Você está na página 1de 377

Ficha Técnica

Título original: A Vitória do Imperador


Autor: Domingos Amaral
Editora: Marta Ramires
Revisão: Ayala Monteiro
Capa: Maria Manuel Lacerda/Oficina do Livro, Lda.
Foto do autor: Bernardo Coelho
Imagem da capa: O Milagre de Ourique (1973), de Domingos Sequeira,
gentilmente cedida por Musée Louis-Philippe du Château d’Eu, Eu, França
ISBN: 9789897414626

CASA DAS LETRAS


uma marca da Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda.
uma empresa do grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© Domingos Amaral, 2016


Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
E-mail: info@casadasletras.leya.com
www.casadasletras.leya.com
www.leya.pt

Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.


Aos meus sobrinhos, José Maria e Teresa
LISTA DE PERSONAGENS

FAMÍLIA REAL PORTUCALENSE

Afonso Henriques – nascido em 1109, filho do conde Henrique e de Dona Teresa, neto de
Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Mantém uma relação amorosa com Elvira
Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de
quem terá dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal em 1143,
em Zamora.

Dona Teresa – filha de Afonso VI, casa com o conde Henrique, união que gerou três filhos:
Urraca Henriques, Sancha Henriques e Afonso Henriques. Depois de viúva, junta-se com Fernão
Peres de Trava, de quem tem duas filhas, Sancha e Teresa de Trava. Morre em 1130.

Conde Henrique – nascido na Borgonha, casa com Dona Teresa, de quem tem duas filhas e um
rapaz, Afonso Henriques. Morre em 1112, em Astorga, em circunstâncias estranhas.

FAMÍLIA MONIZ DE RIBADOURO

Ermígio Moniz – irmão mais velho de Egas Moniz, será o primeiro mordomo de Afonso
Henriques quando este se torna titular do Condado Portucalense. Morre em 1135. É ficcionada a
existência de uma sua filha bastarda, chamada Raimunda.

Egas Moniz – sucede a seu irmão como mordomo do Condado Portucalense. Casado em
primeiras núpcias com Dórdia Viegas, de quem tem três filhos, casará pela segunda vez com
Teresa de Celanova, uma nobre galega.

Lourenço Viegas – filho de Egas Moniz e Dórdia Viegas, grande amigo de Afonso Henriques,
casado com Maria Gomes, irmã de Chamoa Gomes. É o narrador da história.

Teresa de Celanova – nobre da Galiza, é a segunda esposa de Egas Moniz.

FAMÍLIA DO CONDADO DE TORONHO

Chamoa Gomes – filha de Gomes Nunes e Elvira Peres de Trava, irmã de Maria Gomes e viúva
de Paio Soares, de quem tem três filhos, terá um quarto filho do seu primo Mem Rodrigues de
Tougues, e terá ainda dois filhos de Afonso Henriques, Fernando e Pedro Afonso.

Gomes Nunes – nobre portucalense, casado com Elvira Peres de Trava. Pai de Chamoa Gomes e
de Maria Gomes.

Elvira Peres de Trava – irmã de Fernão Peres de Trava, casada com Gomes Nunes, mãe de
Chamoa e de Maria Gomes.

Maria Gomes – filha de Gomes Nunes e Elvira Peres de Trava, irmã de Chamoa, casada com
Lourenço Viegas.

Pêro Pais – filho mais velho de Paio Soares e de Chamoa Gomes.

OUTROS PORTUCALENSES

Gonçalo de Sousa – filho de Soeiro Mendes de Sousa e grande amigo de Afonso Henriques,
será nomeado alferes antes da batalha de Ourique.
Elvira Gualter – amante de Afonso Henriques, de quem terá duas filhas, Urraca e Teresa
Gualter.

Mem Ramires – almocreve.

Paio Guterres – alcaide de Leiria.

Peres Cativo – alferes das tropas portucalenses, é meio-irmão de Fernão Peres de Trava.

Paio Soares – primeiro marido de Chamoa Gomes, morre em 1129, depois da batalha de São
Mamede. Pai de Pêro Pais e de Ramiro.

Gonçalo Pais – conde das Astúrias, aliado dos portucalenses.

FAMÍLIA PERES DE TRAVA

Fernão Peres de Trava – nobre galego, amante de Dona Teresa, de quem terá duas filhas,
Sancha e Teresa. Inimigo de Afonso Henriques, é também tio de Chamoa Gomes.

Mem Rodrigues de Tougues – sobrinho de Fernão Peres de Trava e primo direito de Chamoa
Gomes, será pai de um filho desta.

RELIGIOSOS

João Peculiar – bispo do Porto, será depois nomeado arcebispo de Braga, tornando-se um dos
principais conselheiros de Afonso Henriques.
Bispo Bernardo – francês, bispo de Coimbra.

Teotónio – prior do Mosteiro de Santa Cruz.

Arcediago Telo – inspirador do Mosteiro de Santa Cruz.

Martinho de Soure – pároco de Soure.

Miguel Salomão – cónego moçárabe de Coimbra.

Cardeal Guido de Vico – legado do Papa Inocêncio II.

Antipapa Anacleto – Papa que provoca o cisma da Igreja Católica, lutando contra o Papa
legítimo, Inocêncio II.

Jean Raymond Bernard – mestre da Ordem do Templo em Portugal.

MONARCAS HISPÂNICOS

Afonso VII – imperador de Leão, Castela e da Galiza, primo direito de Afonso Henriques, filho
de Dona Urraca e de Raimundo da Borgonha.

Afonso VI – imperador de Leão, pai de Dona Urraca e Dona Teresa, avô de Afonso Henriques e
de Afonso VII. Morre em 1109.

Zaida de Sevilha – provavelmente filha do rei de Sevilha Al-Mutamid, casa com Afonso VI e
converte-se ao cristianismo. É ficcionada a existência de uma filha sua, Zulmira, e de duas
netas, as princesas Zaida e Fátima.

Afonso I de Aragão – rei de Aragão, morre em 1134.

MUÇULMANOS

Abu Zhakaria – governador de Santarém.

Ismar – emir de Córdova.


Ali Yusuf – califa de Marraquexe, morre em 1143.

Ibn Qasi – rei da taifa de Mértola.

Homar Atagor – primo de Ismar, governador de Granada.

PERSONAGENS FICTÍCIAS
Fátima – neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zaida – neta do último califa de Córdova, filha de Hixam de Hisn e de Zulmira.

Zulmira – neta do rei de Sevilha e filha de Zaida de Sevilha. Casou em primeiras núpcias com
Hixam de Hisn, de quem tem duas filhas, Fátima e Zaida. Casou em segundas núpcias com
Taxfin, governador de Córdova. Morre em 1129.

Sohba – irmã gémea de Hixam de Hisn, tia das princesas Fátima e Zaida.

Criada de Hisn – serviçal que vive no castelo da serra Morena.

Raimunda – filha bastarda de Ermígio Moniz e de uma moura.

Ramiro – filho bastardo de Paio Soares, meio-irmão de Pêro Pais.

Peida Gorda – templário de Soure.

Rato – templário de Soure.

Velho – templário de Soure.


I
A Profecia
da Normanda
1130 – 1131
Guimarães, novembro de 1130

O dia acabara de nascer e na lareira do quarto do Castelo de Guimarães


crepitavam ainda as brasas quando Chamoa Gomes acordou,
ligeiramente incomodada. Uma sensação de alarme interior agitou-a,
mas rapidamente a afastou. O corpo quente de Afonso Henriques
encontrava-se à sua esquerda, tudo estava bem. Emocionada, Chamoa
aninhou-se no seu amado, que ainda dormia. Haviam sido sete noites
fogosas desde que chegara do Mosteiro de Vairão, donde fugira a
cavalo, mas finalmente estavam juntos.
Amo-o tanto...
Fechou os olhos e tentou adormecer de novo. Não se ouvia vivalma
na torre de menagem, a não ser lá em baixo, nas cozinhas do castelo,
onde a padeira já cirandava junto ao forno. O cheiro do pão fresco
chegava-lhe às narinas, mas não lhe deu fome, pelo contrário. Enjoada,
Chamoa revirou-se na cama, tentando não acordar o príncipe de
Portugal, enquanto o olhava demoradamente. Tal como muitos outros
portucalenses, ele adotara os costumes de Bizâncio, apresentava uma
barba e um cabelo longos, que quase o faziam bonito, e ela suspirou.
O meu gigante...
Tinham sofrido tanto... As permanentes desavenças só há uma semana
se haviam extinguido. Chamoa deixara finalmente o mosteiro onde se
fechara mais de um ano, Afonso Henriques perdoara-lhe as falhas e o
reencontro dera-se em Guimarães, naquela cama onde celebraram por
fim a consumação de um amor sempre tórrido, mas tanto tempo
massacrado pelas determinações do orgulho e da política.
Só o perdão genuíno e a crença num futuro conjunto os podia unir.
Ainda angustiada com o estranho pressentimento de que o podia perder
de novo, abraçou-o mais, abraçou-o tanto que ele acordou,
estremunhado. O príncipe sorriu e ergueu o braço, passando-o sobre a
sua cabeça, pousando-o por fim nas suas costas. Chamoa entrelaçou as
suas pernas nas dele, entusiasmada. Queria-o sempre mais. Amavam-se
duas, três vezes por dia, para recuperar o tempo perdido.
Vinde para dentro de mim...
Em Guimarães, a minha mulher, Maria Gomes, irmã de Chamoa, fora a
única a desconfiar daquele fogoso arrebatamento. Logo no dia em que a
mana chegou do mosteiro, agradei-me por existir finalmente harmonia
entre aqueles dois, mas Maria comentou:
– Lourenço Viegas, com a Chamoa nunca se sabe! Deus e o Diabo
dançam-lhe na alma, de braço dado.
Encolhi os ombros ao mau agoiro e secretamente julguei que minha
mulher invejava a irmã, que sempre fora mais bonita. Desde a infância
que Chamoa sonhava ser princesa, ou mesmo rainha, e admiti que Maria
não lidava bem com a possibilidade de esse desejo finalmente se
concretizar. Era a única relutante, pois, tal como eu, também meu pai,
Egas Moniz, e meu tio, Ermígio Moniz, apostavam que aquela união,
depois de tanta desavença, seria agora sólida e inquebrável.
O nosso desejo comum, embora genuíno, não era inocente, nem
desalinhado com o interesse geral, pois aquele namoro era proveitoso
para os portucalenses. Chamoa era filha de Gomes Nunes, senhor de
Toronho, unindo-se à minha cunhada o príncipe de Portugal passava a
dominar as terras de Tui, permitindo que o Condado Portucalense
crescesse a norte do rio Minho.
Além disso, o facto de Chamoa ser uma Trava, pois era também filha
de Elvira Peres de Trava e sobrinha de Fernão Peres, poderia no futuro
possibilitar a paz entre Afonso Henriques e aquela poderosa família
galega. Casado com Chamoa, o príncipe uniria o Condado Portucalense
à Baixa Galiza, concretizando o velho sonho de seu pai, o conde
Henrique: um reino único, a norte e a sul do rio Minho.
Durante aqueles sete bonitos e solarengos dias de outono, em
Guimarães o ambiente geral era, pois, de alegria e esperança. O meu
melhor amigo e Chamoa permaneciam horas fechados no quarto e só se
juntavam a nós a meio do dia, num repasto à volta da mesa, apreciando
as apetitosas comidas que a bela Teresa de Celanova, segunda esposa de
meu pai, confecionava nas cozinhas do castelo.
Foram as viandas e as tigeladas de leite as primeiras culpadas dos
vómitos de Chamoa naquela manhã. A minha Maria foi de súbito
chamada ao quarto, pois a irmã começara a despejar o estômago, decerto
enfastiada com os excessos da véspera. Notei um minúsculo franzir de
testa na minha esposa, mas, contagiado pela boa disposição que reinava
naquela alcáçova há sete dias, não me preocupei, nem quando Maria
regressou do quarto do príncipe e ordenou a uma das criadas que fosse
depressa chamar o curandeiro.
Meu pai, sentado ao lado de Afonso Henriques, resmungou:
– A Teresa junta ovos a mais...
A visada protestou. Aquela bela e graciosa mulher, de cabelos negros
e tremendo bom senso, cuja perna era curta mas a mão dotada para os
repastos, logo alegou que todos tinham comido as suas iguarias e mais
ninguém se queixara. Decerto Chamoa estava ainda frágil devido à
apressada fuga do Mosteiro de Vairão, pagando o preço de tamanha
ousadia, perorou Teresa de Celanova.
Infelizmente, também ela estava equivocada. Algum tempo depois de
o curandeiro chegar, Maria veio à sala e pediu ao meu melhor amigo que
a acompanhasse. Nesse momento, pressenti que algo estava errado, pois
minha mulher apresentava-se demasiado pálida. Levantei-me também e
acerquei-me dela, enquanto Afonso Henriques caminhava na direção do
curandeiro.
– Está de esperanças... – murmurou a minha Maria.
Uma tonta euforia invadiu-me, o meu melhor amigo ia ser pai! Com o
desconhecimento que os homens sempre têm do misterioso
funcionamento das entranhas femininas, julguei que naqueles curtos sete
dias acontecera um milagre da gestação e Chamoa esperava um rebento
já concebido em Guimarães. No entanto, Maria Gomes esmagou as
minhas tolas expectativas e murmurou:
– Não é dele.
As minhas ideias baralharam-se, ao mesmo tempo que olhava para a
cara do meu melhor amigo, uns metros à minha frente, a falar com o
curandeiro, percebendo que também o príncipe estava confundido,
enquanto o indivíduo, esfregando as mãos, lhe dizia com um sorriso
cúmplice, certo de que falava com o autor da proeza:
– Já está prenhe há mais de dois meses!
Músculo a músculo, vi o rosto de Afonso Henriques desfigurar-se,
torcendo-se de tensão e incredulidade. Era como se uma fúria imensa,
uma colossal tempestade, se estivesse a gerar dentro dele. Eu conhecia
os seus célebres acessos de cólera, era capaz de partir os móveis de uma
sala aos pontapés e até de matar alguém.
Aterrado, decidi intervir, criticando o curandeiro:
– Que disparate dizeis?
Atrapalhado, o homem justificou-se: algures em setembro a rapariga
concebera, mas a sua saúde estava forte, seria uma gravidez certamente
bem-sucedida, como haviam sido as três anteriores. Vi Afonso
Henriques cerrar os olhos e virar-se de costas para o atarantado
curandeiro, que nada percebia. Ainda era duro para o meu amigo ouvir
falar nos três filhos que Chamoa tivera de Paio Soares e senti que a
qualquer momento se daria a sua explosão de raiva, por isso dei ordens
ao curandeiro para se afastar. Depois, calmamente, esperei. E a
tempestade veio.
De olhos semicerrados, com um esgar de sofrimento estampado no
rosto, possuído por um desvario próximo da loucura, como se me
olhasse sem me ver, Afonso Henriques rosnou:
– Como é isto possível? Com quem me traiu ela?
Chamoa estivera ano e meio no Mosteiro de Vairão, supostamente
reclusa. Com quem dormira?
– Traidora! – rugiu Afonso Henriques. – Chifrou-me, mais uma vez!
Intempestivo e precipitado, como sempre foi, o príncipe de Portugal
fora já minado pela doença da desconfiança e o seu intenso orgulho
começava a cegá-lo. Embora a rapariga não o tivesse traído, pois em
setembro eles ainda não estavam juntos, aquela desagradável descoberta
era sentida como uma profunda infidelidade e, sem perder tempo, o
furioso príncipe entrou no quarto aos gritos.
Chamoa encontrava-se sentada na cama, em cima das desordenadas
mantas, dos cobertores e das almocelas, ainda amarrotadas pela noite
quente do casal. Mesmo no meio de tanta agitação, espantei-me com a
inigualável beleza da minha cunhada. Com os seus ondulantes cabelos
cor de mel, o nariz pequeno e bem desenhado, os cristalinos olhos
verdes cercados por longas pestanas, as incontáveis sardas que lhe
cobriam o rosto e o nascer do peito, o busto frondoso que se adivinhava
debaixo da camisa de dormir, Chamoa estava esplendorosamente bela,
apesar do choro que já a consumia, agarrada a Maria.
Sou uma tola, sou uma tola!
Mas nem a sua visível aflição comoveu Afonso Henriques, que, numa
berraria ressentida, desatou a acusá-la.
– Como fui acreditar em vós? Mais uma vez, haveis-me traído!
A rapariga galega, as lágrimas a descerem-lhe pela cara, nem pensou
em negar as evidências e apenas implorou:
– Desculpai-me, Afonso, meu amor.
Ele interrompeu-a de pronto, vociferando:
– Não digais isso, víbora desvairada! Carregais uma criança de outro
homem no ventre! Haveis vindo a Guimarães para me enganar!
Desesperada, Chamoa gemeu:
– Meu amado, perdoai-me! Foi Mem Tougues quem me desviou! Foi
um erro, uma só vez!
Chamoa contou que o primo a visitara no Mosteiro de Vairão.
Haviam ido passear pelos campos e ela bebera muito vinho galego. A
meio da tarde, perdera o tino, aproveitando o primo para a possuir. Com
a voz entrecortada por soluços, a minha cunhada jurou que nunca
desejara um filho do Tougues, aquela era uma terrível desgraça.
– Meu príncipe, sois vós quem eu quero! Perdoai, por favor, esta
minha grave falha!
Com outro homem, talvez a beleza dela, o convulsivo choro ou os
seus dilacerados apelos tivessem surtido efeito, mas Afonso Henriques
era demasiado abrasivo para se conter.
– Jamais vos perdoarei! Ide-vos embora, não vos quero em
Guimarães! Ide para Tui, parir junto a quem vos emprenhou!
Em passada larga, avançou para a porta do quarto, mas Chamoa, que
era uma rapariga orgulhosa e lutadora, embora muitas vezes também
uma infantil tola, indignou-se, levantando-se da cama aos gritos:
– Quem sois vós para me tratardes assim, como se fosse um monstro?
Não vos lembrais do que haveis feito a meu marido?
Em São Mamede, na batalha...
Ao escutar a acusação que ela lançava, que sabíamos verdadeira, o
príncipe parou, de costas voltadas para Chamoa. Maria e eu
mantínhamo-nos em silêncio, sem saber o que dizer. Sentindo que talvez
o tivesse amansado, a minha cunhada insistiu:
– Perdoai-me, Afonso. Como vos perdoei terdes morto meu marido,
Paio Soares. Por isso, vim ter convosco. Se quiserdes, desfaço-me desta
criança que cresce no meu ventre! Faço-o por vós, meu amado!
Um arrepio gelado percorreu-me a espinha. Havia quem anulasse os
filhos ainda por nascer, mas a ideia horrorizava-me e o meu melhor
amigo também não a aprovou, pois declarou, sem sequer encarar
Chamoa.
– Jamais aceitaria o sacrifício de uma criança para ter o vosso amor,
mulher desmiolada. Ide-vos embora e depressa!
Nessa tarde, uma chorosa Chamoa abandonou Guimarães na
companhia de sua irmã e eu fui com elas levá-la a Tui, onde viviam os
pais de ambas e os três pequenos filhos da minha cunhada. Aquele
vibrante e intenso amor durara apenas uma curta semana e agora o
relacionamento entre o príncipe e Chamoa regressava ao estado de
trepidação e desequilíbrio que sempre o caracterizara.
Desiludido e magoado, o meu grande amigo Afonso Henriques
recomeçou a dizer que desprezava as mulheres, o que levou a mulher de
meu pai, Teresa de Celanova, a resmungar certo dia:
– Por causa de uma, pagamos todas!
Guimarães, dezembro de 1130

