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O VASO DE OURO

Uma lenda dos tempos modernos

Primeira Vigília

As tribulações do estuda.nte Anselmo -


O tabaco de sub-reitor Paulmann e as serpentes antiverdes

No dia da Ascensão, às três da tarde, um jovem rapaz, ao


atravessai· a Porta Negra, cm Drcsdc, foi de encontro a um cesto
de maçãs e bolos que uma velha mege ra oferecia aos que passa-
vam: tudo o que escapou do choque espalhou-se, e logo os meni-
nos da rua avançaram e dividiram alegremente o butim
proporcionado pelo apressado jovem. Aos clamores da velha, as
comadres deixaram de lado suas bancadas de bolos e aguarden-
tes, cercaram o jovem e, em seu vulgar linguajar, cobrii-am-no de
irtjúrias. Calando-se por irritação e vergonha, o infeliz não fez se-
não estender o seu pequeno e não muito recheado porta-moe-
das, o qual a velha avidamente arrebatou e guardou no bolso.
Abríu-se então o círculo das que tripudiavam o rapaz, mas quan-
do este conseguiu se desembaraçar, a velha gritou-lhe: "Faça isso,
corra, corra mesmo, filho de Sat.ã. Logo cairá, logo será prisionei-
ro do cristal!" A voz estridente e áspera da mulher tinha algo de
tão terrível que os transeuntes detiveram-se admirados, e o riso,
que se havia alastrado, calou-se de súbito.
O estudante Anselmo (pois era ele o tal rapaz), embora não
tenha absolutamente entendido as singulares palavras da mulher,

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tornou-se presa de um horror involuntário e ace lerou mais ainda chimbo com o tabaco que o seu amigo, o sub-reitor Paulmann,
seus passos para pod er se ver livre dos olhares a ele dirigidos
pela multidão curiosa. Ao tentar escapar da aglomeração das pes-
( lhe havia presenteado. Bem junto dele murmurava m e marulha-
vam as ondas douradas do bonito rio Elba, diante do qual se er-
soas, naturalmente curiosas, ouviu murmurarem por tod;i parte: guia a esplêndida Dresde, ousada e orgulhosa com suas torres
"O pobre rapaz - Ai! - A maldita megera!" luminosas no azul d o céu. Mais além, os campos floridos, os bos-
Coisa curiosa, as miste riosas palavras da velha haviam dado ~ ques de um verde fresco e o crcp tísculo longínquo nos picos das
ridícula aventura certo tom trágico, de forma que o rapaz, antes mo ntanhas anunciavam a Bo\\mia. Olhando sombriamente para
ignorado, agora era observado com simpatia. Seu rosto bem tor- a fre nte, Anselmo soprou aos an's 11111a n uvem ele fumaça e, desa-
neado, c1tia expressão tornava-se ainda mais forte com a brasa da bafando, exclamou:
fú ria interior, como também o seu desajeitado e vigoroso corpo, "É bem verdade que nasci parn todos os sncrifícios e misé-
que vestia um traje inteiramente fora de moda, faziam com que rias possíveis! Que nunca fui o rei <lo jogo, que sempre aposto
angariasse a indulgência das mulheres. O fraque cinzento era ta- no errado, que o meu pão irre mediavcl11H'11Lc mi com a manLei-
lhado de uma maneira como se o alfaiate, seu autor, só conheces- ga para baixo: não que ro, porém , lamcntar-111c; mas não é uma
se a forma moderna por ouvir dizer, e as calças de cetim preto terrível fat.-<lidade que, ao tornar-me estudante para desaliar
emprestavam ao conjunto certo estilo senhorial, ao qual o andar Satã, permaneci um pol>re diabo? Não visto 11111 novo sobret11do
e a postura não se adequavam de forma alguma. Quase alcançan- sem que já na primeira vez ele ganhe uma nódoa de sebo ou
do o fim da aléia que levava ao Jardim Link, o estudante mal per uma aba se prenda num prego. Não cumprimento um senhor
dia respirar. Foi obrigado a caminhar mais lentamente, mas não conselheiro ou uma dama sem qnc o chapéu voe para longe de
ousava dirigir o olhar para cima, pois logo e nxergav;i maçãs e mim ou cu caia e estatele-m e vergonhosamente no ch;io escorre-
bolos dançando ao seu redor. Além disso, qualquer olhar sim- gadio. Pois uma vez não paguei no me rcado de 1Iallc a de Lrês a
pático dessa ou daquela garota tornava-se para ele apenas o re- quatro moedas por ter amassado 111nas panelas, porque o diabo
flexo da gargalhada maliciosa na Porta Negra. Chegou assim à me pusera na cabeça i1· sempre reto? Terei cu chegado uma úni-
entrada do Jardim Link, onde viu entrar uma série de pessoas ca vez pontualmente ao colégio ou o nde quer que me houves-
cerimo niosame nte vestidas. Do interior soava música de instru- sem enviado?
mentos de sopro, e cada vez mais estridente era o alvoroço dos "De que adianta sair meia hora antes e me postar diante da
alegres convidados. As lágrimas quase rolaram dos olhos do porta, segurando a m;içaneta, se quand o faço menção de entnu-
pob1·c estudante Anselmo, pois também ele gosta1;a de partici- o diabo despeja-me uma bacia na cabeça ou me fa7. ir d e encon-
par, já que sempre considerara a Ascensão d e Nosso Senhor tro a um transeunte, e1wolve ndcrme cm outras coisas e impedin-
uma festa especial e familiar. Esperava, portanto, tomar parte do-me de chegar à hora marcada? Ah, ah!
na aventurança cio paraíso de Link, e pensara a té num copo de "Para ond e foram vocês, sagrados sonhos de uma felicidade
café com rum e numa garrafa d e cerveja. Para poder divertir- futura, quando, orgulhoso, imaginava poder vir a ser Secretário
se à vontade, havia posto no bolso mais dinheiro do que na cm alguma administração? Mas não quis a minha m:\ estrela que
verdade podia se permitir gastar. Tudo fora por terra com o me tornasse inimigo de meus maio res protetores? Sei que o Con-
fatal atropclarne nlo do cesto de maçãs: café, cerveja, müsica, selheiro a quem fora recome ndado n:\o gosta de cabelo curto;
moças adornadas, e nfim, a todos os prazeres sonhados era pre- com muito esforço, o cabeleireiro prendcn-mc um rabinho à
ciso dizer adeus. nuca, mas ao primeiro gesto brusco o infe liz barbamc se solta, e
Arrastou-se len tamente por ali e finalmente pegou o cami- o atento cão q11e me fareja, todo co11le1tlc, leva a peruca ao Con-
nho do Elba, e ntão completamente deserto. Sob um sabugueiro, selheiro. Assustado, salto cm sua dire ção e caio sobre a mesa na
achou um lugarzinho num gramado, onde sentou e encheu oca- qual ele, comenclo, trabalhava ao mesmo tempo, de modo que

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copos, pratos, tinteiro e ampulheta caem tilintando, e um rio d~ rão - precisam descer - através, por dentro, ent1·elaçamo-nos,
chocolate quente e tinta corre sobre o documento há pouco redi- serpenteamos, cirandamos, irmãzinha.
gido. 'O senhor tem o diabo no corpo!', urrou.º furioso Co?se- E assim por diante, num discurso confuso. Anselmo pensou:
lhciro, empurrando-me para a porta. De que adianta o sub-reitor 'É apenas o vento, que h~je me sussurra palavras que entendo'.
Paulmann me oferecer um lugar de secretário, se minha má es- Nesse momento ressoou sobre sua cabeça como um acorde tri-
trela, que por toda parte me persegue, não o permite? _ plo de límpidos sinos d e c1istal; o lhou para cima e avistou três
"E hoje, ainda por cima! Queria festejar o dia _da Ascensao serpentes verdes e douradas que se haviam enroscado nos galhos
com todo o conforto, queria poder gastar alguma coisa. Orgulho- e estendiam as cabeças c m dircçilo ao crepúsculo. Novamente
samente, poderia gritar no Jardim Link como qualquer outro: soaram os sussurros e murmúrios, as serpemes deslizavam e enla-
'Garçom, uma garrafa de cerveja, mas d a melhor, por favor!' Po- çavam-se por entre folhas e galhos. Era c:o mo se do sabugueiro
deria ficar Já até tarde da noite e, o mais importante, na compa- cintilassem miríades de esmeraldas atrav~s ck suas folhas escuras.
nhia desse ou daquele grupo de moças esplêndidas, bonitas e 'É o sol poente que reverbera no sabugueiro, cm fl or ' pe nsou,
enfeitadas. Be m sei <]Ue ganharia coragem, seria uma pessoa mas então os sinos soaram mais uma vez e Anselmo viu quando
completamente diferente; sim, haveria de chegar o momento em uma serpente esticou a cabeça em sua direção . Seu corpo estre-
que uma ou outra perguntaria: 'Que h?ras serão?:; ou: 'O que é meceu como atingido por um choque elétrico. Olhou p ara cima
que estão tocando?', e eu me Jevan1.aria com ~mta leveza, sem e viu um par d e olhos profundamente azuis que o fitava com
denuba1· o copo ou tombar sobre o banco; adiantando-me ui:i uma indizível nostalgia, fazendo com que um sentiment o d esco-
passo e fazendo uma mesura, eu teria dito: 'Permita-me, senhori- nhecido, da maior bem-aventurança e da mais profunda do r, lhe
ta, que lhe informe: trata-se da abertura de D?nauweibchen, º1:1: penetrasse o coração.
'São quase se is horas' . Quem no mundo podena levar a mal t~ts E como continuasse a admirar, ardente de desejo, aqueles
palavras? Não, as moças me teriam ofüado com aquele sorriso olhos de inefável doçura, ressoaram mais fortes os si~os de cris-
malicioso, como é costume acontecer, quando tomo coragem ele tal, e as cintilantes esmeraldas escorreram sobre ele e cobriram-
mostrar que também sei lidar galantemente com damas. Mas no de milhares ele pequenas chamas flam ejantes, e nvolvendo-o
Satã empurrou-me para aquele maldito cesto de maçãs, e agora com brilhantes fios de ouro. O sabugue iro ganhou vida e lhe dis-
devo fumar meu cachimbo solitariamente." se: "Você estava estendido em minha sombra, meu aroma envol-
Subitamente Anselmo foi interrompido em seu monólogo veu-o, mas você não me ente ndeu. O aroma é minha linguagem,
por um estranho ruído que ora se e1:guia bem junto d~le, do gra- quando o amor o incendeia." O vento roçou-lhe a pele e lhe dis-
mado, ora provinha <los galhos e folhas do sabugueiro, que o se: "Acariciei sua fronte, mas você não me entendeu. O sopro é a
protegia. Era como se o vento da tarde balançasse as f~ll1as, minha linguagem, quando o amor o incendeia." Um raio de sol
co mo se passarinhos cantassem nos galhos, batendo as as~n~as atravessou as nuvens, e em sua luz ele pôde ler: "Banhei você em
num esvoaçar travesso. Mas não, eram sussurros e mmmunos, lavas de ouro, mas você não me entendeu; o fogo é minha lin-
como se as flores ressoassem sininhos de cristal. Anselmo esprei- guagem, quando o amor o incendeia.~
to u, espreitou. E aí, sem saber como, aqueles murmúrios e sus- Cacla vez mais absorto na visão do maravilhoso par de olhos,
surros transformaram-se em palavras": através - por dentro - sua ansiedade ficou mais forte, o desejo mais ardente. Tudo se
e ntre galhos, entre botões de flores, cirandemos, serpenteemos, agitava e se movia, como se despertado para a felicidade. Flores
e ntre lacemo-nos - irmãzinha - venha pa1·a a luz - depressa, de- exalavam perfume ao seu redor, e aquele aroma era um maravi-
pressa - para cima, para baixo - o crepúsculo lança rai?s, o ven- lhoso concerto de milhares de flautas, e sua música carregada
to no t 11rno assobia - o orvalho cai - flores cantam - agitemos as para longe pelas nuvens noturnas e douradas. Mas quando o últi-
língiii11has, cantemos com flores e galhos - estrelas breve brilha- mo raio de sol rapidamente desapareceu por detrás das monta-

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nhas e o crepúsculo j ogou seu véu sobre a região, uma voz áspe-
1-a gritou, como se de muito longe: wEi, ei, que munnúrios e sus-
surros são esses aí? - Ei, ei, quem procura para mim o raio atrás
das montanhas? - Basta de sol, basta de canto - Ei, ei, nos arbus- Segunda Vigília
tos e na relva - na relva e no 1;01 - Ei - ei - Para b-a-i-x-o - P-a-r-
a b -a-i-x-ol" E assim a voz desapareceu como um trovão De c011W o estudante A11selmo foi tido c011w bêbado e louco -
longínquo que se afasta, mas os sinos de cristal partiram-se numa A viage11i pelo Elba -A ária do regenU Gmun -
cortallle dissonância. O licor digestivo de Conradis e a brônzea mui/ter das maçãs
Tudo silcncio11, e Anselmo viu quando as três serpentes cin-
tilantes e ofuscadoras deslizaram pelo gramado em direção ao
rio; sibilando e sussurrando, precipitaram-se no Elba, e sobre as "Este senhor não est.'1 regulando bem!", disse uma homada
ondas, por onde sumiram, crepitou um fogo verde, cuja fumaça cidadã que, voltando com a família do passeio, se deteve e, de
ílutuava cm direção à cidade. braços cru7.ados, assistia às extravaga11tt•s a1i1udes do estudante
Anselmo. Este se abraçara ao tronco do sabugueiro e gritava in-
cessantemente para os galhos e as folh:1s: "Oh, por favor, bri-
lhem, cintilem mais uma vez, doces serpentes do11radas, deixem
que eu ouça mais uma vez o canto de seus sininhosl Olhem mais
uma vez para mim, encantadores olhos azuis, só mais uma vez,
senão sucumbirei de dor e de desespero!" Suspirav:1 e gemia do
fundo do peito com muita tristeza e, ávido e impacien1e, balança-
va o sabugueiro, que, como resposta, agitava as fol has suavemen-
te, parecendo fazer troça de seu desespero.
"Este senhor não está regulando bem", disse a digna cidadã.
Para Anselmo era como se estivesse sendo acordado de u m s0-
nho profundo ou mesmo aspergido com água gelada, para que
despertasse de pronto. Foi então que viu com clareza onde se en-
contrava e lembrou como um estranho feitiço o levara a falar so-
zinho e em voz alta. Atônito, olllou para a cidadã e finalmente
pegou o chapéu que caíra no chão, a fim de sair dali o mais de-
pressa possível.
Entretanto, o marido da dama, que também se :iproximara
depois de pousar no gramado a criança que trazia no braço e
apoiar-se em sua bengala, escutara admirado o estudante. Reco-
lheu então o cachimbo e a bolsa de tabaco que este deixara cair,
e falou, estendendo-lhe os objetos: "Não se lamente o senhor tão
tenivelmente na escuridão e não incomode as pessoas, se nada
lhe aconteceu além de ter bebido mais do que deveria. Vá para
casa com calma e aninhe a cabeça no travesseiro!" Anselmo, cada
vez mais confuso, suspirou: "Que vergonha!"

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"Bem, bem", continuou o cidadão, "não se preocupe tanto, Distraído, Anselmo estava voltado para o gondoleiro, mas,
isso acontece nas melhores famílias, e no dia da Ascensão pode- quando viu o reflexo das faíscas e chamas na água, leve a impres-
se de tanta alegria no coração, beber uns goles a mais. Isso tam- são de que as serpentes douradas nadavam pela corrente. Tudo o
bém sucede a um homem de Deus - o senhor certamente é um que de estranho vira sob o sabugueiro reavivou-se e rn sua m ente,
estudante. Mas se me permitir, encherei meu cachimbo com seu e de novo foi invadido por uma indizível languidez e por um ar-
tabaco, pois o meu acabou-se." O cidadão falou quando Anselmo dente desejo. "Ah, são vocês mais uma vez, serpentes douradas,
já fazia menção de guardar cachimbo e tabaco. Limpando lenta e cantem, cantem, por favor! Em seu canto reaparecerão os encan-
cuidadosamente o seu cachjmbo, com a mesma lentidão come- tadores e doces olhos azuis - ah, são vocês sob a corrente!" As-
çou a enchê-lo. sim falou o estudante Anscl1110, fazendo cm seguida um
Diversas moças haviam-se aproximado, falavam baixinho movimento brusco, como se quisesse pular da gôndola.
com a mãe de família e cochichavam entre si, olhando para An- "Este senhor está com o diabo no corpo?", exclamou o gon-
selmo, que se sentia como se estivesse sobre espinhos pontiagu- doleiro, agarrand0-0 pdo sobretudo. As moças, senladas a seu
dos ou carvão em brasa. Logo que teve de volta o cachimbo e o lado, gritaram assustadas e passaram para a oulrn extremidade
tabaco, saiu dali a toda a velocidade. da gôndola; o escrivão Heerbrand sussurrou algo ao ouvido do
Tudo o que vira de maravilhoso desaparecera de sua memó- sub-reitor Paulmann, ao que este lhe deu uma longa resposta,
ria, e lembrou-se somente de que falara toda sorte de tolices de- mas Anselmo só percebeu as seguintes palavras: "Acessos como
baixo do sabugueiro, o que lhe parecia tanto mais terrível quanto este? Se os notara antes?"
a repugnância que sentia de pessoas que falavam sozinhas. ".Satã Logo em seguida o sub-reitor Paulmann levantou-se, sentou-
fala por sua boca", dizia o seu sub-reitor, e ele de fato acrednava se ao lado do jovem estudante, olhando-o seriamente, pegou sua
naquilo. Era-lhe insuponável, corno estudante de teologia, a idéia mão e perguntou-lhe: "O que está acontecendo, senhor Ansel-
de ter sido considerado, no dia da Ascensão de Nosso Senhor, mo?" Este quase perdeu os sentidos, não sabendo mais o que era
um reles bêbado. realidade ou imaginação. Ora acreditava que o que tomara pelo
Já ia dobrar na aléia Pappcl, no Jardim Kosel, quando uma voz brilho das serpentes nada mais era que o reflexo dos fogos de ar-
gritou atrás dele: "Senhor Anselmo, senhor Anselmo! Por Deus do tifício, ora uma sensação antes nunca conhecida, que não sabia
céu, p;u-a onde vai com tanta pressa?" Como se pregado ao chão, o se era dor ou volúpia, contraía convulsivamente o seu peito.
estudante parou, pois estava persuadido de que uma nova desgraça Quando o gondoleiro bateu com o remo na água, fazendo com
U.e aconteceria. Ouviu novamente a \'Oz: "Senhor Anselmo, volte, que esta, parecendo enfurecida, se encrespasse, pareceu-lhe ouvir
estamos esperando aqui, na margem!" Foi só então que o estudanle claramente um discreto murm(irio: "Anselmo! Anselmo! Não nos
percebeu que quem o chamava era seu amigo, o sub-reitor Paul- vê nadando à sua frente? A irmãzinha contempla-o novamente -
mann; voltou para as margens do Elba e encontrou-o com suas duas acredite - acredite - acredite em nós." E era corno se de fato vis-
filhas, como também com o escrivão Hecrbrand, todos prestes a se, no reflexo, três serpentes verdes e douradas. Mas ao olhar
embarcar em uma gôndola. Paulmann convidou o estud;Ulte a atra- melancolicamente para a água, para ver se de lá não surgiriam os
vessar o Elba para terminar a noite em sua casa, nos arredores de encantadores olhos, percebeu que o brilho vinha <las janelas ilu-
Pirna. O jovem aceitou com prazer, pois assim acreditou livra1·-se da minadas das casas próximas.
crncl fatalidade que pairava sobre si. Pennaneccu em silêncio, mas, no ínlimo, lutando consigo
Mal deslizavam pelo rio, explodiram fogos de artifício na ou- mesmo. Paulmann, porém, voltou à carga: "O que está aconte-
tra margem, próximo ao Jardim Anton. Crepitando e silvando, cendo, se11hor Anselmo?" Encabulado, o estudante respondeu:
os foguetes voavam, e as estrelas iluminadas espalhavam-se nos "Ah, prezado senhor sub-reitor, se soubesse que coisas estranhas
<1res, fazendo cintilar milhares de raios e chamas. sonhei ainda há pouco debaixo de um sabugueiro, próximo às

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cercas do Jardim Link, mas bem desperto e com olh?~ bem ~b:r­ fantasmagorias acontecem ao homem, obcecando-o e atormen-
tos ah 0 senhor então entenderia por que meu espmto esta tao tando-o, mas isso é uma doença física, aliviada com o íluxílio de
au;ent~." "Ora, ora, senhor Anselmo, sempre o considerei um''.'- sanguessugas que, salva venia, devem ser aplicadas no traseiro,
paz sensato, mas sonhar, sonhar c~m olhos bem abertos e depois como provou um famoso erudito, recentemenre falecido." O
querer saltar na água ele repente, isto - perdoe-me - s6 um lou- próprio Anselmo reahncntc não sabia se estivera bêbado. louco
co ou um insensalo podem fazer!" As duras palavras ~le. Paul- ou doente, mas de qualc111t·r forma as sanguessugas pareccram-
mann consternaram Anselmo de tal modo que Ver~mca, a lhe inúteis, já que os dilos fantasmas haviam desaparecido com-
piimogênica dos Paulmann, u ma mo.ça rea~mente l>on~ta e na pletamente. Sentia-se cada vc1 mais alegre, à medida que
flor de seus 16 anos, disse: "Mas quendo pai, alguma coisa deve constatava seus êxitos junto à <'nca111adora Verónica. Como de
ter acontecido com o senhor Anselmo, ou talvez ele pense que hábito, depois de uma refeição frugal passa1~1m à música; Ansel-
estava acordado, quando de fato dormia sob o sabugueiro, pen- mo sentou-se ao piano e Verônica deixou que se ouvisse a sua
sando nas mais estranhas coisas, que continuam a martelar-lhe a voz clara e límpida.
cabeça." "Cara senhoiita", disse o escrivão Ileerbrand, "sua vo1. soa
"Caríssima senhorita., meu caro sub-reitor", tomou a palavra como um sino de cristall"
0 escrivão Heerbrnnd, "não se poderia, 1.ambém acordado, estar "Isto é que não!", adiantou-se o estudante, sem saber por
mergulhado num estado de sonho? Uma. ocasião, qua1~do L?mav~ que dissera aquilo, e todos fitaram-no consternados.
café, naquele momento cJc torpor que acompanha a d1gestao .físi- "Sinos de cristal soam maravilhosamente cm sab11g11cirosl",
ca e mental, veio-me à mente o local de um documento perdido; continuou o estudante a meia-voz.
e ainda ontem, num estado similar, surgiu à minha frente um es- Verônica pôs a mão sobre seu ombro:
plêndido documento latino cm alfabeto gótico." "De que está falando, senhor Anselmo?"
"Ah, caríssimo amigo", rcu·ucou Paul?1a1~, "o senhor sem~rc O estudante logo caju em si e pôs-se a tocar. O sub-reitor
teve u ma queda para a poesia, sendo assm~ e nat.ural sua tendcn- lançou-lhe um olhar desconfiado, mas Heerbrand colocou uma
cia para o fantástico e o romanesco." A su~patta re~onfortanle paJ·titura na ~estante e, para encanto de todos, cantou uma ária
de seus amigos consolou Anselmo por ter sido considerado u~ do regente Graun. O estudante Anselmo acompanhou-o e um
louco e um bêbado. Embort\ já começt\sse a escurecer, pela pri- dueto, formado por ele e Verônica, composto pelo próprio se-
meira vez ele reparou nos belos olhos azuis de Verónica, sem que nhor Paulmann, devolveu ao gmpo o bom humor. Já era tarde.
porém associasse sua constatação ao maravilhoso par de olhos O escrivão Hecl'brand já pegara o chapéu e a bengala, quando o
que vira no sabugueiro. Na verdade, para Anselmo, a avenlura sub-reitor Paulmann aproximou-se e falou misteriosamcme:
do sabugueiro desaparecera por complet~ de sua mente: e~c se "Caro amigo, não quer dizer agora ao bom Anselmo o que
sentia leve e alegre; sim, estava tão bem-<lisposlo que, ao sair da há pouco falamos?"
gôndola, ofereceu a sua prestativa mão à s.ua protetora. Soube "Com todo o prazer", respondeu o escrivão, e começou sem
guiá-ta com tanta habilidade e aleg1i~, .depois que U1e ~eu o bra- mais delongas, depois que se formou um círculo a seu redor:
ço, que só escorregou uma vez na umca poça do. cammho, res- "Existe nesta região um velho e estranho homem; diz-se que pra-
pingando apenas um pouquinho de lama no vestido branco de tica toda sorte de ciências ocultas, mas corno na verdade estas
Verónica. não existem, considero-o antes um emdito antiquário e, além dis-
Ao senhor Paulmann não escapou a feliz transformaç.ão de so, um químico expe1·imental. Estou falando de nosso caríssimo e
Anselmo. Voltou, portanto, a simpatizar co1~ o rapaz. e pe~i~-1~~~ misterioso arquivista, LindJ1orst. Como sabem, ele vive solitário
perdão pelas duras palavras que antes havia proferido. Sim. , em sua casa velha e afastada, e quando não está ocupado com o
acrescentou, "há muitos exemplos de que frequentemente certas serviço, pode ser encontrado na biblioteca ou em seu laboratório

