar a alma
do mundo, que os corpos agem uns sobre o outros, atraem, repelem e se combinam uns com os
outros, passam para o estado sólido, líquido ou gasoso. O que nos impede de dizer que a alma
humana também é fluida, formada a partir da combinação de diversas outras, como a carne e os
ossos são compostos de vários elementos, que envolvem e penetram o corpo, correm pelos nervos,
fazem o sangue circular, que nos coloca, à distância, em relações mais ou menos íntimas com
nossos companheiros e, através dessa comunicação, cria grupos superiores ou novas naturezas? ...
Se empurrarmos esse estudo tão longe quanto se queira, nunca veremos, em todas essas
manifestações fluidas, —mesmo supondo-as livres de erros, de charlatanismo e de superstição como
a mais rigorosa ciência pode exigir—nada além de especulações analíticas ou simétricas sobre o ser,
seus atributos e suas faculdades. A existência transcendente, aos nossos olhos, não é aquela de
supostos espíritos ou aromas que, separados de seus corpos, são tão quiméricas quanto o tempo ou
o espaço seriam, separados da ideia de movimento; ela é o homem sensível, inteligente e moral; ela
é, sobretudo, o grupo humano, a Sociedade.

18
outras mônadas, injuriosamente consideradas materiais: estas distinções escolares me
parecem sem sentido. Eu não me ocupo com esse caput mortuum dos seres, sólidos,
líquidos, gasosos ou fluidos, que os doutores pomposamente chamam de SUBSTÂNCIA; eu
sequer sei, por mais inclinado que esteja a supor, se há algo que responde à palavra
substância. A substância pura, reduzida à sua expressão mais simples, absolutamente
amorfa e que se poderia bem felizmente chamar de pantógeno, uma vez que todas as
coisas vêm dela, se eu não posso exatamente dizer que não é nada, parece à minha razão
como se não fosse; é igual a NADA. É o ponto matemático, que não tem comprimento, nem
tamanho, nem profundidade e que, ainda assim, dá luz a todas as figuras geométricas. Eu
considero em cada ser apenas sua composição, sua unidade, suas propriedades, suas
faculdades, de modo que restauro tudo a uma única razão—variável, suscetível a elevação
infinita—o grupo.7
__________

V.

É seguindo essa concepção de ser em geral e, em particular, do eu humano, que eu


acredito ser possível provar a realidade positiva e, até um certo ponto, demonstrar as ideias
(as leis) do eu social ou grupo humanitário e afirmar e mostrar, acima e além de nossa
existência individual, a existência de uma individualidade superior do homem coletivo, uma
existência de que a filosofia não poderia nem mesmo suspeitar antes, porque, seguindo
seus conceitos ontológicos, ela era absolutamente incapaz de concebê-la.
De acordo com alguns, a sociedade é a justaposição de indivíduos similares, cada
um sacrificando uma parte de sua liberdade, de modo a serem capazes, sem causar dano
uns aos outros, de se manterem justapostos e viverem lado a lado em paz. Tal é a teoria de
Rousseau: é o sistema de arbitrariedade governamental, não, é verdade, como se essa
arbitrariedade fosse o feito de um príncipe ou tirano, mas, o que é muito mais sério, em que
ela é o feito da multidão, o produto do sufrágio universal. A depender de se convém à
multidão ou àqueles que a incitam estreitar mais ou menos os laços sociais, dar mais ou
menos desenvolvimento às liberdades locais e individuais, o dito Contrato Social pode ir
desde o governo direto e fragmentado do povo até o cesarismo, de relações de simples
proximidade à comunidade de bens e ganhos, mulheres e filhos. Tudo que a história e a
imaginação podem sugerir de extrema licença e extrema servidão é deduzido com igual
facilidade e rigor lógico da teoria social de Rousseau.
De acordo com outros, e estes, apesar de sua aparência científica, me parecem
pouco mais avançados, a sociedade, a pessoa moral, ser raciocinante, pura ficção, é
apenas o desenvolvimento, entre as massas, do fenômeno da organização individual, de
modo que o conhecimento sobre o indivíduo fornece imediatamente o conhecimento sobre
a sociedade, e a política se resolve em fisiologia e higiene. Mas o que é a higiene social?
Aparentemente, ela é, para cada membro da sociedade, uma educação liberal, uma
instrução variada, uma função lucrativa, um trabalho moderado, um regime confortável: ora,
a questão é precisamente como obtermos tudo isso!

7
A ciência moderna confirma esta definição do ser. Quanto mais a física e a química avançam, mais
elas desmaterializam e tendem a se constituir sobre noções puramente matemáticas.

19
Para mim, seguindo as noções de movimento, progresso, série e grupo, as quais a
ontologia está compelida, de agora em diante, a leva em conta, e as várias descobertas que
a economia e a história fornecem sobre a questão, eu considero a sociedade, o grupo
humano, como sendo sui generis, constituído pelas relações fluídas e pela solidariedade
econômica de todos os indivíduos, da nação, da localidade ou corporação, ou de toda a
espécie; indivíduos os quais circulam livremente uns entre os outros, se aproximam uns dos
outros, se juntam, dispensando-se, por sua vez, em todas as direções;—um ser que tem
suas próprias funções, alheias à nossa individualidade, suas próprias ideias, que nos
comunica, seus julgamentos, que de forma alguma lembram os nossos, sua vontade em
oposição diametral aos nossos instintos, sua vida, que não é aquela do animal ou da planta,
embora encontre analogias ali;—um ser, finalmente, que, partindo da natureza, parece o
Deus da natureza, os poderes e as leis da qual ele expressa em um grau superior
(sobrenatural).8
Doutrinas similares, eu sei, quando não alegam uma revelação superior, podem se
estabelecer apenas pelos fatos. É, também, com a ajuda dos fatos, nada além dos fatos,
não argumentos, que eu creio que posso demonstrar essa existência superior, verdadeira
encarnação da alma universal... Mas, enquanto aguardamos que os fatos sejam
apresentados, pode ser útil relembrar certas consequências que já haviam sido
apresentadas, em relação a questões, insolúveis no estado anterior da filosofia, que agitam,
neste momento, a consciência dos povos.
Falemos, então, da religião, dessa respeitável fé, à qual o descrente ainda sabe
apenas como expressar desprezo, o crente como formar apenas desejos, e, a fim de
resumir em uma palavra tudo que importa, abordar o problema da Divindade. Aqui,
novamente, encontro-me colocado em novo terreno, onde a ideia de Progresso vem para
reformar todo que foi escrito e ensinado pelos eruditos, em nome do Absoluto.
__________

8
"O homem é apenas um fragmento do ser: o verdadeiro ser é o ser coletivo, a Humanidade, que
não morre, que, em sua unidade, se desenvolve incessantemente, recebendo de cada um de seus
membros o produto de sua própria atividade e comunicando-lhe, de acordo com a medida na qual ele
pode participar, o produto da atividade de todos: um corpo cujo crescimento não tem qualquer fim
atribuível, que, segundo as leis imutáveis de sua conservação e evolução, distribui vida aos vários
órgãos que perpetuamente o renovam, ao perpetuamente se renovarem." (De la Société première et
de ses lois, por LAMENNAIS, 1848.)
Quem não acreditaria, depois de ter lido essa passagem, onde a realidade objetiva, orgânica,
pessoal do ser coletivo é afirmada com toda a energia e propriedade de expressão da qual a língua é
capaz, que o autor iria fornecer a anatomia, a fisiologia, a psicologia, etc. da sociedade? Mas
Lamennais é um grande poeta e não tanto um naturalista. A metáfora volta ao divino; e, ao passo em
que ele acredita que ele faz apenas uma alegoria, ele postula, sem saber, um ser real do qual ele
não está ciente. Depois de ter falado como um filósofo humanitário do ser coletivo, M. de Lamennais
volta a buscar as leis da sociedade na teologia; ele analisa os dogmas da Trindade e da Graça e cai
novamente no vácuo intelectual, apropriado a místicos e fraseólogos.
Eu poderia citar ainda outros autores que, como Lamennais, parecem ter tocado a realidade
do ser social e falam nos termos mais refinados de sua alma, de seu gênio, de suas paixões, de suas
ideias, de seus atos, etc., Mas rapidamente se percebe que tudo isso são apenas imagens e
palavreado de sua parte; não há um fato, nem uma observação, que ateste que eles entenderam
suas próprias palavras. É como o estilo daqueles economistas, que se julgaria, ao lê-los, discípulos
de Babœuf ou de Cabet, mas que logo se reconhece, por seus protestos antissocialistas, como os
mais hipócritas e mais insípidos dos tagarelas.

20
VI.

Eu observo, primeiro, algo que todo mundo sabe hoje em dia, que é que com a
questão teológica assim como é com a questão da política; que ela é essencialmente móvel
e oscilante por natureza, às vezes maior, às vezes menor em suas variações, sem, em
qualquer de suas posições, jamais ser capaz de se estabelecer ou satisfazer a mente. O
filósofo lançado em busca do ser divino é continuamente levado de uma hipótese a outra,
do fetichismo ao politeísmo, desse ao monoteísmo, do monoteísmo ao deísmo, então ao
panteísmo, depois ao idealismo, ao niilismo, a fim de começar novamente com
materialismo, fetichismo, etc. É assim que, para o homem que busca ordem social por meio
da autoridade, a razão é invencivelmente extraída da monarquia absoluta para a monarquia
constitucional, desta para uma república oligárquica ou qualificada, da oligarquia à
democracia, da democracia à anarquia, da anarquia à ditadura, para começar novamente
com a monarquia absoluta e assim sucessivamente, perpetuamente. Essa necessidade de
transições sem fim, que havia sido tão claramente percebida, em relação à questão política,
por Aristóteles e que foi estabelecida em nossa própria época, em relação à questão
religiosa, pela filosofia alemã é talvez a única conquista positiva da filosofia, forçada a
reconhecer, através do testemunho de seus maiores escritores, que mesmo no círculo de
suas categorias absolutistas, a mente está sempre em movimento.
Esse curso circular da mente sobre as duas questões que interessam à sociedade
no mais alto grau, religião e governo, estabelecida para além da dúvida, pergunto-me eu se
isso não vem de alguma ilusão metafísica e, nesse caso, que correção é necessária fazer?
Ora, olhando mais de perto, eu descubro que tudo que foi escrito sobre o Ser
Supremo, de Orfeu até o Dr. Clarke, é apenas um trabalho da imaginação sobre as
categorias, ou seja, sobre as concepções analíticas (simplistas e negativas), que o
entendimento tem a capacidade de extrair da ideia primordial (sintética e positiva) do
movimento; uma obra que consiste, como observei mais cedo, em dar uma realidade a
signos algébricos, em afirmar enquanto ser vivo,—ativo, inteligente e livre—aquilo que, não
obstante, não é nem homem, nem animal, nem planta, nem estrela, nem qualquer coisa
conhecida ou sensível, definida ou definível, quanto mais qualquer coisa agrupada ou
seriada. Este ser seria pura substância, pura causa, pura vontade, pura mente, a pura
essência, em suma, de toda a série de abstrações que são deduzidas da face A da ideia de
movimento, através da exclusão da face B. E tudo isso, de acordo com os eruditos, se
tornaria o ser concebido em um grau superior, uma potência infinita, uma duração eterna,
no absoluto dos absolutos.
Eu rejeito essa linha de dedução, primeiro como marcada por ignorância, uma vez
que Deus, o ser dos seres, ens realissimum, de acordo com a ideia que temos feito dele,
deve abranger todos os atributos, todas as condições de existência e uma vez que ele
carece aqui do elemento mais essencial da definição, o Progresso. E, então, eu nego essa
mesma dedução como destrutiva do ser que seu objetivo é provar e, consequentemente,
como contraditória, precisamente porque ela repousa sobre uma série de análises que,
prolongada tanto quanto se queira, só pode levar a uma cisão, a uma negação desse ser. E
eu concluo, por minha vez, tomando a afirmativa, assumens parabolam, como disse Jó, de
que se a ideia de movimento e de progresso, por tanto tempo mantida nas sombras pelos
metafísicos, for reintegrada em seu direito, o Deus que buscamos não pode mais ser tal
como a antiga teologia ensinou; ele deve ser inteiramente diferente do que os teólogos o
fizeram. Na verdade, se aplicarmos ao Ser Supremo a condição do movimento, de

21
progressão, e não podemos deixar de aplicá-las a ele, uma vez que sem elas ele não seria
supremo, acontecerá que esse ser não mais será, como antes, simples, absoluto, imutável,
eterno, infinito, em todo sentido e toda faculdade, mas organizado, progressivo, evolutivo,
consequentemente aperfeiçoável, suscetível ao aprendizado na ciência, na virtude, etc., ao
infinito. O infinito ou absoluto desse ser não está mais no atual, ele está no potencial... O
deus de Kant, de Aristóteles, de Moisés e de Jesus, assim, não é verdadeiro, pelo menos
de acordo com os documentos apresentados, uma vez que ele exclui a condição mais
essencial da existência na natureza e na humanidade, e essa exclusão implica em uma
contradição com a vida que, não obstante, se concede a ele. Eu juro pelo Deus vivo, diz a
Igreja em seus exorcismos. Deus, em uma palavra, não é e não pode ser, no sentido que os
metafísicos dão a essa palavra, uma vez que a privação de toda condicionalidade, ou
simplicidade, longe de indicar a potência mais elevada do ser, marca, pelo contrário, o grau
mais baixo; Deus pode apenas se tornar, e é sob esta condição apenas que ele é.9
E se agora, depois de ter dissipado as sábias quimeras da teologia, eu consultasse
os testemunhos espontâneos das raças humanas sobre a essência e a função do ser
divino? Eu descubro primeiro que a ideia de Progresso, inadvertidamente deixada de fora
da lista das categorias da escola, não foi esquecida pelas massas; que, por virtude dessa
ideia, as pessoas, raciocinando na liberdade de seus instintos, falando em seu próprio
nome, sem o meio da Academia, do Pórtico, tampouco da Igreja, constantemente tomaram
Deus por um ser que é ativo, móvel, progressivo e, finalmente, sensível; que apenas, na
medida em que sua inteligência se desenvolveu, elas enobreceram seu ídolo e que a mais

9
"Deus, a substância-causa, é simples ou múltiplo? Se ele é simples como Spinoza pensava, por
quais meios, por qual ação, por qual lei, ele pode passar de seu modo de ação metafísico para o
modo de existência finita e se manifestar fisicamente em forma, variedade e sucessão, no espaço e
no tempo, sem se dividir? Eis a cruz da dificuldade. Spinoza não a resolveu e não poderia resolvê-la.
Com a constituição simples e individual dada à substância-causa, Deus, dotada, ainda mais, de todos
os outros atributos teológicos, não é, no Espinozismo, nada além de um átomo solitário cuja
extensão é infinita. Esse átomo, infinitamente estendido, ocupa por si só todo o espaço ou, antes,
não há espaço, e a expansão indivisível de Deus, em sua infinidade, não é nada além do que
queremos dizer com espaço.
Ora, nesse ser simples e indivisível, nesse Deus-átomo, infinito em extensão, a propriedade
da extensão sendo indivisível, uma vez que o sujeito que a possui é simples, não é possível, o
número não existindo nela, encontrar a razão ou os meios de qualquer ação que seja através da qual
Deus produza a multidão de seres extensos e finitos que constituem os fenômenos do universo: sua
constituição é oposta a isso. Como ele é infinito em sua extensão simples e indivisível e não há nada
fora dele, ele não pode ter em si mesmo nada além de si mesmo, isto é, um simples átomo, infinito
em extensão." (Ch. LAMAIRE, Initiation à la philosophie de la Liberté, t. II.)
M. de Lamennais, Esquise d'une philosophie, pressentiu a dificuldade e tentou resolvê-la, ao
exemplo dos gnósticos e cabalistas, fazendo uso das hipóstases divinas, Amor, Vontade,
Inteligência, a fim de fazê-las produzir em Deus, de acordo com suas categorias, todos os seres. M.
Ch. Lameire refuta esse sistema desta maneira: "Com a simplicidade constitucional de Deus, a
condição que necessariamente domina aquele seu atributo que chamamos de entendimento,
qualquer que seja, além disso, o número e a variedade de outros atributos que tivermos dado a Deus
a fim de fazê-lo sair de sua inação e sua impotência para formar, a partir de sua própria substância,
seres unidos, todos esses atributos, tais como Poder, Ciência, mesmo Amor, só podem servir para
formar personificações mitológicas ou abstratas; mas elas não tem eficácia para gerar o menor ser
finito, a menor forma, a menor personalidade distinta em Deus ou à parte de Deus, e eles acabam
logicamente falhando ante à simplicidade e indivisibilidade desse Deus, sendo infinito e
incomensurável em relação à extensão.
Com relação aos efeitos, Deus, substância simples e indivisível, não pode, então, ser a
causa de seres finitos. Se se supõem, a fim de sair dessa dificuldade, que os outros atributos de
Deus, tais como o poder e a ciência, poderiam mudar sua constituição original e dividir aquilo se
declara ser simples e indivisível, cai-se em contradição e diz-se que o Deus que se declarara ser
simples destruiria, ele mesmo, a condição de sua própria existência."

