A aula discute como a filosofia se tornou uma disciplina acadêmica distanciada da realidade vivida e como as ciências humanas dependem das opiniões sobre seus objetos imateriais, diferentemente das ciências naturais. Também aborda como a ciência moderna perdeu seu ideal iluminista de progresso ao se declarar a única autoridade válida, apesar de fraudes científicas, e como a ausência de ordem levanta questões sobre critérios de julgamento.
A aula discute como a filosofia se tornou uma disciplina acadêmica distanciada da realidade vivida e como as ciências humanas dependem das opiniões sobre seus objetos imateriais, diferentemente das ciências naturais. Também aborda como a ciência moderna perdeu seu ideal iluminista de progresso ao se declarar a única autoridade válida, apesar de fraudes científicas, e como a ausência de ordem levanta questões sobre critérios de julgamento.
A aula discute como a filosofia se tornou uma disciplina acadêmica distanciada da realidade vivida e como as ciências humanas dependem das opiniões sobre seus objetos imateriais, diferentemente das ciências naturais. Também aborda como a ciência moderna perdeu seu ideal iluminista de progresso ao se declarar a única autoridade válida, apesar de fraudes científicas, e como a ausência de ordem levanta questões sobre critérios de julgamento.
https://www.youtube.com/watch?v=Bic4hUmKyTU “” - Desde os tempos remotos, o que se sabe do nascimento da Filosofia é que ela nasceu (e tratava) da experiência vívida, experiência presente. Aristóteles diz que ela nasce do espanto, seja de fatos da natureza seja de fatos da sociedade humana. Porém, após milênios, quando a Filosofia se torna uma disciplina acadêmica, ela muda seu eixo; atualmente, a aquisição da cultura filosófica e todas as etapas do percurso do estudante universitário consomem o tempo e o pensamento dele; ele acaba se interessando (ou sendo imposto a ele) por “filosofias” (de Kant, de Nietzsche) e não pela realidade – assim ele pode passar todo o tempo estudando “filosofias” sem nunca tocar na realidade, sem nunca perguntar (ou visualizar) sobre o objeto com respeito ao qual tal filosofia versa. Claro que a realidade pode também se tornar objeto de discussão filosófica. Daí teremos duas realidades: a realidade na qual o sujeito vive (sobre a qual ele não pergunta quando um policial bate à sua porta ou quando o carteiro chega com talão de luz para pagar), e a realidade construída pela sua mente, sendo essa usada até para duvidar de teorias. Os objetos das Ciências Humanas não são materiais; por exemplo, “poder”, “justiça”, “tópicos de religião”. Sendo assim, de certo modo, uma parte do objeto é formado pela opinião que os outros têm a respeito dele. E se você não tem todas as opiniões (coisa normal já que as bibliografias são imensas a respeito de qualquer assunto ou ponto específico), você nunca terá a certeza de que está deixando escapar um aspecto importante do objeto. Claro, que acreditamos que a bibliografia consultada aborde os aspectos essenciais de um objeto. Já os objetos das Ciências Naturais são materiais; ao estudar a fisiologia da vaca é possível sempre recorrer a ela para verificá-la, observá-la; ou seja, de certo modo, a vaca (presença física) independe da opinião do estudante. Platão e Aristóteles fizeram uma diferença essencial para construir a Ciência Política: a diferença entre o discurso do agente envolvido na ação e o discurso científico que tenta explicar isso. (claro que uma ação prolongada por anos, os elementos do discurso científico podem entrar no discurso do agente, e também o próprio autor do discurso científico pode se tornar agente de maneira deliberada ou não). A presença de um ser humano não é apenas uma presença física como a de um objeto , tem mais coisa: tem uma rede de relações em várias direções. Daí ser impossível conhecer alguém apenas com as suas opiniões a respeito dele; você terá de ajuntar as suas opiniões com as das demais pessoas para ter uma ideia do sujeito porque o ser humano manifesta certos aspectos apenas em certas situações e para certas pessoas e não para outras. Por exemplo: sua esposa pode ser amável e adorável, mas ela poderá ser diferente com os filhos que vierem (e seria uma parte dela que você não saberia caso não tivesse filhos). Há meio século atrás houve uma pandemia de fraudes científicas; isso ocorreu no mesmo tempo em que ela declarava sua autoridade de forma pretensiosa e