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de química, cujo acesso não é permitido a ninguém. ~lém_<le deu certo logo na primeira vc7., nenhuma costura arrebentou, ne-
muitos livros raros, possui uma quantidade de manuscritos ara- nhuma linha se rompeu em suas meias de seda, o chapéu niio
bes e coptas, e outros, escritos cm caracteres que º.~º pcrt~ncem caiu no ch ão depois de escovado. Em suma: precisamente às
a nenhuma língua conhecida. Ele quer mandar c?pia-los. cuidado- o nze e meia Anselmo estava na ma Schloss, com o seu fraqu e
samente, e para isso precisa de alguém ~u~ domme hab1lme.ntc a cinza e suas calças de celim t>rc-10, debaixo do braço 11111 rolo de
pena, a fim de poder passar todos os smats rara o_rcrgammho, manuscrilos e desenhos, na taberna Conradis, onde tomou um,
com a maior precisão e fidelidade, e a nanqu1m. Exige 9111:: a pes- dois copinhos de um licor de- marca, pois aqui, pensou, batendo
soa trabalhe sob os seus auspícios num aposento especial de sua no bolso ainda vazio, cm brcv<· tili11tariio t:\lcrcs cm espécie.
casa e paga, além das refeições duran te o trabalh o, um t~l~r por Não obstante o longo caminho atf '' r11<1 retirada onde se lo-
dia, prometendo ainda um valioso P.resente quand~ as cop1_as f?- calizava a antiga casa do arquivista, dH'gon dianw d e sua porta
rcm terminadas com êxito. O horáno de trabalho e do mct<>-<.ha a ntes do meio-dia, admirando a grandt' aldrnva ck bronze. Mas
às seis diariamente. Das três às quatro há o intervalo para a refei- quando quis pegá-lá, no momento em que a última badalada do
ção. Como já contratara em vão alguns, jovens ~irigiu-s:. fmal- meio-dia, reverberando o ar com suas poderosas vib1-:içoes, soava
mente a mim, para que lhe indicasse um desenhista hab1hdoso; no campanário da igrtja, o rosto .metálico contorct·1t·S(' num <'S
então pensei no senhor, caro Anselmo, poi~ sei que ~a.11to esc1·eve gar repugname <t11c la.~1çava. centelhas azuladas. Ah, C'ra a vende-
com muito esmero quanto desenha perfeita e habth~os~ment~ dora ele ma.çãs da Porta Negra! Seu s dentes po111 iag11dos
com a pena. Po1· isso, se quer ganhar, ne~tes r~mpo~ ?~fícc1s e ate e n trech ocavam-se ·na boca flácida, e ao baterem ele pôde entcn
que consiga trabalho melhor, o prometido talei_: d1ano e o pre- der: "Imbecil! Imbecil! - espere, espere para ver! ImbcciW Atur-
sente suplementar, esforce-se para estar amanha, por1111al m~nte dido, o cstudanle cambaleou para trás, tentou se segurar na
às doze, 11a casa do arq11ivista, cttjo endereço certamcnle ~he e c": aldrava, mas sua mão pegou o fio da campainha puxou-o. Soou
nhccido. Mas tenha cuidado para não manchar as cópias, pois então, um .carriU1ão estridente de sons discordantes, e através de
então precisaria, sem misericórdia, volt?r ao iní~io, e se n~an,char toda a casa v32ia parecia rep ercutir o eco sarcástico: "Em breve
no original, o arquivista é capa.l de joga-lo pela Janela, pois e um cairá no cristal!" Um arrepio cJe horror percorreu Anselmo e sa-
homem ir<1scível." cudiu todo o -seu corpo, numa febre convulsiva. O fio da campai-
Anselmo recebeu com alegria a proposta d? escrivão, não nha desceu e transfo1mou-se numa enorme serpcnlc, diáfana e
apenas porque escrevia com esmero e desen.hava com a pena, branca, que o envolveu e apertou, com uma força cada ve.t
mas porque tinha verdadeira paixão pela caligrafia. Agrad.eceu maior, de forma que o corpo começou a estalar e a quebrar, fa-
com corrcsia a seu protetor e prometeu não se atrasar no d ia se- zendo com que seu sangue jorrasse das veias, penetrasse no cor-
guinte. po transparente da serpente e a •tingisse de venneU10. "Male-me,
À noite, Anselmo não via nada além de táleres cm espécie, mate-mel~. ele queria gdtar, em sua angústia. Mas o seu grito era
escutando o seu doce tilintar. um surdo estertor. A serpenlc levantou \l cabeça e apoiou sua lí11-
Quem poderia censurá-lo, o pobre rapaz, t,antas vezes decep- gua dardejante de bronze incandescente no peito de Anselmo;
cionado por um destino maligno, oh.rigado a con~r cada m~eda uma dor cortante rompeu-lhe as veias do pulso e ele perdeu os
e a renunciar a tantos prazeres da Juventud~? J~ na ~a~ha s~ sentidos.
guintc reuniu os seus lápis, suas pen~s, ~eu ume~ro ch~nes; pois Quando '\•oltou a si, estava deitado em sua humilclc caminha;
seria 111clhor, pensou, usar o seu propno matcnal. Alem disso, à cabeceira estava o sub-reitor Paul.mano: "Pelo amor de Deus,
rlassiric:on as suas obras-primas caligráficas e seus ?esenhos, pa1.-a que loucura toda é esta, senhor Anselmo?!"
111 o stn1 los ao arquivista como prova de sua capac1daclc. Tudo ta
bem uma estrela da sorte parecia protegê-lo: o nó da gravata

18 19
Terceirn Vigília

que plantei em seu seio é a dor sem remédio da qual você irá su-
cumbir, para então brotar sob outrn forma. Essa centelha é o
Pensamento!' 'Ah!', lame nto u a ílor, 'não posso ser sua no ardor
que consume meu jovem ser? Poderei amar mais do que agora?
Terceira Vigília Poderei admirá-lo como ago1·a, se me destn1ir?'
"O jovem Phospho rus b eijou·a então, e como que irradiada
Notícias da.família do arqufoisla Lindhorst - pela luz, ela ardeu em cha nias, das quais surgiu um ser desconhe-
Os olhos azuis de Verônica - O escrivão Hettrln·aml cido que, fugindo rapida ment e do v;ilc, sulco u o infinito do espa-
ço, não mais se preocupando com i1s cornpanhci ras da juventude
nem com o jovem tão amado. Este cho rou sua bem-amacia, pois
"O Espírito olhava para a água, e logo ela se transformava em só um amor infinito pelo belo lírio o cond111im àquele vale isola-
agitadas ondas espumanles e se precipitava, trovejando, nos abis- do. Os rochedos d e granito inclinara m suru; <"abcças, com o se
mos de gargantas negras e vorazes. Como vencedores t1iunfantes, participando ela dor do jovem. Um deles fendeu-se ao meio e d e
os rochedos de granito erguiam suas cabeças coroadas e protegiam lá saiu um dragão de asas negras que, brnn1indo, disse a Phos-
o vale, esperando que a luz do sol acolhesse este último em seio ma- phorus: 'Meus irmãos, os metais, repousam n o seio ela terra; mas
terno, envolvendo-o e aquecendo-o calinhosamenle com os braços eu, que permaneço sempre desperto, estou pronlo a ajudá-lo'.
ardentes de seus raios. Era quando entio d espertavam do sono pro- Evoluindo nos ares, o drag-ão finalmente alcançou no ar o ser
fundo milhares de sementes adormecidas sob a areia áiida, ofere- que sua-gim do lírio, carregou-o para a colina e lá cobriu.o com
cendo suas folhas verdes e seus caules ao semblante da Mãe; ao suas asas. E tornou-se novamente flor.
mesmo tempo, as flores, que repousavam como cüanças sorriden- Mas o Pensamento, que doravante o habitava, rasgou o seu
tes no berço verde, animaram-se p or sua vez ao contalo da Mãe e ser, e seu amor pelo jovem Phosphorus ton10u-se uma dor lanci-
enfeitaram-se com alcgria das mais vivas cores. nante , Cl!ͺ h;\lito pestilento murchava e clesr.mía as flores que
Ora, no meio do vale percebia-se uma colina escura que arfa- outrora extraíam dele sua a1cgda. Phosphorus revestiu-se <le u ma
va como um peito humano presa de ardcnt.e des~jo. Do fundo armadura que reluzia e m milhares de raios e at.acou o d ragão.
d os abismos emanavam vapo res que, conce ntrados e m pod e rosas Com um golpe de sua asa, este atingiu a couraça, fazendo-ares-
massas, tinham como hostil o~jetivo encobrir a face ela Mãe; mas soar estridcntcmente; com aquela poderosa vibração as flores
esta clamou pela tempestade, que os dissipou com seu sopm. E, ressuscii.aram e, semelhantes a 11111 enxame d e pássaros coloridos,
como o raio maternal voltava a acariciar a n egra colina, dela de- voejaram cm torno do dragão, cujas forças pouco a pouco se es-
sabroch ou um esplêndido !frio vermelho que abriu as b elas péta- gotavam, até que se escondeu, vencido, nas profundeza_., da 1c1T::1.
las como encantadores lábios como pa1·a receber os doces beijos A flor estava livre: Phospliorus, no ardor ícrvo rnso de seu amor
da Mãe . Uma luz ofuscante ganhou o vale: era o jovem Phospho- eterno, cerrou-a estreitamente contra si, divino, e num hino d e
ms. O lírio vermelho percebera-o e implorava-lhe apaixonada- supremo j1íbilo prestaram.lhe homenagens as flores, os p:íssaros,
me nte: 'Seja meu para sempre, belo Adônis! Pois amo-o e até mesmo os altos rochedos de granito, reconhecendo nela a
morrerei se me abandonar.' Phosphorus r·espondeu: 'Quero ser Rainha do Vale."
seu, Bela Flor; mas você terá de abandonar pai e mãe como uma "Permita-me, caro senhor arquivista, mas isto não passa de
filha ingrata, renegará suas companheiras, desejará ser maior e frivolidades orientais!", observou o escrivão Heerbrand, "e o que
m ais po derosa do que tudo aquilo que até agora conheceu. O de- pedimos era que, como de costume, contasse-nos algo de sua
s~jo que agora aquece a sua essência será fragmentado em cente- vida tão singular, algo de suas aventurns d e viagem, autêntico, é
nas d e raios, ele lhe torturará e lhe consumir·á, pois do ~pírito claro."
11ascerão os Sentidos, e a suprema volúpia que inflama a centelha
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20
O VASO DE OURO Teiuira \!igilia

"Mas o que <JUerem?", retrucou o arquivista, "o que acabo os olhares hirtos e sombrios do arquivista, sem que sentisse um
de contar é o que lhes posso oferecer de mais verdadeiro e de incompreensível tremor. Alé m disso, a \ 01: áspera e de u m som
0

cer 1.a forma faz parte de minha própr ia vida. Pois o rigino-me estranhamente metálico de Lindhorsl tinha algo de tão misterio-
desse vale, e o lírio p(irpura <JUe depois o governou como Rai- so e penetrante para C'le, <JUe fazia vacilar o fundo de seu ser.
nha é miuha tatalataravó, razão pela qual posso prevalecer-me O real motivo pelo C]llal o escrivão lkcrbrand o levara ao
do título de Príncipe ." Foi uma explosão d e riso geral. "Riam à café parecia agora i111s61 io. Depois do incidente diante da casa
vontade", continuou Lindhorst, "pode ser que a vocês o que aca- do arquivista, Anselmo 11;io se sentia capaz de ousar uma nova vi
bo de contar sem muitos detalhes pareça ridículo o u extravagan- sita. Estava absoluta111c•nl t' pcrs11aclido de que só o acaso o pre-
te. Nada, no entanto, é menos incoerente, menos simbólico; servara, se não da mo rte, ao 111t·11os da lou cura. O sub-re itor
pois tudo é literalmente autêntico. Poré m, se soubesse que a es- Paulmann, passando na rua, c11co111rara o estudan te desmaiado
plê ndida história de amor, à qual agradeço a minha existên cia, diante da casa, e u ma anciã, C]llC ha\Ía baixado o seu resto de bo-
tão pouco lhes agradaria, teria então preferido contar alguma los e maçãs, ocup ava-se dele. Pa11lina1111 i11wdiata111c11te mandou
novidade trazida por meu irmão cm sua visita de ontem." chamar uma maca, na qual foi can·t·gado para casa. "Podem p en-
"Como assim? O senhor tem um irmão? Onde está, o nde mora? sar o que quiserem", afirmava Ani.clmo. "Podem con'!iderar-me
Está também a serviço do rei, ou trabalha cm pesquisas e ruditas louco ou não, não importa - na maçaneta da porta 1C·ro11hcci o
por conta própria?", foi o que se perguntou d e todos os lados. rosto maldito eia feiticei ra da Porta Negra; o q11c drpois aconte-
"Absolutamente!", respondeu o arquivista, recuperando seu ar ceu, pre firo calar, mas se tivesse despertado de meu desmaio e se
natural, aspirando uma pitada de rapé. "Seguiu o mau caminho, tivesse vislo a maldita mulher das maçãs à minha frrnte - pois
passou para o lado dos dragões." "Como disse, caríssimo arqui- com certeza era ela que se ocupava de mim -, certamente eu te-
vis1a", interro mpeu-o o escrivão Heerbrand, "passou parn o lado ria sido fulminado por um ataque ou enlouquecido."
dos dragões?" "Passou para o lado cios dragôcs", pergunta ram Em vão Paulmann e Ilecrbra11d tentaram reconfortá-lo e
de todos os cantos. fazê-lo ouvir a razão; e mesmo Verónica e seus olhos azuis não
"Perfeitamente, para o lado dos dragões", a firmou Lin<l- conseguiram arrancá-lo da prostração na qual mergulhara. De
horsl. "Na verdade, por desespero. Como sabem, meus caros se- fato , foi considerado atacado por pcnurbações me ntais, nacla po-
nhores, meu pai morreu há pouco tempo, há <JUase 385 anos dendo ser mclho1·, segundo Ileerhrand, do que ocupar se na casa
atrás, e é por isso q ue ainda estou de luto. Deixou para mim, seu d e Lindhorst copiando os manuscritos. Ago ra tratava-se apenas
favorilo, uma pedra de ônix que meu irmão avidamente cobiça- de e n contrar uma oportunidade para a apresentá-lo ao arquivis-
va. Discutimos com tanta inconveniência debruçados sobre os ta. O escrivão Hcerbrand sabia que este frcqücnta\'a quase todas
despojos de nosso pai, que o defumo perdeu a paciência, deu um as noites um conhecido café. Convioou então o estudante parn, à
salto e jogou o patife do meu irmão escad a abaixo. Enfur·ccido, sua custa, passar ali as noites, bebendo cerveja e fumando ca-
e le passou para o lado dos dragões. Agora ele se e ncontra num chimbo. De umit maneira ou ele o utra, ele acabaria por 1ravar co-
bosque de ciprestes junto a Túnis, onde deve vigiar um famoso nhecimento com Lindhorst e entrar num acordo com ele soba·e o
carbúnculo místico, cobiçado por um diabólico necromante cm negócio da cópia dos manuscritos, p.-oposta que Anselmo acei-
vilegiatura na Lapô nia; meu irmão só pode sair de lá por uns tou, com a ma is viva gratidão. "O senhor merece a recompensa
q11inzc minutinhos, q11ando o nccromaute está ocupado no jar- de Deus, caro escrivão, se conseguir chamar à razão o rapaz", dis-
dim com a sua criação de salamandras, para rapidamente contar- se o sub-reitor Paulmann. "Deus o ouça!" foram os votos de Vc-
mc o que de novo acontece nas nascentes do Njlo." Mais uma rônica, erguendo piedosamente os olhos para o céu, não sem
vc1., foi aquela garg<1lhada. Apenas o estudante Ansr.lmo foi to- pensar <JllC, mesmo com a cabeça fora do lugar, Anselmo e ra um
111aclo por uma estrnnha sensação , quase não conseguindo fitar rapaz c11cantado r ...

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O VASO DE OURO

Uma noite, quando Lindhorst, de chapéu e bengala, fazia


menção ele atravessar a porta, o escrivão Heerbrand rapidamente
pegou Anselmo pelo braço, barrou a saída e disse: "Meu mui pre-
zado arquivista, este é o estudante Anselmo, o qual, extremamen- Quarta Vígilia
te habilidoso cm caligrafia e desenho, quer copiar os seus
preciosos manuscritos." "Encantado em saber", retrucou com 1is- A melancolia do estudante Anselmo - O espellw <k esmeraldas -
pidez Lindhorst. Lançando cm seguida uma espécie de tricórnio De e-011w o arquivista Lindltorst fugiu, lmusf01'1nand<rse em abutre, e
na cabeça, e mpurrou Heerbrand e seu protegido, batendo b1u- como o estudante A11.sr/11Lo não enconlnm ningu.érn
talme nte com a porta no nariz destes últimos, e precipitou-se es-
cada abaixo. Os dois permaneceram ali, atônitos, a o lhar para a
porta que ainda tremia em seus gonzos. "É realmente um velho Será que me é permitido, bcnevolcnr e ki1 or, pe rguntar-lhe
esquisito", disse o escrivão Heerbrand. "Um velho esquisito'> bal- se em sua vida não houve mome nLos, até dias o u semanas, nos
buciou Ansel mo, scnLindo que uma corrente gelada percorna-lhe quais o rame-rame do cotidian~ o dcs111oraliza.'lsc comple tamen-
as veias, quase transformando-o em estátua. te, nos quais tudo o que parecia dar um valor e um scnriclo à sua
Mas os freqüentadores do café riram e disseram: "O arquivis- existência e a seu pensameilto lhe soasse ridfculo e í1ítil? Você
ta hoje estava novamente com suas manias, amanhã ccrramente mesmo não sabia então o que fazer nem a q11c111 r~corrcr; o seu
estará manso como um cordeiro e não dirá palavra, e ficará ob· coração excitava-se com o obscurn p1·essentimcnto d c- que cm al-
se1-vando as rodelas de fumaça de seu cachimbo ou lendo jornais gum lugar e em algum instante seria satisfcilo um desejo imenso,
- e o melhor é não prestar atenção." "L'\ isso é verdade", pensou superior a qualquer prazer terre no, clcscjo que o espírito, como
Anselmo. "Quem daria atenção a isso! Não se declarou o arqui- uma criança dócil e tímida, nem mesmo ousava forn111lar; nessa
vista encantado cm me saber pronto a copiar seus manuscritos? nostalgia por algo desconhecido e sempre presente como um so-
E por qnc o escrivão Hccrbrand lhe barrou a passagem, quando nho vaporoso, Cltja transparência escapasse a seu doloroso olhar,
ele jusi.amcntc queria ir para casa? Não, não, no fundo, é um você permanecia indiferente a lt1do o que o cercava. Com os
bom homem o arquivista Lindhorst, e surpr·cendcmen1e gene ro- olhos esgazcados, você vagava como um amante sem esperanças,
so - apenas é excêntrica a sua maneira de se exprimir, mas o que e toda a desordenada agitação humana a seu redor não lhe des-
tenho a ver com isso? Amanhã irei pontualmente ao meio-dia, pertava dor nem alegria, como se você não pertencesse mais a
mesmo que a isso se oponham legiões de brônzeas vendedoras este mundo. Se você, prezado leitor, alguma vez foi in\'adido por
de maçãs." essa sensação, então compreende po1· expcl'iência próp1·ia o esta-
do cm que se encontrava o estudante Anselmo.
Em todo caso, ficai-ia feliz se já tivesse conseguido apresentar
ao leitor um Anselmo bem real. Pois ainda tenho, nessas vigi1ias
que consagro à narração de sua tão curiosa hislória, aventuras de
tal modo fantásticas para contar, episódios extraordinários sub-
vertendo o cotidiano banal de pessoas normais, que chego a te·
mer que no fim você não acredile nem na cxis1ência do
estudante Anselmo nem na do arquivista Lindhorst, e que levan-
te até algumas suspeitas sobre a realidade do sub-reitor Paul-
mann e do escrivão Heerbrand, embora estes tíltimos, home ns
de bem, ainda hoje passeiem pelas rnas ele Drcsde. Tc111c, amigo

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O VASO DE OURO Quarta Vtgifia

e leitor, reconhecer as figuras que você encontra ordinariameute, birei de tristeza e dor se você não voltar!" Todavia, tudo conti-
transp ortando-as ao reino das fadas, esse reino onde a maior vo- nuou silencioso e calmo e, como da primeira vez, o sabugueiro
lúpia convive com o mais profundo horror, sim, onde a compe- apenas agitou impcrceptivclmenle seus galhos e folhas.
netrada deusa ergue a extremidade do véu, fazendo com que Agora, porém, o estudante Anselmo estava convicto de co-
creiamos contemplar sua face ... enquanto o soJTiso, que com fre- nhecer a fonte daquela efervescência interior que tanto lhe dila-
qüência ilumina seu olhar austero, nada é senão a ironia malicio- cerava o coração em um desejo infinito. "É apenas o facoft disse
sa, que se diverte enfeitiçando-nos com seus encantos, assim ele, "de amá-la profundame11tc, até a morte, esplêndida serpente
como uma mãe implica com seu úlho predileto! Esse reino, que dourada. Não posso mais \'Í\'Cr sem você, e o desespero me con-
tão freqficn1emen1e entrevemos cm nossos sonhos, encontra-se sumirá se não a vir novanwntc, se uão a tiver como a amada de
bem mais próximo do que o leitor imagina ... enfim, é o que sin- meu coração - mas sei que scr:i minha tornando realidade tudo
ceramente desejo e procuro esclarecer com a estranha história o que maravilhosos sonhos Ili<' pro11)('lcran1 sobre um mundo
do estudante Anselmo. inefável e melhor." A pari ir de ('lll;io, lodos os dias ao cair datar-
Bem, como ia dizendo, Anselmo, desde a noite cm que eu- de, quando o sol espargia seu brilho clo111·iHlo sobre o cume das
controu o arquivista Lindhorst, caiu num entorpecimento que o árvores, Anselmo cncan1i11hava-sc csp<'rançoso para a sombra <lo
tornava sensível a todo contato com o mundo cotidi;u10. Sentiu sabugueiro e sua voz dolente, c111rccol'la<la por profundos suspi-
agitar-se dentro de si algo desconhecido que lhe causava aquela ros, lançava seu apelo cm clircção nos gnll1os e folhas à encanta-
dor voluptuosa, aquele desejo que acena ao Homem com uma dora amada, a serpcntczinha dourada. Um dia, quando nrnis uma
existência mais elevada. Passou a ter prazer cm p ercorrer prados vez entregava-se a essa prática, subi1anic11te surgiu clian1c dele
e florestas, como que liberto de LU<lo o que o prendia à sua po- um desconhecido, grande, magro, e11Ciado num enorme sobretu-
bre vida, e c-rn apenas na conlemplação das variadas paisagens de do cinzento, que, fitando-o co111 seus grandes olhos ele fogo, in-
sua imaginação que encontrava, por assim dizer, ele próprio. terpelou-o: "Ei, por que tanto choraminga? Mas, é o senhor
Assim, acon1 eccu que um dia, voltando de um;i longa cami- Anselmo, que queria copiar os meus manuscritos." Não foi pe-
nhada, passou por aquele memorável sabugueiw, ao pé do qual, queno o susto de Anselmo com aquela voz tonitruantc, pois reco-
e n fcitiça<lo, leve visões fant.-isticas. Sentia-se inexplic.awlrnente nhecera ser a mesma voz que no dia da Ascensão lhe g1i1ara: "Ei,
alraído por aquele recanto <la vegetação, mas, mal ali se instalara ei,_ ~ue confusã? é essa etc." A estupefação e o susto não lhe pe1--
novamente, e t11do o que antes vira como em um êxtase divi no, m1trrnm profenr palaHa. - "O que está acoutcccndo, senhor An-
mas que fora expulso de sua alma por uma fo rça estranha, tor- selmo", continuou o arquivista LindhorsL (afinal não era outro o
n ou-se novamenre presente para ele nas mais vivas cores, tão pre- homem do sobretudo cinzento), ..o que que1· desse sabugueiro, e
sente que era como se estivesse vendo tudo pela segunda vez. por que não foi à minha casa, para começar seu 1rabalhot"
Com mais nitidez ainda que da primeira vez, constarou que os De fato, apesar de suas belas resoluções, Anselmo ainda uào
deslumbrantes olhos azuis pertenciam à serpente verde e doura- se decidira a voltar à casa do arquivista. Mas naquele momento,
da enroscada cm torno do sabugueiro e que nos anéis do esbelto quando se viu arrancado de seu belo sonho, e ainda por cima
corpo brilhavam os maravilhosos sinos de cristal, cuj os sons lím- pela mesma voz hostil que naquela outra ocasião já lhe arrebata-
pidos cumulavam-no de volúpia e encantamento. Como no dia ra a bem-amada, foi invadi<lo por uma espécie de desespero, e fu-
<la Ascensão, ele abraçou o sabugueiro, lançando este apelo por riosamente explodiu: "Não importa se 111e considera lou co,
e ntre seus galhos e folhas: "Ah , só mais uma vez, adorável ser- senhor arquivista! Para mim é indiferente, ma.s aqui, nesta áivo-
pcnt c ver<le, serpenteie, cirandcie, enrosque-se nos galhos, para re, avistei, no dia da Ascensão de Nosso Senhor, a serpente dou-
c1ue eu possa contemplá-la uma vez mais. Fite-me só mais urna rada - ah, a eterna amada de mi11h':al111a, que se dirigiu a mim
vez com seus maravilhosos olhos! Ah, amo-a demasiado e sucum- com sua manivilhosa voz de cristal. Mas o senhor, sim, o senhor,