22
alta perfeição que elas pensaram em lhe dar foi torná-lo um homem. Eu vejo que, em todos
os momentos, a Humanidade tendeu, através de suas evoluções religiosas, a
antropomorfizar ou, antes, socializar o ser inefável; que em todo lugar e sempre, na
consciência popular, o problema das religiões foi, ele mesmo, resolvido na identidade da
natureza social e da natureza divina; que se, de um lado, as pessoas emprestaram a Deus
as faculdades, paixões, virtudes e misérias da humanidade,—uma vez que é necessário
que ele nasça, fale, aja, sofra e morra como um homem—do outro, ela lhe conferiu atributos
de sociedade, governo, legislação e justiça; proclamou-lhe sagrado como a sociedade e
livre da morte como a sociedade, que é imortal.
Assim, o que afirmamos, buscamos e louvamos como Deus não é nada além da
pura essência pura da Humanidade, natureza social e natureza individual indivisivelmente
unida, mas distinta, como as duas naturezas em Jesus Cristo. É isto que é atestado pela
consciência popular e pela série das religiões, de acordo com uma metafísica retificada e
completa.
Isso não é tudo: enquanto o movimento de humanização do ser divino era
perseguido nas massas, um outro operava, sempre sem o conhecimento dos teólogos e dos
filósofos, na disciplina intelectual: era a renúncia progressista dos misticismos ontológicos, o
abandono das categorias, reconhecidas como tão inúteis para a explicação da natureza e
da sociedade quanto revelações e milagres. Em um sentido, a raça humana, por suas
tendências antropomórficas, entrou em contato e identificou a si mesma com a Divindade;
no outro sentido, por seu crescente positivismo, ela se moveu para longe de Deus e, por
assim dizer, o fez recuar. É assim que, onde Newton, impedido por uma dificuldade que lhe
parecia insolúvel, fez a Divindade intervir em favor do equilíbrio do mundo, Laplace, com
uma ciência superior, tornou essa intervenção inútil e dispensou o deus e sua máquina para
o sótão.
Resumindo todos esses fatos e todos esses conceitos, resta a mim a questão
religiosa: o que a Humanidade busca na religião, sob o nome de Deus, é sua própria
constituição, ela própria; não obstante, Deus sendo, de acordo com o dogma teológico,
infinito em seus atributos, perfeito, imutável e absoluto, e a Humanidade, pelo contrário,
sendo aperfeiçoável, progressiva, móvel e mutável, o segundo termo nunca seria entendido
como adequado ao primeiro; resta então uma antítese, um termo sendo sempre a
expressão reversa do outro, e a consequência dessa antítese ou antiteísmo, como eu o
tenho chamado, é abolir toda a religião ou adoração, idolatria, pneumolatria, cristolatria ou
antropolatria, uma vez que, por um lado, a ideia de Deus, oposta àquela de movimento,
grupo, série ou progresso, não representa qualquer realidade possível, e, por outro, a
Humanidade, essencialmente aperfeiçoável, mas nunca perfeita, permanece
constantemente abaixo de sua própria ideia apropriada e, consequentemente, sempre
aquém do louvor. Isto eu resumo em uma fórmula de uma só vez positiva e negativa e
perfeitamente clara em nossa língua: Substituição do culto do suposto Ser Supremo pela
cultura da Humanidade10.
__________

10
Toda teoria social necessariamente começa com uma teoria da razão e uma solução para o
problema cosmo-teológico. Nenhuma filosofia careceu dessa exigência. Isto é o que explica por que
todos os partidários da hierarquia política e social começam de uma ideia teosófica, ao passo em que
os democratas geralmente se inclinam a uma emancipação absoluta da razão e da consciência. A
fim de democratizar a raça humana, insiste Charles Lemaire, é necessário desmonarquizar o
Universo.

23
VII.

Vale a pena agora, senhor, eu relembrar aquelas de minhas proposições que, em


política, economia política, moral, etc., fizeram mais ruído e causaram mais escândalo?
Devo mostrar como todas elas resultaram da noção de Progresso, que é idêntica, em minha
mente, àquela de ordem?
Eu escrevi em 1840 aquela profissão de fé política, tão notável por brevidade quanto
por energia: Eu sou um anarquista. Eu postulei com essa palavra a negação ou, antes, a
insuficiência do princípio da autoridade.... Isso era para dizer, como mais tarde mostrei, que
a noção de autoridade é apenas, assim como a noção de um ser absoluto, uma ideia
analítica, incapaz, a partir de qualquer direção que se pudesse chegar à autoridade e de
qualquer maneira que ela fosse exercida, de oferecer uma constituição social. A autoridade,
a política, eu então substituí pela ECONOMIA, uma ideia sintética e positiva, única capaz, em
minha opinião, de levar a uma concepção racional e prática da ordem social. Contudo, eu
nada fiz nisso além de repetir a tese de Saint-Simon, tão estranhamente desfigurada por
seus discípulos e combatida hoje, por razões táticas que eu não consigo entender, pelo M.
Enfantin. Ela consiste em dizer, baseado na história e na incompatibilidade das ideias de
autoridade e progresso, que a sociedade está a caminho de realizar, pela última vez, o ciclo
governamental; que a razão pública obteve certeza da impotência da política, em relação à
melhoria da condição das massas; que a predominância das ideias de poder e de
autoridade começou a ser sucedida, na opinião assim como na história, pela predominância
das ideias de trabalho e troca; que a consequência dessa substituição é trocar o mecanismo
dos poderes políticos pela organização das forças econômicas, etc., etc.
Eu confio em você, senhor, para me dizer se tenho sido lógico em minhas deduções,
se verdadeiramente, como penso, a ideia de progresso, o sinônimo da qual é liberdade, leva
ali.
É nas questões econômicas que eu levei o desenvolvimento e a aplicação do meu
princípio mais longe. Eu demonstrei, e com algum sucesso, me parece, que a maior parte
das noções sobre as quais a prática industrial repousa neste momento e, assim, todas as
economias das sociedades modernas ainda são, como as noções de poder, autoridade,
Deus, demônio, etc., concepções analíticas—partes mutualmente deduzidas das outras por
meio de oposição—do grupo societário, de sua ideia, de sua lei, e cada uma desenvolvida
separadamente, sem restrição e sem limites. Como resultado, a sociedade, em vez de
repousar sobre a harmonia, está sentada em um trono de contradições e em vez de
progredir em direção à riqueza e à virtude, como é seu destino, apresenta um
desenvolvimento paralelo e sistemático na miséria e no crime.
Assim eu mostrei, ou creio eu ter mostrado, que a teoria malthusiana da
produtividade do capital, justificável enquanto meio de ordem mercantil e, até um certo
ponto, favorável ao movimento econômico, se torna, se ela é aplicada em uma grande
escala, quando se alega generalizá-la e fazer dela uma lei da sociedade, incompatível com
a troca, com a circulação e, consequentemente, com a própria vida social; que, a fim de
acabar com essa incompatibilidade, é necessário reconstruir a ideia integral, fazê-la de tal
forma que cada mutuário seja um credor, cada credor um mutuário e de modo que todas as
contas, ao débito e ao crédito, se equilibrem; que, se a circulação não é hoje regular, se o
retorno dos valores pela venda não é realizado por cada produtor com a mesma facilidade
que seu fluxo de saúde pela compra; se as estagnações, crises e desempregos, são para o
falido um meio permanente de equilíbrio, é, primeiro, porque a valorização dos produtos

24
cessa com o ouro e a prata, porque todas as mercadorias não são, como o ouro ou a prata,
tomadas como moeda, o que constitui, dentro da riqueza geral, uma desigualdade
destrutiva;—em segundo lugar, porque a prelibação11 capitalista, uma consequência das
prerrogativas do dinheiro;—em terceiro lugar, por causa da renda da terra, que é a pedra
angular, sanção e glorificação de todo o sistema.
Eu tenho dito que o direito do capitalista, proprietário ou mestre,—que detém o
movimento econômico e dificulta a circulação dos produtos, que faz uma guerra civil da
concorrência; da máquina um, instrumento de morte; da divisão do trabalho, um sistema de
exaustão para o trabalhador; da tributação, um meio de extenuação popular; e da posse do
solo, um domínio feroz e insociável—não era nada além do direito da força, direito real ou
divino, tal como os bárbaros concebiam e como resulta das definições de política e dos
casuístas, a mais alta expressão do absoluto, a mais completa negação das ideias de
igualdade, ordem e progresso.
Se algo me surpreendeu, no curso desta polêmica socialista, é muito menos a
irritação produzida pelas minhas ideias do que as contradições que foram levantadas contra
elas. Eu poderia entender o egoísmo; eu não entendo o argumento na presença da verdade
e dos fatos. A fim de tirar a sociedade do círculo vicioso em que ela sofreu morte e paixão
por tantos séculos, é necessário, eu insisto, entrar resolutamente no caminho da progressão
e da associação; perseguir a redução da renda e do juros a zero; reformar o crédito,
elevando-o da noção inteiramente individualista de empréstimo à totalmente social de
reciprocidade ou troca; liquidar, de acordo com esse princípio, todas dívidas públicas e
privadas; expurgar todas as hipotecas, unificar a tributação, abolir os octrois e taxas, criar o
patrimônio do povo, assegurar produtos e aluguéis baratos, determinar os direitos do
trabalhador, refazer a administração corporativa e comunal, reduzir e simplificar as
alocações do Estado. Aí, os fenômenos econômicos ocorreriam de um modo oposto; ao
passo em que hoje o mercado carece de produção, será a produção que carecerá de um
mercado; ao passo que a riqueza cresce de maneira aritmética e a população
geometricamente, veremos essa relação invertida, e a produção se tornará mais rápida do
que a população, porque é uma lei de nosso ânimo natural moral e estético que quanto
mais intensidade adquirida pelo trabalho e quanto mais perfeição por parte do homem,
menos fecundidade é possuída pela faculdade genética, etc.
Eu tenho observado, desde a primeira vez que abordei essas questões, que a
sociedade já está engajada, em todos os pontos, com o conceito de progresso industrial;
que, assim, a definição de propriedade, seguindo a constituição de 1848, está em completa
contradição com o Código e, na base, justifica a minha própria definição; que, sob a
influência das mesmas causas, toda a jurisprudência tende a se aproximar cada vez mais
da ideia de justiça comutativa e a desertar o tribunal civil pelo tribunal do comércio, etc., etc.
Não há uma crítica de minha parte, nem uma afirmação ou uma negação que, nessa
ordem de ideias, assim como em todas as outras, não seja explicada, justificada ou
desculpada, como quer que você queira colocar, pela mesma lei. Tudo que eu tenho dito
sobre centralização, sobre a polícia, sobre justiça, sobre associação, sobre culto, etc., se
segue disso.
Eu tenho feito mais: depois de afastar qualquer pretexto de irritação e ódio, eu tomei
o cuidado de distinguir, no Progresso, aceleração de movimento. Eu repeti ad neuseam que
a questão da velocidade poderia ser deixada para a estima das maiorias e que eu não
considerava como adversário ou como inimigos do Progresso aqueles que, aceitando

11
Prelibação: oferecimento dos primeiros frutos. - EDITOR DA VERSÃO INGLESA

25
comigo a ideia de movimento e o sentido de sua direção geral, diferissem talvez sobre os
detalhes e sobre o tempo envolvido. Devemos correr ou rastejar? Este é um assunto
prático, não é para a consideração do filósofo, mas do estadista. O que eu mantenho é que
não podemos preservar o status quo.
Muitas vezes me foi dito: Diga-nos como é. Você é um homem da ordem: você quer
o governo, ou não? Você busca justiça e liberdade e você rejeita as teorias comunitárias:
você é a favor ou contra a propriedade? Você defendeu, em toda circunstância, a moral e a
família: você não tem religião?
Bem, eu mantenho de maneira completa todas as minhas negações da religião, do
governo e da propriedade; eu digo que não apenas essas negações são, em si mesmas,
irrefutáveis, mas que já os fatos as justificam; o que temos visto brotar e se desenvolver, por
diversos anos, sob o antigo nome de religião não é mais a mesma coisa que estávamos
acostumados a entender sob esse nome; aquilo que se agita na forma de império ou
cesarismo, mais cedo ou mais tarde, não será mais império, nem cesarismo, nem governo;
e, finalmente, aquilo que modifica e se reorganiza sob a rubrica da propriedade é o oposto
da propriedade.
Eu adiciono, não obstante, que eu manterei, junto ao povo comum, essas três
palavras: religião, governo, propriedade, por razões das quais eu não sou o mestre, que
participam da teoria geral do Progresso e, por essa razão, me parecem decisivas: primeiro,
não é minha função criar novas palavras para novas coisas, e sou forçado a falar a língua
comum; segundo, não existe nenhum progresso sem tradição, e a nova ordem tendo como
seus antecedentes imediatos a religião, o governo e a propriedade, é conveniente, para a
própria garantia dessa evolução, preservar para as novas instituições seus nomes
patronímicos, nas fases da civilização, porque nunca existem linhas bem definidas, e tentar
realizar a revolução em um salto estaria para além de nossos meios.
Creio que é inútil, com um juiz tão bem informado quanto você, senhor, prolongar
esta exposição. Eu afirmo o Progresso e, enquanto encarnação do Progresso, a realidade
do Homem Coletivo e, finalmente, como consequência dessa realidade, uma ciência
econômica: este é o meu socialismo. Nada mais, e nada menos.
__________

VIII.