orgulhosa. Temos a fraude do “aquecimento global” (metade da comunidade científica acusa a outra e a outra acusa uma de fraude – uma acusa a outra). Tal fraude coloca em questão a autoridade que a ciência discursa sobre a sociedade (atualmente, todas as decisões de um governador não podem nunca ir contra o consenso da classe científica; todas elas são baseadas sob a alegação de ter como fundamento último a autoridade científica). Isso nos coloca o problema da distinção entre o conceito ideal da ciência e a sua prática efetiva. O conceito ideal da ciência é de uma atividade permanentemente autocrítica e se corrige. Então, a ciência é uma atividade de autocrítica e de revisão. Este conceito em si já traz um problema, uma espécie de contra-senso interno. Porque um tipo de conhecimento (que é a ciência) que é permanentemente autocrítico e que está continuamente em revisão jamais pode chegar a uma conclusão definitiva, então, portanto, não deveria ter autoridade alguma. A autoridade que a ciência desfruta sobre a sociedade coloca um problema temível: tão logo as conclusões científicas tornam de domínio público, elas se tornam o fundamento de decisões de governo, de leis e de mudanças sociais. E se muito tempo decorre entre uma coisa e outra, então muitas dessas consequências podem ser irreversíveis. Por exemplo: o criador da teoria do “Aquecimento Global” depois de muito tempo desmentiu sua teoria, mas muitas leis, instituições, programas de ensino etc. já havia sido criadas nesse período entre a teoria e o desmentido. Então, a pretensão da ciência de ser uma atividade em permanente revisão, autocrítica, se torna inoperante. (o que fazer com tudo aquilo que foi criado por causa da teoria?). A única autoridade universalmente reconhecida é a da ciência: podem haver grupos, tribos que usam critérios distintos de moralidade (Ética, Moral), mas não podem haver várias Físicas, Químicas. A ciência se tornou um terreno neutro, onde, em princípio, todas as diferenças podem ser arbitradas. Por ocorrer ao mesmo tempo as fraudes científicas e a ciência se declarar pretensiosamente como a única autoridade é que surge para nós o problema, uma crise da destruição de todos os critérios de julgamento; isso quer dizer que fomos para longe do ideal do tempo do Iluminismo no séc. XVIII. No Iluminismo, acreditava-se que o progresso da ciência acabaria por abarcar todas as questões possíveis e imagináveis (todas as áreas do conhecimento e da vida humana), submetendo tudo ao critério do julgamento racional e expelindo para sempre as trevas da superstição e do obscurantismo. A ausência de um polo de autoridade é um fenômeno que acontece pela primeira vez na história do mundo. Não importa a época, a experiência primária da realidade em todas as culturas, civilizações e épocas foi a experiência de uma ordem. Podemos dizer que realidade e ordem foram sinônimas (foram tidas como a mesma coisa) desde os tempos mais remotos. Ordem não quer dizer que tudo esteja explicado ou conhecido ou que tudo esteja em paz; ao contrário, todas as ideias de ordem que vigoraram ao longo dos tempos comportaram dentro de si um forte elemento de caos; mas não tem uma única cultura/tribo que não tenha contado a origem da humanidade como passagem de um caos pré-humano a uma ordem humana – o caos é sempre anterior à existência humana – de maneira que a existência humana é mostrada como efeito/criação da ordem. Na Bíblia, esse caos é mostrado como as águas primordiais (a criação do ser humano é posterior a isso); o mesmo acontece na “Teogonia” de Hesíodo, onde os homens só aparecem depois de eras e mais eras de conflitos entre os deuses. Assim como em todas as mitologias primitivas, o surgimento homem vem junto com ou depois da ordem. Não existe uma única narrativa de uma comunidade humana vivendo no caos. Essas teorias – como as do “Contrato Social”, de Rousseau ou do “Estado de Natureza”, de Hobbes – projetam sobre o passado uma distinção que só pode existir como criação da mente humana, nunca como fato da realidade. Nós podemos conceber um estado de caos e um estado de ordem posterior, mas a simples possiblidade de um ser humano testemunhar essa passagem já é contraditória (anulada) em princípio. Porque como o indivíduo haveria de contar/narrar para si mesmo essa passagem se ele não tivesse uma linguagem? E como ele poderia ter uma linguagem se ela mesma não fosse uma ordem? O caos é tudo aquilo que nós tememos e não