Quando eu e Maria regressámos de Tui, onde havíamos deixado


Chamoa, o príncipe de Portugal permanecia macambúzio. Fechava-se
longas horas no quarto sem falar com ninguém e dava lentos e solitários
passeios de roda da alcáçova, olhando o horizonte com desalento, como
se a sua salvação estivesse numa qualquer nuvem, que, porém, se
afastava no céu, levada pelo vento da injustiça.
Teresa de Celanova bem o tentava animar com os seus repastos.
Mandava vir marisco do Porto ou pescado de Vila do Conde, assava
carnes sumptuosas, caçadas nas serranias do Marão, mas nada minorava
as dores amargas de Afonso Henriques, nem sequer a presença do
folgazão Gonçalo de Sousa, nosso habitual companheiro de patuscadas.
Quando o entristecido príncipe se dignava a falar, o alvo dos seus
desanimados queixumes eram as mulheres. Naquela tarde, enquanto
trinchávamos um saboroso javali à roda da mesa, saiu-se com esta:
– Também minha mãe me desprezou. Mesmo no dia da sua morte,
recusou dar-me a mão!
Passada essa funda revolta com a maternidade desleixada de Dona
Teresa, virou-se contra Deus, que supostamente lhe amaldiçoava os
enamoramentos. A somar às peripécias com Chamoa, a minha prima
Raimunda, que fora o seu primeiro amor, atirara-se de uma ponte, mas
ele nunca se considerara culpado do desgosto da rapariga. Para o meu
melhor amigo, mulher que o amasse uma vez tinha de o fazer a vida
toda, mesmo que não fosse amada de volta.
– E agora a desmiolada da Chamoa faz-me isto! Emprenha do primo
quando finalmente se podia entregar a mim?
A sua voz enrouqueceu e a raiva foi mitigada por uma névoa de
desilusão, que tentou afastar com mais uma proclamação excessiva.
– Não tenho sorte com as mulheres!
Eu não o contestei, pois sabia que os seus desabafos magoados eram o
fruto incómodo de uma aguda dor de corno, que aos vinte e um anos se
sobrepunha naturalmente à fina lucidez, mas Teresa de Celanova rebateu
estes desanimados argumentos, apresentando uma razão religiosa.
– Tendes de saber perdoar, príncipe, assim nos ensina Deus.
O seu pedido caiu em saco roto, pois o meu amigo recusou cumprir as
leis terrenas da Providência e persistiu na sua teimosia acintosa.
– Jamais ficarei com mulher usada por outro! – declarou,
acrescentando um novo lamento. – As mulheres só me causam
sofrimento.
Cansado com a permanente repetição desta ladainha, o meu tio
Ermígio Moniz tomou coragem para lhe recordar que, antes dele, muitos
homens tinham passado por idênticos sofrimentos.
– Olhai o meu caso, todas as mulheres que amei me morreram –
recordou em voz solene.
Tal como meu pai, meu tio era um homem de média estatura, com os
cabelos já acinzentados. Com mais de quarenta anos, nos seus olhos
escuros e baços notava-se a desilusão dos tristes, embora o seu sorriso
pacífico revelasse uma aceitação serena das agruras com que a vida o
brindara. A sua esposa acompanhara-o apenas dois anos e só a Virgem
Maria sabia o quanto chorara a sua prematura morte.
Vi, pelo canto do olho, meu pai confirmar com um aceno de cabeça.
Os irmãos Moniz não só eram fisicamente parecidos, como partilhavam
uma solidariedade pesarosa, pois a prematura viuvez de ambos era
resultado de doenças inesperadas das respetivas mulheres.
– Fiquei louco de tristeza – confessou meu tio. – Pensei em morrer
também, para me juntar a ela no Céu.
Associei aquele pensamento lúgubre à partida súbita e fatal de sua
filha Raimunda. Talvez esta tivesse herdado do pai uma propensão pelos
abismos negros, acrescentando-lhe a trágica vontade para executar um
ato tão extremo que meu tio nunca tivera.
– Só me curei com uma longa viagem. Andei três anos pelo mundo,
como um sonâmbulo pela noite – contou ele.
No mesmo ano em que o conde Henrique morrera, tinha Afonso
Henriques três anos e eu quatro, Ermígio Moniz partira para um
demorado passeio que o levara primeiro por terras de Hispânia e depois
pelos mares mediterrâneos.
– A vossa prima foi o fruto dessa peregrinação. Trouxe-a no regresso
e tentei educá-la, mas também ela se entregou a Deus.
Mirou Afonso Henriques e no seu olhar não existia nenhuma
recriminação ou indício de atribuição de culpa, pois não considerava o
príncipe responsável pelo suicídio de Raimunda. Com um suspiro
compreensivo, interrogou-se:
– Quem somos nós para entender o mistério da vida e da morte?
Porque se matou Raimunda? Porque não foi bem-amada por mim, seu
pai? Talvez... Nunca soube como falar com ela.
Meu tio sempre tratara a filha com alguma distância, mas isso era
habitual com os bastardos e as bastardas. Agora que ela já não estava
entre nós, admitia a possibilidade de lhe ter falhado com algo,
carregando a tormenta póstuma de um progenitor alheado.
– Não me lembro de a ter abraçado uma única vez – depois, olhando
de novo para o príncipe, murmurou: – Como vedes, não sois o único a
sofrer com as mulheres.
De repente, Afonso Henriques ergueu a sobrancelha, pois nascera nele
um laivo de curiosidade.
– Como morreu a mãe dela?
Meu tio Ermígio torceu o rosto num esgar, como se lhe causasse dor
ter de revisitar tempos antigos. Mas respondeu:
– Ao dar à luz.
Tanta parcimónia descritiva não satisfez Afonso Henriques, que quis
saber quem era ela e onde meu tio a conhecera. O príncipe parecia pela
primeira vez interessado numa história exterior a si mesmo e Ermígio
Moniz lá acabou por narrar o nascimento de minha prima. Partido de
Lamego, meu tio rumara a Compostela, visitara Leão, Sahagún e
Toledo. Depois, descera a terras muçulmanas, a Oreja, Jaen, Sevilha,
Córdova e Mérida, e por lá conhecera uma rapariga tímida, mas muito
carinhosa, a quem se afeiçoara.
Dominado pelos imperativos masculinos, curou com ela uma parcela
do seu anterior desgosto e, embalado por aquele doce interregno de
ternuras, não pensara em partir até ao dia em que fora surpreendido pelo
inesperado desaparecimento da moça.
Permanecera semanas no local, sempre à espera de que a jovem
reaparecesse, mas, como isso não aconteceu, foi forçado a recomeçar a
sua viagem. Conhecida a Andaluzia árabe, subira a Saragoça e a
Barcelona, onde apanhara um barco até Roma. Mais de um ano depois,
quando se sentiu em paz e aceitou finalmente o seu destino inglório de
viúvo, decidiu regressar e, como sempre acontece com os homens tristes
que se apegam a uma mulher, voltou à cidade onde se sentira bem.
Contudo, o destino presenteou-o com novo desgosto, quando encontrou
na casa onde estivera apenas uma velha criada, com uma criança nos
braços, órfã da mãe que a gerara.
– Foi um segundo e cruel sofrimento.
Como a idosa ameaçava entregar a menina, meu tio tomou posse da
bastarda e regressou ao Condado Portucalense.
– Tentei tudo para que Raimunda fosse feliz, a viver convosco, seus
primos – disse Ermígio Moniz, olhando para mim.
Ainda curioso, o príncipe perguntou:
– Como se chamava a mãe dela?
A falecida respondia pelo nome de Aqsa e logo Afonso Henriques
quis saber se era moura, o que meu tio confirmou. Antes do
desaparecimento, haviam combinado que ela se converteria ao
cristianismo, se ficassem juntos, coisa que nunca aconteceu.
Ao ouvir isto, o príncipe de Portugal afirmou, num timbre solene que
sempre usava quando falava do seu famoso avô:
– O imperador Afonso VI também casou com uma moura chamada
Zaida de Sevilha! Talvez devesse fazer como ele e desposar uma das
princesas andaluzas que continuam presas em Coimbra!
Zaida e Fátima, duas excêntricas raparigas que nos fascinavam, eram
netas do último califa de Córdova e estavam há catorze anos prisioneiras
em Coimbra.
– Se eu casasse com uma delas, os nossos territórios seriam muito
mais vastos! – exclamou Afonso Henriques.
À volta da mesa, ninguém o apoiou. Tal como, quatro décadas antes,
o casamento do imperador Afonso VI com a princesa Zaida de Sevilha
fora considerado uma inaceitável blasfémia, também qualquer futuro
enlace entre o príncipe de Portugal e uma princesa de Córdova era visto
com forte suspeita e julgado uma quimera inviável.
– Só se fosse com a Fátima, a Zaida está cativada!
A súbita indignação de Gonçalo de Sousa não me surpreendeu: ele há
muito que se dizia enamorado da mais nova das princesas mouras, com
quem queria casar. Alto mas feio, com um nariz demasiado largo, um
queixo volumoso e umas sobrancelhas peludas, Gonçalo combatia a sua
desvantagem física com uma impetuosidade atrevida e um humor
brejeiro. Sempre que chegava ao pé de algum de nós, perguntava, então,
tudo espeta?, o que provocava risos imediatos. Além disso, apanhava
agora o cabelo escuro num rabo-de-cavalo, o que lhe dava um toque de
rebeldia e um ar desafiador que seduzia muitas mulheres, apesar de ele
dar sempre a primazia à princesa Zaida, que jurava nunca esquecer.
– Serei o seu primeiro homem! – exclamou, orgulhoso.
Um pouco mais nova do que nós, Zaida ainda era virgem e Gonçalo
vangloriava-se da promessa que ela lhe dedicara de ele ser o seu
desflorador, desde que a levasse de volta à sua Córdova natal.
– Com a Fátima não me posso casar... – afirmou o príncipe, irritado.
Recordei-me do feitio quezilento da irmã mais velha de Zaida, sempre
agreste e combativa, que proclamava odiar cristãos.
– Essa cortava-vos a gaita! – avisou Gonçalo.
Este comentário jocoso provocou uma bem-vinda gargalhada geral,
mas também a desaprovação de Teresa de Celanova e um aviso sobre a
inadmissibilidade de tal palavreado. Perante a reprimenda, aquele
rezingão justificou-se depois de beber mais um gole do saboroso vinho
da Galiza que a esposa de meu pai nos servira:
– Bela Teresa de Celanova, desculpai-me, mas estou farto de tanto
desgosto! Falemos de festas! Como será o Natal por cá? Tenho
soldadeiras novas com quem me rebolar? Ou preciso de marchar a
Coimbra, para convencer a Zaida?
Aquelas constantes referências às princesas fizeram-me também
recordar a sagrada relíquia da Terra Santa que os templários de Soure
procuravam há vários anos.
– Há novidades do Ramiro? – perguntei.
Afonso Henriques abanou a cabeça. Ramiro, o filho bastardo de Paio
Soares que se alistara na Ordem do Templo de Salomão, fora encarregue
pelo príncipe de descobrir o paradeiro do valioso tesouro de Jerusalém,
mas não obtivera quaisquer resultados na sua secreta missão. Além
disso, Ramiro fora também incapaz de encontrar a misteriosa Sohba,
desaparecida tempos antes. Tia das princesas Zaida e Fátima e filha do
último califa de Córdova, Sohba era a mais velha representante da
família Benu Ummeya, antiga detentora do trono daquela cidade
islâmica. Por obscuras razões que ainda desconhecíamos, a velha mulher
de negro era a única a conhecer o esconderijo da relíquia sagrada, mas
evaporara-se num golpe mágico.
– A velha bruxa esticou o pernil! – sugeriu Gonçalo de Sousa.
Não concordei e declarei que devíamos procurá-la depressa, pois
também Fernão Peres de Trava desejava encontrar a relíquia, para a
oferecer a Afonso VII, o que representava um perigo para o nosso
príncipe e para o Condado Portucalense.
– Sohba é a chave do mistério da relíquia – proclamei, preocupado.
Nesse momento, meu tio Ermígio franziu a testa e perguntou-me:
– Tendes a certeza de que é uma bruxa?
Pouco sabíamos sobre aquela duvidosa personagem, mas Afonso
Henriques mostrou-se desinteressado dessas distantes questões e
recuperou a habitual lengalenga do seu azar com as mulheres.
Foi Gonçalo quem o interrompeu, relembrando:
– Podeis sempre ir espetar a normanda! Se aquelas fabulosas tetas
fossem minhas, espumava-me em Lanhoso todas as santas noites!
Ouviram-se mais risos e novo protesto de Teresa de Celanova, e só
meu tio Ermígio permaneceu absorto nos seus tristes pensamentos,
enquanto o príncipe afirmava que iria a Lanhoso afogar as mágoas no
regaço da sua amiga Elvira, descendente de normandos!
Sempre teatral, Gonçalo ergueu os braços ao alto e declarou:
– Aleluia, ressuscitou!
Lanhoso, dezembro de 1130