26 27
O VASO DE OURO Qum·ta Vigília

arquivista, começou a gritar lâo -~d~osamcntc da outra .n:'ar- formaram um translúcido espelho de cristal, onde as três serpen-
gem...." "Como assim, meu. caro~ , mti:rrompeu o arquiv1st~ tes d~uradas e sinuosas, ora se separando, ora se enalaçando
Lindhorst, aspirando uma pitada de rape e estampando nos Ja. umas as o.ut1:as, dançavam. e deslizavam. E quando seus graciosos
bios um sorriso estranho. corpo~, c111t1lanclo cm milhares de faíscas, tocavam-se, soavam
Anselmo sentiu que o seu peito se aliviara ao falar ele sw1 es- maravi1~1osos acor~cs cristalinos. A serpente do ccnt1·0 esticou
tranha aventura, e achou que estava certo cm acusar o arquivista: sua d_ehcada cabccmha para fora do espelho, e seus olhos azuis
fora ele que trovejara à distância naquela dia dll Ascensão. Con- lhe disseram: "Você me conh ece? Acredita e m mim, Anselmo? É
trolou-se e falou: "Depois que lhe contar minha fatal desvenmra na ci:cnça que re~ide,, o a~or - você é capaz de amar?" "Ah, Ser-
no dia da Ascensão, o senhor então poderá fa\;ir, fazer ou mes- pentina, Serpentina! , gritou o estudante Anselmo em desvaira-
mo pensar de mim o que quiser." do encantamento.
E de fato pôs-se a contar aquela inverossímil história do cs- Mas em um piscar de olhos o arquivista dera um sopro no
ban-ão no cesto de maçãs até a fuga das três serpentes pela água, espelho:~ c?':" um estampido elétrico os raios regressaram a seu
e de como as pessoas o consideraram bêbado ou louco: "Tudo foco o ngmano. Em sua mão só brilhava uma pequena esmeral-
isto", concluiu, "eu realmente vi com meus olhos, e continuo a da, sobre a qual o arquivista calçou novamente a luva. "Viu as
sent it-, dentro de meu peito, soar nitidamente as doces vozes que s~ rpentezinhas <~ouradas, senhor Anselmo?", perguntou o arqui-
falaram comigo: não [oi absolutamente um sonho, e pari1 não vista. ~'Se cu as v1? Meu Deus, sim, sim!", retrucou o estud;mte, "e
morrer de amor e desejo, sou obrigado a acreditar nas serpentes ~mbem a ?oce e cncani:idora Serpentina." "Chut", continuou
douradas... mesmo percebendo seu sorriso, caro senhor arquivis- Lmdhorst, basta por ho3e, mas o senhor pode, se se decidir a
ta, que considera as serpentes uma quimera de "!,inha i1'.1agina- tra?alhar ~omigo, ver as minhas filhas quando quiser, ou muito
ção excitada e delirante." "De forma alguma , replicou o m:us que isso; quero proporcionar-lhe um imenso prazer, se se
arquivista, mantendo toda a ílcuma_, "as serpentes d_ouraclas <jlle co1~portar_bem no trabalho, isto é, se copiar cada sinal com a
o senhor viu no sabugueiro cmm JUstamente as mmhas trts fi- maior exandão e perfeição. Mas o senhor não foi à minha casa
lhas, e, a<JUÍ entre nós, o senhor há de convir que caiu apaix~na­ embora o es~rivão J-Ieerbran<l me assegurasse que apareceri~
do pelos olhos azuis da mais nova, que se chama Scrpcnuna. logo em seguida; desde então espero cm vão dias a fio."
Aliás, cu já sabia disso desde o dia da Ascensão, pois sentado à Mal o arquivista citara o nome de Hecrbrand, Anselmo vol-
minha m~sa de trabalho, e incomodado pelo burburinho que fa- tou a sentir-se com os pés na terra e a ser ele mesmo, e o homem
ziam, gritei do escritório às animad;ls mo~as que j:\ ~ra 1e~11po_ de à sua frente, o arquivista Lindhorst O tom indiferente deste t'ilti-
voltarem para casa, pois o sol já se escondia e se haviam chvcr1 ido mo tinha, num aberrante contraste com as estranhas aparições
o bastante cantando e bebendo raios." por ele provocadas enquanto autêntico necromantc, algo de pa-
Anselmo teve a impressão de que o que há muito pressentira voroso que se acentuava ainda mais por seus peneu-antes e fais-
e nfim lhe era ;ipresentado em palavras inteligíveis, e se bem qu~ cantes olhos, profundamente embmidos nas órbitas ossudas de
parecesse notar que o sabugueiro, o muro, a relva e to<las a pai- seu ~osto magro e enrugado. Um sentimento hígubre voltou a
sagem dos arredores começavam discretamc11t~ .ª gira~·, contcve- dom111ar Anselmo, a mesma sensação que experimentara no
se fazendo menção de dizer algo. Mas o arq111v1sra nao lhe deu caf~, escutando as fantásticas aventuras do ;irquivista. Só com
Lempo; rapidamente retirando a luva da mão esquerda, e colo- muito esforço conseguiu se conter, quando o arquivista mais
cando diante dos olhos do est uda nte a cintilante pedra de um u_ma vez perguntou: "E então, por que não foi à minha casa?" En-
anel, disse-lhe: "Veja aqui, caro Anselmo, o senhor pôde rcgoú· tao contou tudo o que lhe acontecera à porta da casa. "Caro se-
jar-se com o espetáculo". Anselmo olhou e, milagre!, a pedra ilu- nhor Anselmo", disse o arquivista, quando o estudante terminou
111ino11 como que um ardente braseiro de raios convergentes que "caro scnJlor A nselmo, conheço muito bem a mulher das maçãs,

28 29
O VASO DE OURO

de quem fala; trata-se de uma criatura medonha que me tem


aproui.ado toda espécie de farsa, e o fato de ter-se metamorfosea-
do em cabeça de b.-onze a fim de afugentar as minhas visiw é
p or demais irritante para que possa tolerá-lo. Caro senhor Ansel- Quinta Vigília
mo: se amanhã, ao meio-dia, voltar à minha casa e tornar a perce-
ber tais esgares escarninhos, deixe-lhe cair un;as gotas desse licor A futura espos? ~Conselheiro Ansel111.o - Cícei-o, De Offzciis -
sobre o nariz e imediatamente tudo volLara ao normal. Agora Pandemomo -A veUta. Lisa -A noite do equiuór.io
adeus, prezado scnh~r Anselmo; c?mo caminl~o ~uito rápido,
não lhe imponho m111ha compa11l11a de voli.a a cidade. Adeus,
portamo. Até amanhã, ao meio-dia." . "Não se pode fazer mais nada por Anselmo", disse o sub-rei-
Dizendo isso, o arquivista deu ao estudante uma garra~nha tor Paulmann. "Todas as minhas instruções, todas as minhas re-
com um licor dourado e afastou-se a passos largos. No crepuscu- comendações permanecem vãs; ele não quer aplicar-se, embora
lo que caíra, mais parecia flutuar do que andar vale abaixo. Já es- P_?ssua os melhores estudos, que são a base de Ludo." Mas 0 escri-
tava na altura do Jardim Kosel, quando o vento entrou pelo largo vao Heerbrand replicou, sorrindo sagaz e mistc:riosamcnrc: "Dê-
sobretudo separando suas abas, que, semelhantes a asas, puse- lhe um po~c.o de tempo, caríssimo sub-rcilorl Sem chívida é um
ram-se a bater, e o estudante Anselmo, que observava ad1mrado r~paz es~u1s1to, m~ há muita coisa naquela cabeça, e quando
0 arquivista, t.cve a impressão de que um imenso páss~ro alçava digo muito quero dizer que se pode tornar· um secret;írio particu-
vôo. Assim, contemplando o crepúsculo, o estudante viu crguer- lar ou. mesmo Conselheiro áulico ... ~ "Conselheiro", balbuciou 0
se aos ares um abutre cinzento. Pôde então observar que o esvoa- sub-rcttor•. pasmo. "Calma, calma", continuou o escrivão Hcer-
çar, que pensara ser causado pelo arquivista se dist;inciando, brancl, "sei º. ~uc se.i! Já há dois dias ele está fazendo cópias na
devira-se na realidade ao abutre, embora não pudesse compreen- casa do arqu1v1sta Lmdhorst, e este me disse ontem 110 café: 'O
der como o arquivista desaparecera tão subitamente. "Dcpoi~ de senho.r rccom:ndou-me um homem de valor, excelentíssimo!
tudo, é até possível que o próprio arquivista tenha voado", disse U~ dia ele sera alguém!' Pense em todas as relações do arquivis-
consigo mesmo Anselmo, "pois vejo e sinto com ~larcza q~e to- ta. Mas calma, calma! Falaremos sobre isso daqui a um ano!" A
das essas aparições estranhas de um mundo mai:av1lhoso e distan- essas
. · palavras
. , o escnvao
· - se rlOJ,· so1-r1dentc
·
e com u m ar conven-
te, que normalmente cu só vira em sonhos mmto ex.rravagante~, cido, deixando estupefato na cadeira o boquiaberto sub-reitor.
agora aparecem quando me enconu·o acordad? e bnncam comi- . Qu~nto a Ve1·ô~ica, via~se que a conversa lhe pro\'OCara uma
go. Seja como for! Você vive e arde e~ meu p~1to, ~ncanta?ora e 1mp~essao toda p arucular. Se1?1r1:e soube disso", pensou, "o se-
doce Serpentina, e só você pode apaziguar o mfimto d esejo que n.h?1 Anselmo e um rapaz muito rnteligentc e amável e um dia
me consome. Ah , quando poderei mergulhar meus olhos em seu vira a se~ alguém! Se ao menos cu soubesse se scnlc por mim al-
encantador olhar, minha bem-amada Serpentina!", exclamou An- guma coisa! Mas não pressionou ele duas vezes minha mão, na
selmo em voz alta. tarde cm que passeamos pelo Elba? Não me filava durante o due-
"Eis aí um nome esquisito e pouco cristão", murmurou a seu to com um olhar que fez pulsar meu coração? Sim, sim! Ele me
lado a voz de um passante que voltava para casa. Anselmo, lem- ama! - e eu a ele."
brando-se de onde se encontrava, afastou-se apertando o passo. Verónica. como e' comum nas mocinhas, · abandonou-se aos
Pc·nsava: "Não seria muito azar encontrar agora o sub-reitor Paul- belos sonhos ~e um alegre futuro. Er~ a esposa do Conselheiro
ma1111 ou o escrivão Hcerbrand?" Mas não encontrou nem um ocupava uma lmda residêr~cia na rua Schloss ou na pr;\ça do Mcr:
1u-m ou1ro. cado Novo ou.na rua Montz; o moderno chapéu, o xale turco (j.
cavam-lhe mmto bem; tomava o café da manhã n 11 m cl<'g~mlt'

30 31
Quinta Vigília
O VASO DE OURO
será Conselheiro e muito menos seu . . ' -
robe e dava as instruções necessárias à co2.inhcira: "E sobretudo bora você tenha olhos azuis, um belo ma.ndo, cl~ nao a am::i, cm-
não estrague o prato preferido do senhor Conselheiro!" As cle- gue congelou nas vci::is de V ô . co1 po e m::ios finas." O san-
ganLes que passam a observam, e ela não perde uma de suas pala- dcstruiu o encanto cm que m ~r 1~1ca, e um ::irrepio de terror
cos elegantes As I' ,. c1gu lara, de touca de renda e brin-
vras: "A esposa do Conselheiro é realmente uma mulher divina; . · agi unas qunsc rolara d
como lhe cai b e m a touca de renda!" A esposa cio Conselheiro Y. conseguiu se co11tcr: "Sim (> • I· <l m e_seus olhos, e ela não
· • vcic a e ele nao me
envia um mensageiro e quer saber se gostaria de acompanhá-la rei a esposa do Conselheiro!" "T I' ' . ama, ~unra se-
ao Jardim Link: "Minhas recomendações, sinto muitíssimo, mas lou. o sulrreitor Paulmann <Jll<' rº ICCS d~ 101;iance, tolices". g1i-
já me comprometi para um chá com a esposa do Presidente Z." E furroso. "Era o uc me f: ' . " <>go~J c lílpcu e bengaJa e saiu
com a irmã de lq2 a11os alt;l\.1 ' s11sp1rou Vcrônica, irritando-se
então chega o senhor Conselheiro Anselmo, que saíra cedo para • que st·11t·1dn ·1 1 ·
os negócios; está na última moda: "Não! dez horas já!", exclama, dar com indiferença. '• • ' ' seu ac1o, continuava a bor-
dando corda no relógio de ouro e um beijo na jovem esposa. Entretanto já eram quase lré\~ ho - . . •
"Como está a minha querida mulherzinha? Adivinhe o que lhe sal::i e preparar a mesa do caf. .. . n1s < t< ll~f)() de· arrumar a
trouxe?", continua, alegre, e tira do bolso do colete um par de a nunciado uma visita à . e, ~ois as S<'11hor rta~ Oster haviam
brincos maravilhosos e de desenho moderno, que lhe p endura empurrava atr:.\s dos cad~tga. 1 ::is .ª~rás d<· cada armário que
·á ' e1 nos < e m11s1ca c111<' ••. - 1 •
n::is orelhas. "Ah, que brincos lindos, magníCicos", exd::ima Verô- atr • s de cada xícara • do b tt l e d e caie
"' que
. .
t11··iv 1<1111 ,1va 'e o• pra no,
nica cm voz alta e, deixando o trabalho de lado, precipit::i-se para va aquela figura como ª
' < o a1 mano, snlla-
dava-lhe piparotes com um gnomo; zombando com ar irônico,
olhar os brincos no espelho. . suas patas de armha· ""! -
"O que quer dizer isso?", perguntou o sub-reitor Paulmann, mando, ele não será seu marido!" Em ' . . r . e nao sei~ seu
que, mei-gulhado no De 0.Ificiis, de Cícero, quase deixou o livro t11do de lado e corria pa1~ . d seguida, quando deixava
. ' ~ o meio a sala ·
cair. "Será que tem acessos como Anselmo?" Nesse exato instan- h· ed1011<lo atrás da calcfaçã . l , via-o com seu focinho
seu ·
mando!" º• zunm< o e ros11anclo·· "El•. e nao - será
te, o estudante, que contra seu hábito não aprecia há diversos
dias, penetrou no aposento. Verônica, a princípio assustada, logo "Mas, F•ranc1sc::i,
· não está ouvindo d ? -
surpreendeu-se ao ver que suas maneirns haviam se modiCicado nada?" gritava Ve .• . na a Nao está vendo
• 10111ca. que t rcmend d -
totalmente. Com uma segurança desconhecida, discon-eu sobre a quer fazer. Sua irma- lar d . b . o e medo uao sabia o
' • gan o seu ordad
toda a calma: "O que , • . o, pe rgtmtou-lhe com
nova orientação de sua vida e das magníficas perspectivas que se 1la com voce ho1e::> v · ,
lhe abriam, ninguém podia imaginar. O sub-reitor Paulmann, ludo de cabeça pra baixo• Nº , ~ . oce esta colocando
vou aiudá-la " M . . tnguem entende mais nacla- vamos
ainda sob a impressão da misteriosa profecia do escrivão, ficou as nesse mstantc su . .. • .•
S, as ~migas Já entravam na sala
. :i ' •
::iinda mais intrigado e não conseguiu pronunciar sequer uma sí- sorridentes e clcsembaraç d
r • a as. o entao Ver· ·
laba, já que Anselmo, depois de aludir à urgência de determina- co11tundira a tampa da cst f; omca percebeu c1uc
• ' u a com uma figt
do trabalho na casa do arquivista e de beijar a mão de Verónica as palavras hostis na verdad . tra monstn1osa e que
. S b , . e eram rangidos da p ·1 1r
com elegante desembaraço, descera rapidamente a escada, desa- d a. o o do11111110 inexorá ' 1 d - o1 a ma iecha-
parecendo em seguida. "Este já era o Conselheiro", murmurou pcr~u·-sc tão rapidamente \e ..e se~ pav~1-, nao. conseguiu recu-
. que as a m1g·ls nao nOI"
Verônica consigo mesma, "e beijou minha mão sem escorregar tncomum que a sua J'd ' <Lssem sua tensão
' ' Pª 1 ez e seu sembl .
ou pisar no meu pé, como fazia antes! E que ternura no olharl com nilidez. Reprimindo as diver1id a~1te ,alordoado traíam
mavam a língt1a, insistiram ara ne ~ no~1dadcs, q~e lhes quei-
Ele gosta de mim! Está claro!"
Verônica tornou-se presa de novos devaneios. Mas um perso- lhe havia acontecido e V ?. ~. amiga lhes dissesse 0 que
· • eromca 101 obri da r
nagem hostil veio perturbar as visões encantadoras da vida mun- lava entregue a esLranhos d . ga a contessar que cs-
. fi cvane1os e que de . ,
dana da senhora Conselheira, zombando com escárnio: "Tudo d ta, ora assaltada por um smg11 . .1 1epentc, a luz do
ar e anormal mcd o <e l [;antas-
ist o são tolices, e ainda por cima mentira, pois Anselmo nunca

33
32
O VASO DF. OURO Quinta Vigília

mas. F. pintou cm termos tão vivos o pequeno gnomo cinzento recc uma estranha mistura de toda espécie ele figuras e fo rmas,
que a espre1·t a ra e llic aperreara' em todos. os cantos da casa, que . que são interpretadas pela velha para responder à pergunta colo-
as senhoritas Oster começaram apreensivamente a olhar a~ 1 c- cada. Ontem à noice estive na casa dela e tive no tícias de meu Ví-
d . e logo esLt-ivam també m elas morrendo de meco. Mas a1 c:,11- tor, que creio absolutamente verdadeiras."
u~:i a pequena Francisca com o café fum~gan?º· e as trcs, A história de Angélica acendeu uma faísca no espíri to <lc Ve-
refazendo-se rapidamente, riram de sua própria tolice. . rônica, e logo desp ertou-lhe a idéia de ir consultar a velha ares-
Angélica, como se chamava a mais velha das senh ontas Os- peito de Anselmo e de suas próprias esperanças. Souhc que se
te r e ra noiva de um oficial e m serviço, e ele Geara tanto tempo tratava da senhora Rauer, que morava numa rua distante e só p o-
sc~1 <lar notícias que Lodos o julgavam morto ~u. pelo menos gra- dia ser consultada terças, quartas e sexlas, das sete da noite até o
vemente ferido. Isto atormentava muito An~cltca, ~as naq~el~ raiar do dia, e que preferia que a pessoa fosse sozinha. Era justa-
d 1·a ela estava alegre e muito calma, o que mutto adn~arou Vero111- mente uma quarta-feira Sob o pretexto de acompanhar as irmãs
ca que lhe expressou o seu esp:mto. "Quen·da amiga" • 1·espo n · Ostcr em casa, Verónica resolveu procurá-la. Mal cumprimentara
d~u-lhc Angélica, "como pensar que por un~ ins~ant c eu te.nha as amigas, que moravam na parte n ova da cidade, diante da Pon-
esquecido 0 meu Vítor? Mas justamente por isso e que n:1~ sinto te do Elba, dirigiu-se a passos largos para a Porta do Lago r logo
- a 1e g1·e , all , Deus• com a alma transbordante d e fehc1dade
tao !
• • se viu na rua estreita e distante que Angélica lhe indicara. No fi-
Pois meu Vítor encontra-se b em, e cm pouco tc~1po cu o ~c 1 e1 nal, a casi nha vermelha onde deveria morar a senho1<1 Rauer.
. ·r-a 0 , adornado
cap1 ' com as condecorações c:onqmstaclas
. . po1 sua Não pôde conter uma sensação de med o , u m tremor interio r, ao
corngem. U m fedmcnto grave, mas nem por isso pcrt~o~o •. no ch egar diante da po11a. Finalmente j untou comgcm, superou sua
braço direito, provocado pela cspacl_a de um hussar~o. 11um'.~~~ repugnância e puxou o cordão da campainha. A porta se abriu e
im cdia-o d e escrever, e como ele nao que r abandon,11 s_eu 1cg1 ela seguiu pelo escuro corredor até a escada que leva\"a ao andar
01
!.,to, sem pre cm movimento, por .nada. no mund_o, vm:sc ~'ª de cima, tudo como lhe descrevera Angélica. "É aqui que mora a
impossibilidade de me dar sinal de vI<.la. Sim, mas esta noite d e senhora Raucr?", gritou ela para dentro do lugar deserto; à guisa
certamente obiera . , 1·1cença· p·li·a
L<
se recu1)c1-ar completamente.
• • •
de resposta, ouviu um longo "miau", e um gato grande e prelo
Amanhã ele virá me encontrar, e, quando csl~ver sub1~1~lo .~'~ c~1- apareceu, com o dorso distendido e desen hando com a cauda fle-
agcm ten1 conhecimento de sua p ro moçao a cap1tao. Mas xíveis ar.abescos. Este a precedeu até a p orta d o quarto, que se
~crida' Angélica", interrompeu Verô11ic<1, "como sabe de ~~do abriu a um segundo "miau".
· t · .. "Na-0 i·ia de mim q 11erirla amiga", continuo u Angehca, "Ah, Cilhinha, já chegou? Entre, entre!" O personage m que
IS O.1 ' ' •
"mas você não faria isso, estou certa, pois como castigo o p cq1~c- falava d e ixou Verônica estática. Era uma mulber alta, rnag1-.-1, co-
no gnomo ci1tzento via ia espreitá-la atrás do espelho. Be__m. nao berta de farrapos negros! Enquanto falava, seu queixo ponLudo e
consigo desembaraçar-me da cren?' na exi~téncia d.e feno~1enos proeminente balançava, a boca sem de ntes transformava-se, som-
misteriosos que freqü entemente rnOuenc1:u-:-~m m11~lia vida de breada pelo nariz aquilino e ossudo, num ricto aterrador. e seus
maneua · . tann-ivcl.
i;•
Não me parece absurdo ou 1mposs1vel,
.. • . como a. brilhantes olhos de gato lançavam faíscas através dos óculos gros-
tantos que possa haver pessoas dotadas de e1anv1.c.1e nc1a, exe1- sos. Do le nço colorido, enrolado na cabeça, saíam cabelos pretos
ccndo' t.a.I poder através de meios infalíveis, dos qu:us apena~ elas e crespos, mas para completo horror marcavam sua face re pug-
têm conhecimento. Há aqui na cidade uma velha que possui esse nante duas grandes cicatrizes de queimadura, que se estendiam
dom de maneira especial. Ao contrário das muitas oULras de ~ua da face esquerda até o natiz. Verônica susteve a respiração, e o
rnfissão, ela não profetiza atr.ivés de cartas, ch111:i1bo cl<-ncud~ grito que deveria aliviar seu peito oprimido transformou-se num
~ resíduos ele café, mas depois de certos preparattvos, d?s qua'.s
11 suspiro profundo, quando a mão ossuda da bruxa a agarrou, pu-
p<1rt icipa a pessoa interessada; nutn espelho de metal pol1clo apa- xando-a para o quarto. Lá dentro, tudo se agitava e movia-se: era

34 35
• 'J.