Permita-me, senhor, antes de passar adiante, resumir os diferentes significados


desse termo genérico, o Progresso. Na lógica, ele é traduzido pela série, a forma geral do
raciocínio, que não é nada além, me parece, do que a arte de classificar ideias e seres. —
Se a série for reduzida a dois termos em oposição essencial, em contradição necessária e
recíproca, como ocorre, por exemplo, na formação dos conceitos, ela indica uma análise e
toma o nome de antinomia. O dualismo antinômico, reduzido pela equação ou fusão de dois
termos em um, produz a ideia sintética e verdadeira, a síntese, celebrada entre os místicos
sob o nome de trindade ou tríade.
Na ontologia, o Progresso é o grupo, isto é, o ser, em oposição a todas as quimeras,
sejam elas substanciais, causativas, animistas, atomísticas, etc.
Da ideia do ser, concebido enquanto grupo, eu deduzo, através de um único e
singular argumento, esta proposição dupla: que o deus simplista, imutável, infinito, eterno e

26
absoluto dos metafísicos, não devindo, não é e não pode ser; ao passo em que o ser social,
que é agrupado, organizado, aperfeiçoável, progressivo e que, por sua essência, sempre
devém, é. Comparando, então, os fatos da consciência religiosa com aqueles da metafísica
e da economia, eu chego a esta conclusão decisiva, de que a ideia de Deus, com relação
ao seu conteúdo, é idêntica e adequada àquela de Humanidade, ao passo em que, com
relação à sua forma, ela é antagonista.
Na ordem política, o sinônimo de Progresso é liberdade, isto é, espontaneidade
coletiva e individual que evolui sem obstáculos, através da gradual participação dos
cidadãos na soberania e no governo. Mas essa participação permanece sempre ilusória, e o
movimento político se realizaria em um ciclo invariável de revoluções sem fim e de tiranias
uniformes, se a razão política, finalmente reconhecendo que o verdadeiro objeto do governo
é garantir a liberdade do produtor e do comerciante, ao assegurar a justa distribuição da
riqueza, não acabasse, depois de ter separado os conteúdos da ideia política, por mudar
sua organização. A autoridade, então, tem, como sua fórmula orgânica, a ECONOMIA, e o
correlativo da liberdade é a igualdade, não uma igualdade real e imediata, como o
comunismo pretende, nem uma igualdade pessoal, como a teoria de Rousseau supõe, mas
uma igualdade comutativa e progressiva, que dá uma direção completamente diferente à
Justiça.
Admitamos, de fato, por um momento, o princípio da igualdade a priori de bens e de
pessoas. Que coisa singular! A consequência desta alegada igualdade seria uma estase, o
absoluto, consequentemente, a miséria. A sociedade, sem dúvida, continuaria a estagnar ou
se agitar; não mais progrediria. A espécie humana, constituída sobre uma antecipação,
tomando seu fim por seus meios, em vez de ser em si, não mais seria qualquer coisa além
de um análogo de certos animais, tais como formigas, castores, etc., sociedades dos quais
existiram desde a criação, mas que não avançam de forma alguma. Para uma sociedade
assim constituída, o princípio da ordem, ou para colocar melhor, da posição, se descobriria,
como em todas as sociedades fundadas sobre a desigualdade ou sobre a casta, um poder
imperativo, dominando todas as vontades, subordinando todas as energias, absorvendo em
sua virtualidade coletiva todas as individualidades espontâneas. É de acordo com este
sistema de absolutismo que os primeiros Estados eram organizados; é desta forma que, ao
ceder sempre um pouco sob a pressão invisível da liberdade, através de mil contradições e
de mil inconsequências, eles se mantiveram no antigo espírito de sua instituição.
Mas deixe que uma revolução, como aquela de 89, proclame de uma só vez a
liberdade industrial e, através dessa única palavra, a noção de igualdade muda: aí a
civilização não pode mais encontrar obstáculos em seu avanço, no mesmo golpe, a antiga
forma política se torna inaplicável. Com o princípio da liberdade no trabalho e da igualdade
na troca, o que implica a aceitação da tributação e do monitoramento, o equilíbrio da
sociedade não pode mais depender, em princípio, do comando soberano, do rei ou do povo;
ele resulta virtualmente da determinação sinalagmática e cotidiana dos direitos e dos
haveres dos membros. A centralização governamental é, assim, sucedida pela
solidariedade contratual; a constituição dos poderes políticos é substituída pela organização
das forças econômicas. É por causa disso que o socialismo estava certo em dizer, em 1848,
que todas as declarações de direitos e deveres, todas as cartas régias e todos os códigos
promulgados anteriormente ou a serem promulgados no futuro se reduzem a dois artigos, o
direito de trabalhar e o direito de trocar: trabalho e troca são o alfa e o ômega da revolução.
Assim, de um lado, a supressão das formas políticas não é nada além da supressão
dos obstáculos impostos ao Progresso pela tirania política; de outro, é a emancipação do

27
trabalhador, ou a exata compensação dos produtos, que é o ato decisivo e solene pelo qual
a Humanidade, quebrando a cadeia do privilégio, entre na infinita carreira da Justiça.
Faça aos outros como gostaria que fizessem a você, disse o autor do Evangelho,
Jesus Cristo, seguindo todos os antigos sábios. Uma boa máxima, mas vaga, e seu ardor
incerto não impediu, por trinta séculos, a servidão da raça humana. Pois o que é que eu
deveria querer que os outros façam a mim? .... Enquanto uma resposta precisa não for
criada para essa questão, a justiça colapsa. A ciência econômica coloca um fim a essa
indecisão ao declarar que para cada cidadão capaz, a receita deve ser igual ao produto. A
fórmula, desta vez, é categórica e concreta; ela não visa nem o sublime, nem o sentimental;
ela não tem mais pretensão de surpreender o erudito do que de fazer as frívolas caillettes
desfalecerem. Mas encontre-me uma fórmula que é mais esmagadora do orgulho, mais
desesperadora para a má fé, que melhor remove a desculpa para a covardia e inveja, que
assegura, além disso, o direito de todos ao deixar mais liberdade para cada um?
__________

IX.

Ao dar à Justiça uma fórmula mais prática e precisa, a teoria do progresso


econômico postulou a fundação da moral.
A ciência moral é o conjunto de preceitos que têm por seu objeto a perseverança na
justiça. Ela é, em outras palavras, o sistema de justificação, a arte de se tornar santo e puro
através de obras, o que é dizer, ainda e sempre, do Progresso. Felizes são os puros de
coração, foi dito no Sermão da Montanha, pois eles VERÃO DEUS! Estas palavras, tão
melhores que a teoria da caridade, resumem o todo da lei. Elas significam que a santidade,
o apogeu da justiça, é a própria base da religião e que a visão beatífica, o bem soberano
dos antigos filósofos, a felicidade, como os socialistas modernos dizem, é seu fruto. Ver
Deus, na língua dos mitos, é ter a consciência de sua própria virtude; é gozar dela e, assim,
recolher o prêmio. Desta forma, a moral não tem nenhuma sanção além de si mesma:
infringiria sua dignidade, seria imoral, se extraísse sua causa e seu fim de alguma outra
fonte. É por isso que a moral tendeu, em todos os tempos, a se separar do dogmatismo
teológico, e a essência da religião tendeu a se separar do invólucro religioso, as vãs figuras
do qual poderiam apenas comprometê-la. Em Roma, as fórmulas da religião eram todas,
como os artigos do Decálogo, fórmulas jurídicas. Na China e no Japão, onde toda teologia
foi cedo rejeitada, era precisamente a prática da santificação, ou culto da pureza, que foi
preservada. Pureza ou clareza da razão, pureza ou inocência do coração, pureza ou saúde
do corpo, pureza ou justiça em ação e sinceridade no discurso, pureza mesmo na justiça,
ou seja, modéstia na virtude: essa é a moral do Progresso, essa é minha religião. Ela supõe
um esforço contínuo sobre si mesma e permite todas as transições, ela serve a todos os
lugares e tempos. A lei moral, senhor, observe bem, é uma coisa que eu considero como
absoluta, não com relação à forma do preceito, que é sempre variável, mas com relação à
obrigação que ela impõe: e, ainda assim, esse Absoluto é ainda apenas uma ideia
transcendental, tem por meta a perfeição ideal do ser humano, pela fidelidade à lei e ao
progresso.
Mas, você me pergunta, quem é santo? E se nenhum humano pode se vangloriar de
ser santo, como, com a teoria do progresso, você resolverá o problema do destino do

28
homem? Pecados existem, e é uma grande questão entre os sábios saber se ele diminui ou
se, pelo contrário, ele, junto à própria civilização, não estende seu império. Todos os
séculos ressoaram com lamentos da crescente malícia das gerações. O orador denuncia ao
tribunal à decadência do século: O tempora, o mores! ele grita. E o poeta, em sua
misantropia, canta o progresso do vício e do crime:

Ætas majorum, pejor avis, tulit


Nos nequiores, mox daturos
Progeniem vitiosiorem

Se, então, a santidade não existe em lugar algum da terra, se a santificação não é
bem-sucedida entre os mortais, o Progresso permanece sem uma conclusão. É necessário
considerar o prazo mais longo e, depois de ter liberado a humanidade militante do Absoluto,
fazê-la retornar lá para sua coroação. De que uso, consequentemente, é a ideia do
Progresso, se o Progresso, como a queda, clama por uma solução transmundana, algo
como a imortalidade? Qual teoria pode ser aquela que, depois de ter postulado o Progresso
como condição sine qua non da natureza e da mente, é forçada admitir que ela não
encontra para esse Progresso nem termo, nem objeto, e que teria que se contradizer se
admitisse qualquer um dos dois? ...
Eis aqui minha resposta a essa objeção.
Primeiro, naquilo que não mais concerne a lei moral, doravante inatacável, mas a
moralidade humana, eu defino o Progresso como o conhecimento do bem e do mal,
consequentemente como uma imputabilidade sempre crescente. De modo que, qualquer
que seja, em cada geração, a proporção de ofensa, o mérito e o demérito, sujeitos a uma
perpétua oscilação, também se tornam sempre maiores.
Isto é demonstrado pela história.
É provado, 1) que as ciências, as artes, o comércio, a política, etc. estão em
contínuo progresso; 2) que, por virtude deste progresso, as relações jurídicas são
multiplicadas mais e mais entre os homens. Desse duplo progresso, que é alcançado à
parte da vontade, não obstante resulta para a vontade, por um lado, que suas atrações
passionais sejam cada vez mais exaltadas e, por outro, que o sentimento do justo seja
aumentado em sua proporcionalidade. Desses dois pontos de vista, é certo que uma
imensa diferença existe entre a civilização moderna e a sociedade primitiva: assim como,
entre nós, a sensibilidade, ao perder suas formas brutais, se tornou mais viva, assim
também o respeito pelo direito se tornou mais profundo. Pessoas honestas do século
dezenove são melhores e mais honestas do que aquelas dos tempos de Cipião ou Péricles;
pela mesma razão, os perversos se tornaram mais vis. A conformidade da vontade à lei
moral é, assim, hoje mais meritória, e sua resistência, mais criminosa. O progresso de
nossa moralidade, eu digo, consiste disso.
Saber, agora, se a soma de feitos culpáveis diminui, se aquela de atos virtuosos
aumenta, é uma questão sobre a qual podemos disputar à vontade, mas da qual a solução
me parece, na verdade, impossível e, em todo caso, inútil. O que é verdadeiro é que há
uma compensação, em todas as eras, entre o bem e o mal, assim como entre o mérito e o
demérito, e que a condição mais favorável para a sociedade é aquela na qual o movimento
na justiça é realizado com a menor oscilação, em um equilíbrio que exclui igualmente
grandes sacrifícios e grandes crimes. Et ne nos inducas in tentationem! Jesus Cristo disse:
"Não nos exponhais, ó Deus, a provas muito difíceis!" Não de poderia caracterizar de
maneira mais triste a moralidade humana e seu tímido avanço.

29
Que nossa consciência, cada vez mais esclarecida, adquira, assim, cada vez mais
energia: eis aqui nossa glória e aqui também nossa condenação. Que a ideia do bem seja
realizada em todas as nossas ações, se for possível, e que a ideia do mal permaneça
profunda em nossos corações, como um poder arraigado: isso é tudo que podemos nos
prometer. Fingir que, conforme as obras da virtude se tornem cada dia mais abundantes, o
princípio do pecado, que não é nada além da espontaneidade de nossa natureza animal, se
enfraquece seria uma contradição.
Virtuoso ou culpável, o homem, em suma, sempre se torna mais humano: essa é a
lei de seu gênio e de sua moral.
Mas, você insiste, e eis aqui a pedra no caminho de nossa pobre razão, qual é o
termo dessa ascensão na Justiça? "Eu corri a corrida", gritou o Apóstolo. "Eu cheguei ao
fim. Onde está minha recompensa?" Aí, onde a religião nos faz vislumbrar a imortalidade, o
que diz o Progresso?
A esta questão final, onde todo pensamento se perturba, onde a filosofia se
confunde, eu sou forçado a truncar minhas palavras e deixar, apesar de mim, alguma
obscuridade. Os fatos sociais, que devem servir à constituição da moral, sendo ainda
desconhecidos, eu não posso argumentar a partir desses fatos como se fossem
conhecidos: Devo me limitar a essas afirmações sentenciosas.
A imortalidade da alma não é nada além do que a elevação do homem, através do
pensamento, à idealidade de sua natureza e à posse que ele assume de sua própria
divindade.
A face radiante de Moisés, a assunção de Elias, a transfiguração de Cristo e mesmo
a apoteose dos Césares, são tantos mitos que já serviram para expressar essa idealização.
A arte e a religião visam nos fazer trabalhar sem cessar, através das excitações que
as pertencem, em direção à apoteose de nossas almas.
Assim, a teoria do progresso não nos promete imortalidade, como a religião; ela nos
a dá. Ela nos faz gozar dela nesta vida. Ela nos ensina a conquistá-la e a conhecê-la.
Ser imortal é possuir Deus em si, diz o profeta Isaías, que ele expressou em uma
única palavra, da qual ele fez um nome próprio: Emanuel. Agora, possuímos Deus pela
justiça.
Esta posse é para todos os tempos, para todos os lugares, para todas as condições:
para obtê-la, é suficiente saber, querer e exercer a justiça.
A justiça é, desta forma, ao mesmo tempo beatitude, como o Pórtico o ensinou: sua
presença faz nossa felicidade, sua privação, nosso tormento. A ideia de uma felicidade
subsequente merecida pela justiça é uma ilusão de nosso entendimento que, em vez de nos
fazer conceber o movimento como uma série em um conjunto, tendo sua razão em si
mesmo e no seu objeto essencial, persiste em ver ali um ponto de partida e um outro de
chegada, como se a justiça, assim como a vida, fosse para nós apenas uma transformação
do nosso ser, de um estado para um outro estado. Mas isso é um erro palpável, refutado
com antecedência pela teoria do movimento e da formação dos conceitos e, além disso,
constitui, como acabamos de provar, uma ofensa à moral: assim como o movimento é o
estado da matéria, a justiça é o estado da humanidade.
A posse da justiça é, assim, equivalente à posse de Deus, à parte da qual não há, e
é a religião que o declara, nada mais para o homem. Resta saber o caráter dessa posse,
em relação às condições de espaço e tempo.
Espaço e tempo não são nada em si mesmos: eles são valorizados apenas através
de seu conteúdo. Se uma existência, de qualquer duração, é elevada ao sublime, se,
através da concepção de seu próprio ideal e da vontade de expressá-lo, ela chega, por

30
assim dizer, a tocar o absoluto, então essa existência pode ser dita consumada. Ela cai no
infinito: alcançando seu apogeu, ela não tem mais nada a fazer entre os vivos. Não há nada
para um ser à parte de sua plenitude, que é sua glorificação, não mais do que há um
complemente para o universo. Assim como o inseto, no ponto mais alto de sua efêmera
vida, vale tanto e mais do que o sol no esplendor de seus raios, assim, para o homem,
apenas um instante de êxtase vale uma eternidade do paraíso. Uma eternidade e um
instante são a mesma coisa, disse Santo Agostinho. Ora, a eternidade não se repete: e
quando se viu Deus uma vez, é para sempre. Duração no absoluto é uma contração.12
Assim, aquele que foi iluminado pelas ideias do belo, do justo e do sagrado; que
admirou, que amou, em um momento de sua vida, concentrando o esforço de todas as suas
forças, sentiu nisso a inefável exaltação: que se está assegurado, a imortalidade não o
escapará. ELE VIVEU: isto é mais reconfortante para ele do que ouvir dizer que ele viverá.
Aquele, pelo contrário, cujo coração é comido pelo vício, apodrece na ignorância e
na preguiça. Aquele que fez para si uma lei a partir da iniquidade, que colocou sua
inteligência humana a serviço de suas brutas paixões: esse traiu seu destino. Ele chegará
ao fim, sem ter entendido a existência. Se ele chamar o padre em seu leito de morte: ele lhe
necessita. O padre, através de suas alegorias, será talvez bem-sucedido em tocar essa
alma selvagem. No último momento, inspirará nela uma ideia sublime, e ela lhe comunicará,
à sua agonia, uma fagulha de senso moral. Apenas aí o pecador terá vislumbrado a vida e,
pelo pouco que ele teve em si de arrependimento, ele morrerá em paz...13
__________

X.