Os preceitos religiosos proibiam as folganças durante o Advento,


mesmo entre os que se haviam casado numa igreja, como era o meu
caso. Mas é sabido que, apesar de muitos cristãos tentarem cumprir as
inúmeras leis de Cristo, essa é uma das que menos conseguem.
Perdida Chamoa, o príncipe de Portugal deduziu que um regresso aos
braços calorosos e fortes de Elvira era a única forma de se levantar do
chão de tristeza onde tombara e mandou às malvas os princípios em que
fora educado. Dias antes do Natal, apareceu em Lanhoso a cavalo,
apenas escoltado por dois fiéis soldados.
Elvira Gualter, a descendente dos vikings que ele havia conhecido em
Viseu, ao vê-lo atravessar a porta da alcáçova de um dos mais íngremes
e inexpugnáveis castelos portucalenses, abriu um largo sorriso e
interrogou-o:
– Vindes visitar vossas irmãs?
As filhas de Dona Teresa e de Fernão Peres de Trava, chamadas
Sancha e Teresa, eram pequeninas e viviam em Lanhoso desde que
Dona Teresa morrera, na companhia de Elvira, que fora encarregue pela
falecida regente de tomar conta delas.
A normanda, loira e alta e com um corpo imponente, não era muito
bonita de cara, mas aqueles cabelos dourados e sobretudo as suas formas
polpudas, sempre haviam atraído fortemente Afonso Henriques. Mesmo
sabendo que ele apenas a desejava, Elvira aceitava-o com alegria, pois
era desprovida de qualquer sentimento de posse.
De baixo nascimento, o pai era pescador de trutas nos rios, a
normanda não ambicionava mais do que uma existência tranquila e sabia
perfeitamente que o príncipe jamais casaria com ela. Essa aceitação
serena da sua condição secundária permitia-lhe, sem qualquer
sobressalto ou ciúme, dividir os afetos dele com outras mulheres,
nomeadamente Chamoa.
Conhecedora da forte paixão de Afonso Henriques pela galega, Elvira
sempre o aconselhara a tratá-la melhor e criticou-o por a ter expulso com
desdém de Guimarães, mesmo estando ela prenhe de outro.
– Que descaramento! – indignou-se o príncipe. – Venho ter convosco
a Lanhoso e dizeis-me que perdoe a Chamoa?
Com a bonomia que existia no seu coração, Elvira limitou-se a sorrir.
Aquela humilde e dedicada mulher adorava-o e repetiu-o mais uma vez,
mas nunca se iludia sobre a sua insignificância nos destinos conturbados
do Condado Portucalense.
– Não tendes ciúme de outra mulher? – perguntou Afonso Henriques,
confundido com o despreendimento da moça.
Mais uma vez, Elvira sorriu com suavidade e respondeu:
– A outra sou eu – depois, acrescentou, dando-lhe a mão com ternura:
– Vinde ver vossas irmãs, estão muito crescidas.
Entraram enlaçados na torre de menagem de Lanhoso e, quando
chegaram à sala, o príncipe viu as suas duas pequenas irmãs sentadas no
chão, a brincarem com bonecas de trapos. Elvira mandou-as levantar e
elas vieram beijar a mão do irmão, educadas mas tímidas, agarrando-se
logo às pernas da sua guardiã. Por momentos, a má vontade que o
príncipe nutria para com Peres de Trava, pai das meninas, bem como a
querela nunca sarada com a sua defunta mãe, pareceu impedir Afonso
Henriques de mostrar ternura.
Elvira, vendo-o assim rígido, murmurou:
– Príncipe, amar é dar e receber. Quem não dá...
O meu amigo venceu finalmente a relutância e perguntou-lhes o nome
das bonecas e pouco tempo depois já as sentara nos seus joelhos.
Quando a noite chegou, Elvira foi deitar as pequenas, regressando
depois para junto do seu amado.
– Elas perguntam pela minha mãe? – questionou o meu amigo.
Elvira suspirou, com pena das meninas.
– No último ano, antes de falecer, Dona Teresa só cá veio uma vez.
O príncipe conhecia os hábitos desleixados de sua mãe, que nunca
ligara muito aos filhos, e adiantou:
– Será a vós que vão amar.
Elvira mostrou-se ligeiramente preocupada e desviou o olhar.
– O pai delas esteve cá há duas semanas...
Afonso Henriques enervou-se: Fernão Peres de Trava tinha-lhe
prometido uma guerra e agora tivera o descaramento de entrar à socapa
no Condado Portucalense, dirigindo-se até Lanhoso?
– São filhas dele, tem direitos – recordou Elvira.
Esta afirmação ainda irritou mais o príncipe, que logo perguntou:
– Estais do lado dele?
A normanda fingiu não o ter ouvido e prosseguiu:
– Deixei-o entrar e falar com elas, mas não levá-las, pois não eram
essas as ordens que tinha.
Depois, preocupada, acrescentou:
– A Sanchinha tem medo do pai, assustou-se quando ele disse que
iriam para Tui. E a Teresa escondeu-se atrás de mim... Pobrezinhas.
Sem olhar para o príncipe, prosseguiu:
– O Trava queria que eu fosse também. Diz que sei lidar com elas –
inspirou fundo e o seu peito cheio cresceu, mas lamentou-se: –
Homens...
Franzindo a testa, Afonso Henriques quis saber o que desejara o
Trava e Elvira revelou que o galego lhe prometera casa e honrarias.
– Bem sei o que queria – rematou, com um leve sorriso.
Um breve arremesso de fúria apoderou-se do meu melhor amigo, que
desatou a barafustar contra o descaramento do Trava.
– Haveis-vos dado a ele? – insistiu, desconfiado.
Desta vez, o orgulho fez Elvira empertigar as costas quando
proclamou que os homens eram uns tontos. O Trava, por pensar que ela
cedia com facilidade aos seus cantos de sedução; e o príncipe, por
admitir que ela o trairia com tanta pressa.
Esta convicta declaração teve o condão de amansar Afonso
Henriques, que esqueceu por momentos o ciúme e se revoltou contra o
desejo paternal do seu inimigo.
– Não o deixarei raptar minhas irmãs!
Desagradado, anunciou uma imediata decisão: Sancha e Teresa iriam
para Guimarães e viveriam na sua corte! Elvira manteve-se calada,
esperando instruções quanto ao seu destino individual, mas Afonso
Henriques parecia ter-se esquecido dela e já planeava o futuro.
Uma ideia começara a germinar no seu espírito, iria construir um
novo castelo, para mostrar aos galegos e aos leoneses que as suas
pretensões eram intensas. Edificando uma fortificação em Celmes, o
local escolhido, garantia que seu primo Afonso VII não avançaria sobre
aqueles disputados domínios.
– Será Gonçalo de Sousa o alcaide desse novo castelo portucalense!
Ao escutar tal nome, Elvira murmurou:
– Vejo que continuais ciumento...
Anos antes, Gonçalo de Sousa tentara seduzi-la, como fazia com
todas as mulheres que conhecia, mas ela não lhe dera troco. Porém,
Afonso Henriques tinha receio de que aquele divertido amigo lhe
pudesse ganhar ascendente nos afetos da normanda. Ao nomeá-lo para
Celmes, afastava essa ameaça.
– Veremos se o Trava me ataca! – exclamou o príncipe.
A normanda de formas voluptuosas riu-se e picou-o:
– A mim é que ele me atacou...
Aborrecido, Afonso Henriques interrogou-a com ligeira aspereza:
– Haveis tido vontade de vos dar ao Trava?
Então, Elvira levantou-se do banco e aproximou-se dele, ficando de
pé à sua frente, alta e poderosa.
– Sois o meu único amigo, meu príncipe. Além disso, estamos no
Advento. Para os cristãos, não é tempo dessas coisas.
Afonso Henriques levantou-se também e pela primeira vez nasceu-lhe
um sorriso no rosto. Eram quase os dois da mesma altura, dois
imponentes exemplares da espécie humana.
– Sois normanda, os vossos deuses são menos austeros.
Elvira Gualter ficou de repente muito séria.
– Tive um sonho.
Vira o príncipe de Portugal montado num cavalo alado, negro como
breu. As estrelas dançavam à volta dele, mil inimigos cercavam-no, mas
do céu caiu um raio que tocou na lança do filho do conde Henrique, que
com ela venceria uma tremenda batalha. Os cães do mal tombariam à
frente dele, as flechas de fogo apagar-se-iam aos seus pés, as mulheres
cavaleiras encontrariam nele a agonia e os corvos iriam dançar sobre
cadáveres malditos, anunciando um novo reino!
Elvira parecia em transe, os seus olhos estavam vidrados, o seu rosto
tenso, e terminou a declaração com um murmúrio:
– Os meus deuses do Norte tudo sabem!
O príncipe, fascinado com aquelas palavras místicas, só no final da
fantástica descrição é que perguntou:
– Normanda Elvira, serei rei de Portugal?
A rapariga riu-se, desfazendo a rigidez que lhe assolara a cara.
Aproximou-se dele e em movimentos rápidos deixou cair a camisa, a
saia e as roupas interiores, revelando a sua nudez. Afonso Henriques
admirou aquele corpo monumental, mas não avançou de pronto, o que a
levou a afirmar:
– Sois o meu rei...
Dando um passo em frente, Elvira pegou na mão direita dele e
colocou-a sobre o seu seio volumoso, enquanto exigia:
– Tomai-me e comei-me.
Apesar do perfume de heresia, o convite dela teve o condão de
espevitar o príncipe, que, inebriado de desejo, a possuiu ali mesmo.
Depois, levou-a para o quarto e tomou-a várias vezes naquela noite.
Quando a madrugada começou a nascer, Elvira avisou que, se
continuassem naquilo, iria gerar filhos, tendo o príncipe retorquido sem
pestanejar:
– Cá estarei para ser pai deles.
Coimbra, Páscoa de 1131