O VASO DE OURO Qui11ta Vigflia

uma mistura confusa de miados e pios, gracejos e carí\rejos. Ba- da, nunca se tornará Conselheiro po rque está a serviço na casa
tendo com o punho sobre a mesa , a velha gritou: "Si\~n~io aqui, das salamandras, e q11e1· desposar a serpenLc d ourada; esqueça-o,
coij a!" E os micos subiram pelo cort~nado do baldaqmm, e o~ esqueça-oi"
porq ui nhos-d a-índia correram para baixo da estufa, e o co1vo foi Vc1·ônica, que tinha 11111 caráter firme e sabia dominar rapi-
e mpoleirar-se no espelho; apenas o gato. preto, como se aquelas damente o ter ror comum às moças, deu um passo para trás e fa-
invcclivas não se dirigissem a ele, conwmou calmo na grande lou num tom sério e comedido: "Vdha Raucr, ouvi falar de seu
poltrona estofada, sobre a qual pulara logo a~ .en~r. Com.a c~l­ dom de dizer o futuro e por i~so queria saber, talvez de maneira
ma restabelecida, Verônica tomou coragem; Jª nao se sentia tao por demais apressada e curiosa, se· A11s<'11110, a quem amo e admi-
assustada quanto no corredor, e mesmo a mulher j á não lhe pa- ro, um dia seria meu. S<', ao invés clt• n·~ponckr à minha expecta-
recia tão Le rdvel. Só agora olhava em volta do quarto! Toda sorte tiva, quer confundir-me com sua com•c• ii;a louca e absurda, está
rle animais repugnantes e empalhados pendurava-s~ do teto; es- procedendo erradamemc, pois s6 queria d:\ 1w11hora o que já ga-
palhados pelo chão, d iv7rs.os u~e nsílios desc?~hec1clos e estra- rantiu a outros. Já que, como 1x11·cc<\ co11hc•cc· os 111c·us pensa-
nhos, enquanto na chanunc ardia um fo.go deb1l e :tzula<lo, .que mentos, seria talvez mais fácil para' a sc111iora rcvc·lar me coisas
só raramc11Le crepitava. Subitamente ouvm-se um nmlo em ci1~a, que me atormentam e amedrontam, n1as não quero saber mais
e ho rríveis mo rcegos, de se mblante humano, voavam pa1~1 la e d e suas calúnias ridículas para com o bom Anscllllo. Boa 11oi1cl"
para cá, com um sorriso desfigurado. De vez em qua11do a chama Vcrônica estava para sair, quando a velha, cxploclinclo c111 ht-
lambia a parede fuliginosa, e então ressoavam sons cortantes, grimas, caiu a seus joelhos e, segt1rando a moça pelo vestido, su-
chorosos, plangenLes, de modo que Vcrôuica ficou novamente plicou-lhe: "Minha pequena Vcrônica, não conhece mais a velha
em pânico. . . Lisa que tantas vezes lhe carregou nos braços, acariciando-a e de-
"Co111 sua licença, senhorita", chsse a velha sorrindo e pegan- dicando-lhe afeto?" Verónica não podia acreditar em seus o lhos
do um abano e- com ele espargindo a lareii-a, depois de lê-lo mer- reconhecendo sua antiga ama-seca, evidememcnte desfigurada
gulhado num caldeirão de cobre. O fogo se apagou e o ap.os_ento, p ela idade e sobretudo pelas queimaduras, aquela que há muitos
invadido por uma densa fu maça, mergulhou n~ma escu nclao to- anos atrás desaparecera da casa do sub-reilor Paulmann. Agora a
tal. Mas logo a vdha, que safra para um ~l1arunho, voltou. co~1 velha estava bem diferente; ao invés do feio lenço color ido, tinha
u ma vela acesa, e Vcrônica subitamente deixou de ver os an11na1s uma to uca digna, e no lugar dos sórdidos farrapos prelos usava
e os ulensílios, era um quarto normal, pobremente mobiliado. A uma j aqueta estampada, como a11les costumava vestir. Ela se
velha aproximou-se e disse com sua voz estridente: "Sei mu it~ reergueu e pegando Verônica pelo braço continuou: "Poclc pare-
bem o que quer ele mim, filhinha; você q uer. s~cr se. s~ casara cer uma completa loucura tudo o que lhe disse, mas infelizmente
com Anselmo, quand o ele se tornar Conselheiro. Vero111ca con- é assim. Anselmo me causou um mal enorme, mas conrra ~ von-
gelou de surpresa e suslo, mas a velha continuou: "~ocê já me tade d ele; ele caiu nas mãos do arquivista Lindhorsl, e este ten-
disse tudo na casa de seu pai, quando o bule de cafc eslava na ciona casá-lo com sua filha. O arquivista é meu inimigo jurado, e
sua frente e eu. era o bule - não me reconheceu? Filhinha, ouça! cu poderia dizer-lhe muitas coisas sobre e le, mas você não as
Esqueça e~se Anselmo. É um sac:·ipant~, pisou no r~s~o das mi- compreenderia ou então fica1·ia assustada. É um mágico, mas eu
nhas filhinhas, das minhas queridas filhmhas, as maça:w1has com també m sou maga! Enfim, veremos! Vejo agora que você ama
as faces vermelhas, que as pessoas compram mas rol;im d e volta Anselmo e quero ajudá-la com todas as minhas forças para que
da bolsa delas pari\ o meu cesto. Ele é cúmplice do velho e an- chegue feliz ao leito conjugal, já que é o que deseja." "Mas diga-
lconte m jogou-me no rosto seu maldito ácid? sulfúrico, _dc.ixan- me logo tudo, Lisa!", interrompeu Verô1iica. "Calma, filha, cal-
dn-mc quase cega. Você pode ver pelas queimaduras, hlh1nhal ma!", atropelou a velha, "sei o que você quer dizer, tornei-me o
Esqueça o, esqueça-oi Ele não a ;11na, ele ama a serpente doura- que sou hoje porque assim tinha de ser, não podia ser difcrcnt.e.

36 37
O VASO DE OURO

O ral Conheço o re médio que poderá curai· Anselmo d e seu in-


sensato amor pela Serpente Verde e que o levará, como o mais
digno dos conselheiros, a seus. braços; mas ~ocê p~ecisa ajudar-
mc." "Diga-me tudo, Lisa! Farei qualquer coisa, pois amo Ansel- Sexta Vigília
mo!" murmurou Verônica, com uma voz abafada. "Conheço
você~, con1in11ou a velha, "como uma criança corajosa, em vão O jardim do arquivista Li11dltorst e sem pássams zombelriros -
tentava fazê-la do rmir contando histórias do lobo mau, já que O Vaso de Ouro - O manuscrito inglê.s - Sórdidos gmfünrhos -
abria os olhos para vê-lo; você era capaz de subir ao sótão escuro O Príncipe dos Espíritos
e muitas vezes assustava as crianças do vizinho com o roupão de
seu pai. Pois então! Se realmente quer, através de minha arte,
vencer o arquivista Lindhorst e a Serpente Verde, se realmente "Pode ser também", dizia Anselmo consigo m<:smo, "que
quer chamar de marido o Conselheiro. Anselmo, entã? ~m~nhã, aquele excelente mas embriagante licor, ingerido na confeitaria
às onze da noilc, saia da casa de seu pai e venha para ca; 1re1 com do senhor Conradis com certa avidez, tc11ha produzido os aces-
você a um:. encruzilhada que passa perto do campo; preparare- sos d e delírio de que fui víLima à p orrn do arquivista Lindhorst.
mos o necessário, mas você não deve se preocupar com o qu~ Por isso hoje ficarei inteiramente sóbrio para fazer frente a qual-
pode acontecer de estranho. E agora, filhiuha, boa-noite, seu pai quer contrariedade <JUC me possa acontecer." Assim <:orno da pri-
já a espera para a sopa." . . _ meira vez, quando se preparava para sua primeira visila ,
Verónica saiu dali apressada, firmemente decidida a nao fal- muniu-se de seus desenhos a lápis e de seus exercícios caligráfi-
tar ao e ncontro da no ite do equinócio, "pois", pensou, "Lisa tem cos, suas aquarelas, suas penas bem apo ntadas, e ia dirigir-se à
razão; Anselmo está entregue a uma sinistra engrenagem. Mas porta quando percebeu à sua freme a garrafinha com o lí<Juido
vou libcr1á-lo e ele será meu para sempre, o meu querido Conse- amarelo que recebera do arquivista. Re\'iveu encão, e cm cores
Jheiro Ansel mo". fortes, toda as estranhas aventu ras que vivera, e uma indescritível
sensação de vohípia e dor dilacerou-ll1e o coração. À sua 1·evelia,
exclamou em tom de lamento: "Ah, encantadora e doce Serpemi-
na, não é unicamente p ara vê-la ver que vou à casa do arquivis-
tar Naquele instante era corno se o amor d e Serpe ntina fosse o
prêmio de um difícil e p e1igoso trabalho a ser feito por ele, e
esse trabalho não podia ser outro senão a cópia dos manuscritos
de Lindh orst. Estava convencido de que, à entrada ela casa, iria
presenciar· toda sorte de mistérios, como já acontecera. Não pen-
sava mais no licor da confeitaria Conradis, mas guardou rapida-
mente o frasco com o líquido amarelo no holso e.lo colcle para
proceder exatamente segundo as inslruçõcs do arquh·ista, caso a
mulhe r das maçãs voltasse a dcsafoí-lo com seu sorriso insolente".
Po is de fato não era o mesmo nariz aquilino que a ele se dirigia,
não cintilavam os mesmos olhos de gato na maçaneta, quando
quis puxá-la ao bater das doze ho ras? Sem reflclir, salpicou o li-
quído amarelo na máscara fatal, e no me~mo instante a maçaneta
ficou novamente macia e corrediça. A porta se abriu, um carri-

38 39
O V1\SO DE OURO Sexta Vigflia

Jhão soou docemente por toda a casa: tilim-tilim - ligeiro, ligei- Nesse instante avançou em sua direção a corbelha de lí1ios
ro, r.tpaz - suba, suba - tilim-tilim. Tranqüilizado, subiu a bela e de fogo, e ele constalou que era o arquivist.a Lindhorst: engana-
ampla escadaria, embriagando-se com o raro perfum~ q1~e se ~s­ ra-o seu roupão brocado cm vermelho.
p alhara pela casa . Indeciso, deteve-se no corredor, pois nao sabia "Perdoe, caro senhor Anselmo", disse o arquivista, "se o dei-
em qual das belíssimas e inúmeras portas deveria bater. _ xei esperando, mas queria dar uma olhada cm meu belo cacto
Mas e ntão apareceu o arquivista num enorme roupao broca- qu<: es~ noite. abrirá seus botões - mas o que diz de meu peque:
do: "Alegro-me, senhor Anselmo, que finalmente tenha cumpri- no Jardlm de inverno?" "Ah, meu Deus, Ludo aqui é muito boni-
do a palavra; siga-me, p o is preciso levá-lo imediatamente ao to, prezado senhor arquivisla", r<'lrucou o csludante "mas os
laboratório." Com isso, caminhou apressadamente pelo longo pássaros coloridos zombam de minha insignilicância!" '"Mas que
corredor e abriu urna pequena porta lateral que dava para um comportam.enlo é este?", ~r! tou fmioso o arquivista, ciirigindo-se
corredor. Anselmo o seguia sem apreensão. Chegaram e ntão a a ':1m ~nte1ro de flores. Foi quando dali voou um granrle papa-
um salão, ou antes a uma estufa maravilhosa, pois de ambos os gaio c.111zento que, pousando ao lado d o arquivista na haste de
lados erguia-se aLé o teto urna profusão de Oores raras e maravi- um m1rto e olhando-o com extrema gravidade através cios óculos
lhosas, como também grandes árvores com folhas e llores de es- empoleirados em seu bico adunco, grasnou: "Não leve a mal se-
tranhas formas. Uma luz mágica e ofuscante espalhava-se por nhor arquivista, meus travessos alunos passaram dos limircs, :nas
toda parte, sem que s'e pudesse dizer de onde vinha, pois não se o senhor estudante é culpado disso, pois ... " "Silfü1cio, silêncio!"
percebia uma janela. interrompeu o arquivista. "Conheço seus garotos, mas você deve~
Quando Anselmo olhou para as plantas e átvores, pareceu- ria cuidar mais da disciplina, meu a111igol Continuemos, senhor
lhe ver corredores que se estendiam indefinidamente. A sombra Anselmo!"
densa dos ciprestes reluziam bacias de mármore, de onde a001<1.- O arquivista caminhou por aposenlos t:.\o bizarramente d e-
vam estra nhas estátuas que salpicavam raios c1·istalinos que caíam c~rados, qt~e ~ estuda~1~e mal podia segui-lo e olhar toda a profu-
sobre brilhiintes corolas de lírios; vozes singulares ressoavam e sao de moveis esqms1tos e outras coisas d esconhecidas ali
sussu1Tava111 através d o bosque de plantas extraordinátias, e um amontoados. Finalmente entraram num grande recinto, onde,
esplêndido perfume espalhava-se como ondas. O arquivista d esa- olhando para o alto, o arquivista se d e teve. Anselmo, então, teve
parecera, e Anselmo só avistava uma enorme corbelha de arden- te~po ~ara deleitar-se com o esplêndido efcilo que aquela deco-
tes lírios cor de p11rpura e de fogo. Extasiado pela visão, pelo ra?1o simples emprestava ao aposen to. Das tapeçarias azuis
doçe perfume do jardim encantado, Anselmo estacou, complcta- saiam troncos de bronze d ourado de altas palmeiras que erguiam
menle en feitiçado. para a abóbada folhas colossais, brilhantes como esmeraldas· no
De repente, por toda parte, ouviram-se risadas e chacotas, meio da sala, sobre u·ês leões de bronze egípcio, repousava ~ma
que lroçavam e escarneciam: "Senhor estudante, senhor estudan- placa de pórfiro, sobre a qual havia u m Vaso de Ouro, do qual
te! De onde vem? Em ho nra de quem se arrumou tanto, senhor Anselmo não conseguia mais despregar os olhos. Era como se
Anselmo? Quer saber como a vovó esmagou o ovo com o trasei- ~m milhares de reflexos cintilantes dançassem figuras de todo
ro e o fidalgo manchou seu colete de domingo? Já sabe de cor a upo sobre o ouro polido - às vezes via a si mesmo com os braços
nova ária cio compadre Estorninho, senhor Anselmo? O senhor abe~tos, cheios de desejo, ao lado do sabugueiro, e Serpentina re-
está impagável com essa peruca prateada e essas botas de cano torcia-se de um lado para o outro, fitando-o com seus olhos en-
de papel!" Em todos os cantos ria-se, troçava-se e gracejava-se, e cantadores. Anselmo ficou fora d e si, num êxtase arrebatador:
só e ntão o estudante percebeu que a seu redor esvoaçava toda "Serpemina, Serpentina!", exclamou.
sorte ele pássaros coloridos, escarnecendo dele com alegres gar- O arquivista Lindhorst virou-se com rapidez e falou: "Agra-
gallrndas. da-lhe, caro senhor? Creio tê-lo ouvido chamar por minha filha,

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O VASO DE OURO Stxla Vigília

mas ela se encontra do outro lado da casa cm seu quarto, e agora A_'.lsclmo, e~ como se u_m monstro lhe apertasse o pescoço, pois
receb e sua aula d e p iano. Vamos em frente." Quase involu ntat·i~­ nao conseguia pronunciar palavra. Assim permaneceu, com sua
men tc, Anselmo seguiu o arquivista, não ~uvindo o~ vendo ma1~ desgraçada folha na mão; mas o arquivista disparou uma risada:
nada, até que o outro, pegando-o pela mao, falou: Chega mos! "~ão se de~xe abatei-, caríssimo senhor Anselmo; o que o senhor
Ansel mo despertou como de um sonho e viu-se então num apo- ate agora nao alcançou, talvez o consiga cm minha casa; além dis-
sen to rodeado de estantes de livros, que não se diferenciava em so, terá um mate rial melhor do que até então teve à disposição!
nenhum detalhe das bibliotecas e salas de leitura usuais. No cen- Console-se e ao trabalho!"
tro havia uma grande escrivani11ha com uma poll~on~ estofada ~ O arquivista trouxe ptimeiro uma substância líquida e negra
frente. "Esta é por e nquanto sua sala de u·abalho , disse o arqu~­ que espalhou um cheiro bastante singular, p enas bem apontadas
vista· "não sei ainda se futuramente irá trabalhar na grande b1- e estranhamente coloridas e um folha rle 11ma branc11ra e textura
blio~eca awl, d e o nde tão subitamente chamou por minha filha. especiais, e depois tirou um manuscrito árab e d e um armário
Mas o que em primeiro lugar desejo é me convencer de suas apti- trancado a chave. Assim que Anselmo pôs-se a traba lhar, deixou
dões para realizar o trabalho que lhe foi reservado." . _ , . a sala. O estudante já transcrevera muilas vezes a\ractercs árabes
Anselmo cnch e11-sc de ânimo e, não sem uma sa11sfaçao 111t1· e por isso a primeira. tarefa não lhe pareceu lá muito difícil. "SÓ
ma e convencido de surpreender o arquivista com seu raro talen- Deus e o arquivista Lindhorst sabem como aqueles g-.trranchos
to tirou do bolso seus desenhos e escritos. Mal avistara o foram parar na minha bela cursiva inglesa", pe nsou, "mas prefiro
ar~iuivista a primeira folha, um manuscrito escrito à moda ingle- morrer a reconhecer que lenham saído de minha pena." A cada
sa, e já sorriu de mane ira singular, balançand~ a ,cabeça, o que palavra bem copiada que surgia no pergaminho, aumen1ava a sua
repetiu a cada folha, de forma que o sangue subiu a cabeça cio cs- co1-agem, e com ela sua agilidade. De fato, podia-se escrever mui-
Ludanle quando aquele sorriso tornou-se sarcástico e desde nho- to bem com aquelas penas, e a misteriosa tint.'l, negra como um
so; não se conteve e bradou: "0 senhor arquivista não parece corvo, des~izava esplendidamente no pcrgami11ho de reluzente
muito satisfeito com o meu modesto talento!" brancura. A medida que trabalhava cada vez mais atento e com
"Caro senho r Anselmo", disse Lindhorst, "o senhor tem para extremo cuidado, sentia-se mais e mais à vontade na solitária sala,
a arte da caligrafia reais inclinações, mas p or enquanto, como e ~ encontra-:a _de tal modo absorvido na tarefa, que pensava ter-
vej o, devo contar mais com sua aplicação e com s~a boa v?mad~ mmá-la com ex1to total. Ao Loque das três horas, o arquivista o
do que com sua habilidade. A causa talvez tenha sido a ma_ quali- chamou ~o aposento vizinho para o almoço, abundantemente
dade dos materiais que uúlizou." Anselmo gabava-se muito de servido. A mesa, Lindho rst estava com um bom humor todo es-
sua habilidade ar1ística, normalmente muito reconhecida, d e seu pecial; quis saber dos amigos de Anselmo, do sub-reitor Paul-
nanquim e de suas penas de corvo cuidadosam en~e cscol hid~s. mann e do escrivão H eerbrand, e contou, deste último, fatos
Ent.ão o arquivista Llndho1·st passou-lhe a folha de mglesas e dis- realmente engraçados. O bom vinho do Reno1 que muito agrada-
se: "Julgue o senhor mesmo!" ra a Anselmo, fez com que soltasse a língua. As quatro horas, le-
Anselmo pareceu fulminado por um raio, quando constatou vantou-se para voltar ao trabalho, e o a rquivista pareceu gostar
que a sua caligrafia era deplorável. Não ha_via finalização -~os tra· daquela pontualidade.
ços, firmeza na escrita, nenhuma proporçao en~re as maruscul_as Se ames da refeição a t1-anscrição d os caracteres já correra
e as mimísculas: o pior eram os garranchos dignos de colegial bem, agora o trabalho parecia andar sozinho, e n em ele entendia
que mui1 as vezes estragavam uma cópia bem-sucedida. "Além dis- a rapidez e leveza. com que imitava os traços enroscad os daquela
so", continuou o arquivista Lindhorst, "o seu nanquim não fixa." escrita desconhecida. Era como se uma voz sussurrasse de seu ín-
Me rgulhando o dedo num copo cheio de água, tocava kvcmentc timo em palavras bem perceptíveis: "Ahl Conseguiria você ter a
nas letras e t.uclo dcsparecia como por encanto. Para o estudante mão tão leve, caso não a tivesse em ment.e, caso não acreditasse

42 43
,,

O V1lSO DE OURO Sexia Vigflia

cm seu amor por ela?" Então, como um sopro, sons cristalinos re- . O arquivista em~urrou-o levemente até a porta, que depois
per·cutiram pela sala: "Estou perto de você, perto, perto! Vou ajudá- fc~hou, e ~n.selmo vm-se na sala em que fora feita a refeição,
lo. Seja corajoso, seja firme, querido Anselmo! Sofro com você, CUJ~ porta u.n~ca dava para o vestíbulo. Ainda inebriado pelas ma-
para que se tome meu!" E à medida que escult1.va, cheio de encan1a- rav1Ih.osas v1so.es, permaneceu parado diante da porta. Abriu-se
mento, aqueles sons, os desconhecidos caracteres se lhe tornavam uma pnela acima dele; ergueu os olhos: era o arquh•isra Lind-
cada vez mais familiares, e quase não precisava mais olhar para o horst de todos os dias, exatamente o mesmo velho em seu casaco
original; sim, era como se os sinais j:i se encontrassem, pálidos, so- cinzento, como sempre o vira. Gritou ao estudante: "Caro senhor
bre o pergaminho e ele só precisasse cobri-los de preto. Anselmo, sobre o que reflete? Será o árabe que lhe subiu à cabe-
E assim continuou a trabalhar, com a ajuda de sons doces e ça? Cumprimente o senhor sub-1·eitor Paulmann, se for à casa
consoladores, como se envolto por um leve sopro, até que soa- dele. Conto com o senhor amanhã, pontualmente ao meio-dia.
ram as seis horas e o arquivista Lindhorst entrou na sala. Aproxi- Seus honorários de hoje já estão no bolso direito de seu colete."
mou-se da escrivaninha com uin sorriso estranho e Anselmo Anselmo encontrou de fato um belo e reluzente tálcr no bolso
levantou-se calado. O arq1úvista continuou a sorrir-lhe como se indicado, mas não se alegrou nem um pouco. "Não sei o que
dele fizesse troça, mas mal avistou a cópia, e o sorriso deu lugar a pod_e resultar disso tudo", disse consigo mesmo, "se me envolve
uma intensa gravidade, que enrijeceu todos os músculos de sua Ilusao ou loucura, mas em meu âmago habita e palpita minha
face. Não parecia mais o mesmo. Os olhos, que normalmente d~ce Serpemina,_c prefiro mil vezes a morte a deixá-la, pois bem
faiscavam, olhavam agora para Anselmo com uma indescritível sei '!uc este ,sentune,nto cm mim sed. eterno, e nenhum poder
doçura, um leve rubor coloriu suas faces pálidas e sua boca, que hostil podera destru1-lo; mas o que será este sentimento senão o
em geral se contraía no habitual sorriso irônico, pareceu querer amor de Serpenrina?"
abdr-se e proferir palavras sábias, que pcnel.ram no coração. Sua
envergadu.-a estava maior e mais digna; o imenso roupão atía-lhe
como um manto real em largas pregas pelo busto e pelo ombro,
e através da coroa de cachos brancos que cingia sua ampla fron-
te, podia-se ver um delicado diadema dourado. "Meu jove m", co-
meçou o arquivista cerimoniosamente, "meu rapa7,, ames que
você suspeitasse, tive a intuição de todos os laços sccreros que
unem você ao que me é mais caro e sagrado! Serpenlina o ama, e
um estranho destino, destino cujos fios nefastos foram tecidos
por forças inimigas, irá consumar-se quando da for sua, e quan-
do receber o Vaso de Ouro como dote, que a ela perl.ence. Mas
só a luta permitirá ao senhor a felicidade de uma vida melhor.
Forças adversas idio atacá-lo, e somente a força interior, com a
qual resistirá aos ataques, poderá salvá-lo da ignomínia e da ruí-
na. Trabalhando aqui, cumprirá a aprendizagem; a fé e o conhe-
cimento irão guiá-lo para o objetivo próximo, se mantiver o que
foi preciso começar. Carregue-a fielmente na alma, ela, que o
ama, e cn1ão podení contemplar as maravilhas do Vaso ele Ouro
e será feliz para sempre. Siga em paz! O arquivista Lindhorst o
espera amanhã ao meio-dia em sua sala! Siga em paz!"