Eu disse antes que o objeto da arte, como aquele do louvor, é nos elevar à beatitude
imortal através do estímulo de seus prazeres. Permita-me entrar nesse assunto com
algumas explicações. É sobretudo do ponto de vista da arte que o socialismo é acusado de
barbaridade, e o progresso, de falsidade: é necessário saber em que medida essa dupla
repreensão é merecida.
Alguém nos diz: Que superioridade os modernos alcançaram sobre os antigos, no
que concerne as obras de arte? Nenhuma. Desde o primeiro salto, o gênio humano,
aplicando-se à representação do sublime e do belo, foi elevado a tamanha altura, que foi
impossível superá-lo desde então. Admitamos que a ideia de progresso, tornando-se
fundamental à filosofia e às ciências políticas, as regenere: de que uso ela pode ser para a
pintura e a estatuária? Será o suficiente dizer aos artistas que, por virtude do progresso,
eles devem, como os matemáticos, ser sempre mais profundos e mais habilidosos, a fim de
que eles de fato assim se tornem? .... E se a expressão e, consequentemente, a concepção
do sublime se enfraquecessem ou permanecessem estacionárias na humanidade? Quem

12
A morte do justo, celebrada nas Escrituras, e a aniquilação em Deus, que forma a base do
budismo, não são nada além disso. O misticismo de Gerson, Santa Teresa, Francisco de Sales e
Fénelon ainda leva até lá. A Igreja de Roma, ao condenar o último, culpou mais a revelação do
segredo do que a corrupção da doutrina.
13
Os acadêmicos, por sua falta de franqueza, produziram uma geração de libertinos; os jesuítas,
com sua intolerância, criaram uma geração de ateus. Enquanto fazem as almas se desesperarem
durante a vida, eles entregam gentilmente o benefício dos testemunhos in extremis. Pergunte, depois
disso, por que as pessoas precisam de religião!

31
se atreveria a dizer que a ideia do bem ou do verdadeiro cresceu ou se fortaleceu? A teoria
do progresso, depois de ter obtido um triunfo mais ou menos genuíno nas questões
anteriores, encalha na última, a mais sedutora e impiedosa: mais infeliz que Ulisses, ela é
devorada pelas Sereias; ela não pode fazer nada pela Beleza! ...
Tal é a objeção, que difere muito pouco do meu próprio julgamento, de que a arte,
deixando de lado o período de aprendizagem, é por natureza sempre igual a si mesma, em
um nível inferior a suas maiores sublimidades. No que, então, e como ela se encaixa na
teoria do progresso? Como ela a serve? Como ela fornece sua última prova? Vou tentar
dizer.
O que a moral revelou à consciência na forma de preceitos, a estética visa mostrar
aos sentidos na forma de imagens. A lição expressa pelo Logos é imperativa em seu teor e
se refere a uma lei absoluta; a figura apresenta aos sentidos, explícita em seu significado,
positiva e realista em seu tipo, igualmente se refere a um absoluto. Esses são os dois
modos de nossa educação, de uma só vez sensível e intelectual, que tocam na consciência,
diferindo entre elas apenas no órgão ou faculdade que serve como seu veículo.
Aperfeiçoar-se através da justiça ou tornar-se santo, ao observar a lei temporal e ao
desenvolvê-la em toda sua verdade, tal é o fim indicado ao homem pela moral; —
aperfeiçoar-se através da arte ou, se ouso fazer uso dessa expressão familiar, fazer-se
belo, purificando-se incessantemente, seguindo o exemplo de nossa alma, as formas que
nos cercam, tal é o objeto da estética. Uma nos ensina temperança, coragem, modéstia,
fraternidade, devoção, trabalho e justiça; a outra nos purifica, nos protege, nos cerca com
esplendor e elegância: não é sempre a mesma função, procedendo a partir do mesmo
princípio e tendendo ao mesmo fim? —É começar baixo, você diz, fazer a arte começar no
banho, com o cortar as unhas e o cabelo! Não nada pequeno e desprezível no que se
relaciona à melhoria da humanidade. A moral não começou com a defesa da carne humana
e do amor bestial? ...
É uma questão, no presente, de saber como essa teoria da arte tem sido entendida
e praticada e como seria apropriado que ela fosse praticada de agora em diante.
No começo, o homem postulou seu ideal longe de si mesmo; ele o fez concreto, o
personificou e se denominou como imagem de um ser sublime e belo que chamou de Deus.
Nesse momento, a religião, a moral, o louvor, a arte e o maravilhoso estavam todos
confundidos: e poderia se prever, os deuses tendo sido assim concebidos, como os artistas
e poetas mais tarde o seriam. Entre os gregos, as primeiras imagens esculpidas foram
aquelas de pessoas divinas; a primeira poesia cantada foi inspirada pela religião. Os deuses
eram belos, de uma beleza acabada; suas imagens tinham que ser belas, e todos os
esforços dos escultores tenderiam a lhes dar uma perfeição típica que, ao se aproximar da
Divindade, acabavam por não ter nada do homem nela. Todo o resto foi tratado como uma
consequência. A poesia foi chamada de língua dos deuses; até os seus últimos dias os
oráculos foram apresentados em verso: falar em prosa, isto é, em uma língua profana, nos
templos, teria sido uma grande impropriedade.
A teoria da arte entre os gregos resultou inteiramente, então, da religião. Ela se
impôs sobre suas sucessoras; ela reinou até os nossos tempos. O artista, de acordo com
essa teoria religiosa, buscava em tudo O MAIS BELO, ao risco de deixar a natureza e perder a
realidade. Sua meta, como Rafael a expressou, era fazer coisas não tais como a natureza
as produz, mas como ela deveria produzi-las, mas não sabe como, tampouco consegue.
Não era suficiente pare ele revelar, através de sua obra, o pensamento do Absoluto, ele
tendia a reproduzi-lo, a realizá-lo. É assim que, a imaginação sempre tendendo em direção
a seu ideal, os gregos chegaram, na expressão do belo, a um ponto que nunca foi igualado

32
e que talvez nunca seja igualado. Seria necessário, para igualar ou superar os gregos que,
segundo o seu exemplo, acreditássemos nos deuses, que acreditássemos neles mais do
que os gregos: e é isso que é impossível.
As pessoas compartilhavam das ideias e do sentimento dos artistas: isto explica
como, naquela sociedade profundamente idólatra, enamorada da forma por princípio
religioso, todos eram competentes em questões de literatura e arte. A religião imprimiu a
mesma direção nas mentes e a mesma fisionomia nos caráteres; o sentimento estético se
desenvolvia em uníssono, e, ao passo que, entre nós, literatura, música e todas as artes
são o perpétuo objeto de contradições, entre os gregos elas eram as coisas do gosto que
eram menos disputadas. Nunca a democracia se demonstrou mais soberana, e o
julgamento popular, mais incorruptível. Os atenienses tinham apenas que consultar os
filósofos da Academia, os aristarques do feuilleton, sobre a beleza das estátuas e dos
templos; eles sabiam tudo sobre isso, por assim dizer, desde o nascimento, assim como
sabiam sobre batalhas e festejos. As obras magistrais de Fídias, aquelas de Sófocles e
Aristófanes foram recebidas sem comissão e sem júri, em plena assembleia do povo que,
tendo aprendido a ler com Homero, falando a língua melhor que Eurípedes, não teriam
permitido que um diretório das belas artes, apontado por Aspásia, escolhesse por eles suas
deusas e cortesãs.
Segue-se daí que os gregos e seus imitadores cumpriram a meta da arte, ao ponto
em que, sem esperança de igualá-los, resta-nos apenas copiá-los e traduzi-los, sob pena de
uma continuada e inevitável decadência?
Estou tão longe de pensar assim, que acuso precisamente os gregos, no curso de
buscarem o ideal, de terem enfraquecido o uso dele e compreendido mal seu papel e que
eu traço de volta até eles a causa dessa anarquia, dessa antiestética que desola nossa
civilização, superior o quanto seja em tantas maneiras.
Mesmo na produção do belo, a tendência do Absoluto leva à exclusão, à
uniformidade e à estase. Daí ao tédio, à aversão e finalmente à dissolução: a descida é
irresistível.
Uma vez que o deus e os heróis, deusas e ninfas, a sagrada pompa e as cenas das
batalhas foram simbolizadas, apresentadas com seus tipos celestiais e suas fisionomias
homéricas, tudo estava acabado para o artista grego: ele só poderia se repetir. Ele
idealizara em seu deus as eras, os sexos, todas as condições da humanidade: o homem
jovem, a virgem, a mãe, o padre, o cantor, o atleta, o rei; todos tinham seu ídolo ou, como
diziam na Idade Média, seu santo. O que mais poderia se pedir! Restava apenas um passo
a ser superado: por um último esforço de idealização, o artista retornaria essas divinas
efígies a uma forma suprema, um pouco como o filósofo realizou a redução dos atributos
divinos e fez de todas as personalidades imortais um sujeito invisível, insondável, eterno,
infinito e absoluto. Mas uma similar obra magistral era bastante simplesmente uma quimera:
teria sido cair na alegoria, no nada. Um Deus infinito e único, o Absoluto, em suma, não é
representado: nada que esteja nos céus, na terra ou no mar sabe como representá-lo, como
o Moisés hebreu disse. Do ponto de vista da arte, a unidade de Deus é a destruição do belo
e do ideal: é o ateísmo.
Assim, a teoria da arte, como os gregos a conceberam, levou da idealidade à
idealidade, isto é, da abstração à abstração, direto ao absurdo: só poderia evitá-lo pela
inconsequência. Como isto teria surpreendido o filósofo do ideal, Platão, se tivesse lhe sido
demonstrado, através do raciocínio socrático, que toda sua filosofia repousava sobre uma
ou outra dessas duas negações, a negação de Deus ou a negação da Beleza!

33
Divino Platão, esses deuses sobre os quais tu sonhaste não existem. Não há nada
no mundo maior e mais belo do que o homem.
Mas o homem, elevando-se das mãos da natureza, é miserável e feio; ele só pode
se tornar sublime e belo através de ginástica, política, filosofia, música e, em especial, algo
que você dificilmente parece duvidar, do ascético.14
O que é o belo? Você mesmo o disse: é a forma pura, a ideia típica do verdadeiro. A
ideia, enquanto ideia, existe apenas no entendimento; ela é representada ou realizada com
mais ou menos fidelidade e perfeição pela natureza e pela arte.
A arte é a humanidade.
Na medida em que vivemos, somos artistas, e nosso ofício é erguer em nossas
pessoas, em nossos corpos e em nossas almas, uma estátua ao BELO. Nosso modelo está
em nós mesmos; aqueles deuses de mármore e bronze que o vulgar adora são apenas
padrões para ele.
A Ginástica inclui dança, esgrima, luta, corrida, equitação e todos os exercícios do
corpo. Ela desenvolve os músculos, aumenta a flexibilidade, a agilidade e a força, dá graça
e previne o excesso de peso e a doença.
A Política abarca o direito civil, o direito público e o direito dos povos; a
administração, a legislação, a diplomacia e a guerra. É aquilo que, tirando o homem da
barbaridade, verdadeiramente lhe dá liberdade, coragem e dignidade.
A Filosofia ensina lógica, moral e história: é o caminho da ciência, o espelho da
virtude e o antídoto da superstição.
A Música, ou o culto das musas, tem por seu objeto a poesia, a oratória, a canção, o
tocar dos instrumentos, as artes plásticas, a pintura e a arquitetura.
Seu fim não é, como supuseste, ó sábio Platão, cantar hinos aos deuses, erguer
templos para eles, erigir suas estátuas, fazer sacrifícios e procissões. É trabalhar na
deificação dos homens, às vezes através da celebração de suas virtudes e belezas, às
vezes através da execração de sua feiura e de seus crimes.
É necessário, então, que o escultor e o pintor, assim como o cantor, cubram um
amplo diapasão, que eles demonstrem beleza, às vezes radiante e às vezes sombreada, ao
longo de toda a extensão da escala social, do escravo ao príncipe e dos plebeus ao senado.
Tens sabido apenas como pintar os deuses: é necessário representar os demônios
também. A imagem do vício, assim como aquela da virtude, está tanto dentro do domínio da
pintura quanto da poesia: de acordo com a lição que o artista quer dar, toda figura, bela ou
feio, pode realizar a meta da arte.
Deixe que o povo, se reconhecendo em sua miséria, aprenda a corar por sua
covardia e a detestar seus tiranos; deixa que a aristocracia, exposta em sua nudez oleosa e
obscena, seja açoitada em cada um de seus músculos por seu parasitismo, sua insolência e
suas corrupções.15 Deixe que o magistrado, o homem militar, o mercador, o camponês,
deixe que homens de todas as condições da sociedade, vendo a si mesmos, por vezes nas
alturas de sua dignidade, por outras, de sua baixeza, aprendam, pela glória e pela
vergonha, a retificar suas ideias, a corrigir suas maneiras e a aperfeiçoar suas instituições.
E deixe que cada geração, registrando, assim, na tela e no mármore, o segredo de seu

14
Por ascético é necessário entender aqui o exercício industrial, ou TRABALHO, considerado servil e
ignóbil entre os antigos.
15
Nosso público conservador não é dessa opinião. É o suficiente que seja chamado de honesto e
moderado; ele quer ser tornado belo e ser creditado como tal. Um artista, que em sua prática no
estúdio seguisse os princípios da estética formulados aqui, seria tratado como sedicioso, expulso das
fileiras, privado das comissões do Estado e condenado a morrer de fome.