Naquele novo ano, apesar de já saciado por Elvira, Afonso Henriques


estava ainda desgostoso com Chamoa e por isso decidiu rumar ao sul e
passar a Páscoa em Coimbra, levando a sua pequena corte com ele. O
príncipe admirava cada vez mais aquela povoação, a sua dimensão, o
seu comércio, a sua agitação urbana e a forma como os habitantes,
independentes e orgulhosos da sua autonomia, governavam a cidade em
conjunto. Havia em Coimbra um intenso respeito pelos muitos
moçárabes que ali viviam, mas também por muçulmanos e judeus,
apesar de estes serem poucos.
Coimbra era a maior cidade do Condado e também a mais populosa
acima do Tejo. Nem em Santarém, nem em Lisboa, havia tanto povo a
viver. Para mais, desde que era regente do Condado, logo após a batalha
de São Mamede, o príncipe revelara os seus dotes de habilidoso
governante e a situação geral dos habitantes melhorara, havendo
desaparecido muitos dos mendigos que antes percorriam a região.
Mesmo perante a dureza do último inverno, a fome não fustigara as
gentes daquela terra.
Só uma inesperada e, a princípio, pequena querela veio perturbar a
harmonia local. O bispo de Coimbra, de seu nome Bernardo, um culto
francês há muitos anos vindo da Borgonha e que passava horas a
escrever na Sé um livro sobre a vida de São Geraldo, mostrara forte
relutância em aceitar a constante presença de Afonso Henriques na
povoação, que antes supervisionava sem concorrente.
Além disso, o bispo nutria igualmente forte antipatia pelos muitos
cónegos e religiosos que pretendiam instalar-se na região, animados pela
promessa de expansão do Condado para sul e pela iminente luta contra
os mouros abaixo do Mondego. Homens como o prior Teotónio, que
deixara Viseu, ou o arcediago Telo, estavam agora muitas vezes em
Coimbra, descrevendo as peregrinações que haviam feito a Roma ou à
Terra Santa, glorificando as vantagens da vida apostólica dos eremitas, o
que muito enervava o bispo.
Certo dia, o príncipe, meu tio Ermígio Moniz, que era o mordomo-
mor do Condado, Gonçalo de Sousa e eu regressávamos de um passeio a
cavalo a Montemor-o-Velho e ao entrarmos na cidade pela sua porta
ocidental, a da Almedina, cruzámo-nos com o arcediago Telo e com
João Peculiar, o mestre-escola da Sé que no passado fora eremita nos
vales do Douro.
Montados cada um na sua mula, eles preparavam-se para dar uma
volta fora das muralhas. Telo contava mais de cinquenta anos e os seus
cabelos totalmente brancos, bem como a imponente presença física,
geravam respeito em todos, embora se sentisse já, na postura quebrada e
nas costas cansadas, o peso da idade e de uma saúde em perda.
Quanto ao seu acompanhante, eram conhecidas a sabedoria e a
inteligência, e muitos previam um brilhante futuro para João Peculiar,
cuja fina figura, nariz pronunciado, queixo pontiagudo e polpudas
sobrancelhas, a que se juntava uma intencional careca, pois rapava o
cabelo rente, compunham, no entanto, um conjunto pouco simpático,
que provocava receio nos menos firmes de espírito.
Realizados os cumprimentos, Afonso Henriques fixou o olhar na
belíssima sela do animal de Telo e, não sendo capaz de conter a
curiosidade, perguntou onde o outro a comprara.
– Em Montpellier – respondeu o religioso.
Descreveu-nos o seu recente périplo por longínquas paragens, até à
Cidade Santa de Jerusalém. Tinha ido com o prior Teotónio e a viagem
fora inesquecível, embora ensombrada pelo desgosto sentido ao
verificarem que, em Roma, acontecera um novo cisma.
– Anacleto, apoiado pelos arcebispos romanos, não aceita Inocêncio II
como Papa. E parece que vosso primo Afonso VII e os leoneses dão
suporte às suas maliciosas intenções – relatou o arcediago Telo.
As complexas divisões da cidade papal devem ter parecido ao
príncipe de Portugal distantes e maçadoras, pois o seu olhar manteve-se
pousado na garbosa sela ornamentada de Telo.
– Como a poderia ter? – perguntou.
O proprietário da dita tinha fama de homem despojado, mas
surpreendeu-nos quando revelou uma faceta de hábil negociador.
– Trocava esta sela, sem hesitar, por um terreno junto aos Banhos
Régios, fora da muralha.
O arcediago Telo apontou para o local em causa, mais frequentado
por mouros ou moçárabes, que tinham hábitos de lavagem e higiene bem
mais apurados do que a maioria dos cristãos.
– Agora os religiosos também vão a banhos? – interrogou-se Gonçalo
de Sousa, sempre jocoso.
Com um leve sorriso, Telo explicou-nos que desejavam construir no
local um mosteiro, chamado de Santa Cruz, onde viveriam os novos
monges da vida apostólica, não fora, mas dentro da cidade, não fechados
em clausura, mas presentes no mundo. A original ideia agradou ao meu
amigo, que ainda mais contente ficou quando soube que Teotónio,
antigo prior de Viseu, aceitara cargo idêntico no futuro mosteiro. Afonso
Henriques admirava muito aquele homem, que considerava um santo e
um protetor.
Contudo, demonstrando que o talento comercial também lhe corria
nas veias, o príncipe hesitava em conceder tantos terrenos em troca de
uma única sela, o que levou meu tio Ermígio a incentivá-lo a realizar a
doação, colocando-a por escrito em documento nobre, como um gesto
de regência e não um mero negócio particular.
– Assim farei – concedeu, por fim, Afonso Henriques.
O que ninguém esperava era que a generosa dádiva gerasse tanta
polémica. Nos dias seguintes, quando se tornou pública a oferta da
propriedade, o bispo de Coimbra revelou profundo desagrado com a
instalação de um mosteiro daqueles na sua cidade.
Alegou o bispo Bernardo ser ele quem devia autorizar a instalação de
religiosos na região. Oferecer uma propriedade e aprovar um mosteiro,
geridos pelo presbítero Telo e pelo prior Teotónio, sem sequer o
consultar, era afrontar a sua posição! Numa reunião acalorada na Sé,
apresentou argumentos requintados para esconder as suas verdadeiras
motivações: o ciúme que lhe provocavam Telo e os seus monges em
Coimbra, aliado à incomodidade por ter sido totalmente ignorado pelo
príncipe de Portugal.
– Não conheceis as divisões que grassam em Roma? – trovejou.
O bispo Bernardo era um homem pequeno, magro e seco de carnes,
mas cheio de genica e duro nas suas proclamações, não sendo muito
estimado pela população, que o considerava por vezes injusto e
demasiado ríspido, com uma moral exigente que muitos diziam não
aplicar à sua conduta privada. Mas a sua pergunta era pertinente: o
papado estava dividido por um cisma e havia quem tomasse já partido
por Anacleto contra Inocêncio II, sendo uma das principais razões
invocadas o excessivo apoio que este último dava aos monges
«apostólicos».
– Toledo e Compostela estão a alinhar contra Inocêncio II! Um
mosteiro «apostólico» em Coimbra vai erguer contra nós a ira dos
leoneses! Afonso VII, vosso primo, apoia Anacleto. Quereis que o
Antipapa obrigue Coimbra a uma nefasta submissão a Toledo?
Francês e antigo cónego na Sé, Bernardo fora nomeado bispo de
Coimbra com um propósito: resistir aos desejos permanentes de
hegemonia de Compostela e de Toledo. Ora, estando Anacleto em vias
de vencer o cisma católico, o mosteiro apostólico apoiado por Afonso
Henriques seria uma imprudência infantil!
– Inocêncio II não vai perder o papado – contrapôs meu tio Ermígio.
Fosse como fosse, alegou o inflamado bispo, melhor seria que
esperassem pela resolução do cisma! Se Inocêncio acabasse por vencer a
luta contra o Antipapa Anacleto, o mosteiro poderia então ser erguido,
pois já não representaria um perigo para Coimbra.
– Não voltarei com a minha palavra atrás – afirmou o príncipe.
A doação estava feita, o documento assinado, diziam-lhe pouco as
subtilezas distantes da crise em Roma. Se Anacleto vencesse e Toledo
nos quisesse prejudicar, cá estaríamos para lutar pelas nossas justas
pretensões. Confrontado com esta firmeza, o bispo Bernardo lançou
umas palavras finais reveladoras do seu mau perder:
– Uma guerra com Toledo e com Roma, só para terdes uma sela? Que
terrível tolice, sois um rapazola!
O meu melhor amigo virou costas ao bispo sem lhe ripostar, o que
levou meu tio Ermígio, já nos degraus exteriores da Sé, a gabar-lhe a
serenidade. Aproximando-se da sua montada, Afonso Henriques
limitou-se a olhar para a bonita sela e a exclamar:
– Agora só me falta um cavalo decente!
Era uma das suas queixas recorrentes, estava sempre insatisfeito com
os animais que cavalgava, que pareciam não ser capazes de o carregar. O
meu melhor amigo era um gigante e quando embainhava a espada de seu
pai, que só ele conseguia erguer, juntando-a ao escudo com que se
armara cavaleiro em Zamora, o peso do conjunto era quase insuportável
para os cavalos.
– Tendes razão, esta pileca não vos serve! – afirmou Gonçalo.
Entretidos com o novo tema, esquecemos prontamente a polémica
com o bispo Bernardo e as implicações do longínquo cisma de Roma.
Foi um erro grave, que no futuro nos iria sair bastante caro. Os inimigos
do ainda nascente reino de Portugal eram muito mais poderosos e
numerosos do que pensávamos naqueles dias.
Coimbra, Páscoa de 1131

Mal nos afastámos da Sé, fomos surpreendidos pela aparição inesperada


da princesa Zaida, que saía do edifício pela porta lateral da biblioteca.
Era conhecido o gosto da rapariga pelas leituras e, anos antes, sua mãe
Zulmira chegara a temer que tanto entusiasmo pelos Testamentos fosse
uma predisposição para uma futura mudança de religião. Nada mais
longe da verdade: Zaida não tencionava converter-se a Cristo, tinha era
uma curiosidade infinita pelas histórias de um passado que o Islão e a
Cristandade partilhavam.
Ao vê-la surgir, Gonçalo exclamou, animado:
– Zaida, minha amada, finalmente encontro-vos! É hoje que
casamos?
A rapariga desatou a rir e todos nos congratulámos secretamente por
vê-la de novo alegre. Já haviam passado quase dois anos sobre a
tenebrosa morte de sua mãe Zulmira, mas durante muito tempo ninguém
vira aquela bonita moura sorrir. Roliça e vivaça, era dotada de uns olhos
negros brilhantes que faziam estremecer o coração de qualquer homem,
e deslocava-se sempre num passo dançarino e saltitante, que conferia
leveza a um corpo bem desenhado e redondo. Simpática, afável e
carinhosa, era uma menina dada a todos, homens e mulheres, mas
sabíamos que nunca fora usada por ninguém, guardando-se como se
fosse um tesouro valioso.
– E levais-me para Córdova? – ripostou ela.
A pergunta da rapariga trazia um luminoso sorriso associado, mas ao
ver Afonso Henriques o seu riso diminuiu de intensidade e, com a
clareza com que sempre revelava as suas opiniões, Zaida declarou:
– Chamoa não merecia ser escorraçada! Errou, mas ama-vos!
As duas eram muito amigas há vários anos e a moura não esquecia as
suas lealdades. Só que o príncipe não gostou que lhe recordassem o que
tentava esquecer e resmungou, irritado:
– Se desejardes, ide até Tui, deitar-vos na cama com ela! E se lá
encontrares o Mem Tougues, enviai-lhe os meus cumprimentos!
A antiga insinuação de que Zaida e Chamoa dormiam juntas e se
banhavam nuas no rio pairou sobre nós, mas Gonçalo defendeu-a.
– A Zaida vai para Tui? Só por cima do meu cadáver!
Os olhos da moura brilharam, o que teve o condão de ainda enervar
mais o príncipe, que logo esporeou o cavalo, afastando-se a trote,
enquanto Zaida ouvia a voz de sua mãe.
Filha, não o zangueis...
Na companhia de meu tio, segui o meu melhor amigo, mas reparei
que Gonçalo permanecia junto à princesa de Córdova. Pelo canto do
olho, vi-o desmontar, mas o que se passou de seguida só o soube tempos
mais tarde, quando Zaida mo relatou.
A pé, levando o cavalo pela rédea, Gonçalo de Sousa acompanhou-a
pelas ruas de Coimbra, em direção à casa onde as irmãs mouras estavam
instaladas, tendo ficado a saber que a rapariga tinha obtido uma
autorização especial do bispo Bernardo para poder realizar as suas
leituras na Sé. Depois, já à porta da habitação, numa rua da almedina,
Gonçalo perguntou a Zaida se a irmã Fátima voltara a planear perigosas
fugas.
– Continua à espera do seu amado Abu, certa de que a virá buscar.
Mas obriguei-a a prometer não se arriscar em loucuras solitárias!
Ao dizer isto, Zaida sorriu, dengosa, batendo as pestanas e Gonçalo
de Sousa interpretou esse leve sinal como um incentivo.
– Admiro a paixão da vossa irmã por Abu Zhakaria! Quem me dera
que uma mulher me amasse assim! – exclamou, com um ar
exageradamente romântico e ligeiramente postiço.
A princesa moura soltou um divertido risinho e ripostou:
– Continuais o mesmo finório! Julgais que caio na vossa teia?
Fingindo-se ofendido, Gonçalo recuou um passo e indignou-se:
– Que dizeis? Sois a única por quem estou enamorado! Todas as
noites sonho em levar-vos para Córdova!
Zaida sorriu de novo, mas lavrou um pequeno protesto:
– Se fosse verdade, não vos amigavas com outras...
Notando naquele queixume a revelação de um ciúme deveras
entusiasmante, Gonçalo aproximou-se e falou ao ouvido da moça.
– Sou um tolo, bem sei, mas apenas porque me afastais. Se vos
desseis, esquecia todas as outras mulheres do mundo, pois em nenhuma
penso como penso em vós.
Zaida baixou um pouco a cabeça e a sua testa tocou no queixo
daquele hábil galanteador. Tristonha, fez beicinho e murmurou:
– É bom ver-vos, sinto-me muito sozinha.
Filha, quereis dar-vos a ele?
Devido à morte de Zulmira, aquela que era uma das netas do último
califa de Córdova confessou que a sua existência presente era pesada e
sombria. A irmã Fátima ainda aspirava à glória que dizia merecer,
sonhando com o regresso ao trono da antiga capital do califado
muçulmano da Andaluzia, mas Zaida já não alimentava essa fantasiosa
crença. Em voz baixa, recordou que quase todos os que amava tinham
morrido. A solidão em Coimbra tornara-se um duro hábito e ver
Gonçalo ali era motivo de enorme felicidade. Sempre simpatizara com
ele e, sedenta de companhia e atenção, convidou-o a entrar na sua casa,
alegando que era exímia cozinheira e lhe serviria um belo repasto.
Parado, fingindo receio e desconfiança, Gonçalo perguntou:
– A Fátima não me cortará a cabeça?
Zaida deu uma gargalhada, aquele rapaz divertia-a. Enquanto abria a
porta e ambos entravam, explicou:
– Continua a mesma fera, mas não tem nenhuma arma.
Mal o disse, ouviu-se na sala uma voz incomodada. No escuro,
alguém afirmou o seu desprezo por ver ali Gonçalo:
– Tirai-me esse cristão da frente!
Zaida ignorou a ordem da irmã e explicou que o convidara para
almoçar escabeche de sardinhas, dando-lhe também a provar o arroz-
doce que a mãe Zulmira a ensinara a cozinhar.
– Mal empregado açúcar – rezingou Fátima.
O nosso amigo admirou-a. Continuava magra e tensa, o oposto de
Zaida, e os seus belos olhos negros não disfarçavam umas olheiras
marcadas. A morte da mãe endurecera-a, tornando-a mais fria do que já
era, com um timbre de voz mais ácido. Embora mantivesse o espírito
arrogante de uma princesa real e a postura altiva de uma orgulhosa
prisioneira, notava-se nela uma ferida na alma, como se tivesse perdido
a intensidade absoluta das suas convicções.
– Prefiro a companhia dos cavalos – rosnou Fátima, passando em
frente aos outros e dirigindo-se para a porta.
Depois de ela sair, Zaida contou a Gonçalo que os animais eram a
única distração que os cristãos permitiam a Fátima.
– Não é boa ideia, ainda foge num! – protestou Gonçalo.
Enquanto ia e vinha da cozinha, trazendo os alimentos e um jarro de
vinho, Zaida explicou que o picadeiro onde a irmã passava as tardes era
fechado e os soldados vigiavam-no sempre, pois tratavam-se de cavalos
de guerra.
– Tendes maravilhosos dotes – apreciou Gonçalo, entusiasmado com
o cheiro saboroso que emanava dos pratos confecionados por Zaida.
– Os meus melhores truques são secretos! – ripostou ela, marota e
sorridente, regressando à cozinha aos saltinhos.
Filha, fui eu que vos ensinei, mas tende cuidado...
Pouco depois, com um arremesso de coragem típico dos sedutores,
Gonçalo agarrou-a pela cintura e sentou-a nas suas pernas, ouvindo-a
libertar risinhos de agrado.
– Dai-vos, minha bela princesa, é tudo o que desejo! – pediu.
A rapariga moura bateu as pestanas e perguntou:
– Levais-me para Córdova?
Gonçalo disse que sim, mas diria que sim a tudo, tal era o seu intenso
desejo. Agradada, Zaida aceitou os seus mimos e, pela primeira vez,
cedeu às intenções de um homem.
Filha, ele é amigo do Afonso!
Com gestos lentos mas precisos, o nosso amigo despiu-lhe o alifafe e
o vestido e apreciou demoradamente o seu belo corpo feminino. O peito
de Zaida era cheio e Gonçalo não resistiu a cobri-lo de beijos.
Entusiasmada, a moura levantou o saiote dele e, ajoelhada a seus pés,
beijou-o. De seguida, os dois mudaram-se para o quarto e deitaram-se
nus no colchão de uma grande cama, amando-se sem pressas e sem
pausas.
Zaida, bem industriada pela mãe Zulmira, que lhe revelara os famosos
e ancestrais truques dos haréns de Sevilha e de Córdova, deixou
Gonçalo boquiaberto com a sua mestria, ao ponto de este lhe ter
perguntado se era mesmo virgem.
– Sois o meu primeiro homem – declarou com solenidade a rapariga.
Depois, como muitas vezes acontece às mulheres, terminado aquele
quente e doce combate carnal, emocionou-se e chorou, com a cabeça no
ombro do seu primeiro amante. As saudades da mãe eram muitas e,
piedoso mas também esperto, o dedicado Gonçalo prometeu que a viria
visitar todos os dias, enquanto estivesse em Coimbra. E, logo que
pudesse, iriam para Córdova.
Filha, vinde ter comigo, ele traz-vos!
Mostrando-se contente, Zaida sorriu em silêncio, cobrindo-o com
mais beijos ousados. Após nova de ronda de prazeres, ele estava
conquistado. Enamorado, sentiu primeiro paixão e depois, como quase
sempre nos homens, um profundo medo de a perder. O seu coração
encheu-se de temor das rivalidades e perguntou:
– O vosso amigo Mem, o almocreve, não vos visita?
Zaida contou que já não eram tão próximos como dantes, enquanto a
mãe Zulmira fora viva, pois o pobre almocreve ainda se torturava por
não ter impedido a morte dela.
– Não teve forças para matar o assassin – recordou Zaida.
A sangrenta tragédia acontecera no casão agrícola do almocreve e as
duas princesas mouras só haviam escapado a uma morte horrível devido
à súbita aparição de Afonso Henriques, que eliminara o assassin,
atirando-lhe um punhal à garganta.
Gonçalo recordou a importância da enigmática arma, em cujo cabo se
dizia ter sido gravado, em latim, o nome do local onde estava escondida
a relíquia sagrada, trazida pelo conde Henrique da Terra Santa.
Porém, Zaida limitou-se a suspirar, desalentada: nada sabia sobre o
punhal do falecido esposo de Chamoa, muito menos sobre Sohba, a sua
tia bruxa, que nunca mais reaparecera.
Filha, não é altura para falar disso...
Encolhendo os ombros, Zaida murmurou que aquelas eram
irrelevâncias sem sentido.
– A minha mãe não vai ressuscitar – acrescentou.
Vendo-a tão triste, o compassivo Gonçalo de Sousa abraçou-a e
renovou a promessa de tomar conta dela e de levá-la para a sua Córdova
natal em breve. Mostrando-se grata, a hábil moura ofereceu-se outra vez,
arqueando para ele as nádegas.
Filha, valerá a pena dar-vos tanto?