compreendemos; é algo que pode acontecer e que tememos que aconteça. Para que um caos se transforme numa ordem só é possível de dois modos: a) o caos ter dentro de si um elemento ordenador, uma semente que o ordena; nesse caso, o “caos” não é um caos completo, por inteiro, mas apenas uma aparência de caos que traz dentro de si uma ordem b) uma força externa ordenadora que impõe ao caos uma ordem; nesse caso, é a força ordenante que predomina. Então, em nenhum dos dois casos, temos um caos de verdade. Esse paradoxo aparece seja nos mitos primitivos seja nas teorias de Rousseau, Hobbes seja na teoria da Física atual. A Física atual diz que antes que existisse o cosmos, existiam apenas forças, e num determinado momento essas forças se combinaram; mas para elas se encontrarem e combinarem, elas teriam de fazê-lo dentro de uma proporção matemática compatível com os resultados que produziram depois; isso quer dizer que essa proporção matemática já vigorasse antes que essas forças se encontrassem. Isso quer dizer que o sistema das proporções matemáticas que governam o cosmos inteiro antecede o próprio surgimento do cosmos; isso quer dizer que a ordem antecede a própria existência do cosmos. Isso quer dizer que não temos efetivamente a experiência do caos, mas temos apenas a experiência de um caos parcial dentro de uma ordem. As diferentes representações da ordem no imaginário das várias civilizações foram objeto de estudo de Eric Voegelin, e ali não consta a presença do caos. Claro que as representações da ordem podem ser muito diferentes entre si, mas não poderíamos saber disso se essas diferenças/representações não fossem comparáveis; isso significa que essas diferenças não são absolutas (é sempre possível a comparação e a tradução de uma ordem na outra); quando lemos a “Teogonia” de Hesíodo e as mitologias primitivas, sabemos do que eles estão falando. Muitos dizem quem as representações da ordem são criações culturais, mas é preciso fazer uma distinção: uma coisa é a vivência efetiva da ordem numa determinada cultura e outra coisa completamente diferente são os testemunhos que ficaram delas nas artes, literatura etc. Esses testemunhos são evidentemente criações culturais, mas a própria ordem não pode ter sido criação cultural; isso quer dizer que a “Teogonia” e as mitologias primitivas estão tentando dizer algo que não é criação dos autores desses testemunhos, mas que já era a experiência vivida dentro da comunidade onde eles estavam, e essa experiência é basicamente a experiência da ordem. A experiência da ordem ela está presente desde a infância, e constitui uma experiência primitiva e básica que quase escapa da nossa capacidade de expressão verbal (procure na sua memória pessoal). Nós expressamos símbolos da ordem e não a ordem propriamente dita: percebe-se a ordem ao dormir no seu quarto e na sua cama e ao acordar, se estava no mesmo lugar que havia dormido (se acordasse em outro lugar é porque alguém havia nos tirado dali – isso era sabido); as pessoas sempre apareciam com a mesma feição (meus pais, todos os dias, tinham a mesma cara daí eu saber quem eram eles), ou seja, a identidade das pessoas sempre apareciam de uma maneira constante e estável; elementos como estrutura do espaço (direção de cima, embaixo) ou passagem do tempo eram constantes (são experiências primitivas da ordem) e é dentro disso que existimos. Do mesmo modo, nas nossas diversas relações com as várias pessoas ou com os vários objetos, nós sempre nos baseamos na identidade deles – as coisas não se transformam umas nas outras o tempo todo. Muito tempo transcorreu desde essas experiências primitivas da ordem até o ponto em que algum filósofo se supusesse que toda ordem é uma criação cultural. Para se chegar a isso, foi necessário que houvesse um grande acúmulo de material escrito que testemunhasse uma discussão filosófica que ocupasse “um lugar no espaço” de modo que a conquista desse material fosse tão problemática que ela se superpusesse a experiência direta da ordem, de modo que o esforço de se orientar dentro do debate filosófico se destacasse do senso de orientação na ordem real. É como se tivesse duas camadas: uma camada existencial e uma camada intelectual. E a camada intelectual é suficientemente complicada e pesada para que você passe toda a sua vida ali sem nunca reportar à camada existencial. De modo que fosse possível os filósofos chegarem a acreditarem em determinadas coisas