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Capítulo I (Segunda parte)
Como todas as palavras que designam uma idéia muito geral, a palavra Natureza
parece clara quando a empregamos mas, quando sobre ela refletimos, parece-nos
complexa e talvez mesmo obscura. Também os dicionários comuns, enciclopédias da
ciência comum, não se comprometem. Definem a Natureza deste modo: “O conjunto das
coisas que existem naturalmente” e se, para obter mais esclarecimen tos, procuramos uma
explicação no advérbio “naturalmente”, encontramos: “Naturalmente: pelas forças da
natureza, de modo natural.” (344)
Este jogo de conceitos, ou antes de palavras, que se refletem uma sobre a outra sem
alcançar a menor realidade, é aliás muito característico da jigajoga que sobre ela opera
mesmo aquilo a que eu chamava a ciência comum, quando lhe pedimos que precise este
termo de Natureza. O homem sente-se situado no meio de um conjunto de seres e de
coisas que não dependem dele e cuja “solidez”, coerência própria, constitui a primeira
experiência que ele daí tira. Procura-a ele dominar, definir? O nome, segundo a noção
mais velha que o homem faz dele, e que nos esclarece uma atitude psicológica que
pertence a todos os tempos, o nome constitui uma tomada de posse, um domínio
adquirido sobre o objeto. E a incerteza do dicionário mostra-nos que o homem não
considera esta posse permitida, esta dominação assegurada: natureza remete para
naturalmente, naturalmente, para natureza, e não é possível sair do círculo.
O pensamento só começa, pois, quando se tenta sair deste círculo. Mas aqui as coisas
complicam-se. É desta forma que o célebre dicionário de Littré não dá menos de 29
sentidos da palavra Natureza e muitos destes sentidos essenciais subdividem-se em várias
acepções. O primeiro sentido fixado é este: “Conjunto de todos os seres que compõem o
universo” e o universo é definido como o conjunto da terra, dos planetas e do sistema
cósmico. Quanto ao Vocabulaire technique et critique de Ia Philosophie, publicado por
A. Lalande, não dedica menos de 10 colunas, acompanhadas de numerosas observações,
ao esclarecimento desta palavra difícil. Aqui o sentido fixado em primeiro lugar situa-nos
imediatamente num outro terreno, o da reflexão: “Sentido A. Princípio considerado o
produtor do desenvolvimento de um ser e que realiza nele um certo tipo.” Só depois
encontramos o sentido a que os dicionários dão o primeiro lugar. “Sentido E. (`Ηετου
παντος φυσις, natura rerum) o conjunto das coisas que apresentam uma ordem, que
realizam tipos ou que se produzem segundo leis.”
Ora este esforço do pensamento para definir este termo que nos parece tão claro, não
é menos característico que este malogro das definições verbais que, dizíamos, se refletem
sobre elas mesmas. Desta forma, a partir do momento em que quer sair do círculo que a
rigidez das coisas começa por fechar em torno do nosso destino, o primeiro sentido que
encontramos (sentido 1 do Littré e sentido E do Vocabulaire de Lalande) é o de um
conjunto. Estas coisas no meio das quais nos agitamos podem muito bem impor-se-nos,
não nos assaltam ao acaso: formam um conjunto, isto é, uma ordem, “realizam tipos ou
produzem-se segundo leis”.
As definições que encontramos hoje nos nossos dicionários conti nuam a ser
conquistas laboriosamente obtidas no decurso da história por meio de um longo esforço
do pensamento. Não quero censurar o meu venerável dicionário Larousse, pois há que
dizer - talvez justamente porque não tenhamos ocasião de nos recordar disso - que, foram
necessários ao homem séculos de trabalho e de coragem intelectual para passar da
definição de natureza por naturalmente e de naturalmente por natureza, isto é, da
impressão de uma necessidade contra a qual somos impotentes, para a afirmação
audaciosa de que a natureza forma um conjunto, de que as próprias coisas se encontram
submetidas a uma lei. A conclusão surge de maneira menos imediata: bastar-nos-á
conhecer estas leis para nos situarmos a nós mesmos no nosso lugar neste conjunto,
para entrar nele e não nos deixarmos mais dominar por ele - e isso será uma primeira
conquista. Depois, dir-se-á um dia: se conhecermos as leis, podemos, pois, servir-nos
das coisas e tornar-nos ‘donos e senhores’ da natureza”, e isso será uma segunda fase.