Foi grande o contentamento de Gonçalo nos dias seguintes. Feliz e


enérgico, desaparecia todas as tardes sem explicar onde ia. Contudo,
aquela euforia pouco durou. Por razões que não estou certo serem as
mais nobres, Afonso Henriques anunciou que Gonçalo de Sousa iria ser
o alcaide do Castelo de Celmes, cuja construção começaria em breve,
tendo de rumar ao Norte depressa, para dirigir as operações.
Incrédulo, o nomeado protestou, invocou a sua recente e tórrida
amizade à princesa moura e chegou mesmo a acusar o príncipe de o
querer afastar dela, mas Afonso Henriques negou tal malícia, dizendo
que também ele iria para Guimarães, enquanto Zaida permaneceria em
Coimbra.
– Pelo menos, deixai-me levá-la comigo! – pediu o enamorado.
O príncipe de Portugal não o autorizou, pois a possibilidade de uma
guerra com o Trava era real. Celmes não era lugar para uma rapariga, só
para destemidos e corajosos cavaleiros! Dias depois, zangado e
contrariado, Gonçalo partiu de Coimbra e, tal como ele, também pensei
que a princesa moura se iria entristecer de novo, mas não foi isso que se
passou. A bela Zaida era um enigma indecifrável. Seja como for, Afonso
Henriques, embora talvez pelos motivos errados, tomara a decisão certa.
Celmes era um perigo, ainda bem que Zaida não rumou para lá com
Gonçalo.
Tui, dezembro de 1131

Foi por minha exclusiva culpa que não conhecemos mais cedo os planos
do Trava contra o Condado Portucalense. Naquele Natal, eu e minha
mulher não fomos a Tui passar a quadra festiva com a família dela.
Maria Gomes andava indisposta há semanas e, convencido de que ela
esperava finalmente uma criança, recusei-me a viajar por temer os
solavancos da estrada e a travessia do rio Minho.
– Lourenço, não temais, sou resistente – contestou ela.
Mas a decisão estava tomada e, ao contrário do que fizéramos nos
últimos anos, ficámos em Guimarães, enquanto em Tui, como de
costume, Gomes Nunes e Elvira Peres de Trava, os pais de Maria e
Chamoa, aproveitaram a ocasião para reunirem os Trava.
Por lá apareceram Bermudo Peres de Trava e sua esposa Urraca
Henriques, irmã do nosso príncipe, bem como o inevitável Fernão Peres.
E, desta vez, compareceu também Mem Rodrigues de Tougues, filho de
outro irmão Trava e pai do quarto filho de Chamoa, nascido nesse verão.
Embora não vivessem como marido e mulher, pois minha cunhada
recusara juntar-se ao primo direito, o filho comum forçava a
aproximação entre os dois.
Da última vez que a havíamos visitado, Chamoa jurara-me que jamais
dividiria o leito com o Tougues, nem dele voltaria a procriar, por
continuar enamorada de Afonso Henriques. Porém, minha mulher, que
conhecia bem a mana, comentara na viagem de regresso:
– Chamoa não suporta os pés frios na cama... No Natal, unem-se.
Assim seria, embora não pelas razões previstas. Não foi por falta de
aquecimento pedestre que Chamoa se enfiou finalmente na cama com
Mem Tougues, mas sim por lealdade a Afonso Henriques, por mais
estranho que isso possa parecer.
Naquele Natal, os Trava pareciam em perda acentuada. Depois de
visitar as filhas em Lanhoso, Fernão Peres não mais voltara ao Condado
Portucalense. Seu irmão Bermudo, que organizara uma pífia revolta em
Seia, fora expulso definitivamente das terras regidas pelo príncipe de
Portugal. Quanto à mãe de Chamoa, passara a desconsiderar Afonso
Henriques por este ter expulso a filha de Guimarães, enquanto o seu
marido, Gomes Nunes, vivia dividido nas lealdades.
Obrigado a constantes malabarismos em defesa do seu interesse
último, a manutenção da posse do condado de Toronho, cuja capital era
a cidade de Tui, acredito que, no íntimo, aquele nobre portucalense
desejava juntar-se a nós, pois odiava Afonso VII tanto como no passado
abominara a mãe dele, Dona Urraca. Mas, sendo casado com uma Trava,
esse laço familiar sabotava a relação com Afonso Henriques.
O único motivo de alegria de Gomes Nunes eram os netos. Maria
ainda não lhos tinha dado, mas Chamoa já lhe proporcionara quatro
rapazes, três de Paio Soares e um de Mem Tougues, e a mera presença
dos petizes fazia aquele avô esquecer as agruras de Toronho. Paciente e
bonacheirão, gorducho e de movimentos lentos, Gomes Nunes nunca
fora um guerreiro e as suas atitudes receosas pareciam impostas pelas
limitações físicas do seu corpo. Há muito que tomara a sábia decisão de
se deixar levar pelos acontecimentos sem os contrariar, comportando-se
como uma cana embalada pelo vento. Se os Trava queriam guerrear
Afonso Henriques e este não se entendia com Chamoa, que podia ele
fazer?
Passava horas com o mais crescido dos filhos de Paio Soares, a quem
fora dado o nome de Pêro Pais. Com quase cinco anos, era um menino
esperto e de olho vivo, com um cabelo pejado de caracóis, como o seu
falecido pai, e um espírito deveras inquisidor. Foi esse insaciável desejo
de saber que o levou, ao escutar uma conversa entre os Trava durante a
tarde de Natal, a perguntar ao avô:
– O que é uma relíquia sagrada?
Gomes Nunes, sempre pronto a esclarecer o neto, dessa vez ficou
atrapalhado e sugeriu que ele fosse ter com a mãe, pois aqueles não
eram assuntos de criança. Arguto, o menino rumou ao quarto de Chamoa
e repetiu à mãe a pergunta. Alertada, a minha cunhada deduziu que
Fernão Peres continuava a conspirar contra Afonso Henriques e que ia
lançar-se para sul à procura do religioso artefacto.
Ao escutá-la, Pêro Pais exclamou, revoltado:
– Fernão Peres não pode roubar o nosso príncipe!
Apesar da tenra idade, Pêro Pais sabia que o pai, Paio Soares, estivera
do lado errado da guerra, em São Mamede. Fora Afonso Henriques
quem o atacara brutalmente, deixando-o tão combalido que a morte foi
uma inevitabilidade. Porém, nem isso beliscava a forte admiração do
rapaz pelo príncipe de Portugal.
É como eu, ama o Afonso.
Emocionada, a mãe abraçou-o com força e disse:
– Vosso pai admirava muito Afonso Henriques, mas jurou lealdade a
Dona Teresa. Não foi capaz de a trair e por isso morreu...
O filho, mais interessado no presente do que no passado, perguntou-
lhe de pronto:
– Que ides fazer?
Chamoa limitou-se a pedir ao menino que se mantivesse atento,
escutando as conversas dos outros Trava, mas no seu espírito germinava
já um plano assaz requintado. Depois de comida a ceia de Natal pela
família, aproximou-se discretamente de Mem Tougues e disse-lhe, em
voz ternurenta:
– Gostava de ter a vossa companhia esta noite.
O primo era aquele tipo de homem que acreditava piamente no que
ouvia. Magro como um espeto, de cara pálida e barba rala, vivia numa
permanente agitação calada, como se a revelação pública dos seus
pensamentos o torturasse, com medo das consequências. Talvez para
compensar tanta hesitação verbal, era exageradamente vaidoso e vestia-
se aprumado, com meias longas e saiotes curtos, esperando certamente
que a vistosa roupa ofuscasse a sua fraca personalidade.
Os olhos quase lhe saltaram das órbitas, pois não esperava tanta folga
da prima. Embora fosse apaixonado por Chamoa há anos, tinha-a
possuído uma única vez, no ano anterior, num campo próximo do
Mosteiro de Vairão. Fora o suficiente para lhe gerar um filho, mas nunca
mais ela o aceitara! E agora, de surpresa, convidava-o para dividir o
leito? O suscetível Mem Tougues logo ali prometeu dedicar-se para
sempre à sua amada.
Mal na sala se notou esta súbita junção, nasceram sorrisos, sobretudo
em Fernão Peres, por saber que finalmente Chamoa substituía Afonso
Henriques. Só um único par de olhos se atormentou. Pêro Pais não
entendeu as ternuras dadas pela mãe a Mem Tougues e Chamoa teve de
explicar-lhe, antes de o deitar, as suas intenções.
– Preciso de saber o que planeiam contra Afonso Henriques.
Pêro Pais desviou o olhar. Desapontado, resmungou:
– Não gosto do Mem Tougues!
Depois de um suspiro, a mãe garantiu-lhe:
– Nem eu, meu querido filho. Vou ter de beber muito vinho.
Quando regressou ao convívio dos adultos, Chamoa esvaziou de
seguida três vasos de tinto galego. Por isso, o seu espírito já estava solto
quando pegou na mão do primo e o conduziu para o quarto. Nas suas
costas, Fernão Peres de Trava inchou de contentamento. A notícia não
demoraria a chegar a Guimarães...
Já na cama, Chamoa pediu em silêncio a Deus que não engravidasse
pela quinta vez. Não estava em época frutuosa, mas era fértil como uma
coelha e temia que o corpo lhe pregasse uma partida. Despiu-se e venceu
a ligeira repugnância que o primo lhe provocava.
A causa é boa.
Perante o frenesim dele, que quis repetir a dose, chegou mesmo a
sentir prazer. Não havia volta a dar, gostava do sentimento animal que a
invadia, do descontrolo dos sentidos, da presença inebriante de um
macho em cima dela. Mas não era amor, nada que se parecesse com o
que sentira um ano antes com Afonso Henriques. Não era sequer o
sentimento de respeito, lealdade e companheirismo que devotara a seu
marido, Paio Soares.
Sou uma desvairada...
Terminado o rebuliço físico, passou ao objetivo essencial do exercício
e ficou a saber que Fernão Peres de Trava ia enviar uma companhia de
soldados galegos para as margens do rio Nabão, com o propósito de
encontrar a relíquia. O tio queria oferecê-la a Afonso VII, rei de Leão e
Castela, impedindo Afonso Henriques de lhe deitar as mãos.
Mais grave ainda, o Tougues revelou que entre os templários de Soure
havia um traidor, a soldo do Trava! O primo não sabia o nome de tal
indivíduo, mas a agitação interior de Chamoa foi imensa e imediata a
vontade de informar o seu adorado príncipe.
Na manhã seguinte, dirigiu-se a um pombal, levando pela mão o filho
Pêro Pais. Preparava-se para enviar uma mensagem, quando apareceu
Fernão Peres, que a questionou:
– Sobrinha Chamoa, a quem ides enviar um pombo?
Ela corou, atrapalhada, enquanto o Trava sentenciava:
– Trair a família é grave pecado.
A minha cunhada manteve-se calada, de mão dada com o menino. O
tio tinha fama de cruel, embora o seu aspeto nobre levasse ao engano. O
Trava era um homem bonito e alto, que transmitia segurança e solidez
de propósitos, mas escondidos dentro das suas dalmáticas roxas existiam
agravos antigos e desejos de vingança permanentes, bem como
ambições vastas a que só a sua torta, mas fulgurante inteligência,
permitia aspirar. Torcendo os lábios finos, o malicioso galego avisou-a
de que, se a lealdade familiar dela falhasse, medidas drásticas seriam
tomadas. Perverso como uma cobra, franziu a sua testa alta e terminou
com uma ameaça velada:
– Vossos filhos são tão jovens...
Atordoada de aflição, Chamoa sentiu-se gelar por dentro. Porém,
espantou-se ao ouvir a voz infantil de Pêro Pais, que ao seu lado
explicou, com um descaramento surpreendente:
– Minha mãe deseja saber se minha tia Maria está grávida.
A esperteza ágil do garoto susteve o Trava, que se limitou a informar
a sobrinha de que, a partir dessa data, seria vigiada por soldados. Mais
tarde, justificou perante a família a decisão com uma falsidade grotesca.
Contou que, em Tui, corria o rumor, obviamente inventado, de que
Afonso Henriques desejava raptar a rapariga galega.
Acreditando cegamente no tio, o aterrado Mem Tougues, tolo de
paixão, concordou com aquelas providências castradoras e Chamoa
passou a ser seguida, ficando impossibilitada de nos informar.
A grande guerra contra Portugal estava lentamente a iniciar-se, as
portas do Inferno iam abrir-se para nós, mas por minha culpa, minha tão
grande culpa, não fomos avisados a tempo...
II
Às Portas
do Inferno
1132
Soure, julho de 1132