34
gênio, chegue na posteridade sem qualquer outra culpa ou desculpa do que as obras de
seus artistas.
É assim que a arte deve participar do movimento da sociedade, como ela deve
provocá-lo e segui-lo.
E é por ter compreendido mal essa meta da arte, por tê-la reduzido a nada além de
uma expressão de um ideal quimérico, que a Grécia, elevada pela ficção, perderia a
inteligência das coisas e o cetro das ideias.
Um tempo viria, ó Platão, quando os gregos, tendo colocado toda beleza nos
deuses, se encontrariam totalmente despojados dela e esqueceriam até mesmo o
sentimento dela. Uma superstição triste e grosseira se apossando, então, de suas mentes,
se veria os descendentes daqueles que outrora louvaram divindades tão belas, se
prostrarem ante um deus grisalho e deformado, coberto de trapos, o tipo da miséria e da
ignomínia16; se os veria, pelo amor àquele ídolo, odiar a beleza e se tornarem ignóbeis e
feios, de acordo com seus princípios religiosos. Os piedosos e santos seriam reconhecidos
por sua sujeira e seus vermes. Em vez de poesia e das artes, invenções do pecado, eles
praticariam a pobreza, fazendo do mendigar uma glória. Ginásios, escolas, bibliotecas,
teatros, academias, obras e pompas de Satã, seriam devastados e entregues às chamas: a
imagem de um mártir torturado pendurada em uma forca se tornaria, para as mulheres, a
mais preciosa das joias. Ser coberto em cinzas, se mortificar com abstinências, se exaurir
em orações, fugir do estudo como profano e do amor como impuro, é isto que eles
chamariam de exercício (ascetismo) da piedade e da penitência.
E essa religião, essa liturgia, esses mistérios, ó Platão, que seriam a religião do
Logos; e, em nome desse Logos, a razão seria detestada, a beleza amaldiçoada, a arte
anatematizada, a filosofia e os filósofos jogados nas chamadas e dedicados aos deuses
infernais.
A humanidade, então, curvada sob infame superstição e crendo-se odiosa e caída,
seria afligida com uma degradação sistemática e fetal. Não haveria mais ideal, nem dentro
do homem, nem fora dele: logo, nada mais de poesia, nada mais de oratória, nada mais de
arte e, especialmente, nada mais de ciência. Tanto quanto a Grécia se elevara com o louvor
de seus primeiros deuses, tanto assim, sob o jugo desse novo Senhor, ela seria rebaixada.
Pois o homem não se eleva em razão e virtude, exceto quando atraído pela beleza: e sua fé
consistiria de negar essa beleza, o que deveria efetuar seu júbilo e seu triunfo. Um deus
absoluto e inexprimível, manifesto em uma encarnação doentia e desonrada; o homem
declarado impuro, deformado e vil desde o nascimento: novamente, que estética, que
civilização poderia surgir desse dogma horrível?
Contudo, a decadência não seria eterna. Esses homens degenerados teriam
aprendido duas coisas, que um dia os tornaria maiores e melhores que seus pais: a primeira
é que, ante Deus, todos os homens são iguais; consequentemente que, pela natureza e
pela Providência, não existem escravos; a segunda é que seu dever e sua honra é
trabalhar.
O que nem a ginástica, nem a política, nem a música, nem a filosofia, congregando
seus esforços, souberam como fazer, o Trabalho realizará. Como nas idades antigas a
iniciação à beleza vinha por meio dos deuses, assim, em uma posteridade remota, a beleza
será revela uma outra vez pelo trabalhador, o verdadeiro asceta e é das inúmeras formas
da indústria que ela demandará sua expressão mutante, e os trabalhadores humanos, mais

16
Os gregos, convertidos ao cristianismo, representam o Homem-Deus como velho, magro, sofrido e
feio, em conformidade com o texto de Isaías, cap. 53.

35
belos e mais livres do que jamais foram os gregos, sem nobres e sem escravos, sem
magistrados e sem padres, formarão todos juntos, sobre a terra cultivada, uma família de
heróis, pensadores e artistas.17

__________

XI.

Dessa maneira, senhor, uma única noção, a noção de Progresso, restaurada à sua
posição na clave intelectual, é suficiente para que eu demonstre a razão de minhas
doutrinas e reforme de cima a baixo tudo que nossa educação clássica, doméstica e
religiosa nos faz considerar com indubitável, definitivo e sagrado. De tudo que aprendemos,
você e eu, no Colégio, na Igreja, na Academia, no Palácio, na Bolsa e na Assembleia
Nacional, nada persiste, tão logo o examinemos à luz dessa noção inevitável, anterior a

17
Para a arte, existem e só podem realmente ter existido apenas duas eras: a época religiosa ou
idólatra, da qual os gregos fornecem a mais alta expressão, e a época industrial ou humanitária, que
mal parece ter começado.
O século de Augusto foi apenas uma continuação daquele de Péricles: a arte, passando do
serviço dos deuses àquele dos conquistadores, começou a decair, não em relação ao acabamento
ou à execução, mas em relação à concepção de beleza. Modelos tais como os imperadores, os
patrícios e suas esposas! Tipos tais como os preguiçosos e ferozes plebeus, os gladiadores e os
pretorianos!
A Renascença foi, por sua vez, como o nome indica, apenas um pastiche. Não há e nunca
pode haver uma arte cristã. A antiguidade tendo sido repentinamente exumada, desistiu-se dos
Cristos emaciados, das Madonas angulares e pálidas, em favor dos Júpiteres, Apólos e Vênuses: os
artistas de Júlio II e Leão X não tinham outras inspirações. Também, esse movimento de uma arte
imitativa, uma inversão para a tradição, sem possível inteligência para o futuro, não poderia se
sustentar: era um escândalo de luxúria e curiosidade. Como mal se acreditava mais em Jesus e na
Virgem, e hoje não acreditamos mais de forma alguma, logo se veio a perder o interesse em suas
imagens; e essa carnaval católico tendo passado, a arte se descobriu uma vez mais completamente
vazia, sem princípio, sem objeto e sem meta.
O século de Luís XIV foi para nós como o de Leão X foi para a Itália, um exercício clássico.
Passou rapidamente; e quanto mais o vemos se afastar, mas ele nos parece abaixo de sua
reputação.
No presente, o mundo das artes e das letras está, como o mundo político, entregue à
dissolução. Tivemos em sucessão: sob Luís XIV, a disputa entre os antigos e os modernos; sob Luís
XV, a dos Piccinistes e Gluckistes; sob a restauração, aquela entre clássicos e românticos; ao
mesmo tempo, as batalhas entre fé e razão, entre autoridade e liberdade, as controvérsias
econômicas e constitucionais. Em sessenta e quatro anos, houve no governo francês uma dúzia de
revoluções e dezesseis golpes de estado, executados às vezes pelo poder e às vezes pelo povo. Isto
certamente não atesta um grande gênio político. O que a literatura e as artes poderiam ser, ao lado
dessa anarquia?
Em 93, ainda éramos sensatos; hoje somos apenas sensuais. Eu pretendera fazer dessa a
definição de mulher. Uma juventude fatigada, sem apetite e sem coração, lhe diz: A mulher é um
objeto da arte. Então a pintura e a escultura não são mais nada além de especialidades na
pornocracia da época. O artista pode fazer o que gosta, mas ele não pode lutar contra o modelo, o
tableau vivant!
A mulher é um objeto da arte! Não foi o socialismo que descobriu isso.... Eu gostaria, para
nossa mais rápida regeneração, que os museus, catedrais, palácios, salões e toucadores, com todos
os seus mobiliários antigos e modernos, fossem jogados nas chamas, com uma proibição de vinte
anos contra os artistas se ocuparem de sua arte. O passado esquecido, poderíamos fazer algo.

36
qualquer outra e, por essa razão, menos sentida e menos percebida, o movimento ou
Progresso.
E se agora, depois de ter, com a ajuda dessa noção de Progresso, purificado meu
cérebro, refeito meu julgamento e renovado minha alma, olhando ao meu redor e
considerando as figuras que me cercam, eu não mais encontrar nos outros homens, ontem
minhas contrapartes, nada além de contraditores, (eu quase diria inimigos)? Aqui, senhor,
você tem que tomar nota desse estilo belicoso e agressivo, pelo qual muitos me
repreenderam, mas do qual eu não tive sempre consciência e sobre o qual eu insisto
apenas que meus adversários e eu mesmo, penetrados como estivemos por diferentes
ideias, não fomos capazes de nos entender. Alguém disse há muito tempo que eu tenho
escrito apenas uma linha: Há na sociedade apenas dois partidos, o partido do movimento e
o partido da resistência, os progressistas e os absolutistas. E, ainda assim, quão poucos
dos primeiros você conhece! Quantos, pelo contrário, você não conhece dos segundos!
Absolutistas do primeiro escalão, os falsos céticos que, compreendendo mal a lei do
movimento intelectual e a natureza essencialmente histórica da verdade, conseguem ver
nas opiniões humanas apenas uma montanha de incertezas, que cada vez mais acusam a
filosofia de contradição e a sociedade de inconsequência e que, a partir da alegada
impossibilidade de se descobrir a verdade e de fazer os homens aceitarem-na, concluem
indiferentemente, alguns a favor do laissez-faire e outros pelo capricho, reconhecendo como
sedicioso e culpável apenas a discussão e a liberdade! Como se a verdade na filosofia e na
política pudesse ser qualquer outra coisa além da cadeia de vislumbres da razão, e como
se essa cadeia, mesmo se conseguirmos abarcá-la com a mente, pudesse se realizar de
qualquer maneira além de no tempo e na série das instituições! Como se o trabalho do
filósofo e do reformador, depois de ter reconhecido a progressão de ideias, não consistisse
unicamente em indicar, por turnos, os vários momentos da lei, postulando a cada dia um
novo marco na grande estrada da Humanidade! ... Pascal, que ficava tão escandalizado se
a fórmula do direito variasse sequer um grau do meridiano e que queria tornar a razão
jurídica uniforme nos dois lados do Pirineus, —Pascal, muito mais do que Pyrrho, que é tão
caluniado, —era o tipo desses absolutistas.
Até mais absolutistas são aqueles que, impacientes com essa mobilidade perpétua,
querem resolver a civilização em um sistema, a lógica em uma fórmula e o direito em um
plebiscito; que, tomando concepções por princípios, alegam ligar toda a atividade humana
exclusivamente a estes princípios e, fora de suas fantasias passionais, hierárquicas,
dualistas, trinitárias e comunitárias, não mais percebem a sociedade, ou a moral, ou o bom
senso de forma alguma. Como se cada afirmação do filósofo não levantasse uma negação
equivalente; como se cada decreto do soberano, revogando o decreto anterior, não
postulasse antecipadamente o decreto que o revogaria! ...
Absolutistas, aqueles pretensos políticos que impõem à sociedade, como um jugo,
seus axiomas inflexíveis e a ordenam a obedecer, qualquer que seja o custo, sem se dar
nenhuma conta do avanço das ideias, nem do atraso das populações. Nada é mais
ordinário, de fato, do que uma sociedade que, no próprio momento em que busca certas
reformas, deixam para trás as instituições em que é uma questão de abolir. É assim que os
rigoristas se tornam tão terríveis a ela quanto os retrógrados.
A unidade e perpetuidade do poder, diz um, é a primeira das leis sociais. Não há
salvação fora de uma monarquia legítima!
Os reis são feitos para o povo, responde um outro, não o povo para os reis. Não há
salvação fora de uma monarquia constitucional!

37
Todos raciocinam da mesma maneira: Não há salvação afora a prorrogação do
presidente, adiciona este. Não há salvação afora a constituição, adiciona aquele. Mas se
um acento foi removido ou adicionado, tudo está perdido!
Outros, cheios de suas teorias sobre soberania, exclamam: Apenas os interesses
reinam e governam. Não há salvação afora a lei de 31 de maio! Se há mais do que sete
milhões de eleitores, se eles votassem pela servidão e pelo direito de nascimento, tudo está
perdido! —Ao que a resposta não demora a vir: O direito ao sufrágio é um direito natural e
inalienável. Não há salvação afora a lei de março de 1849! Se há menos do que dez
milhões de eleitores registrados, se eles votassem por uma comunidade ou um império,
tudo está perdido! ...
Essas são as contradições do absolutismo! Esses são os debates com os quais
setecentos e cinquenta representantes ocupam seus dias, aqueles que o povo escolheu
para supervisionar a manutenção da paz, para governar e para fazer compromissos
amigavelmente pela satisfação da maioria, se não todos, dos interesses gerais, para
organizar um sistema de concessões e reformas, a prática da liberdade! As pessoas
ignorantes são levadas à guerra civil por seus próprios representantes! Ai de nós se eles
forem salvos por alguém! Ai se eles vierem a se salvar! ...
Absolutistas, finalmente, aqueles que, enquanto proclamam uma lei geral do
progresso e a necessidade de transições, foram inteiramente incapazes de discernir sua
direção, abusando de palavras e ideias a fim de mudar mentes e, de maneira alternativa,
colocando a opinião pública para dormir com seus compromissos autointeressados ou
agitando o ardor popular, às vezes reclamando que o século estava abaixo de seu gênio, às
vezes o empurrando de acordo com sua impaciência e, por sua incapacidade de liderá-lo,
lançando-o de precipícios.
Assim, a literatura romântica, revolucionária em forma, resultou, em última análise,
em uma questão retrógrada. Poderia ser útil resgatar do esquecimento a poesia da Idade
Média, prestar alguma medida de estima à arquitetura das masmorras e catedrais, mas ao
reviver o feudalismo enquanto elemento literário, os românticos anularam, tanto quanto
foram capazes, o movimento filosófico do século XVIII e tornaram o século XIX ininteligível.
Devemos-lhes a maior parte da reação que saudou a República.
Assim, o ecletismo, com intenções tão honestas, com uma crítica tão imparcial, mas
com visões tão tímidas, tão atento em sua mediocridade, depois de ter dado um forte
ímpeto ao estudo, acabou em intolerância. Com sua psicologia emprestadas dos escoceses
e seu teísmo sendo um pouco de Platão renovado, ele havia estabelecido um cordão
sanitário ao redor do status quo. O catolicismo lhe deve a extensão de seu sopro de vida e
paga a dívida o eliminando: isso não é justiça?
Assim, desde 1830, ao passo em que a publicação das teorias de Saint-Simon,
Fourier, Owen e a ressureição das ideias de Babœuf colocaram de maneira tão poderosa a
questão social, a real questão do século, fomos distraídos, desviados, enganados por um
liberalismo falso democrático e doutrinário. Sob o pretexto de lealdade às tradições de 89 e
93, jogamos tanto descrédito quanto pudemos sobre as teorias socialistas; em vez de
auxiliar a investigação, a suprimimos. Sem dúvida era necessário redimir e vingar os
homens da grande época; o progresso de nossa geração se acelerou com toda a Justiça
que lhes foi prestada. Mas era necessário tomar-lhes como modelos, nos impor suas
práticas e preconceitos? Neste momento, é o socialismo que as chamadas rodas
revolucionárias, que são todas em sua maioria insurrecionárias, culpam todo o mal desde
1848 na revolução. Se o socialismo, dizem eles, isto é, se a revolução não tivesse existido,
a revolução não teria provocado a contra-revolução! .... Também, e não se engane, aquela

38
antiga democracia não aspira apenas salvar a sociedade do socialismo uma última vez e se
arrepende de não a ter salvado melhor em 1848. Graças a essa distinção absurda entre o
partido socialista e o partido revolucionário, um punhado de ditadores jurou, como se diz em
seu zelo patriótico, o extermínio do socialismo, a supressão do Progresso! Você sabe onde
a cegueira dos neojacobinos nos empurraria? A uma reação sem limites, da qual eles não
seriam os heróis, mas a vítimas, mas da qual, também, para coroar sua miséria, eles não
teriam o direito de reclamar, uma vez que também teriam sido seus cúmplices...18
Progresso é saber, prever. Aqueles que foram acusados de efetuar o progresso em
1848 eram todos, por várias razões, homens do passado: é surpreendente que eles não
souberam como fazer o amanhã? Convencidos hoje por suas próprias confissões de terem
visto na revolução apenas uma mudança de funcionários, eles causaram a si mesmos um
declínio fatal. Qualquer tentativa de retorno, que não justificaria uma conversão explícita,
seria um crime de sua parte.
Liberdade é riqueza; é nobreza. Jogamos o direito eleitoral aos meurt-de-faim, como
Bridaine disse; eles responderam como escravos. O que é espantoso? Deixe que o
proletariado vote em 52 como o fizeram em 48, com um estômago vazio, e logo estaremos
todos em servidão, e a democracia francesa, refutada por seu próprio princípio, sem
bandeira, sem programa, terá deixado, por um momento, de ser uma realidade.
Forçado, em 1848, a lutar por minha defesa e pela afirmação revolucionária, eu logo
reconheci, pelo aborrecimento que novas ideias provocaram no partido democrático, que o
momento não havia chegado; e eu fiz todos os meus esforços para ocultar um antagonismo
que, de agora em diante, não serve a propósito algum e para trabalhar uma necessária
reconciliação entre a classe trabalhadora e a burguesia. Eu creio, por isso, ter feito um ato
de boa política, sobretudo de progresso. Quando os partidos se demonstram unanimemente
refratários, eles só podem ser revolucionados por uma média, fusão...
Você tem, senhor, minha profissão de fé. Eu nunca a escrevi antes; confesso que
raramente refleti sobre ela. Fui carregado pela corrente do meu século. Fui adiante sem
nunca me virar, afirmando o movimento, buscando a totalidade de minhas ideias, negando
as concepções analíticas, sustentando a identidade entre ontologia e lógica, mostrando que
a liberdade está acima até da religião19, pleiteando, em nome da justiça, a causa dos