que pareciam sensatas dentro do debate intelectual, mas que não poderiam ser vivenciadas na ordem real nem por um segundo. Daí surge a “Paralaxe cognitiva”. A “Paralaxe cognitiva” aparece apenas em culturas bastante avançadas onde a atividade intelectual se constituiu como um campo autônomo (separado) da existência, onde haja autoridades internas que sejam diferentes das autoridades que nós seguimos na vida real. Por exemplo: quando Kant diz que tudo o que percebemos do mundo exterior são impressões caóticas que a nossa mente ordena, ele está supondo que a ordem é uma criação humana superposta ao mundo natural composto de caos. Ele diz que o “tempo” e o “espaço” não existem objetivamente, mas são projeções da nossa forma de perceber as coisas. Mas podemos perguntar: onde ele [Kant] estava quando disse isso? Se ele estivesse apenas dentro de uma forma a priori do entendimento nós não teríamos tido notícia de que ele escreveu isso. “Gênero” é uma criação cultural; e a distinção entre “gênero” e “sexo” também é uma segunda criação cultural em cima, e o predomínio do “gênero” sobre o “sexo” é uma terceira criação cultural ainda. Essas noções têm um certo valor/autoridade no meio universitário, mas como é isso na vida real? Um certo homossexual (sexo masculino) disse que é horrível acordar e ver que sua barba cresceu; mas para nós (hétero masc.) não há dificuldade em chama-lo de “senhorita”, mas isso não fará a barba parar de crescer. Veja que existe uma dificuldade real para você manipular o fenômeno “sexo” a partir da noção “gênero”. Podemos fazer isso facilmente no campo acadêmico e leva muitos anos para você dominar essas noções tal como eles aparecem no debate acadêmico; e a conquista de uma posição no mundo acadêmico é bastante complicada também: dominar vocabulário técnico, falar com certas entonações, evitar certas palavrar, olhares – existe uma infinidade de códigos para se tornar uma pessoa normal no meio acadêmico. Mas o que isso tem a ver com o objeto que você está estudando? Esse é apenas um exemplo extremo de como um debate acadêmico/intelectual pode se tornar separado da experiência real. Quando uma pessoa começa a estudar Filosofia, ela tem diante de si toda uma tradição e cultura filosóficas cuja aquisição será enormemente trabalhosa e ocupará a vida dela durante anos. É claro que toda essa tradição filosófica se reporta remotamente ao mundo real, à experiência real. É como aprender uma nova língua: para as pessoas que a usam essa língua diariamente, o foco da atenção delas não é a língua, mas os objetos a que a língua se reporta. Mas para o estudante, o foco é a língua e não os objetos. Eu, Olavo, desisti de estudar alemão porque queriam que eu decorasse 50 nomes de salsicha em alemão. Isso quer dizer que o conjunto de símbolos se torna para você uma coisa opaca; e a mesma coisa acontece com a tradição filosófica, sem contar a pressão que você sofre na sua adaptação à condição de estudante de Filosofia. Quanto tempo passa desde o dia em que você entra no curso de Filosofia até o dia em que você possa voltar à realidade da qual os filósofos estavam falando. Suponha que você esteja estudando alguma questão que esteve em debate na Igreja Católica no séc. XII: para as pessoas envolvidas naquele debate não era uma questão acadêmica e muitas das divergências nos Concílios eram resolvidas a base de morte. Mas atualmente, o estudante não corre o risco de ser morto, mas sim o de ser feito de ridículo na frente dos colegas ou o de ser reprovado no fim do ano. Ele precisa ter um grande esforço de abstração interna para estar mais interessado nos dramas do séc. XII do que nos deles mesmo. Ao estudar Filosofia, o estudante recebe todo um vocabulário técnico que tem de ser dominado e que você mesmo irá usar nos debates filosóficos; mas veja que o que interessa na universidade não é a adequação entre o termo e o objeto referido, mas a relação entre este termo tal como este filósofo usa e tal como o outro filósofo usa. Por exemplo: há milhares de páginas escritas sobre o conceito de “intelecto” em São Tomás de Aquino, mas nenhuma delas trata da questão: “Esse intelecto existe mesmo?”