De madrugada, o Rato vestiu-se e abandonou a casota de Ramiro. Este


ainda dormia em cima do colchão e o pequeno templário sorriu,
enamorado. Gostava daquele bastardo bonito e musculado, cujo corpo
amadurecera com o exercício físico a que se obrigava. Uma vez por
semana, praticavam aqueles jogos proibidos em segredo, mesmo
sabendo que arriscavam a condição de monges guerreiros. Se Martinho,
prior de Soure, os topasse, podiam ser expulsos da Ordem do Templo de
Salomão, mas a excitação era tanta que cegavam.
O magro e esguio Rato regressou à casota que partilhava com o Peida
Gorda. Ao entrar, riu baixinho perante o fortíssimo ressonar do colega.
Nem um exército de muçulmanos a entrar pela alcáçova de Soure
perturbaria o sono daquele balofo!
Estava já a enrolar-se na manta quando ouviu vozes. Percorreu-o um
arrepio de receio. Teria sido visto? Manteve-se quieto, escutou uma
correria agitada, um soldado batia à porta da casota de Ramiro.
Aterrado, pediu a Deus que não o denunciassem. A sodomia era um
pecado mortal, seria certamente expulso de Soure. Pior do que isso,
Ramiro perderia a posição importante que ali ocupava, o segundo na
hierarquia, logo abaixo do mestre Jean Raymond.
Tenso e hirto, o Rato aguardou, enquanto a barafunda prosseguia. Nas
casotas em redor, ouviu cavaleiros a saírem para o terreiro e, cada vez
mais inquieto, o Rato viu o Velho abrir a porta e espreitar. Notando-o já
desperto, o outro gritou:
– Peida Gorda, toca a acordar! Chegou um cavalo com um morto...
Há sarracenos na região!
Pouco depois, os três apresentaram-se no centro do terreiro, onde
Ramiro, já vestido com a sua cota de malha, examinava um cadáver,
enquanto Jean Raymond confirmava que o estranho cavaleiro chegara a
Soure degolado.
– A cabeça deve ter caído quando foi decapitado.
O observador Ramiro produziu uma conclusão imediata.
– É um galego.
O Velho deu um passo em frente e perguntou-lhe:
– Como sabeis?
O bastardo de Paio Soares apontou para as insígnias na sela do
animal, onde se viam as cores da família Trava. Ainda surpreendido,
interrogou-se:
– O que faz um homem de Fernão Peres tão longe de casa?
O cavaleiro sem cabeça viera de sul e, portanto, a sua morte
acontecera em território muçulmano.
– Será um mensageiro? – perguntou o Rato.
Ramiro nem pestanejou quando o viu aproximar, não revelando
qualquer sentimento especial. O Rato notou, mais uma vez, que o seu
amante era hábil a esconder de terceiros a simpatia por ele. Era uma das
coisas que o Rato amava em Ramiro, a capacidade para a dissimulação,
além dos braços fortes e das cristas ilíacas protuberantes.
– Mensageiro de quem? E para quem? – perguntou o ríspido Ramiro.
Para tirar aquilo a limpo, mestre Jean ordenou que se preparasse uma
expedição. A sul de Soure, existiam umas aldeias a poucas horas de
cavalo, talvez alguém tivesse visto o infeliz. O pequeno grupo de
escolhidos foi liderado por Ramiro, e o Rato, bem como o Peida Gorda e
o Velho, juntou-se naturalmente a ele. Os quatro eram os últimos
sobreviventes do coletivo original que se formara seis anos antes, em
Viseu, cujo objetivo era procurar a relíquia da Terra Santa.
Da última vez que havia estado com Afonso Henriques, uns dias
antes, em Coimbra, Ramiro sentira o seu desapontamento.
Pai, ele zangou-se comigo...
O príncipe encarregara os templários de Soure de encontrarem a
bruxa Sohba, a única que conhecia o mistério da relíquia, mas eles não o
haviam conseguido. A mulher de negro ou morrera, como Ramiro
acreditava, ou nunca voltara à caverna onde vivera alguns anos.
Teria aquele galego morto alguma ligação à velha bruxa?
– Foi decapitado por um alfange – garantiu o Velho.
Colocara o seu cavalo a passo, ao lado do comandante do grupo.
Magro, seco de carnes, com um cabelo ralo que ainda realçava mais as
mil e uma rugas que lhe cobriam a cara e a garganta, o mais idoso dos
templários possuía uma serenidade no olhar que acalmava.
– Zhakaria? – interrogou-se Ramiro.
O Velho lutara nas tropas de El Cid, em Valência, o seu
conhecimento dos hábitos guerreiros dos mouros era vasto e recordou
que Abu Zhakaria era um exímio mestre com o alfange. Aquela cabeça
saltara de uma só vez, com um golpe implacável do cordovês.
– Só ele e os assassins cortam assim cabeças – sentenciou o Velho.
Ramiro ignorou este último comentário e afirmou:
– Intriga-me a presença de um galego por aqui.
O Velho insistiu:
– Os sarracenos preparam-se para novo ataque a Coimbra.
Ramiro limitou-se a continuar o seu raciocínio anterior:
– O Trava quer a relíquia, quer dá-la a Afonso VII, não vai deixar que
o príncipe a encontre. Terá enviado gente para isso?
O Velho encolheu os ombros, parecia cansado e murmurou:
– Os homens endoidecem com tesouros religiosos.
Aquele pensamento pessimista embalou-os nas horas seguintes e só se
agitaram quando, ao atravessarem uma aldeia, um moçárabe os
informou de que dias antes um grupo de galegos passara por ali, em
direção ao rio Nabão, mas só o cavaleiro sem cabeça regressara. Porém,
quando lhe perguntaram se vira Abu Zhakaria, o lavrador respondeu que
ninguém notara a presença do cordovês.
Pai, tenho medo...
Apesar desta informação tranquilizadora, os templários de Soure
redobraram a vigilância enquanto se desviavam para leste, na direção do
Nabão, procurando vestígios do solitário degolado. E encontraram-nos...
A poucas léguas do rio, o Peida Gorda distinguiu na estrada um despojo
humano. Quando chegaram perto, o Velho desmontou e, rodando a
cabeça do infeliz galego, confirmou que fora decepada por um afiado
alfange.
– Zhakaria esteve aqui – declarou, perentório.
Ramiro mandou-os recolher a macabra descoberta, para lhe darem um
enterro digno junto ao resto do cadáver, e depois ordenou que
avançassem até ao rio Nabão.
– Cuidado – avisou o Velho. – Ainda nos cercam.
O outro ignorou aqueles temores com uma pequena provocação.
– Com a vossa idade ainda tendes medo da morte?
Olhando em volta, o Velho relembrou os colegas de expedição:
– Foi a cautela que me manteve vivo.
Ramiro, que reagia sempre mal a quem o enfrentava, ripostou:
– Questionais o meu comando?
O idoso templário limitou-se a sorrir, multiplicando as muitas rugas
que normalmente já exibia no rosto.
– Para isso é que já estou velho.
Os restantes cavaleiros ignoraram aquela suave celeuma, pois todos
gostavam do Velho e o respeitavam. O Rato chamava-lhe curandeiro e
Ramiro ouvia-o sempre sobre questões relacionadas com armas,
alimentação ou doenças. Era um combatente antigo e bem-sucedido,
podia dizer o que queria.
Pai, onde estamos?
Já perto do rio, o Peida Gorda avançou primeiro, com a sua habitual
coragem. Grande e obeso, o seu rabo era tão volumoso que transbordava
pela traseira da sela, gerando risos nos outros. Mas tinha o espírito forte,
nunca sentia medo de nada e por isso todos ficaram petrificados quando
regressou muito pálido e disse:
– Deus lhes perdoe, é terrível.
Lentamente, aproximaram-se. Estavam a pouca distância das ruínas
de uma pequena povoação e já podiam ver o Nabão, mas à direita deles,
numa clareira, um aterrorizador espetáculo aguardava-os. Espetadas no
chão estavam nove lanças sarracenas, onde nove cadáveres masculinos
se encontravam empalados. E, pousadas junto aos pés dos pobres
desgraçados, viam-se nove cabeças.
Os templários de Soure benzeram-se e rezaram preces silenciosas.
Depois de desmontarem, confirmaram que os mortos eram
companheiros do primeiro sem cabeça, que devia ter sido enviado por
Zhakaria como mensageiro da matança. Por respeito aos defuntos,
cavaram uma cova, mas mesmo para homens habituados à guerra aquele
foi um trabalho horrível. Os galegos haviam sido empalados vivos,
tinham as lanças enfiadas pelos ânus acima, cortando os músculos e as
entranhas enquanto eles morriam, o que se notava pela forma como se
haviam contraído, explicou o Velho, dizendo que só depois os haviam
degolado.
– Zhakaria está furioso. Esta violência não é hábito dele – concluiu o
Rato, depois de sepultarem os galegos.
Preocupado, Ramiro observou o rio Nabão e as ruínas.
– Alguém sabe como se chama este sítio?
Ninguém sabia, mas o Velho disse que aqueles casebres, assim tão
degradados, deviam estar abandonados há centenas de anos.
– Porque vieram até aqui os galegos? – interrogou-se Ramiro.
Sem maneira de esclarecer o mistério, os templários decidiram
regressar a Soure e montaram de novo os seus cavalos. O bastardo de
Paio Soares foi o último a fazê-lo, mantendo-se algum tempo a examinar
as redondezas.
Pai, foi aqui que haveis vindo?
Embora fosse de estatura média, Ramiro andava sempre muito direito,
parecendo mais alto do que era. Tinha os ombros largos e as ancas
sólidas e o Rato admirou-o, imaginando-o um comandante militar nobre,
às portas da glória. Porém, espantou-se quando apenas ouviu Ramiro
murmurar, para si próprio:
– Pai, é aqui?
Subitamente, ouviu-se um esgar, seguido de um ruído de alguém a
tombar. Ramiro e o Rato voltaram-se para trás e viram o Velho no chão.
Caíra do cavalo e parecia não só magoado, como deveras surpreendido,
como se o corpo o tivesse traído. Com pena, Ramiro desmontou, correu
para ele e percebeu o quanto a idade lhe pesava.
Orgulhoso, o Velho afastou-o e tentou levantar-se sozinho, mas a sua
perna direita cedeu e quase voltou a tombar, só não caindo desamparado
porque Ramiro não deixou.
Preocupado, o Rato, que também acorrera, perguntou:
– Companheiro, que se passa?
O Velho fechou os olhos, estava com dores. Então, o Peida Gorda,
apesar da sua lendária timidez, disse:
– É a minha vez de vos ajudar.
Anos antes, o Velho sarara-lhe a ferida de uma flecha e o tempo da
retribuição havia chegado. Aquele homem forte e grande, cujo rabo mais
parecia um barril e cujo tronco tinha a largura de um penedo granítico,
levantou o combalido e colocou-o a cavalo.
Desconsolado, quase envergonhado, o Velho baixou os olhos.
– Chegou a minha hora.
Declarou que a sua carreira de soldado estava no fim. Ninguém sabia
quantos anos ele já vivera, mas Ramiro calculava que tivesse mais de
oitenta invernos no lombo, pois combatera com El Cid, sessenta anos
antes. Agora, dizia-se farto de piolhos e feridas, epidemias e casotas,
empalados e decapitados.
– É tempo de morrer em paz. Vou para casa.
Os outros não conheciam a sua terra, mas o Velho anunciou que iria
para o Norte, e Ramiro aceitou a decisão dele, pois não se devia
contrariar um homem daquela idade. Ele tinha o direito de falecer onde
desejasse, e o bastardo de Paio Soares decidiu que o acompanharia até
Coimbra, onde ia reportar a Afonso Henriques a macabra descoberta que
tinham feito nas margens do Nabão.
Na madrugada seguinte, em Soure, o Velho despediu-se, emocionado,
dos seus companheiros templários e Ramiro mandou-o subir para o seu
cavalo. Estavam curtos de animais, iriam os dois juntos, como faziam os
pobres cavaleiros de Cristo na Terra Santa.
Enciumado por os ver tão próximos, o Rato atirou-lhes um adeus e
avisou Ramiro de que tivesse cuidado no regresso, temendo uma
emboscada sarracena. Porém, o bastardo de Paio Soares nem reagiu. No
calor das suas clandestinas ternuras, Ramiro garantia sempre ao Rato
que, depois das surras que o pai lhe dera em criança, nunca mais tivera
medo de nada nem de ninguém.
Coimbra, julho de 1132