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Sdtima Vigília

esperei", ela gritou <le cima, e logo em seE,111icla h1 estava a velha


diante da porta, carregando o cesto e acompa11hada do gato.
"Então vil mos embora, preparar e executar o que convé m e deve
Sétima Vigília ter êxito nesta noite propícia à nossa obra"; d ito isto, a velha pe-
gou a mãç fria e trêmula de Yerônica, ordenou que carregasse o
De como o mb-1·eitor Paubnann esvaziou seu cachimbo efoi se deitar - pesado cesto, enquanto ela mesma transportava um caldeirão,
Um Remln·andt e um Breughel infernal - O espelho 11tágir.o e a rectdta uma trípode e umil enxada.
do doutor Eckstein contra uma doença desconhecida Na rua já não chovia, mas a tempestade rugia; mil vozes gri-
tavam p elos ares. Um lamento terrível, de cortar o coração, ema-
nava das nuvens negras, que em rápida fuga se ilCmnulavam e
O sulrreitor Paulmann finalmente esvaziou o cachimbo e tudo envolviam em densa escuridão. Mils a velha avançava com
disse: wn:n:i·já é t_empo de irmos descansar." "É mesmo", respon- pressa, gritando com voz estridente: "Ilumine, ilumine, meu ra-
d.eu Veromca, aflita por ver o pai ainda de pé, pois há muito ha- paz!" E e ntão raios azuis ziguezaguearam e serpentearam diante
via~ so~do as dez horas. O sub-reitor passara a seu quarlo e a delas, e Verónica percebeu que era o gato que os irradiava e es-
resp1raçao pesada de Francisca indicava que realmente adorme- palhava, saltililndo diante delas, e cttjo uivo alcrrndor ela perce-
cera, enquanto Verônica, que fingira Lc1·-se deitado, voltou a le- bia quando a tempestade silenciava por um instante.
vantar-se devagarinho, vestiu-se, jogou o casaco sob1·e si e saiu de A respirnç:'i.o se lhe esvaía, era como se garras geladas con-
casa. torcessem suas entranhas, mas contendo-se com muito esforço e
D_;sde que visitara a velha Lisa, a imagem de Anselmo não agarrando-se à velha com mais força, disse: "Agora tudo deve ser
~hc saia da cabeça, e ela própria não s:.ibia que voz desconhecida consumado, aconteça o que acontecer!" "Muito b em, minha filhi-
mcansavelmenlc lhe repetia que seu amado se encont rava sob o nha!", retrucou esta, "continue firme, e eu lhe darei um belo pre-
domínio d~ uma p~ssoa hostil ª.ela própria e que o prendia por sente e Anselmo, ainda por ci ma!~. Ela cavou um b1mtco no
laços que so poderiam ser rompidos com os misteriosos recursos chão, encheu-o de carvão e instalou em cima a trípodc, sobre a
da arte ela milgia. qual pousou o caldeirão. Tudo isso era :;1 companhado de gestos
Sua confiança na velha Lisa cresci;\ a cada dia, e mesmo a estranh os, enquanto o gato rodopiava a seu redor. De sua cauda
primeira impressão de terror e horror abrandara-se, de forma salpicavam faíscas, que fom1avam um círculo de fogo. Logo o
que tudo o que havia de singular em suil relação com a velha sur- carvão começou a arder e finalmente irromperam as chamas sob
gia-lhe agora apenas como insólito e romanesco, o que precisa- a trípodc. Vcrônica precisou tirar seu casaco e seu xale e acoco-
mente ª. atraía. Po r isso estava firme no propó~ito de, mesmo rn1·-se jm1to à velha, que pegou e apertou suas mãos, litando a
com o nsco de suil ausência ser notada e de envolver-se em mil moça com olhos resplandecentes. Então a estranha massa (flores,
lranstornos, levar a cabo sua aventura. metais, ervas, animais? Não se podia saber), que a velha tirara do
Fin~lmenle chegara a ~atai noite <lo equinócio, parn a qual a cest.o e jogara no caldeirão, começou a fervei·. Soltando a mão de
velha Lisa lhe. p~·~metera ap1da e consolo, e Verónica, já acostu- Verónica, pegou uma colher de ferro, com a qual mexeu a massa
m~~ com a ideia d.a caminhada noturna, sentia-se cncoraj:.ida. ardente, enquanto incentivava a rapariga a olhar fixamente para
Rap1da como um raio, voou pelas ruas vazias, sem notar a tem- dentro d o caldeirão e concentrar seu p e nsamento cm Anselmo.
pestade que rugia pelo~ ares e lhe joga~a rio rosto pesadas gotas A velha então voltou a j ogar no caldeirão metais reluzentes e um
de chuva. Com um repique abafado, o smo do campanário bateu cacho de cabelo de Verónica, co1·taclo na raiz, como rambém um
as o nze horas, quando Verônica, totalmente molhada, chegou à pequeno anel que a moça usava, ao mesmo tempo que emitia
casa de Lisa. "Quc ridinha, queridinha, você já chegou! Espere, sons monstruosos e incompreensíveis através da noite. O gato,

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O VASO DE OURO Séti ma Vigília

girando incessantemente, uivava e gemia. E~ queria, prc~ado lei- real. Mas o seu olhar não conseguiria desvencilhar-se da moça ví-
tor, que você, no dia 23 de setembro, estivesse a cammh? de tima d essa ação diabólica: e a descarga elétrica que estremece lo-
Dresde· em vão tentariam retê-lo na úl tima estação, ao call" da das as suas fibras e nervos inOamaria em você, com a mpidez de
noite; ~ amável estalajadeiro tentaria convencê-lo d e que chovia um raio, a idéia corajosa de desafiar os misteriosos poderes da-
abundantemente, e que seria perigoso viajar em tal escuridão na quele círculo de fogo. Esse pe nsamento dissiparia o s1·11 horror,
noite do equinócio. Mas você não daria importância às suas pala- ou melhor, a própria idéia seria produto desse horror e• clessa re-
vras e diria: "Pago ao poslilhâo um táler ele go1jeta, e no mais lar- pugnância. Se1ia como se você fosse um daqueles at!jos proteto-
dar estarei à uma hora em Dresde, onde me esperam no 'Anjo res invocados pela moça morta ele medo, não lhe restando mais
de Ouro' ou no 'Elmo' ou na 'Cidade de Naumbu rgo' uma r efei- do que sacar do bolso a pistola e, sem mais, matar a \•cllm!
ção bem preparada e uma cama macia". Enquanto viaja pelas tre- Mas, ao pensar nisso com fervor, você gritaria: "Olá!", ou:
vas, ao longe subitamente você vê uma luz vacilante. Chegan~o "O que há?", ou: "O que fazem af?" O postilhão Locaria sua co1·-
mais perto, avista um círculo de fogo, no centro do qual estao neta a velha cairia n a fervura e tudo subitamente desap:ircccria
acocoradas duas figuras jumo a um caldeirão, do qual e mana um na fumaça espessa. Não posso afirma~ se você enco111ra1ia a
vapor denso e raios e faíscas vermelhas. O caminh? é estranho, moça pela q ual procurou na escuridão com o maior elos <lcscjos,
passa através elo fogo, mas ~s cavalos em~acall_l, relincha m e cm- mas você destruiria o fantasma da velha e desfaria o encanto do
pin:un; o postilhão pragueja e reza e clucotc1a os cavalos, mas círculo mágico, do qual Verônica era p1isioncira.
eles não se mexem . lustintivamcnte, você salta da carruagem e Mas nem você, prezado leilor-, nem ninguém, viajou 011 pas-
dá alguns passos adiante. Vê en~'io n iúdamcntc un~a cncan t.~dora sou por aquele caminho em 23 de setembro, na noite tempestuo-
e esbelta moça, vestida com ll<tJe branco e leve, ~oclhacla JUnto sa e propícia aos sortilégios, e Verônica foi obrigada a fic:arjunto
ao caldeirão. A tempestade dcsmanchon-lhe as tranças, e os lo n- ao caldeirão com um medo mortal, a té que a Obra estivesse con-
gos cabelos castanhos ílutuam pelos ares. A daridauc '.)ft~scanlc sumada. Ela bem que ouvia como tudo rugia e bramia a seu re-
das chamas que dançam sob a uípode acusa a beleza v1rgmal de dor, como toda espécie de vozes horríveis grasnava e berrava,
seu rosto, mas o pavor que seus traços estampam congelou-os mas não levantava o olhar, pois sentia que a visão do horror e do
numa palidez cadavérica, os olhos esgaze~dos, ~ soht-anccl l~as terro r, que a rodeavam, poderia precipitá-la numa loucura incu-
contraídas e os lábios incapazes de profcnr o gnlo que uma 111· rável e destruidora.
descritível tortut-a lhe estrangula no peito, tudo manifesta seu ter- A velha interrompera suas manipulações, o vapor era cada vez
ror, o seu sobressallo. Ela conserva as mãozinhas cruzadas e para mais tênue, e por último só ardia no fundo do recipiente uma leve
o alto, como se rezasse, implorando aos anjos para que a prote- chama azul. Então a velha gritou: "Verônica, minha filha, minha
jam dos monstros do infe rno, que, obedecendo à poderosa ma- queridinhal Olhe para o fu ndo! O que vê, o que vê?" Mas Vcrônica
gia, logo aparecerão! , não conseguia respon der, embora lhe parecesse- que via toda sorte
Diante da rapariga ajoelhada, 1ígida como uma cstatua de de figuras confusas girando; as figuras eram cada vez mais nítidas, e
mármo re, você distingue agora, acocorada no chão, uma mulher de repente, fitando-a amavelmente e lhe estendendo a mão, surgiu
alta, magra e de um bronz:eado aruarclo, com nariz adunco e do fundo do caldeirão a figura de Anselmo. "Ah, Ansel1110, Ansel-
olhos de gato cinLilantes; do casaco preto qu~ a c nvoh:e sa~m mo!", ela gritou. Rapidamente, a velha abriu uma torneira que ha-
braços nus e esqueléticos; ela remexe a massa mfernal, n e gn ta via no caldeirão, e um metal em brasa íluiu sibilando e crepitando
com voz rouca cm meio aos 1ugidos da tempestade. numa pequena fôrma que ela colocara ao lado. A velha enrão co-
Acredito que você, prezado leitor, que não conhece temor meçou a dar sallos, gritando com trejeitos tresloucados e honíveis:
ou pavor, sentiria os cabelos arrepiar-se ante a vi~ão clc.sse qua- "A Obra está consumada. Obrigada, meu rapaz! Você tez aguar-
dro digno de um Re mbrandt ou de um Breughel mfc rnal, agora da. Ai, ai! Aí está elel Morda-o, mate-o!"

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O Vi1SO DE OURO Sltima Vigilia

Ouviu-se u m poderoso rugido nos ares, como se uma enor- aqui!", mas não podia, pois era como se o circundasse_ uma rc~u­
me águia agitasse as asas, e ela gritou com uma voz terrível: "Ah, zente corrente de fogo. Quando Verônica prestou mais atcnça~>,
co1jal Agora já está feito, está feito! Vamos para casal" A velha viu que eram livros de folhas douradas. Finalmente conse~IU
caiu no chão aos urros e Verônica perdeu os sentidos. encontrar seu olhar. Pareceu fazer um esforço para reconhece-la,
Ao volrar a si, já e ra dfa claro, ela estava cm sua cama, e a pe- mas ele então sorriu e falou: "Ah, é a senhorita Pa~1.~mannl Mas
quena Francisca esl'ava à sua frente com uma xícara de chá fume- por que às vezes prefere transformar-se cm serpentei'
gante, dizendo: "Mas conte-me, irmãziuha, o que Lem, pois já Verônica desatou a rir com aquelas palavras estranhas, e
estou aqui há uma hora ou mais, e você inconsciente, febril, ge- logo depois despertou como de um sono p_esado. M ai. ':~cº."~~era
0 pequeno espelho, quando a porta se abnu ~ o sub 1<·~~· l a~l­
mendo e padecendo, metendo-nos medo e pavor. Por sua causa,
papai não foi hqjc ~ escola e logo cheganí com o doutor.~ Cala- mann entrou no quarto com o doutor Eckstem. Este fm 11ncd1a-
da, Verónica bebeu o chá; ao ingeri-lo, apareceram-lhe brntal- tamcnte à cama, tomou-lhe o pulso e, mergulhado cm profun~as
mente as teniveis imagens da noite. "Não lerá sido Ludo um · t ras d'isse· "Ai ai!" Em sccn1ida, prescreveu uma receita,
COlljCC U · , • • o- "A' '!"
terrível pesadelo? Mas eu realmente fui à casa da velha ontem à tomou novamente 0 seu pulso e voltou a excla~ar: 1, ai_ , ter-
noite, dia 23 de setembro. Ou será que ontem já est.1va doente e minando a consulta. O sub-reitor Paulmann nao conseguiu c~p­
imaginei tudo, à forç.a de pensar constantemente e111 Anselmo e tar dessas exclamações o que, segundo o doutor Eckstclll,
na estranha velha que se fez passar por Lisa, fazendo troça de causara a doença de Verônica.
mim?" A p('quena Francisca, que saíra, voltou scgurnndo o casa-
co de Vcrônica, complc~mcmc molhado. "Veja isto, irmãzinha",
disse ela, "vcj::i o que aconteceu com o seu casaco; à noite, a tem-
pestade abriu a janela e derrubou a cadeira, sobre a qual escava o
casaco; com certeza choveu dcnlro de casa, pois o casaco está
todo molh;iclo. n
Verônica sentiu como se nm peso enorme a esmagasse. Per-
cebeu entáo que não fora um sonho que a atormentara; de fato,
estivera com a velha. Ficou transida de medo e terror, e calafrios
estremeciam-na por todo o corpo. No Lremor convulsivo, sentiu
que algo de pesado lhe comprimi:• o peito, e, ao tocá-lo, pareceu
sentir um medalhão; quando a irmã saiu, puxou-o para fora e viu
um pequeno espelho redondo de melai polido. "O prcse11te da
velha!", exclamou, e foi como se do espelho saíssem raios d e
fogo, que penetravam em seu âmago e a aqueciam <lgradavel-
mente. O cafafrio passara; corria nela uma indescritível sensação
de conforto e bcm-<:slar. Pensou em Anselmo e, à mcclida que
sua imagem a invadia, ele sorria-lhe com amor do fundo do p e-
queno espelho. Logo, leve a impressão de que não era mais a
imagem que via, mas o próprio Anselmo cm carne e osso.
Ele estava num aposcnlO estranhamente decorado e escrevia
compcncLrndamente. Vcrônica queria aproximar-se dele, bater
cm seu ombro e falar: "Senhor Anselmo, olhe para cá, cu estou

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Oi1nva Vigllia

extasiar-se com o esple ndor do jardim, mas cn1 ão viu nitidamen-


te que algumas ílores estranhas, que lhe pareciam suspensas nos
arbustos escuros, na verdade eram insetos de cores brilhantes,
Oitava Vigília que batiam as asinhas sem parar , dançando e girando confusa-
menle, parecendo acariciar·sc com as próprias antenas. Em con-
A bihlioleca das prr.lmefras - O deJlíno de uma inforlimarlo. trapartida, os pássaros cor-de-rosa e azul-celeste eram flores
Salamandra - De como a pena 11egra acariciou a beterraba e o escrivão aromáticas, e o perfume que espalhavam subia de sem cálices cm
Hef!1'Ómnd se embriagou harmonias leves e delicadas, que se mistur avam ao burburinho
das fon tes distantes e aos sussurros dos a rbustos altos c das árvo-
res cm miste riosos acordes de uma dolente nostalgia. Os pássa-
?.estud~nte Anselmo ja Lrabalhava há vários dias na casa do ros zombeteiros, que tanto escarneceram dele da primeira vez,
arq.u1v1s~ L111d hors1; aquelas horas de Lrabalho haviam sido as esvoaçavam novamente ao redor de sua cabeça e gritavam inces-
mais felizes de sua vicia, pois sempre e nvolvido pelas doces, con- santemente com as suas vozi11has: "Senhor estuda11tc. não se
soladoras yaJavras ~e Serpentina, ou mesmo levemente atingido apresse tanto, não olhe assim para as nuvens - elas podem cair
por seu. hal110.' s~nua-se domi~1ado por um bem-estar que muitas em seu nariz. He, he, senhor estudante! Vista seu roupão; o com-
vezes t1 ansfo1 r:nava-se na mais elevada volúpia. Todos os sofri- padre coruja vai pen tear o seu topete." E assim co111 inuaram,
m ei~tos me~q~m~os, to~as as medíocres preocupações d e sua mi- com toda espécie de palavrório tolo, até que Anselmo saiu do jar-
seravel ex1stc nc1a haviam desaparecido d e sua memória e dim. O arq11ivis1a finalmente o introduziu na sala azul. A placa
pensam~nto, e na nova vida, que se erguia diante dele corno um de pórfiro e o Vaso de Ouro haviam c1cspa1·ccido, e em seu lugar
claro 1;i10 de sol, compreende u todas as maravilhas de u m num- estava uma mesa coberta com um veludo lilás, e sobre ela os co-
do mais elevado, o que, habitualmeme, lhe prnvocava sobressalto nhecidos objetos para escrever; no centro da sala, esperava por
e terror. Anselmo uma poltrona estofada, iguétlmente lilás.
Ia rápido co1~1 as cópias, pois cada \'ez mais tinha a sensação "Ca1·0 senhor Anselmo", disse o arc1uivista, "o senhor, para
de q~1e transcrevia no pergaminho caracteres há mu iro seus c~ min ha enorme satisfação.já copiou diversos o riginais com rapi-
nhe:1dos, e quas~ não precisava olhar o o riginal para imitar tudo dez e perfeição; o senhor ganho u a minha con(fança; mas o mais
aq~11!0 co1_n a maior perfeição. Salvo na hora das refeições, 0 ar- importante ainda está por vir: lrata-se da cópia ou, a ntes, da exa-
qu 1v1~ta Lmdhor~l ~ó apa.recia n0 exalo momen to cm que Ansel- ta imilação de cenas obras escritas cm caracteres muito especiais;
mo .rematava o ulumo sinal ele um manuscrito; dava-lhe enlâo guardo-as nesta sala e só podem ser copiadas aqui mesmo. Por
º.utro, ao .mesmo tempo que rapidamente saía da sala, em silên- isso, a partir de <1go ra, o senhor trabalhará aqui, mas devo reco-
c'.º• d.cpo1s de remexer a tinta com um bastãozinho preto e d e mendar-lhe o maior cuidado e atenção; um traço cm falso ou,
tt oca1 as ~enas gastas por oulras novas e bem apontadas. que Deus o livre , um:1 mancha de tinta salpicada no orig-inal, e o
. Um dia, quando Anselmo, pontualmente ao meio-dia, estava senho r se arruinar;\ para sempre.~ A nsclmo notou que cios tron-
subindo a escada, encontrou trancada a poi·ta por onde usual- cos dourados das palmeiras brotavam folhinhas cor de esrnernl-
mente passava, e do la~o oposto apa1·cccu o arquivista Lindhorst da; o arquivista pegou uma dessas folh inhas, e Anselmo então
em seu estranho. roupao, estampado de flores reluzenl es. Disse percebeu que a folha na vcrdac.lc consistia num rolo de pergami-
cm voz ai?': "Hoje o senho r entra por aqui, caro Anselmo, pois nho, o qual o arquivista desenrolou e estendeu sobre a mesa.
tem~s ~~ ir ao aposento ond e nos esperam os mestres do Bhago.- Vendo o pergaminho, com seus inúmeros pontinhos, travessões
uadgtla. ~vançou pelo corredor e levou Anselmo alravés dos e arabescos, C]llC pareciam rcpresc11lar o ra plantas, ora musgos,
mesmos comoclos e salas da p rimeira vez. O estudante \'Oltou a o ra figuras de animais, quase perdeu a coragem de tentar i111it.11

52 53
O VASO DE OURO Oitava Vigília

tudo aquilo com a exatidão desejada. Mergulhou profundamente cintilantes, de forma que, adaptando-se este a se11 cshcl.10 corpo,
cm seus pensamentos. fazia com que não fosse perfuraclo pelas pontas e c~p111hos das
"Coragem, rapaz!", exclamou o arquivista, "se sua fé conti- palmeiras. Sentou-se ao lado de Anselmo na r~1csma poltrona, e
nua inabalável e seu amor fiel, Serpentina o ajudará!" Sua voz ti- envolvendo-<> com o braço e trazendo-o para s1, fez ~om que sen-
nha um som metálico, e quando Anselmo, assustado, levantou os tisse 0 hálito que tlufa de seus lábios e o calor elctn1.ante de seu
olhos, o arquivista Lindhorst eslava à sua frente com seu esplen- corpo. . " A ,

dor real, da forma como lhe aparecera na primeira visita na bi- "Querido Anselmo", começou Serpentma, agora vocc e
blioteca. Para Anselmo, era como se, forçado pelo respeito, todo meu; com a sua fé, com o seu ~~1or, você ven.~~.u; tmgo lhe
devesse cair de joelhos, mas o arquivista, subindo no 1ronco de Vaso de Ouro qne nos dar:\ a [cJ1c1dade eterna. Oh, doce e
uma palmeira, desapareceu em meio às folhas cor de esmeralda. ~cantadora Ser~cntina", disse Anselmo, "se ~ tenho, o que me
O estudante compreendeu que havia falado com o Príncipe dos importa 0 resto? Se é minha, quero sucumbll' a tudo o que de
Espíritos, que agora subira a seu gabinete, para tabez conferen- fantástico e estranho me 'acontece desde o momenlo ~m que a
ciar com os raios, enviados por alguns planetas como mensagei- • " "Bem sei" continuou Scrpent.ina, "que o desconhecid o e m~­
V1
.
-avilhoso, com' os quais meu pai o envo1veu por sunp. · 1es capn
::- -
ros, sobre seu futuro junto à encantadora Serpentina. "Pode ser 1
também", pensou ainda, "que estejam à sua espera n ovidades das cho despertaram cm você terror e pavor, mas isso nao
fontes do Nilo, ou que um mago da Lapônia seja seu hóspede. A aco~tecerá mais, como espero, pois agora .aqui estou para lh:
mim só convém o aplicado trabalho." Começou en1ão a exami- contar sincera e minuciosamente, meu querido Ansc~mo, tudo _
nar os misteriosos sinais do rolo de pergaminho. que você precisa saber, para conhecer bem o meu pai e entendei
A maravilhosa música do jardim chegava até ele e o envolvia claramente a minha relação com ele.~
com aromas do ces e delicados; também ouvia a zombaria dos Para Anselmo, completamente identificado com aquela fi~­
páss~ros, mas não entendia suas palavras, o que também p refe" ra encantadora e doce, era como se só com ela pudesse movi-
ria. As vezes també m tinha a impressão de que as folhas cor de mentar-se como se 0 pulsar das veias d ela estremecesse suas
esmeralda das palmeiras murmuravam, irradiando pcfa sala en- fibras e n~rvos; escutava com avidez cada ~1ma de suas palavras,
cantadores sons cristalinos, os mesmos que ouviu naquele fatal que repercutiam no fundo de s~ia alma ~ o mílamav~m como ~m
dia da Ascensão, embaixo do sabugueiro. Fortalecido por tais raio luminoso a volúpia dos ceus. Havia enlaçado aq~1clc co_1~o
manifestações, Anselmo dirigia cada vez mais compenetradamen- esbelto, mas 0 1ccido cintilante e brilhante d~ seu vesudo era tao
te seu pensamento para a cópia do rolo de pergaminho, e Jogo liso e escorregadio que lhe pareceu que P<:~lia ..dcs~p~rccer, esca-
percebeu que os sinais nada mais eram do que as seguintes pala- ar dele rapidamente, e tremeu ante tal 1de1a. Ah, nao.. me ~ban­
p . " · em querer voce é a
vras: sobre o casamento da Salamandra com a Serpente Verde. clone, encantadora Serpenuna , gnt~u s . • ..
Então soou com mais força um acorde de sinos de cristal. minha vida!" "Deixá-lo? Não antes", disse Serpentana, que ten~
"Anselmo, caro Anselmo", murmurou um sopro proveniente das lhe contado tudo, 0 que você irá entender et~ seu amor pot
folhas e ... milagre!, do tronco da palmeira descia enroscada a mim. Saiba, pois, meu bem-amado, que meu pai. dcscc~cl<;_ d~ fa-
Serpente Verde. "Serpentina, doce Scrpenti~a ! ", exclamou Ansel- bulosa linhagem das Salamandras, e que devo mmha ex1ster~Cia a
mo, voluptuoso e encantado, pois, ao fitá-la mais fixamente, viu seu amor pela Serpente Verde. Em tempos remoras, dom~ava
uma encantadora moça de olhos azuis, os mesmos que há tanto na Atlântida, país das maravilhas, Phosphorus, º, t.odo-pode1 oso
tempo carregava consigo, olhando-o cheios de u ma inefável nos- Príncipe dos Espíritos, senhor absoluto do~ esp1ntos dementa-
talgia. As folhas pareceram cair sobre ele, por toda parte brota- res. Um dia, meu pai, sua Salamandl'a. favorita, passeava pelo:~
vam espinhos cios troncos, mas Serpentina deslizava com plêndido jardim magnificamente ,c.uluvado pelo talen.to d~. ~~e
habilidade, arrastando atrás de si o seu esvoaçante traje de cores de Phosphorus, e ouviu imenso Jmo cantar cm tons smw< ~.