. Você não está interessado no intelecto, mas sim no conceito de intelecto em Aquino. Então veja a diferença em que está a situação do estudante de Filosofia hoje e a situação em que estava Sócrates; note que nos diálogos socráticos, todas as questões colocadas são questões imediatas da sociedade onde ele estava, não eram questões acadêmicas. [O “status questiones” consiste em pegar a questão desde o estado atual (ou seja, como você o recebe no mundo acadêmico) e remontar até a sua origem; então você tem a história das discussões em texto (tem o domínio o status questiones) e, consequentemente, o objeto real do qual você estava falando aparece pela primeira vez na sua frente porque o conjunto das controvérsias é tão confuso que você vê que não existe uma solução interna para aquilo, então você terá que apelar para sua experiência real e pessoal; melhor ainda, essa sua experiência pessoal estará enriquecida pelas diferentes perspectivas que você absorveu]. Note que em geral os estudantes não chegam a esse ponto (apelar à experiência) e o estudo acadêmico não exige que ele chegue a isso, mas exige apenas que ele domine o debate enquanto tal. Veja o caso de Santo Anselmo: ele argumentava que um ser necessário (Deus) tem de existir necessariamente; então apareceram contestações e defesas desse argumento, e você pode contar a história desse debate e escrever uma tese acadêmica a respeito. Santo Anselmo havia exposto esse argumento – ser necessário – num livro sob a forma de prece; então, ele estava falando com Deus e não falando a respeito de Deus; assim ele cria aquele argumento como uma espécie de esclarecimento intelectual da experiência da prece. Ou seja, a ênfase não caía no argumento enquanto tal; o que ele estava fazendo era algo que eu, Olavo, denomino como “estrusão” (termo geológico). A prece é uma experiência que muitos milhões de pessoas tiveram, mas existe ali dentro algum componente cognitivo, intelectual e era isso que Santo Anselmo estava tentando puxar de dentro da prece; isso quer dizer que podemos estudar esse argumento e ser debatido ao longo dos séculos sem jamais voltar à experiência originária de onde Anselmo tirou aquilo. Isso quer dizer que dentro do debate acadêmico, as questões, os termos podem chegar a ter um significado totalmente diferente daquele da onde surgiram. Veja então que as Filosofias não surgem sozinhas, existe sempre um agente humano real por trás de tudo isso; mas a experiência originária deixa de ser o foco de atenção dos estudos porque a evolução dos debates cria a sua própria complexidade. Isso será bem esclarecido se compararmos com a ATIVIDADE DE UM ARTISTA: se um escritor de ficção (romancista, novelista) assistiu a determinados fatos que tiveram um grande impacto na imaginação dele, como ele vai transformar isso numa narrativa de ficção? Claro que ele tem à sua disposição toda uma tradição literária que lhe ensina diferentes estruturas narrativas, diferentes maneiras de lidar com o tempo etc., mas ele não pode copiar nada disso porque ele tem que escrever algo que valha por si e que possa ser compreendido sem o conhecimento dessa tradição. Ou seja, ele não pode usar termos que estejam consolidados e gastos na tradição, ele tem de escrever como se “a própria vida falasse”. Mas um filósofo (ATIVIDADE FILOSÓFICA) não pode fazer isso porque se ele escrever uma obra que seja totalmente original do ponto de vista literário ela estará fora do debate filosófico tradicional; ou seja, cada palavra que ele usa tem de estar referida claramente e reconhecivelmente à tradição de uso daqueles termos. Em outras palavras, a atividade de um filósofo sempre se dá como continuação de uma tradição, e não é uma criação original. E é exatamente por isso que se torna difícil para o leitor/estudante remontar desde as teses filosóficas até a experiência originária. Ao passo que, esse retorno à experiência originária, no caso da ficção, é absolutamente necessário, caso contrário, você não entende a obra de ficção. Se ao ler um romance você não imaginar as cenas fisicamente, você não entende o romance. Ou seja, ao ler um romance você não pode ficar apenas naquela faixa conceitual/verbal, você tem que voltar a imaginação in memória. Em geral, as faculdades de Filosofia não avisam aos estudantes que é preciso fazer a mesmíssima coisa com os textos filosóficos. Se você não é capaz de remontar à experiência originária, você realmente não entende a Filosofia; acontece que essa experiência originária está subentendida (e não exposta) na maior parte das obras filosóficas; a não ser que o filósofo tenha tido a amabilidade de contar a sua autobiografia espiritual; como por exemplo, Eric Voegelin, nas suas “Reflexões Autobiográficas” conta