Ramiro ajudou o Velho a desmontar, no pátio em frente à Sé, sentindo


que em seis anos de convívio se forjara entre eles uma lealdade
verdadeira. Agora, os seus caminhos divergiam, embora o Velho
parecesse já arrependido da decisão que tomara. Em voz pesarosa,
confessou que ia sentir saudades da camaradagem da Ordem do
Templo.
Ramiro confortou-o e, depois de um abraço final, subiu pelas escadas
de granito da igreja de Coimbra. Em passo lento, o Velho afastou-se,
curvado, arrastando os pés, mas uns metros à frente já sorria, embora se
tenha mantido encolhido, não fosse alguém vê-lo.
O seu talento para a mistificação continuava intacto, enganara bem os
colegas. Aproveitando um momento de distração destes, simulara uma
queda desamparada, fingira-se abalado e dorido e apresentara a decisão
de partida como inevitável. Por respeito, os companheiros aceitaram-na,
crédulos como sempre. Ninguém desconfiara dele e, ao longo de seis
anos, fizera por isso.
Alistara-se naquela Ordem a mando de Fernão Peres de Trava, que
era o seu senhor e lhe dera instruções para se manter vigilante em Soure.
O Trava queria um homem da sua confiança integrado secretamente
naquela congregação, para acompanhar a busca da relíquia sagrada
trazida pelo conde Henrique da Terra Santa.
Várias vezes por ano, os dois trocavam curtas mensagens, usando
como cúmplice um ferreiro galego, à casa de quem o Velho se começou
a dirigir. Porém, mal virou para a rua lateral à Sé, chocou com a princesa
Zaida, que saía da biblioteca, muito apressada, e quase deu um
trambolhão à sua frente.
– Desculpai-me – murmurou o Velho, atrapalhado.
A princesa endireitou-se, ajeitando as roupas e escondendo algo no
regaço. Parecia claramente comprometida, como se estivesse a fazer o
que não devia. A pergunta que lhe dirigiu foi mais uma tentativa de
dissipar a desconfiança dele do que uma verdadeira preocupação com a
sua saúde:
– Estais bem? Pareceis doente...
O Velho limitou-se a encolher os ombros:
– A velhice não tem cura.
A princesa forçou um sorriso e depois seguiu o seu caminho,
enquanto o Velho permanecia parado, pois ainda não acreditava no que
tinha visto debaixo da túnica da princesa. Ela bem tentara esconder um
objeto, mas ele tinha bom olho e o que ela levava era de grande valor.
Decidiu segui-la, talvez tivesse um momento de sorte...
Agitada, Zaida foi à casa onde vivia, entrou, mas pouco depois voltou
a sair e regressou à biblioteca da Sé, sem nada no regaço. Durante algum
tempo, o Velho esperou, mas ela não reapareceu. Então, deu meia-volta
e dirigiu-se à casa das princesas. Se conseguisse roubar aquele objeto,
certamente que o Trava iria ficar muito contente...
Fora por essas e por outras que Fernão Peres lhe destinara uma missão
tão difícil. Ele era o homem necessário, o espião indicado. Conhecia
Soure e a região ao sul da povoação, pois no passado já fizera parte da
guarnição do castelo, na época dos cercos a Coimbra realizados pelo
califa almorávida Ali Yusuf.
Desde essa longínqua data que era um fiel soldado de Fernão Peres de
Trava, acompanhando as andanças do amo. Por isso, aceitara aquele
repto, em Viseu, na Páscoa de há seis anos, quando o nobre galego lhe
explicou que uma nova ordem religiosa iria reconstruir o Castelo de
Soure e procurar uma relíquia sagrada.
– Sereis os meus olhos e os meus ouvidos – dissera o Trava.
Apresentando-se como um antigo combatente caído em desgraça, o
Velho alistara-se no primeiro contingente de monges guerreiros da
Ordem do Templo, onde já estavam o Rato e o Peida Gorda, e aos quais
se somara, dias depois, o jovem Ramiro, bastardo de Paio Soares. O
grupo havia iniciado a recuperação de Soure e, durante seis verões e seis
invernos, o Velho permanecera por lá.
Apenas por uma vez vira a bruxa Sohba, por quem nutria um forte
ódio, pois um dia ela atirara-lhe uma bola de fogo, quase o cegando.
Desde essa data, jurara matá-la mal tivesse uma oportunidade, só que
esta não surgira. A sinistra mulher de negro eclipsara-se e, portanto, o
Velho limitara-se a fazer o seu trabalho secreto para o Trava,
informando-o sobre o que se passava na região.
Obviamente, soubera com antecedência da expedição galega às ruínas
próximas do Nabão e, quando vira os corpos massacrados pela barbárie
de Abu Zhakaria, sabia já como proceder. As suas ordens eram claras: se
a companhia de soldados galegos não atingisse os seus propósitos, o
Velho deveria abandonar a Ordem e subir à Galiza. Assim fizera,
dissimulando aquela queda e despedindo-se dos colegas templários.
Contudo, por diversas vezes no decorrer daqueles anos a sua longa
missão parecera-lhe inútil, e só agora, já perto do fim, surgia uma
oportunidade única!
Enquanto se aproximava de casa de Zaida, o Velho questionou-se
mentalmente. No regaço da princesa, vira o punhal de Paio Soares, uma
bela arma, com uma pérola no topo, com a qual Afonso Henriques
matara o assassin no casão do almocreve Mem. Como se apoderara a
princesa da célebre e desaparecida arma? Enquanto vigiava os
movimentos dentro da casa dela, o Velho recordou-se do dia da morte de
Zulmira.
Também ele entrara naquele casão agrícola, onde vira a mulher já
degolada, o assassin a vomitar golfadas de sangue, o almocreve no chão
e as duas princesas chorando a morte da mãe. Fora o Rato quem tirara a
lâmina da garganta do facínora, pousando-a num balde com água, para a
lavar do sangue, mas depois a arma eclipsara-se misteriosamente, no
meio daquela tremenda confusão.
Nas horas seguintes à tragédia, Ramiro questionara todos os presentes
no local, mas nada descobrira. O autor do roubo não se confessara. Teria
sido Zaida, a mais nova das princesas de Córdova, que num movimento
rápido pegara na arma? O Velho não sabia, mas, três anos depois, a
verdade é que o punhal se encontrava na posse da princesa e mantinha-
se deveras valioso. Que melhor presente podia ele levar ao Trava?
Certificando-se de que a casa das princesas estava vazia, o Velho
entrou pelas traseiras e começou a vasculhar. O punhal tinha de estar por
ali. Encontrou-o escondido numa arca, coberto por dezenas de alifafes,
vestidos e túnicas. As suas mãos tremeram quando lhe pegou. Lá estava
a pérola no topo, a lâmina afiada e a inscrição em latim, gravada no
cabo. Sem se preocupar em ocultar o assalto, o Velho deixou a casa
desarrumada e saiu pelo mesmo sítio por onde entrara, com o produto do
roubo escondido nas vestes.
Enquanto se dirigia a casa do ferreiro galego, com ar falsamente
combalido, o Velho sorria, contente consigo próprio. O Trava ia ficar a
saber onde estava a relíquia, aquela palavra em latim era a chave para a
encontrar! Grato, o seu senhor talvez lhe oferecesse umas benesses, uma
boa casa onde terminar os seus dias, uma rapariga que pudesse possuir,
antes de se apagar.
Durante seis longos anos, forçara-se a uma castidade insuportável,
para não levantar suspeitas na Ordem do Templo, mas estava na hora de
colocar um ponto final naquela via sacra! Embalado por este excitante
pensamento, bateu à porta do ferreiro, que lhe cedeu uma mula, montado
na qual o Velho saiu de Coimbra.
Já na estrada, deu-se conta de que transportava na alma apenas um
único agravo. Não conseguira matar aquela velha senil, a bruxa a quem
não perdoava a antiga desavença. A sua fúria contra Sohba não se
desvanecera, pelo contrário. Cada vez odiava mais aquela mulher e
cuspiu para o chão, irritado por não a ter eliminado da face da Terra.

Como é evidente, naquele dia o Velho não sabia que em breve


regressaria ao Sul e teria nova oportunidade para tentar destruir a
estranha e misteriosa Sohba. A bruxa ligou-nos a todos, era o que
sempre me dizia a princesa Zaida.
Coimbra, julho de 1132

Naquele final de manhã, estávamos reunidos com o bispo Bernardo na


Sé, quando lá entrou o agitado Ramiro. Vendo-o avançar, Afonso
Henriques ergueu as sobrancelhas, curioso:
– Haveis finalmente encontrado a relíquia?
Meu pai, meu tio Ermígio, Peres Cativo e eu próprio mirámos o
bastardo de Paio Soares.
Pai, eles odeiam-me...
Embora bem mais entroncado do que no passado, Ramiro pareceu-me
nervoso e baixou os olhos quando narrou o sucedido nas margens do
Nabão, onde encontrara uma companhia de galegos empalados por Abu
Zhakaria.
– Que descaramento – rugiu o príncipe de Portugal. – Enviar soldados
para me roubarem a relíquia!
A fúria do meu melhor amigo contra Fernão Peres de Trava
reacendeu-se. Uma expedição galega ao Nabão era um atrevimento
inaceitável! Logo ali, o príncipe imaginou uma retaliação na Galiza, um
qualquer gesto bélico que lhe extinguisse a cólera.
– O Castelo de Celmes não está pronto – lembrou, porém, meu pai.
Gonçalo de Sousa dirigia as obras na fortificação, mas só se previa a
conclusão da muralha no Natal, o que significava que os portucalenses
eram vulneráveis a um ataque surpresa do Trava.
Afonso Henriques refletiu uns momentos em silêncio e depois
perguntou a Ramiro se os galegos tinham descoberto a relíquia, mas o
templário respondeu que encontrara os cadáveres totalmente despojados,
perto de umas ruínas, junto ao Nabão.
Irritado, o príncipe de Portugal concluiu apressadamente que Zhakaria
já tinha na sua posse o artefacto, ou então estava por perto a procurá-lo e
por isso matara os galegos.
– Terá encontrado a bruxa? Sohba estará em Santarém? – perguntou.
Não tendo obtido qualquer resposta, dirigiu o seu olhar crítico a
Ramiro, provocando-o:
– Os mouros são melhores do que os templários a procurar.
Em sua defesa, o bastardo de Paio Soares alegou que não era certo
que Zhakaria tivesse encontrado a relíquia, mas as suas palavras já não
tinham peso, pois a incapacidade nas buscas desqualificara-o.
Pai, estou perdido...
Atrapalhado, ainda mais aflito ficou quando o bispo Bernardo deixou
cair um subtil comentário.
– Os templários perdem tempo com o que não devem...
Ramiro corou ao ouvir aquelas palavras, que foram, porém,
rapidamente esquecidas, pois meu tio Ermígio, sem aviso, lançou uma
ideia subversiva. A sua posição de mordomo-mor permitia-lhe sugerir
soluções inesperadas, mas a ousadia daquela espantou-me.
– Se Zhakaria tem a relíquia e nós as princesas de Córdova, podíamos
propor-lhe uma troca.
O bispo Bernardo foi o primeiro a reagir. Indignado, vociferou que
não se podia confiar em infiéis, pensamento que Afonso Henriques
também partilhava.
– Não vou comerciar com sarracenos! A relíquia pertence-me!
Meu tio Ermígio não deu o braço a torcer e relembrou que ainda não
estávamos preparados para uma campanha no Sul, nem para atacar
Santarém. Era mais avisado propor uma troca a Zhakaria. Se lhe
déssemos Fátima e Zaida, ele regressaria a Córdova e ficaríamos com
um inimigo a menos a sul de Coimbra.
– E que inimigo... – rematou.
O enfraquecimento dos mouros era essencial e, sem Zhakaria, os de
Santarém seriam mais fáceis de derrotar. Contudo, o bispo Bernardo e
Afonso Henriques revelaram-se acérrimos opositores daquele plano,
alegando que o descarado cordovês não só já atacara Coimbra, como
empalava cristãos!
– Nisto estamos de acordo – concedeu o príncipe ao bispo Bernardo.
Desaprovada assim a inesperada proposta de meu tio Ermígio, logo ali
o meu melhor amigo decidiu organizar um fossado na região que ia de
Coimbra a Santarém, nomeando Peres Cativo como o seu novo alferes e
comandante da expedição.
– O Trava vai ficar furioso – apreciou meu tio Ermígio.
Peres Cativo, embora bastardo, era meio-irmão de Fernão Peres de
Trava, sendo filho do mesmo pai. A parecença física entre eles era, aliás,
notável, tinham um porte semelhante e uma altura idêntica, bem como
um olhar inteligente e frio. Só que as desavenças eram agudas e o ódio
intensificara-se com os anos, fruto do ciúme do primogénito com a
habilidade guerreira do ilegítimo.
– Talvez o posto devesse ser para um portucalense...
Descortinei um ligeiro incómodo nas palavras de meu pai, Egas
Moniz. A escolha de Peres Cativo retirava o essencial cargo da
influência dos Moniz de Ribadouro, a nossa poderosa família.
Certamente que meu pai preferia que o alferes fosse meu irmão Afonso,
já que eu não o desejava ser outra vez. Ver o posto ocupado por um não
familiar era um contratempo, uma perda de poder que nem a perícia
bélica do nomeado evaporava.
– A fúria do Trava será nossa aliada – retorquiu Afonso Henriques,
ignorando a relutância de meu pai com aquela opção.
Qualquer provocação a Fernão Peres lhe era agradável. Sem perder
tempo, deu as primeiras instruções a Peres Cativo, exortando-o a reunir
os numerosos cavaleiros-vilões de Coimbra.
– Deixaremos tudo em chamas, daqui até ao Nabão! – exclamou o
príncipe de Portugal.
O seu entusiasmo bélico propagou-se num ápice a todos nós, que
lançámos vivas a Santiago e ao Condado Portucalense. No entanto, notei
que alguém permanecera tenso e hirto.
Ramiro não partilhava do contentamento geral e aproximou-se do
príncipe, relembrando que o fossado de Peres Cativo impediria os
templários de continuarem as buscas pela bruxa Sohba e pela relíquia.
– Esse tempo passou – afirmou Afonso Henriques, com brusquidão.
Cerrando os dentes, com as veias do pescoço contraídas devido ao
enervamento, o bastardo de Paio Soares ripostou que os monges
guerreiros da Ordem do Templo de Salomão também desejavam lutar
contra os infiéis e queriam participar na expedição armada!
– Conhecemos o terreno como ninguém – reforçou Ramiro.
Porém, Afonso Henriques estava mesmo desagradado e exclamou:
– Mas não encontraram nada!
Perante a visível desilusão de Ramiro, o príncipe acrescentou que os
templários eram poucos e tinham de proteger Soure, única função que
até agora haviam cumprido bem.
– Se só isso sabeis fazer, será só isso que fareis – rematou.
Esta súbita perda de protagonismo, bem como a reprimenda pública
que a acompanhara, incomodou verdadeiramente Ramiro. A sua
insatisfação crescia a cada momento, mas só atingiu um ponto quase
insustentável quando Peres Cativo lhe atirou uma piada.
– Procurar mulheres não é a vossa vocação...
Provavelmente, o novo alferes referia-se à bruxa Sohba, mas a
insinuação podia ser considerada como mais vasta, atendendo aos
rumores que corriam sobre Ramiro e alguns dos seus companheiros de
Soure. Dizia-se que dormiam uns com os outros e esses vícios secretos,
conjugados com a sua original forma de vida em comunidade masculina,
causavam desconforto noutros soldados, que, por essas razões,
rejeitavam a companhia dos templários.
Pai, eu mato-o...
Por instantes, pareceu-me que o demasiado musculado Ramiro se
preparava para replicar a Peres Cativo, mas algo o conteve e limitou-se a
dirigir o seu olhar amargurado ao príncipe e a afirmar:
– Nossos pais vieram juntos esconder a relíquia e haveis dito que a
iríamos procurar juntos.
O bastardo de Paio Soares recordava a antiga promessa que Afonso
Henriques lhe fizera. Mas três anos haviam passado e o príncipe não vira
em Ramiro capacidades para a demanda exigida.
– Recordar os mortos serve-vos de pouco – afirmou, desagradado.
Quando desci os degraus da Sé, atrás do meu melhor amigo, notei que
Ramiro nos mirava, pálido e desconsolado.
Pai, odeio-vos...
Recordei-me dele quando o conhecera, ainda um rapazito atarantado a
quem Paio Soares humilhava em público. Apesar de o seu porte físico
imponente não despertar compaixão, voltei a ter pena dele. Foi um
sentimento bonito, mas equivocado, como o futuro me mostraria.
Coimbra, julho de 1132