54 55
O VASO DE OU/10
Oitava Vigília
d1c bem os olhinhos, minha bem-ama 1 . •
nal a desperte' Ela se ap. . e a, espe1e que a brisa mati- compreensível à arte degenerada dos homens, qunnrlo os espíri-
, • . · ' r ox11nou· locado p or s , ·d , .
o 1mo abnu suas pétalas e descobriu eu a1 ente hálito, tos elementares, proscritos cm suas regiões, só falarc-rn ao 1lo-
adormecida em seu c:rn'ce A . b sua filha, a Scrpenic Verde, mem à distância, em sons abafados, e quando, arrancado de sua
1 · nc atada por um b esfera harmoniosa, apenas uma infinita saudade lhe evocar o rei-
pe a bela serpente a Safam 1.. . . b amor a rasador
· . ' anu •l all'e atou-a do J' .· · , no maravilhoso que antes pôde habitar, quando ainda houver· fé
v1os, em indizível lamento ·J- - 1110, CUJOS e0 u-
· , c .unavam crn vao po .
1 t 1 . •
pci a amacia filha Pois a Sal d • O< o o Jardim, e amor em sua alma, então novamente arderá o fogo da Sala-
. arnan ra a levara ao 1 d p
p1wrus, pedindo-lhe· 'Ca . castc o e hos- mandra que, partilhando da condição humana e condenada a
. . . se-rne com minha amada . uma vida miserável, deverá suportar todas as suas diliculdadcs.
<)lte sqa mmha r>ara sempre , 'I '
1 o que está
, pois quero
> , . · nsensato. · .. , d"
se o I nncrpe dos Espíritos ·s "b . a exigir:'• IS- Não apenas conservará a lembrança de seu estado anlcrior, mas
amad a e reinou comi , 0 · ª' a que um dia a f1 r ·
or 101 111111 · ha voltará a viver cm sagrada harmonia com a natureza e compreen-
ameaçou dcstnií-la· só :~ç:~ a. cfntc!h~ .que lancei sobre ela derá suas maravilha, com a força dos espíritos fraternos à sua dis-
gro, que desde então os espírit:11da1iatv1_t~na sobre o Dragão Ne- posição. Dentro de um lírio, reencontrará então a Serpente
do , o 11no , • e11 a conservam ac .. Verde, e o fruto de seu casamento serão três filhas, que se mos-
consei;,rtiiu manter fort , ' ouenta-
consigo a centelha Mas e 1 es suas p elalas, conservando trarão aos homens sob a aparência da mãe. Na primavera, elas
· :aso cn ace a Se v deverão ficar enroscadas no sombrio sabugueiro, fazendo soar
que está cm você devorará o cor
d<'pois de diluído o outro • A S·
vcrtência do p .' · ·
tº • rpente erde, o ardor
dela, .e t~m novo ser nascerá,
: ? amandra nao deu atenção à ad-
suas deliciosas vozes de cristal. Se nesses tempos miseráveis hou-
ver um rapaz que perceba o seu canto, sim, se uma das serpente-
1111c1pe <1os Esprntos· 1 d d
volveu a Serpente Verd 'p cno e esejo ardente, en- zinhas o fitar com seus encantadores olhos, este olhar o fará
.
crnzas, e 11111 ser alado s . . e em seus_._ braços
. · ' trans"• 1onnan d o-<i ein pressentir uma terra distante e maravilhosa, para a qual, cor-ajo-
, UI g111c1o uas cmzas vo
seu 1ouco desespero a S 1 cJ • _ ' ou pe1os ares. Em samcnle, ele poderá ir, se se livrar do fardo dos comuns. Engen-
pclindo fogo e cl1"1n'... s· sªt1aª'fi1:ª'.1 'ª1 cntao concu pelo jardim, ex- cirar-se-á nele, com seu amor por Sc1pe111ina, a fé ardente e viva
.. " • una se vagc ·
llorcs e seu lamento e11cl1cu o . 'o rn ~u.c1111ou as mais belas nos prodígios da natureza, na própria existência, e a serpente
, · s ar cs colenco p , ·
pintos agarrou a Salamandra e f;I~u: 'Q n11c1pc dos Es- será sua. Mas antes disso será preciso e nconirar três rapazes des-
s11as chamas se apam.rem se -. ue o seu fogo morra, se tipo, que se casem com as suas três filhas, então a Salamandrn
, . o· • us 1.t1os se esgotem!' D
cspmtos da terra qt1c e l esça para os poderá livrar-se de seu fardo e voltar para junto de seus irmãos.'
'• s es cscar11eçam e ·
presa, até que o fogo novame t . gracejem e lhe deixem 'Permita o senhor', disse o Espírito da Terra, 'que cu dê um pre-
terra um uovo se.-.. A 11~b . 's1 el se inflame ~ com vocf: surja da sente a essas três filhas, que tornará sublimes suas vidas com o
re a arnandrn caiu sem . 1 E - marido encontrado. Cada uma receberá de mim um vaso do
apareceu o rabugento E.spídto da T . . . . v1c a. ntao
rus, que falou· 'Senhor! Q . e1 ra, Jard1ac1ro de Phospho- mais precioso metal que possuo, polido por mim com os raios do
sc da Safarna1~d1·a? Na·o· " i~em, m:us do que eu, deveria nueixar- diamante; em seu brilho deve-se refletir o nosso mttravilhoso rei-
' • • llJJ cu que p r .,
metais as mais bel"s ílo.1 s 1 o t com os meus mclho1·es no, como agora existe, cm harmonia com a natureza, mas de seu
" e que e a red · ·
que vigiei e cuidei das semcnt ' u_z111. a ~mzas? Não fui eu interior, no momento do matrimônio, deverá surgir um lírio,
las cores? E mesn10 "ss1· els, ·~elas p1 od1gahzando as mais be- ctyo perfume envolverá o 1'1paz, me recedor do presente. Logo
. " m ven 10 111terc d 1
dra, pois só o amor pelo 'l aJ . h e er pe a pob1·e Salaman- ele entenderá o seu idioma, os enigmas de nosso reino e poderá
levou-:i ao dcsesper·o' "a •d• o sen or lambém foi arrebatado até mesmo mor<tr com sua be m-amada cm Atlântida.'
, • 1• zen o com nue J t , •
Poupe-a de um castigo d d . : • e es rn1sse o seu jardim. Agora, meu querido Anselmo, você sabe que meu pai é a Sa-
• 1· uro emais! Seu fogo por ,
gacl o , e is.se 0 Príncii)e d E , .· 01<1 esta apa- lamandra da qual lhe falei. Apesar de sua natureza superior, ele
os sp11 Jtos, mas quando l
venturoso porvir quand r c legar o des- deve sl!jeitar-sc aos mesquinhos deve.-es da vida ordinária, e daí
' o a mguagcm ela naturc?.a não for mais vem o humor muitas vezes malicioso com o qual zomba dt' alg11

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57
O VASO DE OURO
Oitava Vigília
mas pessoas. Frcqüe nlemente ele me falou sobre a nature1.a espi-
rio~o original estava terminada· obsc1va1
ritual que Phosph om s, o Príncipe dos Espíritos, b uscava nos ra- a~1dade, acreditou ler escrito ; história 1do os ti-a~os com mais
pazes como condição para casarem-se comigo e com minhas pai, o predileto do Prínci e d , . de Scrpentma sobre seu
irmãs; há agora uma expressão, a qual muitas vezes é usad a in- vilhoso país da Atlânt1'd '?.. . os ~spmtos, Phosphoru!I, no mara-
corretamente; chama-se tal temperamento d e espírito in fa ntil, 11orst com seu casaco a. ·
ro1 entao que ent1, ..
ou o arq111v1sta Lind
cinzento cha ' b -
poét.ico. Com freqüência e ncontra-se esse temperamento cm ra- na ~1ão; o lhou o pergaminho t~ p eu so ~·e a cabeça, bengala
pazes que, por causa ela simplicidade de seus hábitos, e porque sorr111do: "Perfeito! Foi o ue' mo~: un~a plt.ada de rapé e disse
lhes falta muito d a chamada formação universal, foram menos- senhor Anselmo e agoraq pensei. Pois bem, aqui está o táler
prezados pela plebe. Ah, querido Anselmo! Você compreendeu . • • vamos ao p t• k . •
gt1mdo o arquivista pel . c1· arque 111 • Siga-mel" Se-
meu canto debaixo d o sabugueiro - o meu canto... Você ama 0 Jªr un da casa A 1
doado com o ruído de . • nse mo fi cou tão ator-
Serpentina, você acredita em mim e quer que seja suai O belo lí- cantos, assobios e f: J l , . d
que, agradeceu aos céus por eh , a a onos os pássar os
rio desabrochará do Vaso de Ouro e, juntos, viveremos felizes guns passos encontra e!f:l~ a rua. Mal haviam dado aJ-
em Atlântida! Mas não posso ocultar-lhe que, no cruel combate ' ram o cscnvao H b
men~e se juntou a eles. Diante da p eer rand, que amavel-
da Salamandra com os espíritos telúricos, o Dragão Negro rom- c~ch1mbos que traziam consi o· He . o rta Negra encheram os
peu as correntes e sumiu pelos ares. Phosphorus o lraz n ovamen- z1do consigo seu isqu . g , e1.brand lamentou não ter tra-
te preso, mas de suas plumas negras, que caíram à terra durante "P e1ro, ao que Lmdho . t la
ara que isqueiro? Aqui t fi rs exc mou irritado:
a luta, surgiram espíritos inimigos, que por toda parte se insur- isso estalou os dedos d em . ogo: tanto quanto quiser!" E com
ge m contra as salamandras e os espíritos telúricos. Aquela mege- , os quais sa1ram gra d r -
acenderam seu cachimbos n es ia1scas que logo
ra, tão hostil a você, querido Anselmo, e que, como bem sabe
"Vejam só esse truqu~ de quím' " .
meu pai, almeja a posse do Vaso de Ouro, deve a existência ao selmo, não sem um estr . ii:a ' disse o escrivão. Mas An-
amor de uma vulgar beterraba por uma pluma arrancada do Dra- d ra. N o Parque Liuk, emccunento
o esc1·ivão b b
mte rio ·
' • pensou r~a Salaman-
gão. Ela conhece a sua origem e o seu p o der, pois, através d e no1·malmente um homem 1 .e cu tanta cervga que ele
convulsões e gemidos do Dragão p1·isioneiro, revelam-se-lhe os ca mo e sisudo c '
voz de tenor, canções de estudante , omcçou a cantar, e m
segredos das maravilhosas constelações, servindo-se ela de todos a todos que passavam se ' pe~n tando calo rosamente
os meios para agir de fora para dentro, meios que m eu pai com- r · • eram seus amigos 0 .-
101 1evado para casa pelo l da u nao, e finalmente
bate com os raios expelidos do interior da Salamandra. Ela reco- · · Lº es u nte Anselmo, enquanto o arqui-
vista mdhorst há mu1·to se ce1·1psara.
lhe todos os princípios hostis que vivem nas e rvas daninhas e ·
animais venenosos e, misturando-os, consegue efeitos de magia
n egra que invadem a mente humana, sujeitando-a ao poder en-
gendrado pelos demônios quando da derrota do Drngão. T e nha
cuidado com a velha, querido Anselmo, ela é sua inimiga, pois o
espírito i11fan1il e dedicado destrói alguns de seus encanros malé-
ficos. Seja fiel, fiel a mim, e logo ch egará à meta!"
"Oh, minha Serpentina!", exclamou Anselmo, " como pode·
ria eu abandoná-la, se meu amor é eterno?" Um b eijo ardia em
sua boca quando ele despertou como de um sonho; Serpentina
desaparecera, e ram seis em ponto, e então lembrou que não co-
piara absolutamente nada. Preocupado com o que o arquivista
poderia di1.cr, olhou para a folha e ... milagre!, a cópia do miste-

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59
Nona Vigilia

Uma força secreta e mágica impeliu-0 em dire{':to à Porta de


Pirna, e esta\'a prestes a dobrar numa ma transYersal, quando o in-
terpelou, em voz alta, o sub-reitor Paulmann, que vinha atrás dele:
"Ei, cil Caríssimo senhor Anselmo! Amice, amice! Por Deus, onde é
Nona Vigília que se meteu, o senhor não dá mais o ar de sua grnça! Saiba que
Verônica deseja ardentemente cantar de novo com o senhor. Ve-
J\ l 1·ec11perou um po1u:o do bom senso -
De amw o estudante me mo/
A sociedade que tomo. ponc ie - e
D
como o estudante Anse/Jlw
.
nha, então! O senl101· certamente pretendia ir à minha casa, pois
não?" Não podendo escapar, Anselmo acompa11hou o sub-reitor.
confimditi o 511/rreit.or Pau~111a11n C?m uma conlJO e Ao entrarem em casa, veio a seu encontro Verônica, tão elegante e
romo este se sentiu ullra1ado_-: . cuidadosamente vestida, que seu pai, surpreso, pcrg11nto11: "E en-
A 111and1a de tinta e suas conseq1umaas tão, por que tantos preparativos? Esperava aJguma visita? Mas aqui
est.-í o senhor Anselmo!" Quando Anselmo, cortês e delicadamente,
·u 50 acontecia <liariamcn- beijou a mão de Verônica, sentiu uma leve pressão, que fez vibrar,
Tuc\o o que de estranho e lmarav111toc de' sua viela orc\iná1ia. como uma cor-rente em brasa, todas as sua~ fibras e neavos.
·a 0 com p ctame1
te a Anselmo a f:as1
. . 1
ª' ·
111
.
de seus amigos · ,
e impacientemente, espe-
, E
V crônica era a alegria, o encanto cm pessoa, e quando Paul-
Não via' mais ncn . · n 0 1)~ra1so rnann foi para seu gabi11ete de trabalho, ela soube, com toda sor-
- m
. d. a que o mtrod uz;1a " . • n-
rava toda manha pelo meio- 11,' . 1tciramcnte absorvida pela te de brincadcini.s e história:;, despertar o interesse de Anselmo,
mo com a a ma 11 · , . fazend0-0 esquecer qualquer timidez e, por fim, deixar-se levar
tretanto, mes .... vi.Ilias do reino feenco na
S tina e pc1as 1na... pela moça. Mas eis que subitamente seu demônio desajeitado res-
ll1n•~~iamentc em Vero-
A

encantadora crpen .
. · ' vezes pensava mvo '"'" surge e faz com que esbarre na mesa, denubando a graciosa cai-
casa do arqmvtsta, as . - cs ela se aproximava e,
. li , em certas ocas10 , xa de costura de Verôuica. Anselmo apressou-se a ix-gá-la; a
nica; parecia- le ate que, . nte o amava e como luta-
. r •a quão smcerame , tampa havia salcado, e por um pequeno espelho de metal pôde
rubonzacla, co11Lessa\ .. de uc era presa. 1\s vezes, era
va pa.ra arran<:t"l-lo dos fant;smas. ~st1',•el o arrastasse para a es- contcmpl:ir com deleite sua própria imagem. Verônica correu
. ma 1orça uTes1 · por trás, pôs a mão em seu braço e, encostada nele, também se
como se sub1tamc11te u . , ·-la aonde ela fosse, como
quecida Verônica e de prec1sas:.e segm viu no espelho, por sobre seus ombros.
se eslivesse acorre ntado à moça. . d' cm que contempla- Anselmo sentiu que se injciava um conflito em suas idéias.
. oite segumte ao 1ª Pensamen1os e imagens apareciam e novamcllle desapareciam: o
Precisamente na 11 (i de uma donzela ma-
. .• eira vez na 1gura ' arquivista Lindhorst, Scrpcmina, a Serpente Verde... Finalmente
ra Scrpenllnf\ pe1a pr im • -l 11 ro·1 revelado o estranho
lora nuanc o 1e ,, o turbilhão se acalmou e tomou forma em sua consciência. Para
ravilhosa e encantac '' .,S 1 d com a Serpente Verde,
. , . d to da a aman ra ' ele estava claro que sempre pensara cm Vcrônica, gue a figura
imsteno o casf\me11 . d olhos mais viva do que nun-
Verônica lhe apareceu chante éos e entendeu clarame nte que que lhe aparecera na sala azul não era outra senão ela, e que a
ca. Sim! Só <luando des~crtou qu 'do de que realmente ha- fantástica lenda do casamento da Salamandrn com a Serpente
1 • esuvera convenci Verde apenas h~\\'ia sido esciita por ele, mas de forma alguma lhe
a1>cnas son.1ara, pois a <lor mais profunrla pcn-
1 que expressava •
via estado com. e:_~·
n fiei o que 1:u 1a,
" .· de seu amor de moça, aos
· . ·
Cora contada. Ele próprio se admirou com seus sonhos loucos, e
atribuiu·os tão-sornellte a seu estado de espírito exa!Lado, causa-
san d o no Sac d o1· sua desordem mtenor,

ft•nomenos a ntas
r .- ·t'1cos provoca os p
. . , . , . Vcrônica estava mais
. do p<'lo amor a Vcrônica e pelo trabalho na casa do arquivista
. . fehc1d·1de e a J uuu. l.indhorst, <'Ili rtüas ~alas sentia-se estranhamente inebriado. Riu-
0 nuc o levava a 111 • • • , la do pensamento, e
·1 • ão conscgum tira- • ' r cll' .,11:1 1·s1m1v.ula i111.1ginaç.\o. c1m· o lc-vava ,\ .1paixc>nar se· por
.1111<\vcl elo que nunca, n, . obri do a sair para um
tal estado torturava-o tanto que foi ga 11111.1 111•q11r11.1 "''IH'llll' 1• ,1 11111l1111di1 11111 11•110111.uln .1111111\11111
p.is<1t•io matinal.

60
O VASO DE OURO Nona Vigília

com uma salamandra. "Sim, sim! É Verônica", giitou, e, ao virar Lindhorst em seu roupão damasco f. fi . . .
a cabeça, penetro u diretamente nos olhos azu is de Verônica, os
as palmeiras douradas· seu estad 1 os escente, via_ a sala azul, º'
tência real de Serpent/na S 1 o evou-~ até a acrechtar na exis-
quais irradiavam amor e desejo. Um suspiro abafado fugiu dos lá- ca estendeu-lhe um c . <lua a ma parecia transtornada. Verôni-
bios dela, no mo mento em que os dele ardiam colados aos seus. opo e ponche e ele ,1
"Ah, como sou feliz!", suspirou o encantado estudante. "O que leve em sua mão "Scri>cnt' V , : • ao pega- o, tocou de
Estava me . 11 d ma, eromca!", suspirou baixinho.
antes sonhei, hoje acontece de fato." "E você realmente me des- rgu ia o num profundo d .
vão Heerbrand disse em o t• .. "É evane10, quando o escri-
p osará quando for Conselheiro?", perguntou ·Verônica. "Claro ,
guem conseguirá cm 1 d. 1
v z ª •·
1 •
. .
• um velho es · ·
qms1to e mn-
·
que sim", respondeu Anselmo. Nesse momento a porta rangeu e Brinde conosco sen~o11· c-Ao1'· º1 arq!1~1vD1sta Lin<lhorst. À sua saúde!
o sub-reitor Paulmann entrou dizendo: "Caríssimo senhor Ansel- ' t se mo esp ertand d
mo! Hoje não o deixarei ir embora; aceite tomar uma sopa co- este replicou, sobressallado· "Isto se . ·, . o e seu sonho,
vão, porque o arquivista L.' dl . dá, d1g111ss1mo senhor escri-
nosco, depois da q ual Verônica nos preparará um delicioso café,
dra que um dia destruiu oªJ~r~~~stdnap;crdaJde é um~ S~Iaman­
que iremos saborear com o escrivão Heerbrand, que prometeu Espú-itos por li e iosp lOrus, Pnnc1pe dos
vir até aqui." "Ah, estimado senhor sub-reitor", retrncou o estu- • ,, , que ie escapara a Serpente Verde" "C :>
que... ? perguntou o b- . p . omo.... O
dante, "não sabe que preciso ir à casa do arquivista Linclhorst,
por causa da transcrição dos originais?" "Veja bem, a.mir.e!", disse
selmo .:é
, ·
po1· 1'sso su reitor aulmann. "Sim", cominuou An-
que se tornou a · · ·
lar em Dresde, com as suas lrês Cil1lqmv1sta re:i,1 C:. estabeleceu seu
Paulmann, mostrando-lhe o relógio, que indicava meio-dia e
meia. O estudante reconheceu então que seria .muito tatde pat-a tcs auriverdes, que tomam sol ·u~:~s~ que nao ~ao senão serpen-
dutoramente e atrnind ~ sabugueiros, cantando se-
ir até a casa do arquivista e aceitou o convite do sub-reitor, Assim o os 1a pazes como se . · ,, "S
contemplada Verônica durante todo o dia, podendo roubar-lhe A nselmo, senhor Anselmo" e 1 . . reias. enhor
senhor está regulando bem'? ;~l~rnou ~ sub-reitor Paulr~ann, "o
um olhar, um doce aperto de mão e, quem sabe, colher um bei-
são esses?" "Ele tem r·a?·a"o" . . ~mo1 de Deus, que chsparates
jo. Quanto mais aumentavam os desejos do estudante Anselmo, ·· ' "' , mterve10 Heerbra 1 "O · .
tanto maior era sua sensação de conforto, tanto mais se conven- uma maldita Salamandra que expele dos d
mam nossos casacos s· .
rl nc f: , arqmv1st.a ~
e os a1scas que que1-
cia de que logo se libertaria daquelas alucinações, que realmente .' · am sun você lcrn r .- .
sclmo, e quem não acredil . , . , a~~l?, :ompa11he1ro An-
poderiam levá-lo à loucura. escrivão bateu com o unhai rnsso e meu mumgo!" Com isso o
O escrivão Heerbrnnd realmente chegou depois da refeição,
"Escrivão! O senhor eI'tá lo:c;~ m~~a, fazendo ~s copos tilintar.
e enquanto o café era saboreado e a noite caía, ele, esfregando as
mãos e sorrindo satisfeito, deu a entender que trazia alguma coi- "Senhor estudante, senhor estud~~:~~ou o sub-r~1tor, enfurecido.
va1nenle:>" "AI f" d' A · O que esta aprontando 110•
sa consigo que, misturada e adequadamente moldada pelas lin- • 1. • asse nsclmo "O se 1 -
um pássaro uma coru'a . . n 1or mesmo nao passa de
das mãos de Verônica, como que num belo arra1tjo, muito "O quê:> Eu' ' , U que penteia topetes, senhor sub-reitor'"
alegraria a todos naquela fria noite de outubro. "Então mostre . , um passaro - uma con~a - to t :>f" •· .
mann encolerizado "O . , pe es. , gr 1tou Paul-
essa coisa misteriosa que traz consigo, estimado escrivão~. excla- . , • . ' . 1
sen lor está louco louco'" "M Ih
ira J)ersegm t " · • · as a ve a
mou o sub-reitor. Hcerbrand por três vezes enfiou a milo no bol- · o • gntou o csc1·ivão H eerbrand "S' 11
so e dali tirou um licor de ervas, limões e açúcar. Ainda não derosa", interveio Anselmo "embora de ' . . im, a vc ia é po-
pai dela era um espanador ~sf: . ongem modesta, pois o
havia decorrido meia hora, e na mesa de Paulmann fumegava terraba mas nuase tod' . ~u rapado e sua mãe uma vulgar be-
um delicioso ponche. Verónica servia a bebida, e entre os amigos , ·1 ' a a sua iorça deve t d .
ras hoslis - uma veneno .· -se a .º a sorte de cnatu-
corria solta uma agradável e animada conversa. . sa co13a que a 1
·odc1a " "Q · f:' ·
Mas à medida que a bebida subfa à cabeça de Anselmo, vol- g ritou Ver'o111ca · . com os olhos fu _. " • · . ue, 111 amra" •
lher sábia e o gato pr·ct - ' 11oso~, a velha Lisa e uma mu-
tavam à sua mente todas as imagens das coisas fantásticas e estra- . o nao e urna cnatu · . b · á
rapaz educado e de bons lr'b' I' •,:ia on11n. vcl, mas um
nhas que vivera nos últimos tempos. Ele viu à sua frente a Jtos, e a em disso seu primo-irm;\o. ,,