A primeira fase foi atingida no século V antes de Cristo na Grécia de Platão e
Aristóteles. A multiplicidade das coisas ordena-se num conjunto, o Cosmos , e este
conjunto é regido por leis: Aristóteles opõe neste sentido a Natureza ( φυσις = físis ) ao
acaso ( αυτοματον . τυχη ). Notemos de passagem este sincronismo das duas noções de
Natureza ( φυσις = fisis) e de lei ( νομος = nómos): está carregado de sentido . Na
própria época em que aparece esta concepção nova da Natureza, a Grécia conce be-se a
ela mesma como uma terra de cidades organizadas que se opõe à anarquia bárbara ,
como a φυσις se opõe à τυχη (= tikê) da matéria sem forma ou, o que vai dar ao
mesmo, à fantasia telúrgica da mitologia popular. Em Eurípedes, Ion acolhe Medeia
com estas palavras: “A terra grega tornou-se a tua morada; aprendeste a justiça e
sabes viver segundo a lei, e não ao sabor da força.”
Os equívocos das filosofias deterministas obscureceram em nós este sentimento,
que devia ser muita vivo nos nossos longínquos antepassados das primeiras cidades,
do paralelismo das duas noções de lei e de liberdade . Quer se trate do imperativo como
a rigidez em que embate a nossa iniciativa. Os embates seriam igualmente trágicos se,
tal como esses longínquos antepassados, encontrássemos em nosso redor as impulsões
sem freio dos violentos, a astúcia eficaz dos dissimulados, as vontades imprevisíveis
dos deuses e dos espíritos, muitas vezes malignos. Podemos, pois. compreender a
segurança e a paz que Ion pode oferecer a Medeia no seio das cidades regulares; na
nossa época, o autor do Livro da Selva. grande andarilho de terras rudes em que feras e
pessoas ainda têm de se defender dos acasos (a τυχη = tikê) de cada dia soube
recuperar esta impressão: a aliança da lei e da segurança constitui, com efeito, o fundo
daquilo que podemos designar pela filosofia de Rudyard Kipling. Foi, e ao mesmo
tempo, a mesma libertação que o homem obteve da descoberta de uma φυσις (=físis),
de uma natureza legal que o protegia contra a τυχη ( = tikê) das coisas.
Da mesma forma, não tem de nos surpreender o fato de, na obra de Platão e
Aristóteles, o mecanismo das causas eficientes ser dado como a obra de uma finalidade.
Nesta harmonia mantida entre os dois termos, causa eficiente-finalidade, entram por certo
outros elementos menos seguros: não conseguiriam fazer esquecer a esperança
fundamental que lhe dá um sentido muito rico e constantemente útil - a ambivalência
afetiva da lei conhecida e da segurança, logo da liberdade que resulta deste
conhecimento. Veremos como, no século XVIII, os primeiros ataques a esta ambivalência
formam pagos com graves conflitos dos quais não saímos ainda.
A fase marcada por esta primeira conquista de uma natureza regida por leis ordenadas
para um fim dura, com efeito, mais de vinte séculos. O homem habitua-se a ocupar um
lugar num Cosmos finalmente regular, onde as forças da Natureza deixaram de ser deuses
caprichosos, cujas boas graças havia que captar, onde também elas se vergam a uma lei
que é, ademais, obra do Bem . No vértice da Natureza, está a Idéia de Bem, diz Platão, o
Ato Puro, diz Aristóteles. Não são um simples elemento do Cosmos, o Cosmos solicita-
os, não obstante, para encontrar a sua explicação: foi num capítulo da sua Física que
Aristóteles inseriu a sua prova de existência de Deus. Fixemos bem esta referência, pois
virá uma época em que os tratados de física, mesmo escritos por crentes, deixarão de
encontrar lugar para um capítulo onde falar de Deus: o que pressupõe que a Natureza
deixará de ter, para o homem, a mesma significação. A revelação cristã adaptar-se-á ao
quadro racional desta forma estabelecido. Obra de Deus, a Natureza dará o exemplo da
ordem; como tende para o seu fim, ensina igualmente o homem a virar-se para o seu
criador. Na sua viagem aos infernos, Dante explicará a natureza pela boca de Virgílio, que
cita Aristóteles; e, mesmo no Paraíso, Beatriz continuará as mesmas lições.