o impacto que teve para ele a experiência dos movimentos ideológicos de massa, e que não apareceu para ele como um problema acadêmico, mas apareceu como a “Gestapo batendo na porta dele e ele fugindo pelos fundos”. Então, quando ele descreve a Filosofia como “o esforço de um indivíduo encontrar um princípio de ordem na sua alma para fazer contraste com a desordem da sociedade em torno”, ele está contando algo que se passou realmente. Do mesmo modo quando Platão, nos seus “Diálogos”, descreve a figura do filósofo e a contrasta com a do sofista (filodoxo) isso não reflete uma ideia, mas uma experiência real que ele teve ao conhecer Sócrates. Naquele tempo, filósofo não era uma profissão acadêmica, era um tipo completamente novo de atividade que contrastava com tudo que existia no ambiente e que aparece como um ser humano de carne e osso (e não como uma profissão ou disciplina). A própria origem da Filosofia ocidental está ligada à experiência direta que um jovem (Platão) teve ao conhecer uma pessoa (Sócrates) de maior experiência e de maior valor. Essa experiência do filósofo como o portador (pessoa que encarna na sua pessoa) de certos valores está na raiz mesma da Filosofia. É necessário entender que a mensagem dessa pessoa/filósofo ultrapassa infinitamente o que ela disse. Impossível saber aonde termina a Filosofia de Sócrates e onde começa a de Platão, porque essa herança dessa experiência inicial continua viva em Platão depois que Sócrates morre e continua viva em Aristóteles depois da morte de Platão, e com o intervalo de séculos reaparece depois no séc. XII e XIII no Ocidente. Veja que não é apenas o legado de uma doutrina, mas de uma presença humana que sempre podemos reconquistar imaginariamente. Sem desprezar as dificuldades todas da aquisição da cultura filosófica, esse é o ponto central: há uma inspiração original que tem de ser repassada. A herança deixada por esses filósofos é sempre maior que a doutrina deles, principalmente é maior do que a doutrina escrita (leia os relatos desses filósofos no encontro com seus mestres). Veja o caso de um dos alunos de Edmund Husserl que escreveu um livro sobre a experiência de juízo (o estilo literário do aluno é diferente do de seu mestre, mas reflete o conteúdo e a pessoa de Husserl). Essa presença humana do filósofo é um elemento constante da Filosofia; quando não temos acesso à pessoa/filósofo de carne e osso, temos de reconstitui-la imaginariamente; claro que isso é uma operação totalmente diferente da aquisição da cultura filosófica e, de certo modo, é posterior a essa cultura. Aí se introduz uma diferença muito grande porque haverá filósofos que você pode estudar anos a fio, mas você nunca vai querer ser como ele; então a experiência que você tem deles não é aquela que Platão teve de Sócrates. Refiro-me sobretudo àqueles filósofos cuja atividade consistia em criar dificuldades. David Hume é talentoso, mas não é para ser imitado; ou seja, ele é para ser admirado e não para ser amado (não amá-lo como modelo a ser seguido). Se você amá-lo, haverá aí um elemento de piedade por causa da tragédia intelectual que ele representa; ou seja, para amá-lo, você tem de ampará-lo de alguma maneira, ajuda-lo a manter-se de pé de modo que, em vez de a figura dele transcender o seu tempo e continuar a inspirar e dar coisas para as gerações seguintes, ele permanece como uma espécie de ferida que necessita ser curada ao longo dos tempos. Dei o exemplo de Hume não por acaso, mas por ser pertinente ao assunto porque toda a destruição da autoridade intelectual que vemos hoje começa com Hume. Ele, de certo modo, percebeu que isso iria acontecer, e sabia que não tinha uma solução para isso. Vamos ver como ele se defrontou com o problema: toda a Filosofia começa com uma tentativa de analisar a experiência e, nesse contínuo de espaço-tempo que vivenciamos, extrair certos conceitos separados com os quais possamos lidar. E nesse esforço analítico podemos distinguir certos elementos que na experiência aparecem completamente misturados. A primeira distinção que ocorreu a Hume foi o que ele chamou de “impressões” e “ideias” – ele disse que todas as impressões nos chegam através dos sentidos, e através dos sentidos só percebemos os entes individuais (um gato, uma árvore, uma pessoa); e, por outro lado, existem as ideias, as quais nascem das impressões, mas as ideias representam como que uma versão diminuída/atenuada das impressões.