62 63
O VASO DE OURO Nona Vigília

"Ao menos consegue ele engolir salamandras sem queimar o bi- balhando na casa do arquivista Lindhorst. "Boa-noite boa-noite
gode e perecer miseravelmente?", acrescentou o escrivão Heer- ci,u?n"do am1.g<;> ,,, suss~1rrou V crônica, pousando um beijo
' '
cm seus
brand. "Não, não!", gritou Anselmo, "nunca ele poderá fazê-lo; e lab1_.?S· Ele qms toma-la nos braços, mas a visão desaparecem, e
a Serpente Verde me ama, pois tenho uma alma pura e mergu- entao d~spertou sereno e restabelecido. Pôs-se a rir lembrando-se
lhei meu olhar nos olllos de Serpentina." "O gato irá a1Tancá- dos efeitos do ponche, mas, ao pensar cm Verónica, sentiu uma
los", gritou Verónica. "A Salamandra, a Salamandra há de vencer agradável sensação. "Só a ela", disse a si mesmo, "<levo agradecer
todos vocês, todos", bradou o sub-reitor Paulmann, cheio de te1· retornado de tão ridículas quime ras. De fato, eu não tinha
ódio; "estarei eu num manicômio? Será que eu é que estou lou- n.1elhor juízo do que aquele que pensava ser transparente como
co? Que disparates estou d izendo? Também estou louco, louco!" vidro, ou aquele outro que não deixava o quarto com medo de
Levantou-se então de um salto, arrancou a peruca da cabeça e jo- ser devor~do por uma galinha, pois pensava ser um griio d e ceva-
gou-a contra o teto de tal forma que os cachos, totalmente des- da. Mas tao logo me torne Conselheiro, desposarei a senhorita
truídos, espalharam pó por toda parte. Então o estudante Paulmann e serei fr:liz."
Anselmo e o escdvão Ileerbrand tomaram a terrina de ponche e _ A<; mei<:<lia, atravessando o jardim do arquivista Lindhorst,
os copos e jogaram-nos para o teto, aos júbilos, e os cacos caíram nao pode deixar de se admirar de como aquilo tudo pôde um dia
tilintando em todas as direções. "Vivat Salamandra! - pe1-eat - pe- lhe pa1·ece!· ~ão estranho e ~aravilhoso. Via apenas plantas co-
1-eat a velha! Quebrem o espelho de metal, arranquem os olhos muns,, gera11Jos _de todos os tipos, mirtos... No lugar dos colori-
do gato! Pássaros, passarinhos dos ares! Evoé, Salamandra!" As- dos passaras bnlhantes, que normalmente gracejavam com ele,
sim gritaram e mugiram confusamente os três possessos. Choran- ~svoaça~am ape!1as alguns pa~da!s, que começaram a lançar pios
do muito, Francisca fugiu, enquanto Verónica pr·ostrava-se no mcomp1eens1ve1s e desagradave1s quando perceberam sua pre-
sofá, vencida pela dor. sença. A sala azul também lhe pareceu muito diferent e, e não en-
Subitamente, a porta se abriu, tudo se acalmou e entrou um tendia como o azul forte e o dourado artificial dos troncos das
homenzinho de casaco cinzento. Seu rosto tinha algo de estra- palmeiras, com suas fol has disformes e reluzentes, um dia pude-
nhamente grave; sobre o nariz adunco, acavalavam-se óculos ram agradar-lhe.
enormes, nunca vistos antes. Também usava uma dessas perucas O arquivista fitou-o com um sorriso muito próprio e malicio-
esquisitas, que mais parecia um gorro de penas. "Muito boa-tar- soe perguntou: "Pois então, caríssimo Anselmo, o ponche de on-
de", rosnou o burlesco homenzinho. "É aqui que posso encon- tem estava bom?" "Ah, com certeza o papagaio ... ", retrucou
trar o estudante Anselmo? Recomendações do arquivista An_s:_Imo envergo~1h~clo, m3'.5 deteve-se, imaginando que também
Lindhorst; ele hoje esperou inutilmente pelo senhor, mas para a v1sao do papagaio tivesse sido uma alucinação. "Ora, e11 m esmo
amanhã pede que não falte à hora habitual." E com isso voltou a estava presente", interveio Linclhorst. "O senhor não m e viu ?
sair. Todos reconheceram então que o solene homenzinho era M~s com todos aqueles disparates quase caí gravemente ferido;
na verdade um papagaio cinzento. O sub-reitor Paulmann e o es- pois eu me encontmva dentro da jarra de ponche no momento
crivão Heerbrand desataram numa gargalhada que ecoou por cm ~li~ o sul>-t·eitor a agarrou, fançando-a em direção ao teto, e
todo o aposento, enquanto Verónica gemia e chorava, dilacerada prec1se1 esconde1·-rne rapidamente no cachimbo do sub-reitor.
por uma dor inclizível, e Anselmo, fulminado pelo pavor, saía pe- /\~ora, adeus, senhor Anselmo! Seja aplicado; e já que trab;ilhou
las ruas, inconsciente. Achou sua casa, seu quartinho, mecanica- ate agora com tan to afinco, pagarei um táler também pelo dia de
mente. ontem."
Pouco depois, Verônica juntava-se a ele, calma e sorridente, "Como pode o arquivista ser tão insensato", disse o csLuclan-
perguntando por que, em seu êxtase, ele assustava a todos, ac1·es- te .c<:>nsigo mesmo, sentando-se à mesa para começar a cópia do
rentando que devia evitar novas alucinações quando estivesse tra- ongmal gue, como de costume, Lindhorst estendera diante dele.

64 65
O \li\SO DE OURO

Mas no rolo de pergaminho só distinguia traços e hieróglifos es-


tranhos e entrelaçados que, sem dar um ponto de apoio ao
olhar, confundiam a visão, de forma que quase lhe pareceu im-
possível copiá lo com precisão. Sim, considerando o pergaminho
cm seu co1tj1111to, csle lhe parecia um mármore de; veias coloridas Décima Vigília
ou unia pcdrn pintalgada de musgos. Todavia, queria tentar o im-
possível; mergulhou a pena na tinta, mas a tinta não queria escor- Os sojt"imenlos do est·udante Anselmo dentro do recipiente de r.ristal -
rer; impaciente, sacudiu a pena e ... oh, céus!, uma enorme gota A vida despreocupada dos alunos da
pingou sobre o original. Sibilando e assoviando, um raio azul Santa.Cncz., as.sim como dos estngiári-Os -
saiu da mancha, serpenteando ruidosamente até o teto. Das pare- A bata./Jia na biblicteca do arquivista Lindhorst -
des emanava denso vapor, as folhas começaram a agitar-se, como Vitória da Salamaruim e liberlaçtio de Anselmo
se sopradas por uma tempestade, e delas safam manjcricões relu-
zentes ardendo cm fogo e inflamando o vapor, de forma que a
massa de chamas agora crepitava em Lorno de Anselmo. Os tron- . Com cena 1<17.ào, prezado leitor, c:Juvido que você alguma vez
cos dourados das palmeiras transformaram-se cm serpentes gi- esLivcsse trancafiado numa garrafa, a não ser que um sonho fantas-
gantes que batiam cabeças 111nas nas outras num estridente som m~górico algum dia tenha-lhe prepa.-ado um t1uque - de fadas! Se
metálico, enroscando Anselmo com seus corpos escamados. "In- foi esLc o caso, então você conhece exatamente a desgraça do estu-
sensato! Agora sofra o castigo por tão insolente audácia!", gritou dante Anselmo. Caso contrá1io, tente juntar-se a mim e a Anselmo
a terrível voz da Salamandra coroada, que apareceu sobre as ser- dentro da garrafa de ctistal por alguns momentos.
pentes como um raio brilhante; e de suas bocarras abe1·tas vi- Você está rodeado por um brilho oíuscante, todos os objetos
nham cataratas de fogo sobre Anselmo, solidificando-se cm à sua volta lhe aparecem iluminados pelas irradiantes cores cio
torno de seu corpo. Seus membros, cada vez mais contraídos, arco-íris, tudo treme, oscila e cintila; você flutua imóvel num éter
congelaram-se, e ele perdeu os sentidos. Quando voltou a si, viu- congelado que o comp1ime, de modo que debalde o r~píiito ten-
se rodeado por uma auréola brilhante, que o impedia de levantar ta obedecer ao corpo. Cada vez mais esmaga o seu peito o peso
a mão ou mesmo mexer-se. Caramba! Ele estava sentado dentro das toneladas; cacla vez mais a respiração suprime o ar ainda exis-
de uma garrafa de cristal hermeticamente fechada, numa estante tente no exíguo espaço; suas veias incham, e, dilaccrílclos por um
da biblioteca cio arquivista Lindhorst. medo pavoroso, seus nervos estremecem na luta de morte. Esti-
mado leitor: tenha piedade do estudante Anselmo, arrebatado
por indescritível manírio e m sua prisão de vidro! No e ntanto ele
sentia que nem a morte poderia salv;í-Jo, pois não acordav~ ele
de um profundo desmaio, provocado pelo excesso de seu •tor-
mento, quando o sol matinal entrava claro e amável na bibliote-
?
ca, e seu tormenlo recomeçava de novo? Não conseguia mover
um so mem.bro, ma seus pensamentos chocavam-se contra as pa-
redes de cristal, atordoando-o com as dissonâncias, e, no lugar
das palavras que dentro de si proferia seu espítito, percebia ape-
nas o bordão confuso da loucura.
. Em seu desespero, gritou: "Serpentina... Serpentina ... venha
hbettar-me desse tormento infernal!" E era como se leves suspi-
ros flutuassem a seu redor, circundando a garrafa como transpa-
66
67
Décima Vig-ília
O \'ASO DE OUl?O
curso d'_água. Vamos em frente!" "Ah", suspi1·ou o cs111dante, "eles
rentes folhas de sabugueiro; os sons eslancarnm, o brilho ofus- ~unca v1rani ~encantadora Serpentina, não sabem o que significam
cante dcs<1pareccu e Ans<·l1110 respirou com mais liberdade. "Será h~~dade e vida na fé e no amor, por isso não sentem a pressão da
que não sou cu mesmo o culpado de minha dcsg111çai Ah, não pnsao a que os condenou a Salamandra, cm sua loucura, cm seu es-
fui cu que at(•111ci con tra você, querida, encantadora Serpentina? pí~to _doentio, mas eu, pobre de mim, sucumbirei na dcsgr"ça e na
Não lcvanl<·i talllas dúvidas? Não fui cu que perdi a fé, e com ela m1séna, se ela, a quem tanto amo, não me salvar."
Ludo, t uclo o que me faria feliz? Ah, você nunca mt1is será minha, Foi quando a voz de Serpentina, como um suspiro, varreu a
o Va!!o de Ouro está perdido e não poderei contemplar suas ma- sala_: "Anselmo! Acredite, ame, espere!" E cada um desses sons ir-
ravilhas. Ah, doce SerpenLina, só mais uma vez gostt1ria de vê-la, rad1?u-se pela _r~s.ão de Ans~11?º• ~ o cris~l cedeu a seu poder e
de ouvir sua doce voz!" se dilatou, pe1 nttt~ndo ao pnsionetro respirar um pouco mais à
Tomado por uma dor lancinante, era este o lamento do estu- vontade. Seu sofnmcnto atenuava-se c:-ida vez mais, e de eutão
dante Anselmo, quando uma voz bem junto dele falou: "Não sei observou que Serpentina ainda o amava, e que só ida fazia com
o que quer, senhor estudante, por que' se lamenta ta11toi-" Ansel- qu~ suporta:ssc aquela temporada na garrafa. Sem se preocupar
mo então percebeu que nt1 mesma estante encontravam-se ainda mais com seus frívolos companheiros de desgraça, concentrou
cinco garrafas, nt1s quais viu três alunos da Santa-Cmz e dois esta- todos os seus pensamentos na encautador<l Scrpemina.
giários. "Ah, meus senhores e companheiros ele infortúnio", ex- . De repente, do outro lado do recirll'o, surgiu um rosnado ir-
clamou, "como conseguem conservar-se tão relaxados, t.ão ntante e abafado. Logo pôde perceber que o rnído proviuha de
satisfeitos, com as feições tão alegres? Tanto quanto cu, voc:ês es- um velho bule de café, que estava sobre um pequeno armário.
tão trancafiados em gar rafas e não podem mexer-se, nem mesmo Quando olhou com mais atenção, viu esboçar-se e desenvolver-se
pensar algo ..azoável, sem que smja um ruído mortal de sons e cada vez mais os ~1orren~los traços de um rosto feminino enruga-
carrilhões e sem que no c:rânio não h'Vª uma terrível t.cmpestadc d?, e logo depois surgiu a mulher das maçãs da Porra Negra
de assobios. Mas certamente vocês não acreditam na existência citante do recipiente. Ela riu ironicamente, e cxclamo11 com uma
da Salamandra e da Serpente Verde." "O senhor está delirando, vo_z estridenle: "Ih, rapazinho! Agora você está aí? Ac-.abou no
meu ca.ro estudan te", relrucou um dos alunos, "nunr.a csiivemos cn~1.al! Não foi o que previ há muito tempo?" "Gracc-je e escarne-
tão bem quanto agora, pois os tálcrcs que recebemos do arquivis- ç~ a vontade, maldita bruxa", diss?-lhc o estudante, "você é culpa-
ta, por todo 1ipo de cópia confusa, nos são muito úteis; agora ~l.t de tudo, mas a Salamandra vai pegá-la, horrorosa beterrabal"
não precisamos mais decorar os coros dos cantos i1alianos, va- I-lo, ho, ho!", rct1·~cou a vcl_ha, "não seja tão o r·gulhoso! Você pi-
mos diariamente ao Cabaré Joseph e a outros locais, saboreamos s~u no rosto de n unhas filhmhas, você queimou m-::11 nariz, mas
a nossa cervcja, olhamos para as lindas moças e cantamos como amda _lhe quero bem, gar,oto, porque antes era uma hoa pessoa,
verdadeiros estudantes o gmulemnus igüw:,i e ficamos muito ale- e a 1111nha_pequena tan._ibem l_he quer_bem. Mas não sairá da gar-
gres." "Estes senhores cst;io certos", interveio um estagi ário, "cu rttfa,_ de c1 ist~ se eu nao o ;yudar; nao posso me aproximar de
também fui muito bem provido com táleres, como o meu colega voC'c, mas ?1111.ha com;idre, a ratazana, que mora aí hem perti-
ao lado, e passeio bastante, ao invés de ficar às voltas com as ma- nho, pode rn~hnar a tábua cm que está, e então você cairá, e eu
çantes cópias, entre quatro paredes." "Mas meus prezados, caros lhe apanharei no avental, para que não quebre o nariz e conserve
senhores!", disse Anselmo. "Não se dão conta d e que estão dc11· bem o seu rostinho. Em seguida eu o levarei à senhori1a Veróni-
t ro de recipicn1es de cristal e não podem movimentar-se, muito ca, que deve desposá-lo quando for Conselheiro." "Deixe-me cm
lll<'llOS passear por aí?" paz, reben to de Satanás!", gritou Anselmo eufurecido. "Foram
Foi então que os alunos e estagiários desataram a rir e grita- suas artes in fernais 9ue me lcv?ram ao sacrilégio, pelo qual agora
ram: "O scnltor estudante está louco! Imagina estar dentro de pago. Mas suporL"lre1 tudo pacientemente, pois aqui é meu lugar,
11111a gan<lfa, mas está na ponte do Elba, simplesmente olhando o

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68
O VASO DE OURO Décima Viifília

onde a doce Serpentina me e nvolve com amor e consolo! Escute, ~Agora, meu rapaz!", gritou a velha, e o gato deu um salto,
sua bruxa, e desespere-se! Desafio seu poder, pois amo Serpenti- voando na direção do arquivista; mas o papagaio cinzcn10 voou
na - não quero ser Conselheiro - não quero olhar para Verôni- na frente e bicou seu pescoço, j orrando dali um sangue verme-
ca, que através de você me atraiu para o mal! Se não puder ter a lho-fogo. A voz d e Serpentina gritou: "Salvo, salvo!" Cheia de ira
Serpcnre Verde, e ntão sucumbirei de desejo e dor! V;i embora, e desespero, a velha precipitou-se para cima do arquivista e dei-
vá embora, monstro terrível!" A velha explodiu numa risada tão xou cair o Vaso de Ouro, querendo esganá-lo com os longos de-
estridente que a sala tremeu, e depois gritou: wEntão fiqu e aí e dos da mão magra, mas este rapidamente despiu o roupão e
apocl rcça, pois está na hora de pôr mãos à obra, já que os meus lançou-0 contra a velha. No instante em que este a cob.-i11, sibila-
negócios aqui são outros." ram e crepitaram e salpicaram chamas azuis das folhas de perga-
Tirando o casaco preto, ergueu-se então c m sua hedionda minho, e a veU1a rodopiava com gritos de d or, tentando pegar
nudez. Depois começou a andar em círculo, e muitos livros caí- areia do vaso e pergaminho dos livros para abafar as laharedas;
ram das pral'clciras, dos quais ela arranco1J folhas de pergaminho quando conseguia jogar nelas areia ou pergaminho, o fogo se
e p rendeu umas às outras com muita habilidade, enrolando-as no apagava. Saíram então de dc11tro do arquivista cm sua direção
corpo. Logo estava vestida com uma estranha carapaça de esca- fulgurantes raios azuis. "Ei, vamos, vamos! Vitória à Salaman-
mas coloridas. Expelindo fogo, o gato preto saltou do tinteiro so- dra!", retumbou pela sala a voz <lo a rq\1ivista, e ce nte na.~ de faís-
bre a escrivaninha miando para a velha, o que a deixou radiante, cas serpentearam cm círculos de fogo cm torno da velha uivante.
desaparecendo cm seguida. Anselmo notou que ela fora para a GaJlindo e palrando, gato e papagaio debatiam-se entre si, mas fi-
sala a?.UI, e logo depois ouviu-a uivando e zunindo de longe. Os nalmente o papagaio, com suas asas, empurrou o gato ao chão e,
pássaros no jardim puseram-se a piar e o papagaio roncava: "So- picando.o e segurando-o com as garras, arrancou com o bko
corro, socor ro - l.acu-ão, ladrão!" seus olhos, e nquanto ele gemia e urrava. Uma fumaça cle11s;t for-
Nesse momento a velha voltou aos pulos e, carregando o mara-se onde a velha caíra, sol> o roupiio, e os seus brados agu-
Vaso de Ouro e gesticulando dcsvairadamente, gritou: "Boa sor- dos e lancinantes ecoaram ao longe. Dissipada a l"umaça que
te, b oa sorlcl filhinho, mate a Serpente Verde! Vamos, filhinho, espalhara seu penetrante odor, o arquivista ergueu o roupão do
vamos!" Anselmo pareceu ouvir um profundo gemido, como se chão, sob o qual havia uma h edionda e e nfezada beterraba.
fosse a voz de Serpentina, e foi tomado p elo terror e pelo deses- "IIonmclo senhor arquivista, trago aqui o inimigo vencido",
pero. Reunindo Lo<las as forças, bateu com força contra o c1·istal, falou o papagaio, levando ao arquivista Lindhorst um fio d e pêlo
como se nervos e veias fossem rebentar: um som cortante res- negro no bico. "Muito bem, meu caro", respondeu o arquivista,
soou pela sala, e o arquivista surgiu à porta com seu brilhante "aqui está rnmbé m a minha inimiga vencida. Agora ocupe-se com
roupão damasco: "Ei, co1ja! Fantasma louco! Isto é uma bruxa- o resto. Ain da hoje terá como 1·ecompcnsa scís cocos e novos
ria!", gritou ele. Os cabelos da velha e1·içaram-se como uma crina óculos, pois, como vejo, o galo vergonhosamente quebrou os
e seus olhos vermelhos em chama reluzi ram o fogo infernal, e, seus." wVida eterna aos seus, digníssimo amigo e prolctor!", re-
cerraudo os dentes pontiagudos da bocarra, sibilou: "Pra fora, torquiu o papagaio muilo satisfoiLo, pegando a berc rraba pelo
pra fora". Rindo e gracejando, apertou contra si o Vaso de bico e voando com efa para a janela que o arquivísl:I lhe abrira.
Ouro e atirou no arquivista um punhado de areia cintilante. Este Lomou o Vaso de Ouro e g ritou com força: "Serpentina, Ser-
Quando a areia tocou no roupão, transformou-se c m flores pentina!" Mas quando Anselmo, regozijando-se com a morte da
que então começaram a crepitar e chamejar do roupão, e o ar- terrível mulhe r que o levara à desgraça, o lhou para o arquivisla,
g uivista lançou-as flamejantes contra a bruxa, que uivava de viu então a figura majestosa <lo P1íncipc dos Espíritos, que o mi-
dor. Enquanto pulava, sacudindo a carapaça, as flores murcha- r:wa com indescritível garbo e dignidade. "Anselmo", disse o
ram, virando cinza. Príncipe dos Espíritos, "você não é o culpado por sua descrença,

70 71
O VASO DE OURO

mas um princípio hoslil que, penetrando cm sua alma, tentou


destrní-Lo. Você manteve sua fidelidade; seja livre e feliz." Um
raio vibrou no âmagQ de Ansdmo, a esplê~1dida harmonia dos si-
nos de cristal soou mais forte do que jamais esc~tara; suas fibras Undécima Vigília
e ne rvos estre meceram - mas o acorde soava cada vez mais alto
pcl;i sala; o cristal que envolvera Anselmo partiu-se e ele caiu nos A cólera do sub-reiwr Paulmann com os romj;antes de loumm
braços da e ncantadora e doce Serpentina. de sua família -
De como o escrfoão lieerbrand forn(JU,fe Conselheiro e passeou .fobforte
geada de sapat.ali/Jw. e meias de seda -
As confidências de Verônica -
Noillado diante de mn fumegante prato de soj;a

"Mas diga-me francamente, meu caro escrivão, corno foi que


aquele maldito ponche nos subiu à cabeça, levando-nos a come-
ter todo tipo de disparates?", e ra o que perguntava o sub-re itor
Paulmann, quando na manhã seguinte entrou na sala, ainda
cheia de cacos de vidro, no meio da qual jazia a infcli7. peruca,
desmanchada em vários pedaços e e nsopada de ponche. Depois
da precipitada partida do estudante, o sub-reitor Paulrnann e o
escrivão llce1·b rand crnzaram a sala, gritando feito possessos e
balançando a cabeça, até que a pequena F.-ancisca, com muito es-
forço, levou o a tordoado pai para a cama, e o escrivão, inteira-
mente exte nuado, afundou no sofá, que Verônica abandonara
para refugiar-se crn seu quarto.
O escrivão havia emolado o seu lenço azul cm torno da ca-
beça e, pálido e melancólico, gemeu: "Ah, meu caro sub-reitor,
não, não foi o ponche, tão bem preparado pela senhorita Verôni-
ca, mas tão-somente o maldito estudante o culpado daquilo tudo.
Pois o senhor não notou que há muito lempo ele está louco? E
também não sabe que a loucura é contagiosa? Um louco fabrica
outros; per<loe, é u m velho provérbio; sobretudo depois de al-
guns copos, facilmente pode-se enlouquecer e cometer, involun-
tariamente, toda sorte de sandice, imitando o desvairado. Pois o
senhor acredita, estimado sub-reitor, que ainda me sinto mal
quando penso no papagaio cinzento?" "Que nada", respondeu o
sub-reitor, "foi tudo uma farsa; era o velho criado do arquivista,
envolto num casaco, cinzento, à procura do estudante Anselmo."
"Pode ser", retorquiu o escrivão, "mas devo confessar que me