Tão notável e tão precioso se revelava o êxito por esta primeira conquista que não se
pensava poder ir mais além. No entanto, ela não se encontrava completa. Que liberdade
nos dava? A de encontrar, dizíamos, o nosso lugar na natureza, para nos integrar nela em
vez de nos deixarmos dominar. Ora, o cristianismo trazia uma idéia nova, de tal forma
ambiciosa que demorou muito tempo, não a formular-se, pois foi nítida desde o início,
mas a desenvolver as suas conseqüências no domínio distante da física. O homem, dizia o
cristianismo, não se situa na natureza como um elemento num conjunto; não tem o seu lugar
nela como as coisas têm o seu lugar; é transcendente em relação ao mundo físico; não
pertence à N a t u re z a mas à g r a ç a , que é s o b re n a t u r a l ; e, por conseguinte, se se quer
a todo o custo encontrar-lhe um lugar, existe apenas um, o primeiro com a condição ainda de
precisar de imediato que não nasceu da natureza e que é feito para nela permanecer.
A virgindade, essa afirma ção de uma vida espiritual possível fora desta ordem
“natural”, parece a todos um contra-senso. O amor exclusivo, no casamento, de dois
seres tendo cada um valor absoluto, parece, quanto muito, uma bela aposta, que é
possível realizar sem a procurar se os deuses são propícios, mas não toma nunca o
caráter de uma regra absoluta, nem sequer, afinal de contas, de um ideal que o legislador
ou o moralista tenham autoridade para propor. Da mesma forma, as relações entre os
humanos não são reguladas por uma lei própria ao homem, mas por condições gerais do
Cosmos. Hierarquizada nos seus elementos e nos seus corpos materiais, a Natureza
“produz” uma humanidade hierarquizada do mesmo modelo: o senhor é o fim do
escravo, como a forma é o fim da matéria, o que quer dizer que o escravo não possui
qualquer destino original. Nas relações de simpatia, de amizade e de amor, que são a lei
mais alta e o ideal propriamente dito - e conhecemos as belas páginas que os Antigos
escreveram sobre a amizade - a força soberana é o EROS , menos abnegação do que
expansão e fruição fora de si; muitos estudos recentes têm recordado como ia ser nova a
revelação cristã da “divina filantropia” (São Paulo), que chama os homens a uma
abnegação semelhante, a αγαπη (ágape).
Há uma idéia, também ela aceite por aquilo a que chamávamos a alma comum da
Antiguidade, que vem ilustrar esta metafísica e esta moral da Natureza: a do Ano
Grande. Regularmente, de 7000 em 7000 anos, dizem uns, de 36000 em 36000,
pretende Platão, o número fixa-se mais tarde em 28000 anos, os astros voltam a
ocupar as mesmas posições. Ora o homem está tão bem ligado à Natureza, que nessas
mesmas datas - separadas talvez pelos abra samentos periódicos em que os Estóicos
acreditam - a história humana volta também a passar pela mesma fase. Retorno eterno
dos astros, recomeço sem fim da História; ano sideral, ano de humanidade . Mas este
ponto preciso ofenderá a consciência. Se a história recomeça, reclama Santo
Agostinho, então a Encarnação e o drama do Calvário estarão submetidos aos mesmos
ciclos! E os autores cristãos não terão descanso enquanto não exorcizarem este
sortilégio de um destino antropo-cósmico . O mundo de um lado, o homem e a graça do
outro. Mas então é uma atitude nova que se impõe ao homem face à Natureza.