18
Eu permiti que esta passagem ficasse, não a fim de insultar dos infortúnios dos quais compartilhei
quando foi escrita, mas a fim de responder a incansáveis calúnias.
A coisa que é especialmente patética sobre o golpe de estado de 2 de dezembro é que os
homens que ele atingiu de maneira mais cruel são exatamente aqueles que parecem entendê-lo
menos. Queremos ver apenas o instrumento, a ocasião e o pretexto, se me atrevo a colocar desta
maneira, a cordas: nós obstinadamente nos recusamos a reconhecer a causa. A causa é o terror
causado por uma revolução da qual o caráter, a medida e o fim foram distorcidos; é a direção
retrógrada da opinião, a resistência obstinada dos partidos, o maquiavelismo do Legislativo, a divisão
dos republicanos, dos quais alguns, na maioria, querem a república sem a revolução, ou a revolução
sem socialismo, a palavra sem a coisa, e outros foram forçados a protestar contra essa política
absurda ou então ao suicídio; é sobretudo o apelo aos instintos populares, sob as circunstâncias
mais infelizes, sob o nome do sufrágio universal. De minha parte, eu confesso, se estou preocupado
pelo bem da liberdade, se às vezes tenho dúvidas sobre o futuro da democracia, é porque vejo seus
defensores, mártires de uma fórmula vã, se voltarem furiosamente contra a revolução social, tendo
se tornado indiferentes às ideias, não entendendo que a proliferação de teorias socialistas é
precisamente o que a torna forte, de modo que alguns se juntam aos Orléanistas, por vergonha! ... ou
se entregam a projetos quiméricos, denunciados tão rapidamente quanto são concebidos! Que eles
finalmente acordem.... No dia em que abandonarem seu caminho mortal, a liberdade não estará
longe; na França, haverá apenas um preconceito a derrubar.
19
Um voltairiano que tinha grande temor do demônio, o príncipe de Ligne, disse cinquenta anos
atrás: "O ateísmo vive à sombra da religião."—Desde então, as coisas avançaram, e os papéis estão

39
assalariados e dos pobres, defendendo a igualdade ou, antes, a equação progressiva das
funções e dos destinos; além disso, acreditando pouco no desinteresse, tendo o martírio em
baixa estima apesar de minha prisão, pensando que a amizade é frágil, a razão vacilante, a
consciência duvidosa e considerando a caridade, a irmandade, o trabalho atraente, a
liberação das mulheres, o governo legítimo, o direito divino, o amor perfeito e a felicidade
como caricaturas do Absoluto.
Se fui, sem o meu conhecimento, no calor da polemica, em má fé do espírito
partidário ou de qualquer outra maneira, infiel a essa doutrina, é um lapsus calam de minha
parte, um argumento ad hominem, uma falha da mente e do coração, que eu repudio e
retiro.
Além disso, essa humildade filosófica me custa pouco. A ideia de progresso é tão
universal, tão flexível, tão fecunda, que aquele que a toma como compasso quase não
precisa mais saber se suas proposições formam um corpo de doutrina ou não: a
concordância entre elas, o sistema, existe pelo mero fato de que estão em progresso.
Mostre-me uma filosofia em que uma similar segurança seja encontrada! .... Eu nunca reli
minhas obras, e aquelas que eu escrevi primeiro, eu as esqueci. Do que importa, se eu me
movi durante doze anos e se hoje eu ainda avanço? O que alguns lapsos, alguns passos
em falso poderiam diminuir da retidão da minha fé, da gentileza de minha causa? .... Você
me agradará, senhor, de aprender por si qual estrada viajei e quantas vezes eu caí no
caminho. Longe de corar de tantos tombos, eu estaria tentado a me vangloriar deles e a
medir meu valor pelo número de minhas contusões.
Sou, senhor, etc.

SEGUNDA CARTA

DA CERTEZA E DE SEU CRITÉRIO

Sainte-Pélagie, 1º de dezembro de 1851.

SENHOR,
A questão que você me coloca em sua segunda carta não poderia ser mais judiciosa
e, se eu não a abordei primeiro, é porque me pareceu pertencer ao círculo de provas e
justificativas que eu teria fornecido mais tarde, não o esboço geral que eu precisava lhe
fazer. Já que pergunta, não posso mais recusar seu desejo e vou tentar, se conseguir,
explicar-me claramente sobre esta difícil questão.
O problema da certeza está certamente dentro do domínio da filosofia: a teoria do
Progresso o admite também e apenas essa teoria, em minha opinião, pode resolvê-lo de
maneira satisfatória. Mas a certeza é uma coisa; o que os gregos chamavam de χριτηριον, o

invertidos: a religião vive à sombra do Estado. Ora, pergunte a Odilon Barrot qual é a doutrina do
Estado nas questões de fé? Sua resposta, melhor do que qualquer uma que eu possa dar,
demonstrará a urgência de um princípio que possa servir, de uma só vez, como fundamento da
religião, isto é, da moral e do Estado.

40
critério da certeza, é outra. A certeza é, como disse, racional e filosófica por direito; o
alegado critério é apenas uma importação da teologia, um preconceito da fé religiosa, sem
sentido dentro dos limites da razão e é mesmo, do ponto de vista do movimento intelectual
que constitui a razão, uma hipótese contraditória.
Mas, você pergunta, como você concebe a certeza sem um critério? E se a certeza
não pode ser concebida sem um critério, como, sem esse meio de discernimento e de
garantia, a ciência é possível? Como, em relação à certeza, a fé pode ser mais favorecida
do que a razão? É precisamente o contrário do que é sempre assumido; é em virtude dessa
suposição mesma que a filosofia existe e se opõe à fé. A negação do critério, na filosofia, é
a coisa mais estranha imaginável...
Espero, senhor, que essa negação logo lhe pareça a mais natural e que você veja
nela, comigo, não mais a condenação, mas a glória da ciência.
__________

I.

São Paulo disse: A fé é o argumento para as coisas não vistas, isto é, coisas que
carecem de evidência ou certeza intuitiva, argumentum non apparentium. Ora, coisas não
vistas formam a maioria dos objetos que ocupam a mente e consciência dos homens. Isto
significa, de acordo com o Apóstolo, que não sabemos nada, ou quase nada, sobre as
coisas do universo e da humanidade, exceto através da fé. É assim que a fé se tornou um
critério para a mente humana.
Todas as sociedades começam daqui e, talvez surpreendentemente em nossa
época de discussão e dúvida, a massa, na qual eu incluo a Universidade e o Estado, não
tem outra fé. Em questões duvidosas, e todas as questões práticas são desse tipo, a
maioria dos homens conhece apenas a fé. Se seguem a razão, é sem sabê-lo; pois, repito,
eles não concebem a razão sem um decreto, ou a filosofia sem um critério.
Vamos explicar isso.
O cristão acredita que Jesus Cristo é o Filho de Deus, enviado à terra e nascido de
uma virgem para ensinar aos homens as verdades necessárias à ordem política, à
sociedade doméstica e à salvação pessoal.
Ele acredita que este Cristo transmitiu seus poderes à sua Igreja, que ele está
permanentemente com ela através do Espírito que ele lhe comunicou e que, em virtude
dessa contínua revelação, a Igreja governa o louvor e a moral com uma autoridade infalível.
Munido dessa fé, o cristão possui, ou crê que possui, para todas as questões, não
apenas de teologia, mas de política e moral, que não caia diretamente sobre o bom senso,
um instrumento de controle que lhe dispensa de refletir e até mesmo de pensar, e o uso do
qual não poderia ser mais simples. É apenas uma questão de comparar as questões
controversas seja com as palavras de Cristo reportadas nos Evangelhos ou com a
interpretação eclesiástica, o valor das quais é igual para o cristão.
Toda proposição que confirme o Evangelho ou que apoie a Igreja é verdadeira;
Toda proposição que refute o Evangelho ou que condene a Igreja é falsa;
Toda proposição que nem o Evangelho nem a Igreja tenham pronunciado é
irrelevante.

41
As palavras do messias e a definição canônica são, para o cristão, a verdade
absoluta, da qual toda outra verdade emana. Eis aqui, consequentemente, o critério.
É claro que um processo judiciário similar não é nada além do que a tirania da
inteligência. Igualmente, todos os governos, constituídos sobre o tipo divino da igreja, estão
ansiosos por imitá-la. Mas a razão protesta: "Esse ditado é difícil!". Mesmo na presença de
Jesus Cristo, os apóstolos disseram Durus est hic sermo! Pois, no fim das contas, o
Evangelho não disse tudo, nem previu tudo; quanto à Igreja, ela tem falhado tão
frequentemente e tão escandalosamente! E se eu demonstrasse, em um momento, que o
chamado critério nunca serviu para discernir uma única verdade, para proferir um único
julgamento! ...
Ainda assim, em vez de dispensar como duvidoso o critério cristão, tentamos
primeiro torná-lo mais universal e mais exato. Corrigir o critério da verdade poderia se
passar por loucura real: E daí! Não existiu nenhum meio de fazer de outra maneira. E a
coisa foi vista como uma dificuldade não maior do que uma retificação de pesos e medidas.
Assim, seguindo a reforma, Cristo é Deus, ou quase isso; seu ensinamento é
soberano e, como critério, nas questões às quais ele pode ser aplicado imediatamente, é
infalível. Quanto à exegese episcopal e à autoridade dos concílios e do papa, a Reforma
rejeita todos eles como limitados, parciais, sujeitos à pressa e à contradição. No lugar da
igreja, cada um dos fiéis é investido com o direito de ler por si mesmo o texto sagrado e
buscar seu sentido. Em outras palavras, o critério evangélico, que anteriormente apenas a
Igreja Romana tivera o direito de usar, foi colocado nas mãos dos batizados: esse foi o
resultado da reforma.
Lamennais, em seu Essai sur l'indifférence en matière de religion, o coloca de uma
maneira diferente. De acordo com esse Croyant, Deus é revelado em todos os momentos à
humanidade, não apenas pelos patriarcas, padres e profetas do Antigo Testamento, não
apenas por Jesus e sua Igreja, mas por todos os fundadores da religião: Zoroastro, Hermes,
Orfeu, Buda, Confúcio, etc. Todas as ideias morais e religiosas que a Humanidade já possui
vêm dessa revelação singular e permanente. Assim como os estados da Europa moderna
são o produto do cristianismo, mais ou menos adaptados às circunstâncias e raças, assim
os Estados da antiguidade eram o produto da religião primitiva, professada por Adão, Noé,
Melquisedeque, etc. Na base, as legislações, como os cultos, são idênticas: todos
repousam sobre um comunicado original da Divindade. Caso se fizesse um inventário das
instituições políticas e religiosas de todos os povos e se separasse o conteúdo da forma, se
obteria um código de fórmulas perfeitamente homogêneas, que se poderia considerar como
a sabedoria revelada das alturas, o critério da espécie humana.
Claramente, esta maneira de ver o cristianismo o enfraquece, no sentido de que o
coloca de volta no sistema geral de manifestações religiosas e o obriga a fraternizar com
todos os cultos sobre os quais ele há tanto lança anátema. Mas, de tudo que perde, pode se
dizer que também aumenta também, criando um catolicismo maior do que aquele que os
primeiros cristãos conceberam. Os cultos são geralmente considerados em solidariedade
também; sua causa agora é comum, e Edgard Quinet, ao escrever o Génie des religions,
claramente postulou o princípio da religiosidade moderna. A universidade concorda, em
princípio, com os jesuítas, e o Papa pode oferecer sua mão ao sultão e ao Grande Lama. A
grande reconciliação é realizada, a fé é uma como o Logos, e a república universal
encontrou seu critério.
Temo, contudo, que este cristianismo de poetas e arqueólogos tenha levado apenas
a uma mistificação e que, ao generalizar o critério, eles o perderam.

42
A Reforma disse: Todos os fiéis recebem, através do batismo e da comunhão, o
Espírito Santo. Todos são, por consequência, interpretadores das palavras de Cristo: a
definição canônica é inútil.
Lamennais, Quinet, Mazzini e outros adicionam: Todos os povos receberam, através
de suas iniciações individuais, o Espírito Santo; todos os cultos são, consequentemente,
versões do Evangelho, e a autoridade dessas versões juntas tem precedente sobre à da
Igreja de Roma.
Não importa como você olhe, tão logo você rejeite a autoridade especial, a fim de
colocar em seu lugar seja o sentimento individual ou, o que equivale à mesma coisa, o
testemunho universal, isto não quebra o elo com a fé e faz um apelo à razão? Pensávamos
que havíamos assegurado nosso critério: ele desapareceu.
Uma vez que somos forçados a retornar à razão, vejamos o que ela oferece. Ela
também tem um critério?
__________

II.

Nada de novo sob o sol! Logo no início, a razão, sob o nome de ciência,
conhecimento, επιστημη, γνωσις, ou sob o nome mais modesto de filosofia, aspiração à
ciência, se opôs à fé e reivindicou a posse da verdade, não mais através das palavras de
um médium espiritual, fides ex auditu, mas por uma contemplação que é direta e, por assim
dizer, face-a-face, sicuti est facie ad faciem. Ver a verdade em si mesma, com a única
garantia de seus próprios olhos e de sua própria razão, é claramente rejeitar a hipótese de
um critério: estou surpreso que a filosofia não tenha sido capaz de entender esse apólogo.
Tal era, contudo, o pensamento daquela multidão de religionistas, contemporâneos de
Jesus e dos apóstolos que, sob o nome geral de gnósticos, conhecedores, enfrentaram a
Igreja por mais de seis séculos e desapareceram de maneira completa apenas com a
chegada da Reforma.
O gnosticismo, não tenho dúvida, logo teria suprimido o cristianismo e se tornado a
religião universal, se tivesse se demonstrado mais verdadeiro ao seu nome, se tivesse sido
mais prático, mais empírico e menos iluminado. Mas isso supunha que a gnose era cinco
vezes mais complicada, mais misteriosa, mais hiper-física do que a emergente fé que ela
desprezava: de tal maneira que, em suas cartas, Paulo, o doutor par excellence da fé, o
homem do critério transcendental, tratava as sublimidades da gnose como contos da
carochinha e amontoava seu sarcasmo por sobre elas. Ai de mim! O senso comum é o
último a chegar à mente humana, e aquele que se acredita sábio por protestar contra um
certo grau de superstição, ele mesmo é supersticioso apenas de uma maneira mais maligna
e incurável. O gnosticismo, que faz, em seu próprio tempo, apenas uma tentativa de fusão
religiosa, análoga àquela que é tentada em nossos próprios tempos, foi derrotado, então,
tanto por suas próprias contradições quanto pela real superioridade de seu adversário.
Aqueles que alegavam ter um conhecimento direito foram persuadidos a experimentar
apenas as quimeras de seus próprios cérebros; e agora, mais do que nunca, se pedirá por
um preservativo contra as ilusões do encéfalo. Graças a eles, a ciência foi adiada por
quinze séculos. Ela nunca teria se desenvolvido, se tivesse dependido dos teosofistas
modernos.