72 73
O V11SO DE OURO Undtci111a \ligilia

sinto mise rável; durante Lo<la a noite o uvi ruídos e assobios estra- s~b-reitor Paul~ann, que não ficou p ouco surpru;o com o seu
nhos." "Era cu", disse o sub-reitor, "pois ro nco muito." "Bem, tao elegante amigo. Solenemente, aproximou-se do sub-reitor
pode ser ", con1inuou o escrivão, "mas sub-reitor, sub-reitor! Não Paulmann,
. ' . abraçou-o com delicadeza e falo u: "J foi" J'. cl··1,1 t 1o
foi sem motivo que ontem preparei para n ós alguns mome ntos amversano de sua querida e honrada filha , senhorita Verôni-
de diversão; Anselmo, porém, estragou tudo. O senhor não sabe, c~, quero d ecla~·ar o que há muito está guardado c m nic u cora-
sub-reitor, sub-reitor... " O escrivão Ilcerhrand levanto u-se de sú- ~aol ~aquela mfcliz o casião, quando trouxe n o bolso os
bito, tirou o len ço da cabeça, ab raçou o sub-reitor, apertou calo- mgred1c ntes para o mald ito ponche, Linha e m mcute ro mnni-
rosamente sua mão e mais uma vez exclamou, num tom palétko: c~r-lh e .un~a boa notícia e festejar alegremente o abençoado
"Oh , suh-1·eito r, s11b-rei1or!", e correu p orta afora, chapéu e ben- dia, pois .~á naquele tem~o sabia d e minha nomeação para
gala na mão. C~ns~l~~~1 ~· e trago con11go a patente 'N.mz nomi11e f'/ sip;illo
"Anselmo não pisará mais aqui", disse o sub-reitor Pa11lma11n pn"!ciPIJ · Ah, ah, senl1or cscr ... , quero dizer, sen hor Conse-
consigo mesmo, "pois vejo que com a sua loucura e le tira a razão lhe iro Ilcer?ra~d", ga~ucjou o sub-reitor "Mas o scmho r , h o n-
das pessoas mais equilibradas; o escrivão também j ;\ está perdido. rado sub-reitor • COll l lll UO U o agora Conselheiro r lcerb ra nd
Eu até agora me controlei, mas o demônio, ontem, durante mi- "o scn 11or poc1e completar a minha felicidade. Jí h;í 111 i1 tem-'
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nha embriaguez, poderia Ler aparecido e levado a mdhor. Por- po que amo e m segredo a senhorita Vcrônica e posso me lcm-
tanto, para trás, Satanás! E leve Anselmo junto!" Verônica br.tr d e alguns olhares amáveis lançados a mim por ela e que
tornara-se melancólica e não dizia palavra, sorria muito rarn e es- me mostraram claramente que não lhe sou aniipático. Em
tranhamente e preferia eslar sozinha. "Ela ainda te m A nselmo na su~na, h o nrado sub-reitor! Eu, Conselheiro Hccrbrand, p eço a
alma", disse o sub-reito r com rai va, "mas é bom que ele não apa- mao de sua encantadora filha, senhorita Vcrônica, com quem
reça mais por aqui. Sei que tem medo de mim este Anselmo ... É pe~so, se o senl1or n ão fizer ol~j cções, me casar c m breve."
por isso cine não vem mais." Essas últimas palavras fornm profe1·i- ~·u~o smprcso, ~ sub-reilo r Paulman11 bateu as mãos e gritou:
das c m voz alta pelo sub-re itor, e Verónica, ali presente, debu- Muno b~m, muuo bem, senhor escr... , q11e1·0 d i7.er, senhor
lhou-se em lágrimas, suspirando: "Ah, e como ele viria? Pois há Conselheiro, quem leria imaginado! O ra, se Verônica realmen-
muito que est:í preso na garrafa de cristal." "Como ... ? O quê ... ?", te o ai.na, d e mi_nha parte nada tenho a opor; talvc7. a at11 ai me-
gritou o sub-1·eitor Paulman n. "Ah, meu Deus, ela também já está lancoh a ~ela SCJª apenas a paixão ocult a pelo senhor, honrado
delirando como o esc1i vão, e logo virão os acessos. Maldito, abo- Co11selhc1.-ol Os conhecidos artifícios... "
minável Anselmo!" Logo cm seguida saiu cm busca cio dr. Eck- Nesse momento e ntr ou Verônica, p::{lida e atordoada, como
stein , que sorriu e ''oltou a dizer corno da outra ve7: "Ai, ai!", agora era o seu costume. O Conselheiro IIeerbrand e ntão foi cm
mas nada reccito11, acrescentando apenas ao pouco que dissera: sua ~i~eçiio, congratulou-a, c m milimcll'ado discurso, po r seu ani-
"Crises nervosas! Vão-se embora por si mesmas. Ar fine, pas- versano e este'.1d~u-lhe o perfumado ramo de flores e u m pacoli-
seios, dist rações, teatro, 'O Felizard o', 'As lr111ãs de Praga' - vai nh~, ?º qual c11111lo~, quando foi aberto, um par ele brincos. Um
passar!" "O do utor nunca foi tão eloqüente", p ensou o sub-reitor fugidio rubor colonu-lhc as faces, os olhos brilharam com mais
Paulmann , "literalmente loquaz ... " for?', e ela gritou: "Meu De us! Mas são os mesmos brincos que
Muitos dias e semanas e m eses se passaram. Anselmo desa- usei ~er~a~as at~s e que tanto me agradaram!" "Como será isso
parecera. Tampouco o escrivão H ccrbrand se manifrstava . Até poss1vel •. 11lt~1ve10 o Conselheiro Jlee1hrand, um pouco pcrlur-
que c m determinado 4 d e fevereiro, vestindo um espa ntoso baclo e oleud1do, "se os com1wei há uma hora na rna Schloss, e
"'*
1 moderno e do melhor tecido, de sapatilhas e me ias de
st'cla, a pesar da forte geada, e um grande ramo de flores fres-
p~r uma boa soma?" Mas Ve rônica não o escutava, e já estava
d iante do espelho, a fim de experimentar efeito da jóia que aca-
c·as na 111rl0, de surgiu pontualme n te ao meio-dia diante do bara ele pe ndu rar nas orelhas.

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..... - - -

O V/\SO DE OURO Undécima Vigília

O sub-reitor Paulmann revelou-lhe, com expressáo sena e ~1 h~ apelado~ sábia mulher, que, como posso notar, não poclc
tom grave, a nomeação do amigo Ileerbrancl e o seu pedido. Ve- ~c1 out.ra scnao a ~artomantc, a traficante ele café, a velha Raucr.
rónica fitou o Conselheiro com um olhar· penelranle e falou: "Há or ~utro lado, nao se pode negar que realmente existem artes
m uito cu sabia que o senhor queria desposar-me. Pois que seja! má~cas :ec~etas que faci lmente exercem nas pessoas uma tcrTÍ-
P rometo lhe a mão e o coração, mas preciso revelar a ambos, pai vel 11.~íluenc1:, ~orno já se lia nos velhos escritos. Mas 0 que a sc-
e noivo, algumas coisas C)UC me oprimem a mente; e há de ser nho11t a v.eromca falou acerca da vitór ia da Salamandt'll e tio
agora, mesmo que a sopa, que, como vejo, Francisca agora trnz à comp~om1ss.?. de Anselmo com Serpentina é com ccrt<· 7 :--t \llllíl
mesa, esfrie." Sem esperar pela resposta que já se esboçava dos alegoria pocttca - como um poema, onde canta o dC'finitivo
lábios do sub-reitor e do Conselheiro, Verônica contin11ou: ''O ad~us .~º. estud~nte Anselmo." "Considere isso, estimado Cousc--
senhor pode acrc<lit.ar cm mim, querido pai, que a mei Anselmo ~hc~ro , mte1ve10 Verónica, "talvez como um sonho t'Sli'ipido."
de todo o coração, e quando o escrivão Ilccrbrand, agora Conse- Nao º.. fa~o de for~na alguma", replicou o ConselhC'iro 1kcr-
lheiro, assegurou que Anselmo poderia vir a ser alguém, decidi brand, pors bem sei que Anselmo é vítima de poderes secretos,
que e~. e nenhum outro, deveria ser o meu marido. Parece, po- que o levam ª.cometer toda sorte de maluquices."
rém, que seres estranhos e hostis quiseram arrancá-lo d e mim. O s11b-rc1t?r ;aulmann, não podendo conter-se por mais
Pedi enLão ajuda à velha Lisa, outrora minha a ma-seca e que se tcn:i~)O, explodm: Parem, pelo amor de Deus, parem! Scní que
tornou uma mulher sábia, uma grande feiliccira. Ela prome 1eu mais uma vez tenamos abusado do maldito ponche, ou a loucura
ajuda1·-111e e entregar Anselmo cm minhas mãos. Fomos à meia- d~ ~nsclm.o estendeu-se sobre nós? Senhor Conselheiro, que es-
noite da noite <lo equinócio para uma encruzilhada; da conjurou pccrc. de disparate: novamente está dizendo? Quero crer que é 0
os espíritos infernais e, com a ajuda de um gato preto, consegui- amo1 que lhes_ esta at~rdoando, mas felizmente logo haverá 0 ca-
mos um pequeno espelho de metal, para o qual, pensando cm samento. Scnao ficana apreensivo, achando que também 0 se-
Anselmo, basrou concenLrar o olhar para dominá-lo com todas as nho r houvcss~ enlouquecido, digníssimo Conselheiro, e muito
minhas forças. Mas agora arrependo-me sinceramente de ter fei- m~ prcowpana a descendência, que poderia herdar o mal dos
to tudo aquilo e renego lodos os poderes de Salà. A Salamandra pais. E1.1fim, dou a mi11ha bênç:'io de p;ii para o feliz matrimônio
derrotou a velha; ouvi os seus gritos ele dor, mas não me foi pos- e p ermito que se l>c ij<·m como noiva e noivo."
sível ajud;\-la; quando ela, transformada em beterraba, foi devora- O qu~ fizeram iuco11tincnli. E antes que a eirada sopa h ou-
da pelo papagaio, meu espelho de metal partiu-se com um som ve~se esfnado, o noiv-.tc.lo estava cdcbrndo. Poucas semanas dc-
cortante." Vcrônica pegou os dois pedaços do espelho quebrado poss, a esposa do Conselheiro Ileerbran<l estava se11tada à janela
e, tirando de sua caixa de costura um cacho de C.'lbclo, entregou de .u'.~1a b.~~a casa no Mcrca.do Novo, como antes imaginara, e
os dois ao Conselh eiro Ilcerbrand: "Aqui es1ão, amado Conse- o lha\,1 so111clcntc para a sociedade gue passava e comcn1ava: "É
lheiro, lance-os hoje, à meia-noite, da ponte do Elba, no lugar da mesmo rnrn1 m ulhe r divina, a esposa do Conselheiro 1 Tccr-
cruz, no rio, que lá não congelou , mas conserve o cacho junto a brandl"
seu coração fiel. Mais uma vez, renego todos os poderes de Satã
e alegro-me com a felicidade de Anselmo, compromeúdo com
Serpenlina, muito mais bonita e rica do que eu. Como uma esp o-
sa íntegra, quero amá-lo e honrá-lo, amado Conselhe iro!"
"Oh, Deus, Deus!", exclamou desesperado o sub-reitor Paul-
mann. "Ela está louca, está louc;tl" "Qual nada", interveio o Con-
selheiro. "Ikm sei que a senhorita Verônica cultivava uma
inclinação pelo insano, e é possível que, cm ccrt.a exaltação, te-

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Duodécima Vigtlia.

público; 11tinha Junção de arquivista não 111e permite ser exposto a tais
contrariedades. Ê até j;ossível que na Corte a5 pessoas se questionem .m-
bt·e a possibilidade de uma Salamandra compromet.eNe ro111 assuntos de
Estado, e em qtu medida se devem conji.m·-lhe negócios im/Jol'fmtles, já
Duodécima Vigília qu~, segundo Gabalis e Swedenborg/ não se pode confiar 11os espí1ilos
elem.entants. Por outro la.do, meus melhores amigos recusanlo mnt abra-
Notícia.V,çobre o solar ocupado por Anselmo como gent'o do m·quivista ço, temerosos de que eu., num súbito mouimenlo de exuberlincia, /Jossa
Li11dhorst e sob1·e sua vil/a com Serpentina - Conclusão lançar faíscas sobre seu penteado ou seu. Jraqtu; enfim, de qualquer
modo, digo-lh~ qne quero ser útil a V. Ex 11 na finalização de sua obra, já
q1te nela há muita coisa de positivo sobre mim e minha que1ida filha ca-
Compreendo, do fundo de minh'alma, a felicidade do estu- sada (no ve1"dad.e, queria ver-me livre também das outras duas). Sf' en-
dante Anselmo, q ue, estreitamente unido à .encantad.ora Serpen- tão quiser escrever a duodicima vigília, desça essas maMilas escadas,
tina, mudou-se para o misterioso e maravilhoso rc:_mo qu_e ele deixe o seu qumünho e venha até mim. Na sal.a azul das palmeiras, que
reconheceu como sua pátria e pela qual seu c~raçao, cl1c1~ de o senhor conhece, acltat·á o 111aterial necessário, e em poums palavras
pressentimentos estranhos, por tanto tempo ansta~. Mas foi_ c m poderá i·euelar ao l.eitor o que vil'; será m.rlhor do que a longa drsrrição
vão todo 0 esforço de lhe traduzir cm palavras, estunado leitor, de uma vida que o senhor s6 conhece por ouvir dizer.
todos os esplendores que rockiam Ansel 1~10. Constatei _corn re-
pugnância a debilidade de cada u m~ ele m1'.1l'.as exprcssoc~. Sen- Atenciosamente, seu dedicado
tia-me preso às pcqucnezas da vida cottd1ana. Acloec1 num Salamandra Lindhorsl
torturante mal-estar. Vaguei à toa como um sonhaclor. Em suma: arquivista rf'((/
recaí miqudc estado de J;mguidcz do estudante Ans~ln~o que lhe
descrevi, p1·c 7.aclo lciw1·, na quarta vigília. Eu bem res1sua ao reler
as onze vigílias, escritas com certo sucesso, e pensava que nun~a Este bilhete, com certeza um pouco rude, mas amável, do ar-
seria capaz de acrescentar a duodé.cima, como epílogo, po1· m~1~ quivista Lindhorst C."\usou-me muito boa impressão. Pilreceu-me
que me sentasse à noite para tcnmnar a ob.'-a. Era com se esp1n- certo que o estranho velho sabia muito bem da maneira singular
tos malignos (talvez parenles, quem sabe pnmos da brnxa morta) pela qual fui informado sobre o destino de seu genro, o qual tive
segurassem diante de mim um metal pohd?.e reluzen1c, no ~l~I de manter em segredo, mesmo de você, eslimado leitor. Mas ele
via meu Eu, p;ílido, maldormido e mclancohco, com~ o es~n~ao não levou isso a mal, como eu mesmo temia. Chegou inclusive a
IIeerbrand de pois da e111b1·iaguez do ponche. E.ntao dc1Xe1 a oferecer sua ajuda para que eu terminasse a minha obra, e daí
pena de lado e fui para a cama, para pelo menos sonhar com o pude concluir, com razão, que na verdade ele concordava que a
feliz Anselmo e a encantadora Scrpcntma. sua misteriosa existência no mundo dos cspfritos se tornasse co-
Isto durava vários dias e noites, quando afinal, e muito ines- n hecida publicamente. "Pode ser", pe11sei, "que com isso ele nu-
peradamente, recebi um bilhel'C do arquivista Lindho rst: t1-a a esperança de casar mais rapidamente suas duas filhas
restantes. Pois talvez uma centelha atinja o coração desse ou da-
So1tbe que V. Exª, descreveu em orize vigílias o estra11ho destino tú quele rapaz, inflamando seu desejo pela Se1pentc Verde e inci-
111 genro antes e.studanle.s, hoje o poeta A11sell1w, e agorn tortura-se
e1t tando-o a procurá-la e encon trá-la sob o sabugueiro no d ia da
t 1• 1 ·rivelme~te para t·elatar, em sua duodécima e última vigí~ia, algo de Ascensão. Com a desgraça ocorrida ao ser trancafiado na garrafa
s11n feliz. vüla em Alllmtid.a, pam onde eles~ mudou com 111111/ia. Ji_llla e de cristal, Anselmo aprendeu a se proteger ser iamente de qual-
0111/r mom. 11u.m belo solar, proptiedade minha. Confesso que nao me quer d úvida ou incredulidade."
t1gmda mnilo srta maneira de revel.at· minha venladeira natrtreza ao
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O VASO DE OURO Dnodicima Vigília

Às onze h oras etn ponto apaguei a luz de minha mesa e me do! Bem-amado! O Fogo é o êxtase, mas a esperança é a nossa
dirigi à casa do arquivisLa Lindhors:, <}ue já me esp~ra~a. no cor- fresca sombra! Acariciamos ternamente sua cabeça com nosso
redor. "O sr11hor chegou ... Honrad1ss11no! Bem, ap1cc1e1 qu~ te- murmúrio, você nos entende, pois o amor mora em seu cora-
nlrn rcconhcd<lo minhas boas intenções. Entrei" E com isso ção." Font.es e riachos chapinham e borbulham: "Bem-amado
(,'liio u 111c pdo jardim ele brilho ofuscante até a sala azul, na ~u.al ~ão ande tão depressa, contemple nosso cristal transparente. Su~
avistei~' escrivaninha lilás, onde Anselmo trabalhara. O arq111v1s- imagem habita em nós, e é cadnhosamente guardada, pois você
1a desapareceu por um instante, mas logo. voltou, tendo nas mãos nos entendeu!" No coro rejubilante, chilreiam passarinhos colori-
uma bela taça dourada, de onde c1·ep1tava uma chama. azul. dos: "Ouça-nos, ouça-nos, somos a alegria, a volúpia, o encanto
"Aqui", disse ele, "tr<tgo-lhe a bebida preferida de seu a1111go, o do amor!"
rcgenteJohanncs Kreislcr. É um licor de ervas tlambad.o, no <JUal Mas Anselmo, ansioso, olha para o maravilhoso 1emplo que
coloquei um pouco de açúcar. Prove um .rouco; vou tirar ? rou- se ergue ao longe. As colunas parecem árvores e os capitéis e fri-
pão e, enquanto o senhor escreve, gozarei de sua companhia, en- sos, folhas de acanto, que em grinaldas e figuras formam maravi-
trando e saindo da taça." "Como lhe aprouver, prezado senhor lhosos adornos. Anselmo caminha em direção ao templo e,
arquivista", respondi, "mas corno quero provar da bebida, º. s.e- U<rnsbordante de alegria, observa a sinfonia dos mármores os
nhor não... " "Não se p1·eocupe, meu caro", exclamou o arqu1v1s- magníficos degraus cobertos de musgos. "Ah, não!", exclama: no
ta, tirando rapidamente o roupão e, para o meu espanto, que excesso de seu arrebatamento, "ela não está longe!"
não foi pequeno, entrando na taç,• e dcsaparcce1~do nas ~ham~s. E eis que; radiante de bélcza e graça, Serpentina sai do tem-
Sem medo, e soprando as chamas de leve, provei da hcb1da. Era plo can-egando o Vaso de Ouro, de onde brota um esplêndido lí-
deliciosa! · rio. A inefável voli:ípia de um desejo infinito arde cm seus
Não se agitam, em doce murmurar, ~s esmeraldi~1:s folhas cn<;antadores olhos, e é assim que ela olha para Anselmo, dizcn-
das palmeiras, como se acariciadas pela bnsa da manhar Desper- ~o: "Ah, bem-amado! O lírio desabrochou. Tudo foi consumado.
tas do sono, elas se levantam e se movem e sussurram os nuste- Existe no mundo uma felicidade compa1·ávcl à nossa?" Auselmo
riosos prodígios anunciados à distância pelos mar;~vilhosos t?~1a-a nos braços com todo o ímpeto de seu ardente desejo e 0
acordes das harpas! O éter evapora-se das paredes e paira como hno expande-se em chamas que for mam uma auréola sobre sua
névoa perfumada... Raios ofuscantes irradiam-se atn1vés d~ ~ro­ cabeça .. No mesmo instante, árvores e arbustos palpitam; cada
ma, Lurbilhonam em uma alegria infantil até as alturas vcrt1gmo- vez mais claras e alegres canl:t'lm as fontes; os pássaros e toda sor-
sas e criam uma abóbada sobre as palmeiras ... Cada vez mais te de insetos colo1idos dançam em rodopios; no ar, nas águas, na
cintilantes, os raios se acumulam, alé que em meio ao resplen?or terra, repercute uma alegria exuberante e inaudita: é a celebra-
solar abre-se e revela-se o pequeno bosque, o paraíso, onde av1~to ção da festa do Amor! Relâmpagos ofuscantes chicoteiam imen-
Anselmo. Jacintos, tulipas e rosas erguem suas belas cabeças 111- sos jatos d'água; diamantes irrompem da terra como olhos
candesccntes e as vozes de seus perfumes chamam, cm doces me- reluzentes! Grandes cataratas brilham elas fontes; aromas si11briila-
lodias, o bcm-avent.urado estudante: "Caminhe, regozigc-se entt·e res sopram num vôo murmurante ... São os Espíritos elementares
nós, bem-a mado, você que nos enlende; nosso perfume é o dese- que prestam homenagem ao lírio e proclamam a felicidade de
jo do amor - amamos você e seremos suas para sempre!_ Dos Anselmo.
raios dourados emanam ardentes clamores: somos o fogo mfla- Este levanta a cabeça como que envolto por uma auréola de
mado pelo amor. O perfume exprime apenas o. des<'._jo, mas o fogo. São olhares·? São palavras? - É um cântico? Ouve-se com
fogo é puro ardor, e seu coraç.ã o é nossa moradia. Somos sc~s clareza: "Sc1-pentina! A fé e o amor em você revelaram-me a alma
para sempre!'' Os sombdos arb~st~s e~~remecem; as, gr~ndes ar- da natureza! Você me trouxe o lírio, que desabrochou do ouro,
vores nmrmuram como num frcnnto: Venha ate nos, abençoa- da força elementar da terra, antes mesmo que Phospltorus desse

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O VASO DE OURO

origem ao pensame nto; a flor mostrou-me a harmonia sagrada


de todos os seres, e n essa revelação vive rei para sempre, na NOTAS
maior felicidade. Sim, eu, bem-aventurado, pude conhecer o <1ue
há de 1m1is superior, e devo amá-la para sempre, minha Serpenti-
na! Os raios domados do lírio jamais se apagarão, pois a fé e o l. ~:r~e~~ª'i.:a::.:::r::.gi,ta, poema didáLico-filosófico da fudia anliga,
a11w1 são a ete rna revelação." 2. Início de uma canção estud 11 t'I
O que cu vira, Anselmo em carne e osso cm seu solar em 3 H ffi· . ª. 1 : (lat. ) 'S CJamos
0 mann refere-se ao escnto "Le
. assim felizes'.
· • . , corute d e C abahs . ou Entrcriens
Atll\n1 ida, sem dúvida cleveu-se às artes <la Salamandra. Jgual- 1
su1 es scicnces secretes" de 1670 de Ni 1 d M f:
mcttlc magnífico foi ter encontrado esta narrativa, muito bem tt·ata da relação e ntre os e~píritos el~menta~~s~s e .011 a11con , que
ano Lada e aparentemente por mim, no papel sobre a escrivani- Emanuel von Swcdcnborg (1688-1772) .
possuía d<ms tele>, t' . b • pesqu111ado1· sueco que
nha lilás, como que envolvida pela bmma. Mas foi então que me , 'l 1 a 1cos e ga ava-se de sua relaç.ão com 0 mundo
senti dilacerado por uma dor lancinante. "Ah, bem-aventurado dos espin os.
Anselmo, você repudiou o intolerável fardo da vida ordinária e,
graças a seu amor por Serpentina, partiu voando e agora vive de
alegria e volúpia em seu solar em Atlântida! Mas eu, eu sou um
pobre coitado! Breve, em poucos minutos, sairei desta bela sala,
que nem chega aos pés de um solar, e me 1·ecolhcrci à minha
mansarda e às pcquenezas de minha vida de miserias, que abso1·-
vern meu pe nsamento. Meu olhar será encoberto pelas muitas
desgraças como por uma névoa, de forma que nunca terei opor-
tunidade de contemplar o lírio."
Nesse momento, o arquivista Lindhorst bateu de leve e m
meu ombro e falou: "Calma, calma, digníssimo! Não se lamente
assim! O senhor mesmo não esteve em Atlântida agora há pouco,
e não tem, também Já, uma graciosa quinta, como moradia poéti-
ca de seu coração? Será a bem-aventurança de Anselmo outra
coisa senão a vida na poesia, que se revela harmoniosamente en-
tre todos os seres, como o mais profundo mistério da nature za?"

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