Pode conceber-se a partir daí o que poderia ser a revolução mecanicista. Para um
cristão, a Natureza não é eterna: Deus lançou-a no ser quando quis e suprimi-la-á no
último dia como se de um imenso cenário se tratasse. Não é o todo, mas uma coisa
entre as mãos de Deus. E o homem habituar-se-á a situar-se também já não na
Natureza, mas perante ela, a conceber o seu destino como independente da história do
mundo. Máquina entre as mãos de Deus, a Natureza, ousará ele um dia declarar, não é
em si mesma senão uma máquina, cujas alavancas também ele poderá manejar.
Mas, para chegar a esse ponto. será preciso confrontar esta nova idéia da Natureza
com a que vinha da Antiguidade, não apenas no plano metafísico e moral, mas até na
física. O sortilégio afetivo e racional do Cosmos inscrevia-se, com efeito, até na física
antiga. As próprias aparências (φαινομενα = fainômena) são impregnadas de intenção e
finalidade: hierarquizam por ordem de dignidade, como os homens, as virtudes e os
méritos; um corpo move-se para ocupar o lugar que lhe foi atribuído pela sabedoria
imanente do mundo, o seu “lugar natural”; cada um eles realiza uma essência, eterna e
possuidora da sua própria lei, e que, por isso, por uma homonímia cujo sentido
extremamente rico e sugestivo estudaremos, designamos por sua “ natureza”. Deixar de
ver nos fenômenos mais que as peças de uma máquina, nesta própria máquina uma coisa
desprovida de intenção e finalidade, equivalia a renunciar ao tipo de explicação que fora
até então o da ciência e, por conseguinte, sujeitar-se a encontrar outro. Problema de físico,
problema técnico que apenas podia amadurecer com o tempo...
Compreendemos, por outro lado, que esta nova física ia quebrar o elo que ligara num
todo as reflexões que o homem fazia sobre o mundo e as que fazia sobre ele mesmo. A
sua liberdade nova privava-o do guia que encontrara até então na Natureza. Mais que
isso, arriscava-se a privá-lo de Deus. Se, no século XVII, Bacon e Descartes ousam
tornar-se “donos e senhores da Natureza”, fazem-no procla mando que obtêm de Deus
este domínio e esta posse; Deus que, no último dia da criação, formou o homem para
administrar a terra. Mas, tornando-se usufrutuário da criação, o homem, desde o século
XVII com Hobbes, sente de imediato a tentação de se proclamar o seu único rei.
Natureza divina para o sábio antigo, Natureza criada, mal que canta a glória de Deus
para o Salmista e para Dante, a Natureza máquina que na obra dos primeiros
mecanicistas dá ainda testemunho da sabedoria do divino Relojoeiro, não vai tardar a
perder esta significação: dissemos que os nossos livros de física, mesmo os que são
escritos pelos sábios mais cristãos, já não encontram lugar para um capítulo dedicado à
existência de Deus. Assim, separando o seu destino da sina das coisas, o homem
colocava-se perante a alternativa que atormenta a consciência contemporânea: ou
encontrar uma outra via que não a física para se elevar a Deus e situar-se numa ordem:
ou então procurar nele mesmo o principio desta ordem, isto é, fazer-se Deus. Este
segundo termo não está, de resto, livre de hipoteca: o homem tem tão profundamente o
sentimento da sua dependência que procura sempre um senhor; se não o encontra em
Deus, fará paradoxalmente reviver o mito naturista das primeiras idades: a Natureza
volta a ser a sua senhora e a sua lei, mas então Natureza sem alma, Natureza-coisa,
mecanismo para triturar os homens e as almas, a que chamamos Determinismo, Axioma
eterna ou Materialismo histórico. “Natureza”. palavra carregada de história!
É verdade que sempre se lhe oferece a Natureza do artista. Falámos até aqui da
Natureza do físico ou da Natureza do moralista, ou até da do homem religioso? Creio ter
demonstrado que, por distintas que nos pareçam hoje, se encontram estreitamente ligadas
na história e, sem dúvida, também na afetividade profunda.
As primeiras cosmologias são, entre os povos, obras religiosas e dizíamos que a física
mecanicista deu origem a um materialismo metafísico que toma na nossa época e, podemos
dizê-lo, cada vez mais, uma forma religiosa e mística.