43
Foi com Bacon e a Renascença que a ciência foi formada, à parte do sobrenatural e
do absoluto, experimental, positiva, certa e, se me atrevo dizer, sem critério. Primeiro
explicarei este aparente paradoxo: você logo verá como, ao exemplo dos gregos, os
modernos conseguiram colocar de novo em questão a certeza do conhecimento e como
suas mentes, purgadas de maneira incompleta das noções teológicas, caíram novamente
na criteriomania dos antigos.
Tudo que existe, eu disse em minha primeira carta, está necessariamente em
evolução; tudo flui, tudo muda, modifica-se e transforma-se incessantemente. O movimento
é a condição essencial, quase a matéria, do ser e do pensamento. Não há nada fixo,
estável, absoluto ou invencível, exceto a própria LEI do movimento, isto é, as relações de
peso, número e medida, de acordo com as quais toda a existência aparece e se conduz.
Aqui, a filosofia do progresso absorve aquela de Pitágoras e lhe dá sua posição e caráter.
Desta forma, a totalidade do universo é idêntica e adequada à totalidade das séries
ou evolução. Por exemplo, a totalidade da existência animal está contida no período
incluído entre a concepção e a morte: o ser vivente, em qualquer momento desse período, é
apenas uma fração de si mesmo. Segue-se disto que toda a atualidade é imperfeita e irreal,
sempre representando apenas um movimento de evolução, um termo na série, em suma,
uma fração ou aproximação da existência, transmitindo apenas de maneira incompleta a lei.
A lei em si mesma é, assim, definitiva, e podemos ter uma ideia exata dela através
de sucessivas observações das manifestações parciais que a revelam. Mas nada sensível,
nada presente, nada real jamais pode representá-la: tal realização, em uma dada hora, é
contraditória. Não há, então, nenhum espécime possível do movimento, nenhuma cópia
exata e autêntica. O arquétipo, disse Platão, é e sempre será apenas uma ideia; nenhum
poder sabe como obter uma norma.
Se é assim para a existência considerada em sua plenitude, se a realidade existe
apenas de maneira fracionária em relações e em coisas, segue-se:
Que podemos conhecer bem a lei de nossos pensamentos, a regra de nossas
ações, o sistema de nossas evoluções, o curso de nossas instituições e de nossas
maneiras; que nos conformamos, o melhor que podemos, no exercício de nossa liberdade,
a essa lei, a essa regra, a esse sistema, a esse curso providencial; que podemos,
finalmente, na prática da vida, fazer julgamentos equitativos, mas que não podemos nunca
tornar esses julgamentos JUSTOS. Deus em si não pode fazê-lo. Sua razão, assim como a
nossa, só se pronuncia corretamente sobre o conjunto, nunca sobre os detalhes: apenas
sob essa condição pode-se dizer, com o salmista, que os julgamentos divinos são
absolutos, justificata in semetipsa.
Deixe-nos tornar isso mais sensato através de alguns exemplos.
A ideia de valor é elementar na economia: todo mundo sabe o que se quer dizer com
isso. Nada é menos arbitrário do que essa ideia; ela é a relação comparativa de produtos
que, em cada momento da vida social, compõem a riqueza. O valor, em uma palavra, indica
uma proporção.
Ora, uma proporção é algo matemático, exato, ideal, algo que, por sua alta
inteligibilidade, exclui o capricho e a fortuna. Há, então, acima da oferta e da demanda, uma
lei para a comparação de valores, portanto, uma regra da avaliação dos produtos.
Mas essa lei ou regra é uma ideia pura, da qual é impossível, em qualquer momento
e para qualquer objeto, fazer a aplicação precisa, ter-se a norma exata e verdadeira. Os
produtos variam constantemente em quantidade e em qualidade; o capital na produção e
seu custo variam igualmente. A proporção não permanece a mesma para dois instantes em
sequência: um critério ou padrão de valores é, assim, impossível. O pedaço de dinheiro,

44
com cinco gramas de peso, que chamamos de franco, não é uma unidade fixa de valores: é
apenas um produto como os outros que, com seu peso de cinco gramas a nove décimos de
prata e um décimo de liga, às vezes vale mais, às vezes menos, do que o franco, sem que
jamais sejamos capazes de saber exatamente qual é a sua diferença do franco padrão.
Sobre o que, então, repousa o comércio, uma vez que está provado que, carecendo
de um padrão de valor, a troca nunca é igual, embora a lei da proporcionalidade seja
rigorosa? É aqui que a liberdade vem ao resgate da razão e compensa pelas falhas da
certeza. O comércio repousa sobre uma convenção, o princípio da qual é que as partes,
depois de terem buscado, infrutiferamente, as relações exatas dos objetos trocados,
chegam a um acordo para conceder uma expressão suposta exata, contanto que ela não
exceda os limites de uma certa tolerância. Essa expressão convencional é o que chamamos
de preço.
Assim, na ordem das ideias econômicas, a verdade está na lei e não nas
transações. Há uma certeza para a teoria, mas não há nenhum critério para a prática.
Sequer haveria prática, e a sociedade seria impossível, se, na ausência de um critério
anterior e superior a ela, a liberdade humana não tivesse encontrado um meio para ofertá-lo
por contrato.
Da economia, passemos para a moral. A justiça, de acordo com a lei romana,
consiste em dar a cada um o que lhes é devido, suum cuique. Prender-me-ei a essa
definição, a fim de evitar qualquer disputa.
A lei da justiça é absoluta: a lei civil, escrita ou usager, repousa sobre ela. Ninguém
jamais disputa a validade dessa lei: por outro lado, o mundo ressoa com reclamações
contra suas aplicações. Onde, então, está o critério? Eu observei, em minha primeira carta,
que a máxima, Faça aos outros como gostaria que fizessem a você, não é um instrumento
para uma avaliação exata, uma vez que seria necessário saber o que deveríamos
legitimamente desejar que nos fosse feito. A fórmula econômica pela qual o socialismo
substitui esse antigo adágio, A cada um de acordo com sua capacidade, a cada capacidade
de acordo com seu produto, é mais certa, uma vez que postula de uma só vez o direito e o
dever, o benefício e sua condição. Mas não é mais um critério do que a outra, uma vez que,
de acordo com que acabou de ser dito sobre o valor, nunca sabemos exatamente o que
uma coisa vale ou o que um homem merece.
Eu respeito profundamente a propriedade, assim como respeito cada instituição,
cada religião. Mas aqueles que acusam o socialismo de querer abolir a propriedade e que
tomaram tanto cuidado inútil de defendê-la, ficariam profundamente embaraçados de dizer
como eles reconhecem, com certeza, que tal coisa é a propriedade de um tal e que não há
nessa coisa um outro direito. Qual, em uma palavra, é o critério da propriedade? Se alguma
parte da revelação deve ter tido que intervir nos julgamentos humanos, é definitivamente
naqueles que se tratam da propriedade. Quanta terra e quanta propriedade pessoal devem
retornar a cada um? Parece-me que, nessa questão, os olhos grandes de nossos
conservadores estão preocupados e que seu lado egoísta está desconcertado.
É a conquista, a primeira ocupação, que cria a propriedade? —Eu observo que a
força não faz a lei e que na primeira oportunidade, eu saberia, sem mais delongas, me
vingar.
É a instituição do Estado? —Eu respondo que o que o estado fez, o Estado pode
desfazer; e como eu tenho o maior interesse na coisa, tentarei me fazer mestre do Estado.
É o trabalho? —Eu pergunto quais devem ser as recompensas do trabalho? Se cada
um trabalhou? Se aqueles que trabalharam receberam o que deveria retornar para eles,
cuique suum, nem mais nem menos? ...

45
Alguns filósofos que se pensam profundos e que são apenas impertinentes,
imaginam que encontraram uma recusa direta do princípio da igualdade, que forma a base
da crítica antiproprietária. Eles dizem que não existem duas coisas iguais em todo o
universo. —Muito bem. Admitamos que não houve duas coisas iguais no mundo: pelo
menos não se negará que todas têm estado em EQUILÍBRIO, uma vez que, sem equilíbrio,
assim como sem movimento, não há nenhuma existência. O que, então, é o equilíbrio das
fortunas? Quais são seus minima e seus maxima? Qual é a relação entre os minima e os
maxima das fortunas, e os minima e maxima das capacidades? Permita-me perguntar: uma
vez que, sem uma resposta, tudo novamente se torna usurpação, e os mais ignorantes, os
mais incompetentes dos humanos têm o direito a serem tratados tão bem quanto os mais
instruídos e os mais valentes, mesmo que apenas como compensação por sua fraqueza e
sua ignorância.
Claramente, esse não é nenhum critério para a propriedade, nem para sua medida,
nem para sua transmissão, nem para seu gozo. Note também que, dessa carência de
critério para a justa apropriação dos bens, o autor do Evangelho concluiu, seguindo Licurgo,
Pitágoras, Platão, pelo comunismo, toda a antiguidade pela escravidão, e a economia
malthusiana pelo salariat.
Ora, o que a nova ciência, a teoria do Progresso, diz sobre a propriedade?
Ela diz que a propriedade, assim como o preço das coisas, é originalmente o
produto de um contrato, que esse contrato é determinado pela necessidade do trabalho,
assim como a convenção que fixa o preço das coisas é determinada pela necessidade da
troça; mas que, assim como, com o tempo e a concorrência, o preço de cada coisa se
aproxima cada vez mais de seu verdadeiro valor, assim, com o tempo e o crédito, a
propriedade tende cada vez mais a se aproximar da igualdade. Apenas que, ao passo que o
preço das mercadorias, ou a justa remuneração do trabalhador, geralmente alcançam sua
taxa normal em um período um tanto curto, a propriedade apenas chega a seu equilíbrio
depois de um tempo muito maior: mais ou menos como se o movimento anual da terra
fosse comparado com a revolução dos equinócios.
Aqui, então, repetirei, existe uma regra para o legislador; mas não há um critério
para o juiz. Enquanto a justiça eterna lentamente realiza sua obra, a jurisprudência é
forçada a obedecer ao costume, a obedecer a religião do contrato.
As ciências naturais oferecem exemplos dessa distinção entre a lei das coisas e sua
realização: a primeira é absoluta e imutável; a segunda, essencialmente móvel, aproximada
e incorreta. Assim, é uma lei que as estrelas pesam umas sobre as outra em relação direta
às suas massas e inversa ao quadrado de suas distâncias; que elas varrem áreas
proporcionais ao tempo, etc., Mas estas leis, que podemos compreender apenas ao adotar,
no pensamento, revoluções imensas e numerosas, são praticamente tudo que é verdade na
existência dos mundos; quanto aos fenômenos, eles são tão irregulares quanto se pode
imaginar. É um fato, por exemplo, que os círculos siderais não são redondos, tampouco são
ovais. Mais do que isso, suas curvas instáveis não retornam a si mesmas, etc. Ao que
tendem, finalmente? Ninguém sabe. O exército celestial desliza em um espaço sem limites,
sem jamais apresentar duas vezes em seguida as mesmas posições. É necessário concluir
que a geometria e a aritmética, através das quais calculamos esses movimentos, são
falsas, que a ciência ilustrada por Newton, Laplace e Herschel é uma quimera? Não. Todas
essas variações do modo eterno provam uma coisa, a saber, que a certeza não está no
fenômeno, que, considerado separadamente, não é nada além de um acidente, mas na
série de evolução que sozinha é a lei.

46
Mas permaneçamos com as coisas da humanidade, pois é sobretudo ali que a
questão da certeza assume sua gravidade e nos interessa.
Eu disse que a ideia de um critério de certeza era uma importação da teologia para o
domínio filosófico; eu provei, em relação à economia e à moral, que o suposto critério não
tinha aplicação possível. Mais curioso ainda, ele é impotente na religião, a própria ordem de
ideias que o produziu e para a qual ele foi inventado. A religião, assim como a justiça e a
economia, está sujeita à lei do Progresso; por essa razão, ela não tem mais um critério, de
modo que a fé, essa razão das coisas não vistas, se resolve em alienação mental, ou
retorna à dialética.
O cristianismo existia em Jesus? Não faço essa pergunta para o cristão, mas para o
filósofo. Ele existia em São Paulo, em Agostinho, em Fócio, em Tomás, em Bossuet? Ele
existe em Pio IX, em Nicolau ou em Vitória?
O cristianismo seria diminuído, se fosse reduzido a qualquer profissão de fé em
particular. Os antigos não sabiam tudo que os modernos aceitam; os modernos, por sua
parte, não retêm tudo aquele que os antigos aceitavam. Em nenhuma época a forma foi a
mesma para todos os contemporâneos. De acordo com Cristo e os apóstolos, o reino do
Evangelho não é deste mundo; de acordo com Hildebrando e os ultramontanistas, o papa,
elevado acima de todo poder, é o mestre do mundo; de acordo com os gregos e os
anglicanos, o chefe natural da Igreja é o chefe de Estado. Todas essas oposições podem
ser igualmente justificadas pela tradição, pela Escritura e pelo sistema geral das religiões; e
não seria difícil mostrar que a diferença de opiniões sobre a independência ou a
subordinação do poder temporal leva a um caso similar no dogma. Em quem deve-se
acreditar, em Cristo falando por si mesmo, ou na Igreja afirmando sua supremacia? Nos
galegos que separam os dois poderes, ou nos russos e anglicanos que os reúnem? Tudo
isso é igualmente uma parte do cristianismo e está em perfeita contradição. O que se torna
o critério?
Apenas a teoria do Progresso pode dar uma explicação razoável de todas as
variações da fé cristã, mas sob a condição de que o cristianismo perca seu caráter
Absoluto. Essa teoria considera o cristianismo como uma corrente de opiniões, que se
formou na época de Alexandre por toda a Grécia e pelo Oriente; que cresceu e foi
complicada por uma multidão de tributários, de Augusto a Teodósio; que se dividiu próximo
a Fócio; que, sob o nome de catolicismo, pareceu alcançar seu apogeu, de Gregório VII a
Bonifácio VIII; que se subdividiu novamente com Lutero; que, finalmente, embora assustada
por seu próprio movimento, tentou se consertar em Trento e, morta enquanto catolicismo
pela negação de sua inevitável mobilidade, prosseguiu para se dispersar e se perder,
enquanto protestantismo, nos saibros da democracia americana.
Conhecer o cristianismo não é afirmar tal e tal sistema de dogma, mais ou menos
harmonicamente combinados e que visam uma estagnação; é ter viajado e visitado o rio
cristão, primeiro em suas fontes oriental, judaica, egípcia, grega, latina, germânica e eslava,
e, então, em seu curso tumultuoso e tão frequentemente dividido e, finalmente, nas
inúmeras ramificações onde ele pouco a pouco perdeu seu caráter e desapareceu.
A Religião, assim como o Estado, assim como todas as instituições humanas, se
manifesta em uma série de termos essencialmente opostos e contraditórios: é por esta
razão apenas que ela é inteligível. Seu verdadeiro critério são suas variações. Quando
Bossuet apontou para a instabilidade do dogma nas igrejas reformadas e exigiu dos seus
uma constância da fé que não existe, ele fez, sem sabê-lo, uma apologia aos seus
adversários e pronunciou a condenação do catolicismo.