A Natureza do artista parece pensada livremente e, como deve ser, com uma certa fantasia.
Todavia, tem também a sua história e uma história ligada à dos outros aspectos da Natureza.
Parece que a arte dos primitivos era a princípio uma magia, logo uma espécie de animismo
simultaneamente propiciatório e operatório. Os estudiosos da pré-história puseram-se mais ou
menos de acordo para nos fazer ver, nas primeiras representações de amimais nas paredes das
cavernas, desenhos mágicos destinados a enfeitiçar o animal para tornar a sua captura mais
fácil ou mesmo possível. Aliás, é exatamente esta idéia que evocam espontaneamente tantos
desenhos de bisontes rodeados por mãos prênseis, por exemplo nas grutas de Marsoulas
(Alto-Gerona) ou de Castillo perto de Santander. (350) Desde estas longínquas épocas da pré-
história, a representação da mão recebe, aliás, um sentido simbólico e encontramos, até no
desenho, curiosas analogias entre estas mãos figuradas nas grutas, a famosa mão egípcia de
Fátima - que fornece ainda hoje o motivo de certos berloques - a mão de justiça dos reis e até
as mãos abençoadoras da iconografia cristã (351), como a mão de Deus que, no extraordinário
teto da capela Sistina, Miguel-Ângelo representou chamando o homem à vida. Sabemos que,
tanto para o primitivo como para a criança, a palavra e a coisa representada têm a realidade
da mesma coisa. Os primeiros desenhos não eram, portanto, representações estéticas, feitas
por um prazer desinteressado, mas atos, a realização e a possessão de uma presença. Antes de
se tornar o símbolo do poder, o braço ou a mão começaram por ser a realidade do poder, o
centro que difunde o mana, e as imagens que eram desenhadas tinham exatamente o mesmo
sentido. Em todas as civilizações antigas, é tal o risco de uma utilização mágica da imagem e,
logo, da sua veneração do objeto representado, que é ele o objeto do segundo mandamento do
Sinai. fixado no Corão: “Não farás imagens talhadas, nem nenhuma figura do que se encontra
no alto no céu, ou do que está em baixo na terra. ou do que está nas águas da terra.
Também as cores foram carregadas de poder mágico. O que a psicologia experimental e
a psicanálise nos disseram há pouco do papel simbólico das cores e da sua extrema
importância afetiva permite-nos verificar, de uma maneira bastante instrutiva, aquilo que já
sabíamos do emprego litúrgico das cores em todas as civilizações de outrora. Recordarei
apenas que as torres babilônicas, os Zigurates, que se elevavam até ao templo construído no
seu cimo, tinham tantos andares quantos os planetas conhecidos e cada andar estava pintado
da cor do planeta. Voltaremos a encontrar, quando falarmos da alquimia, esta cores
simbólicas atribuídas aos astros e aos elementos.
Qual não deve ter sido finalmente o pasmo do homem quando, pelas primeiras vezes, com
a mão e o pensamento, verificou que podia atuar profundamente sobre as coisas, já não
invocando-as mas fabricando-as! Quando começou a preparar as primeiras tintas, a fundir os
primeiros metais! Satisfação do artesão que conseguiu fazer um bom trabalho? Um pouco,
mas muito mais a emoção estética e religiosa do criador perante a sua obra. Atuar sobre as
coisas, numa época em que as coisas têm vida e consciência, é também crer possível a sua
ação sobre as consciências e sobre tudo o que existe. Não esqueçamos, com efeito, que os
dois sentidos da palavra arte, a arte contemplativa do pintor, do músico e do poeta, e a arte
prática do tintureiro ou do ferreiro, se distinguiram após séculos de coabitação ou, mais
exatamente, de fusão e de identidade. As primeiras combinações químicas dos corpos foram
obra dos alquimistas, que trabalhavam com a ajuda do “forno filosófico” onde ardia um fogo
que era o próprio princípio dos elementos e a grande obra era bem mais uma ação sobre as
almas - a Redenção, ousa dizer Paracelso - que um trabalho de artesão. Os corpos que
produzem não têm em nada o caráter dos produtos dos nossos modernos laboratórios: eles
não fabricam produtos industriais, mas prodígios e, as mais das vezes, amuletos que atuarão
sobre as almas. Há que recordar finalmente que, tal como os metais e os corpos fabricados,
também as palavras permaneceram, durante muito tempo. poderes sobre a Natureza e sobre
as consciências. De tal maneira que na Bíblia, se Deus traz a Adão, para que lhes ponha
nomes, os animais e a companheira formada da sua costela. é para que tenha poder sobre eles
- e sobre ela; só Deus dá nome ao Céu, à Terra, às águas, ao dia e à noite, porque só ele tem
poder sobre eles. A primeira poesia foi, por isso, uma ação (segundo o sentido primeiro da
palavra ποιητης), o termo poeta é um alótropo de profeta: até à Grécia de Ésquilo e de
Sófocles, o teatro mantém qualquer coisa do seu caráter sagrado: invocação de personagens
movidas muitas vezes pelos deuses, conjuração das forças secretas da Natureza e da
consciência.
Se agora nos lembramos de que a Natureza do físico e a do moralista - e dizíamos que elas
foram durante muito tempo confundidas ou conexas - tinham, a princípio, os traços de um
imenso ser vivo e de uma alma protetora, maternal, que respondia aos nossos rogos, vemos
que a Natureza do artesão e do artista (que são por sua vez uma única personagem) entra por
seu turno nesta representação comum. Também ela não é ainda olhada por si mesma, mas
permanece carregada dos rogos e dos desejos do homem. Uma paisagem, dir-se-ia no século
XIX, é um estado de alma. Mas foi em primeiro lugar a Natureza na sua inteireza, Natureza
do físico, do moralista e do artista, que foi pintada sob traços e que sempre serviu ao homem
para falar de si para consigo, pelo menos tanto quanto lhe serviu para se assenhorear dos
objetos. Fizemos um paralelo entre o que nos é dito pelos métodos `mais modernos da
psicologia e o valor simbólico conferido às cores entre todos os povos e em todas as épocas
da história. Jung insistiu já utilmente nestas relações. Mas igualmente característica, ainda
que, pelo menos tanto quanto eu saiba, quase não seja considerada, seria uma comparação
metódica entre os desenhos das crianças ainda introvertidas (totalmente metidas em si) que
hoje servem como testes de afetividade e as produções estéticas e ao mesmo tempo mágicas
ou religiosas das populações “inferiores”. Perante alguns desses sonhos de crianças
atormentadas. é impossível não reconhecer essas pirâmides, esses templos do sol, esses tótens
de forma humana ou animal que foram durante tanto tempo para a humanidade o único meio
pelo qual ela “representava as coisas que tinha diante dos olhos. “Representava”? Seríamos
tentados a dizer hoje: imaginava, pois que aprendemos a distinguir as formas que vemos das
que inventamos, mas esta distinção da Natureza e do sonho data exatamente de quando? A
criança não a faz; a humanidade levou séculos a conquistar o direito de ver a Natureza mais
ou menos tal como ela é e a aperceber-se de que ela nem sempre é aquilo que imaginamos.
Até aos nossos dias, a arte é a afirmação de que é legítimo sonhar a Natureza e de que este
sonho tem, talvez, mais verdades que a ciência. No século XVII, a física mecanicista
defronta-se com o protesto do bom La Fontaine: “Eles dizem que os animais são
máquinas.”
La Fontaine não podia deter o ímpeto da nova física, mas esta também não podia
continuar a desprezar a sua revolta: a ciência racionalista exibe-se na Encyclopédie na
própria época em que Rousseau dá o impulso ao que viria a ser o romantismo e.
precisamente, ao protesto da Natureza que não quer cessar de continuar a ser, para o
homem, “um estado de alma”. É aparentemente através de um reflexo semelhante que a
nossa época - que o racionalismo cientificista do século XIX pretendia privar para todo o
sempre de uma Natureza de imaginação e de sonho - reagiu por meio do irracionalismo
e da justificação do instinto, e um retorno aos mitos. Das origens aos nossos dias. a
Natureza do artista tem, pois, a sua sorte ligada à da Natureza do físico e do moralista.