47
A Religião é como a fala. Nada é mais móvel, mais variado, mais elusivo que a
língua humana e, ainda assim, a linguagem é una em sua essência, e as leis da linguagem,
mais do que as fórmulas da lei e as definições da teologia, são a própria expressão da
razão. Aqui, como em todo lugar, o absoluto é uma ideia pura, ao passo em que o acidente
é a realidade em si. Você diz que a fala é apenas um som vão, a gramática uma tolice, a
poesia um sonho, porque a língua universal é e só pode ser uma abstração? ...
Toda verdade está na história, assim como toda existência está no movimento e na
série; consequentemente, toda fórmula, filosófica ou legislativa, tem e pode ter apenas um
valor transitivo. Negligenciar essa máxima é a fonte fecunda de todas as nossas aberrações
e infortúnios.
Cícero considerava o consentimento universal como o grau mais alto de certeza
moral, e todos os nossos tratados de filosofia ainda o citam como a prova mais explícita da
existência de Deus. Mas está claro, por tudo que acabou de ser dito, que o consentimento
universal só tem valor se for tomado na sucessão de seus testemunhos. Fora isso, existe
apenas contradição e falsidade. Considerado em qualquer momento de suas
manifestações, o consentimento universal perde seu nome; torna-se sufrágio universal, a
fantasia do momento, estabelecida como um absoluto.
Você quer, então, que o sufrágio universal, que forma, neste momento, a base de
nossos direitos públicos, adquira toda a autoridade que ele necessita? Não é questão de
aboli-lo: o povo sentiu o gosto do fruto proibido; é necessário, para sua absolvição ou
condenação, que ele seja retificado até o fim. Abandonem seus sistemas de voto eleitoral,
cada um mais absurdo que o último e que só dão luz à tirania da maioria ou à sua
abdicação. Faça o sufrágio universal à imagem do consentimento universal. Considere essa
massa que você vai questionar como uma representação de todas as eras da Humanidade.
Existem os diaristas, os domésticos, os assalariados, a multidão pobre e ignorante,
constantemente convocados ao crime por sua pobreza e que representam para você as
gerações primitivas; acima dessa multidão, uma classe média, composta de trabalhadores,
artesãos e mercadores, os costumes, opiniões e fortunas da qual expressam bastante bem
o segundo grau da civilização; finalmente, uma elite, formada de magistrados, funcionários
públicos, professores, escritores e artistas, que marcam o grau mais avançado da espécie.
Peça a esses interesses diversos, a esses instintos semibárbaros, a esses hábitos
teimosos, a essas aspirações tão elevadas, o seu pensamento íntimo; classifique todos
esses desejos de acordo com a progressão natural dos grupos; então você encontrará nisso
uma fórmula coordenada que, abarcando os termos contrários, expressando a tendência e
expressando a vontade de nenhuma pessoa, será o contrato social, será a lei. É assim que
civilização geral tem avançado, por trás das costas de legisladores e dos homens do
estado, sob o disfarce de oposições, revoluções e guerras...
Eu creio, senhor, que eu demonstrei de maneira suficiente que o critério da certeza é
uma ideia antifilosófica emprestada da teologia e a suposição do qual é destrutiva da
própria certeza. Não apenas a metafísica, a política, a legislação, a economia, a história e
todas as ciências todas rejeitam essa ideia: a própria religião que de lhe deu à luz se torna
inexplicável através dela. Essa proposição me parece nova o suficiente para merecer
alguma elaboração: Chego agora ao cerne da dificuldade.
__________

48
III.

Seguindo o exemplo dos gregos, a filosofia moderna primeiro nos pergunta como
reconhecer o que o entendimento chama de lei, mas que é inacessível aos sentidos;—em
segundo lugar, ela pergunta se essas supostas leis, que supomos governar os seres, não
são simplesmente os efeitos de nossa atividade intelectual ou, em outras palavras, uma
aplicação involuntária das formas de nossa razão aos fenômenos;—finalmente, ela
pergunta se temos certeza da realidade dos objetos e se a opinião que temos de sua
existência é algo além de uma fé subjetiva. Esta é a dúvida transcendente, em prova da
qual citam-se as proposições contraditórias da metafísica, que Jouffroy entre outros
declararam invencíveis.
Minha resposta será breve, uma vez que é feita com antecedência e então terá
esperança de ser tão clara quanto é decisiva.
Sobre o primeiro ponto, a saber, através de qual sinal reconhecemos a ideia geral ou
lei, eu respondo que ela reconhecida pela unidade da diversidade que constitui a série, o
gênero ou a espécie, em suma, pelo grupo. É, como o conhecimento das coisas em si
mesmas, uma simples intuição. Você perguntará em seguida como a mente percebe a
unidade? Isso equivale a perguntar como existe algo ou alguém que vê e que pensa. Eu
não responderei a essa pergunta mais do que a esta outra: Como algo existe? O
pensamento, a faculdade de descobrir e expressar a unidade diversificada, é fato original,
anterior, imediatamente dado e, assim, inexplicável da ciência e do universo. Sem a
faculdade de perceber a unidade, não há mais pensamento, não há mais consciência, não
há mais existência, não há mais nada que seja. Eu sou, eu penso, eu possuo a unidade.
Ou, deixando de lado essa personalidade gramatical, que é em si apenas um acidente, algo
é, algo pensa, algo é um: todas essas proposições são idênticas para mim. Elas significam
que a condição essencial do meu pensamento é ver a lei e ver apenas a lei. Eu não provo
essa percepção; eu a afirmo, junto a Descartes e a Malebranche: uma vez que eu penso
apenas em virtude da minha faculdade de perceber a unidade, por um lado, eu descubro a
unidade em todo lugar e, por outro, eu vejo tudo em unidade.
Sobre o segundo ponto,—isto é, se a unidade ou lei que meu pensamento descobre,
que consequentemente se torna imediatamente a lei ou forma do meu pensamento, é um
produto do meu pensamento ou se é, ao mesmo tempo, a lei das coisas e se,
consequentemente, terceiro ponto, ela implica a existência, externa ao meu pensamento, do
que eu chamo de coisas—eu respondo que essa dupla questão não é para mim e que ela
só pode ser dirigida àqueles que, não reconhecendo a ideia sintética do movimento como a
base da ontologia e da lógica, partem da distinção das substâncias e, dos diversos graus do
ser, fazem muitos seres diferentes.
De fato, se for verdade, como creio ter provado, que o dualismo ontológico é o
resultado da análise da ideia de movimento e da subsequente compreensão dos conceitos
dados por essa análise, todas as objeções extraídas da distinção entre eu e o não-eu caem
com essa própria distinção.20 O ser, em seu mais alto grau de existência, é, de uma só vez,

20
Se pensar [penser] e pesar [peser] são impessoais [anonymes], como a etimologia prova, o golfo
que a ontologia antiga havia cavado entre a mente e a matéria é preenchido; as vibrações do éter
podem transmitir as impressões do cérebro; a consciência não é mais nada além de uma fonte de
movimento, que os corpos mais crus podem ecoar. Pelo simples fato de que eu penso, eu me movo;
pela concepção, em meu cérebro, da ideia de movimento, essa ideia é executada; e os músculos que
recebem o efeito por meio dos nervos, tendem a executá-la por sua vez. Eles sem dúvida a

49
eu e não-eu: ele pode igualmente dizer, falando de si mesmo tanto quanto de outros, eu,
você, ele, nós, todos vós, eles. O que estabelece nele a identidade e a adequação das
pessoas, no singular, no dual e no plural, é precisamente sua conjugação.
Assim como Descartes não poderia duvidar de que ele pensava e uma vez que a
dúvida levantada sobre seu próprio pensamento seria ilegítima, assim também, e por razões
muito mais fortes, eu não posso duvidar de que me movo, uma vez que o pensamento é
apenas uma forma de movimento: nestes casos, assim como no anterior, e muito mais do
que naquele caso, a dúvida é contraditória e ilegítima.21
Ora, quem quer que diga movimento, diz série, unidade diversificada, ou grupo,
consequentemente, eu e não-eu, eu e tu, nós e eles, etc. até o infinito. A revelação que eu
tenho de mim mesmo necessariamente implica a que eu tenho dos outros, e vice-versa, ou
melhor, essas duas revelações equivalem a apenas uma: do que se segue que as leis
desse pensamento são, ao mesmo tempo e necessariamente, as leis das coisas. O
contrário seria uma contradição.
Além disso, essa identidade decisiva entre eu e não-eu, tão difícil de estabelecer no
âmbito das ideias puras, será provada de maneira direta e empírica pela fisiologia do
homem coletivo, pela demonstração de suas faculdades, de suas ideias e de suas
operações.
Quando se viu que, na espécie humana, o indivíduo e a sociedade, indivisivelmente
unidos, formam, contudo, dois seres distintos, ambos pensantes, ativos e progressivos;
como o primeiro recebe uma parte de suas ideias do segundo e exerce, por sua vez, uma
influência sobre ele; como, então, as relações econômicas, produtos da análise individual e
contraditórias entre si, na medida em que se as considera no indivíduo, se resolvem em
ideias sintéticas na sociedade, de modo que cada homem raciocina e age em virtude de um
duplo eu, goza de uma dupla inteligência, fala uma dupla linguagem, persegue um duplo
interesse; quando, digo, leva-se em conta que o dualismo orgânico pressentido por todas as
religiões e que compõe, de uma só vez, a existência coletiva e as existências individuais, se
conceberá mais facilmente a resolução dos contrários na ontologia e na metafísica, e o
escândalo da divergência e da contradição das filosofias chegará ao seu fim.
Essas filosofias todas parecerão verdadeiras, como deduções analíticas especiais
da teoria universal do movimento; mas cada uma delas também parecerá falsa, na medida
em que aspiram criar um cisma e excluir suas rivais.22 Assim, O problema filosófico estando

executariam, se um pensamento de sentido contrário não suspendesse sua ação e fizesse o primeiro
impulso morrer na extremidade dos nervos. Se dois, três ou um número maior de sujeitos pensantes
se colocam em relação por meio de qualquer condutor, se uma palavra é lançada em seu meio, ela
produzirá, sem o conhecimento deles, uma comoção geral, traduzível em ideias, e a espontaneidade
da qual indicará para as pessoas supersticiosas a presença de um demônio familiar, de uma alma
que partiu. Uma carreira se abriria, a partir disso, para os adivinhos e os necromantes? Perece o
pensamento. A natureza, por suas harmonias, pela constância de suas leis, pela firmeza de seus
tipos, nos ensina o suficiente para zombar de prodígios e monstros; e é o sinal de uma grande
degradação da inteligência, um prelúdio de grandes catástrofes, quando as pessoas, incapazes de
uma labuta científica, abandonam a razão e a natureza para perseguirem evocações e milagres.
21
Zenão de Eleia negava o movimento e pretendia justificar sua negação através de um raciocínio
matemático, baseado no princípio da divisibilidade infinita do espaço. Mas está claro: 1) que a
demonstração de Zenão é, ela mesma, apenas um movimento de sua mente, o que lhe envolve em
uma contradição; 2) que ela repousa, como a ideia de espaço que se atravessa, sobre uma análise
do movimento, o que é uma outra contradição; 3) que, ao postular a divisão infinita, ele exige uma
retrogradação infinita, o que é uma terceira contradição.
22
A filosofia do Progresso reconcilia sistemas demonstrando que seus apotegmas todos repousam
sobre noções analíticas que são verdadeiras apenas na medida em que estão associadas a outras

50
resolvido, será verdade dizer que o movimento filosófico foi realizado: no lugar de sistemas,
que partem de uma concepção arbitrária e levam a uma contradição fatal, teríamos uma
ciência progressiva, a compreensão cada vez maior do ser, da lei e da unidade.
Assim, o dogmatismo religioso também receberia sua interpretação racional, e a
ordem política, sua constituição livre: toda teosofia evaporando-se no âmbito da moral, todo
culto, na educação, todo o governo, na economia, toda autoridade, em contratos.
Assim, finalmente, saberíamos por que, a ciência econômica tendo estado em falta
até recentemente, a equidade geral tem que chegar tão tarde; por que a evolução
humanitária que acabou da primeira vez, para os cultos, na queda do politeísmo, para a
política, na ruína do Império Romano, teve que começar novamente com o cristianismo, o
feudalismo e a filosofia moderna; por que, em uma palavra, deixando de lado o progresso
da indústria e das ciências, a civilização foi, por quinze séculos, apenas uma repetição.
Uma vez que a teoria dos interesses foi negligenciada, foi necessário que
copiássemos tudo, que repetíssemos tudo dos romanos e dos gregos, da antiquada tirania
até o ecletismo, da escravidão ao comunismo, da mais feroz superstição ao misticismo, a
cabala e a gnose. Agora nada resta para nos apropriarmos; a tradição foi exaurida: somos
forçados a nos tornarmos originais, por nossa vez, e a continuar o movimento.

noções que são igualmente analíticas, mas diametralmente opostas, em uma síntese comum; de
modo que cada uma é verdadeira, mas sob a condição de que o contrário também o seja:
Exemplos:
Todas as ideias vêm dos sentidos. Locke.
Todas as ideias são concebidas no entendimento. Descartes.
A primeira proposição é verdadeira apenas se for admitida, ao mesmo tempo, a segundo, e
vice-versa. É o mesmo para as seguintes:
Corpos não existem. Berkeley.
Mentes não existem. Hume.
A filosofia é o estudo dos primeiros princípios. Todos os dogmáticos.
Não existem primeiros princípios. Os céticos.
É necessário desenhar uma tabela das categorias. Aristóteles e Kant.
Não há uma tabela das categorias. Cousin.
Toda filosofia vem do empirismo. Os escoceses.
Toda filosofia tende a se libertar do empirismo. Os alemães.
As ideias de causa e substância que vão além da sensação são quimeras. Hume.
As ideias de causa e substância que vão além da sensação são necessariamente
concebidas pela mente e a provam. Kant.
Toda ciência positiva define seu objeto e seu método. Jouffroy.
Toda ciência positiva tende, através de seu progresso, superar seus limites. Ch. Renouvier.
Gêneros e espécies são coisas. Realismo.
Gêneros e espécies são concepções. Conceitualismo.
Gêneros e espécies são nomes. Nominalismo.
Nesse exemplo, os três termos claramente se reduzem a dois, uma vez que, a fim de criar
um nome, precisa-se de uma coisa ou de uma concepção, ou seja, de uma ideia.
Há um Deus. Monoteísmo.
Existem muitos deuses. Politeísmo.
Tudo é Deus. Panteísmo.
Não existe um Deus. Ateísmo.
Existem duas pessoas ou hipóstases em Deus. Magismo.
Existem três pessoas em Deus. Cristianismo.
Existem quatro, sete, dez, etc. pessoas em Deus. Gnosticismo.
Não existe companhia em Deus. Maometismo.
Todas essas fórmulas, que parecem combater umas às outras, implicam umas às outras e se
resolvem na ideia de ser (grupo, série, evolução ou movimento), elevada a sua potência mais alta e
analisada por esses conceitos.

51
Mas nada na natureza é produzido sem dor: a última revolução da Humanidade não
escapou a esta lei. Os interesses, surpreendidos em sua tolice, estão assustados; a
superstição ruge, a pedantice retumba, o status quo protesta. Esses são os sintomas
triunfantes que nos indicam que a revolução penetra a sociedade, que age sobre ela e a
possui.
Durmam em paz, reformadores: o mundo não precisa de vocês.
A ciência econômica, embora sua constituição não tenha sido alcançada, já é
poderosa demais para que ela permita que os antigos preconceitos intentem qualquer coisa
contra seus decretos, que são os decretos da própria revolução.
Sem mais bárbaros, capazes de impor à civilização a tortura de um novo feudalismo.
Fossem eles nossos mestres, os Cossacos não seriam nada: tão logo colocassem os pés
sobre o solo sagrado do Progresso, eles se tornariam seus apóstolos.
Sem mais corrente religiosa que possa, como no primeiro século de nossa era,
absorver e remoldar, em um culto superior, a multiplicidade de Igrejas; sem mais Cristo,
nem Maomé, que ouse repetir, à maneira de Voltaire:

Precisamos de um novo culto, precisamos de novos ferros,


Precisamos de um novo deus para o universo cego!

Tudo está acabado! Temos a salvação apenas na inovação e no movimento. Não é


para vós, senhor, que se tem que gritar: Aqueles que têm ouvido, que ouçam! Você ouve e,
melhor do que qualquer outro, você sabe como expressar para o público essas proposições
bastante simples:
Afirmação do PROGRESSO:
Negação do ABSOLUTO.
Eu sou, etc.

52

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