Ainda à porta da Sé, observando o grupo que se afastava, o pobre


Ramiro estava abatido quando o bispo Bernardo se aproximou dele e lhe
perguntou:
– Estais em sofrimento?
O jovem templário tentou justificar-se com o desapontamento por ter
sido afastado do fossado, mas o bispo era um ser experiente, habituado a
lidar com as angústias humanas.
– Ouvi a graçola do Peres Cativo. Não foi a primeira vez...
Ramiro empalideceu, mas manteve-se calado, olhando para o chão,
como uma criança apanhada em contrapé.
Pai, estou perdido...
Então, o bispo disse:
– Há sempre perdão para tudo. Seja o que for, Deus perdoa!
De repente, o templário sentiu uma espécie de alívio por antecipação,
como se acreditasse que a purificação da sua alma surgiria, se admitisse
aquelas tormentas.
Pai, não consigo mais...
Por isso, finalmente concedeu:
– Tenho o espírito perturbado.
Agradado por o sentir a capitular, o bispo sorriu-lhe.
– Todos temos medos, receios, pensamentos impuros. É para isso que
serve a confissão, partilhamos com Deus as nossas dores.
Ramiro rendeu-se em definitivo e os dois entraram na Sé, onde se
sentaram num pequeno banco, perto da porta da biblioteca e onde o
bastardo de Paio Soares revisitou a sua existência atribulada.
Na infância, o progenitor passava o tempo a castigá-lo, mas o pior
fora o que se passara com Chamoa. Ainda se lembrava de uma tarde
longínqua em Ponte de Lima, durante as feiras, quando tinham passeado
na floresta de mão dada. Jamais se esquecera do beijo que ela lhe dera e
nunca imaginara que o pai iria desposá-la!
Pai, amo-a tanto!
Destroçado, decidira matar-se, mas Afonso Henriques impedira-o de
tal disparate. E depois também este o traíra. Chamoa, obrigada a casar
com Paio Soares, nas costas do pai dava-se ao príncipe de Portugal!
Pai, ela chifrou-nos aos dois!
Atarantado, dilacerado pelo duplo desgosto sofrido em Viseu, Ramiro
escapara para Soure, esperando nunca mais ter de ver o pai, o príncipe
ou Chamoa. Mas todos acabaram por vir ter com ele.
E tratavam-no mal! O príncipe, a quem Ramiro salvara a vida um dia,
agora ofendia-o, afastando-o das buscas? Se os pais de ambos haviam
sido companheiros leais, porque é que eles não podiam ser? Afinal,
nenhum dos dois ficara com Chamoa, que vivia agora com um primo,
em Tui. Porque é que o príncipe o desprezava tanto? Só porque não
encontrara uma velha bruxa, que provavelmente estava morta? Nomear
Peres Cativo e afastar os templários das buscas era uma injustiça! Quem
defendera Soure? Quem salvara Coimbra?
Pai, fui eu!
Afonso Henriques podia ser melhor regente do que a mãe, mas era um
precipitado. Ramiro sempre o defendera e tudo lhe perdoara. Nunca o
acusara, como muitos faziam, de ter lançado a própria mãe a ferros, nas
masmorras, depois da batalha de São Mamede! Ou de ter morto Paio
Soares só por ciúme, por ele ser marido de Chamoa! Ou de ter faltado à
palavra a Afonso VII, a quem prometera vassalagem, obrigando Egas
Moniz a ir a Toledo de corda ao pescoço!
Pai, é um canalha, matou-vos!
Ramiro odiava o príncipe e toda aquela gente em redor dele, em
especial o Peres Cativo. Seria por ser um bastardo como ele que este
último o tratava mal?
Ramiro nunca se encontrava com o Rato durante o dia, e à noite
escondiam-se dos olhares de todos, mas aquela piada do Peres Cativo
trazia água no bico. Estaria Afonso Henriques a destratá-lo por causa
desses maliciosos rumores? Sim, era isso de certeza.
Enquanto desabafava com o bispo, o templário sentiu repugnância do
que fizera. Teria de acabar com aquilo, não podia pôr a sua honra em
causa a troco de uns breves momentos de prazer. Tinha feito votos, não
dormia com mulheres, não confiava nelas, mas fazê-lo com homens era
pecado gravíssimo!
Pai, sou isto, sou assim, um desastre.
O bispo escutou-o com atenção, mas, antes de lhe dar a absolvição ou
determinar penitências, avisou:
– Tereis de sair da Ordem do Templo, se isso continuar.
O povo, os companheiros, o pároco Martinho de Soure, não iam
aceitar aquelas atividades uranistas. E a importante posição de Ramiro, o
segundo na hierarquia da Ordem, logo abaixo do mestre Jean Raymond,
ia ficar comprometida.
– Uma coisa é um rumor ou uma vaga suspeita. Outra, uma certeza –
resumiu o bispo.
Ramiro mostrou-se aterrado, a ideia de deixar de ser um monge
guerreiro era-lhe inaceitável.
– Vou mudar! – prometeu.
Porém, o experiente bispo conhecia inúmeros casos de gente que
havia jurado abandonar os comportamentos impuros, mas nunca o
conseguira. Homens que fornicavam com ovelhas; que molestavam
crianças; que matavam mulheres; todos garantiam uma alteração que
nunca chegava. Por isso, mostrou-se descrente mesmo quando Ramiro
insistiu que era jovem ainda e seria capaz de contenção!
– E o vosso companheiro? – perguntou o bispo.
Ramiro olhou-o, atrapalhado.
– O Rato?
– Que nome horrível – resmungou Bernardo.
O templário defendeu que o colega seria capaz de silêncio e
abstinência futura, mas o prelado duvidou. Certas almas feridas eram
incapazes de silêncio, queixavam-se a terceiros, era preciso ser prudente
e firme para terminar uma paixão dessas.
– Uma paixão? – interrogou-se Ramiro, deveras surpreendido.
Pai, só amei a Chamoa, não amo o Rato.
O bispo Bernardo suspirou, aquele rapaz conhecia mal a alma
humana. Por isso, deu-lhe um longo sermão, sugerindo que seguisse os
seus avisados conselhos, coisa que Ramiro aceitou de imediato,
extraindo finalmente do religioso a absolvição desejada, a que este
somou a obrigação de rezar todas as noites o terço.
– Assim farei – prometeu Ramiro.
Pai, vou mudar...
Terminado o ministério do sacramento, falaram acerca da busca da
relíquia, da troca proposta por Ermígio Moniz, do fossado que se
preparava, bem como sobre as selvajarias que Abu Zhakaria cometera
junto ao rio Nabão.
– Era um local estranho, umas ruínas macabras. Mesmo que não
tivesse lá encontrado os empalados, sentiria receio – confessou Ramiro.
O bispo aconselhou-o a concentrar-se no seu novo desígnio de pureza,
exigindo que voltasse dali a um mês, para partilhar os progressos. No
momento em que o musculado mas frágil templário se despedia dele,
beijando-lhe o anel, ouviram uma porta atrás de ambos a abrir-se e, para
espanto de Ramiro, saiu por ela a princesa Zaida, que também se
mostrou surpreendida ao vê-lo.
– Ramiro... – murmurou Zaida, sem sorrir.
O bastardo de Paio Soares desviou o olhar, não gostava daquelas
raparigas mouras, que tanto trabalho lhe tinham dado no passado.
Pai, é uma mentirosa...
Para surpresa do bispo Bernardo, Zaida também não foi, como
habitualmente, simpática e afável. Apenas lhe atirou um adeus
apressado, que levou o prelado a comentar, enquanto ela saía da Sé:
– A Zaida já conhece o livro do Génesis de trás para a frente.
Ramiro revelou a sua falta de estima pelas duas princesas mouras,
mas o bispo repreendeu-o, alegando que ele devia extinguir no seu
coração a animosidade às mulheres, para se ver livre dos seus demónios
interiores.
– Com a Zaida é fácil. A irmã é mais arisca – opinou o bispo.
Para ele, era impossível não gostar de Zaida, nem uma única pessoa
tinha algo de mau ou errado a apontar à rapariga.

É surpreendente como tantos em Coimbra se equivocaram em relação a


Zaida. A sua simpatia a todos havia conquistado, submergindo a
profundidade daquela oculta sabedoria e, sobretudo, a inteligência fina
dos seus habilidosos estratagemas. Certas mulheres são assim, a doçura
é uma arma de distração, um manto amável debaixo do qual se
escondem insondáveis propósitos.
Coimbra, julho de 1132

A meio da manhã, Zaida vira Ramiro entrar na Sé e assustara-se.


Invadida pelo temor de ser apanhada, fora a casa deixar o punhal de Paio
Soares, voltando a correr à biblioteca, pois estava prestes a fazer uma
importante descoberta.
Três anos antes, no dia da morte de Zulmira, a mais nova das
princesas aproveitara a tremenda confusão que se instalara no casão
agrícola de Mem para roubar o punhal com que Afonso Henriques
matara o feddayin. Com um gesto rápido, escondera-o no vestido e
depois levara-o para casa.
Aquela valiosa arma, cujo proprietário era o falecido Paio Soares,
tinha um escrito essencial, em latim e no cabo, cujo significado Zaida
conhecia: Sellium, o local onde estava escondida a relíquia. Contudo,
apenas dois anos depois da morte da mãe o bispo Bernardo voltara a
autorizar as suas visitas à biblioteca da Sé e só aí a sua secreta demanda
começara.
Enquanto lia os Atos dos Apóstolos, ia vasculhando os antigos mapas
romanos e acabara de descobrir que Sellium ficava a nordeste de
Santarém, perto da pequena aldeia de Tomar. A princesa sentiu uma
forte comoção, mas enrolou o antigo mapa e preparava-se para regressar
a casa quando ouviu alguém levantar a voz, na nave central da Sé. Pé
ante pé, aproximou-se e deixou-se ficar numa antecâmara. Os
conselheiros de Afonso Henriques parlamentavam e ela escutou,
siderada, a proposta de Ermígio Moniz.
Filha, que diz ele? Não acredito!
Pela primeira vez, alguém na corte de Afonso Henriques admitia a
hipótese de as libertar! O mordomo-mor sugeria uma troca entre cristãos
e mouros: a relíquia pelas princesas de Córdova! O seu coração acelerou
ainda mais, mas logo se desiludiu, pois Afonso Henriques rejeitou a
solução e decidiu lançar um fossado na região.
Apesar de desejosa de abandonar a Sé, foi, porém, obrigada a esperar,
pois, após a partida de Afonso Henriques e dos seus conselheiros,
Ramiro e o bispo Bernardo regressaram ao interior da igreja. Nada
surpreendida, ela escutou a estranha e longa confissão do templário,
embora o seu espírito estivesse já totalmente dominado por uma
vertigem excitada: a perspetiva da liberdade!
As netas do último califa de Córdova iam voltar à sua terra! Poderiam
ascender de novo ao trono que por tantos séculos pertencera aos Benu
Ummeya, a família que ali reinara, da qual eram as últimas
representantes. Nunca haviam estado tão perto, o caminho para Córdova
passava por Sellium e pela relíquia sagrada!
Filha, é a hora!
Incapaz de se conter mais, Zaida abriu a porta da antecâmara e passou
em frente de Ramiro e do bispo, dirigindo-lhes apressadamente
cumprimentos. Depois, saiu e correu pela almedina, até chegar à casa
onde ela e Fátima viviam.
Mal entrou, ficou horrorizada. O interior da habitação estava virado
do avesso, havia lençóis espalhados pelo chão, mobília fora do sítio e
arcas abertas. À sua frente, Fátima, que devia ter chegado um pouco
antes, parecia aborrecida com tanta confusão e protestou:
– Que vos deu para deixar a casa neste estado?
Aos poucos, Zaida tomou consciência de que o local fora assaltado.
Assustada, dirigiu-se ao quarto e apoderou-se dela um misto de ira e
medo ao descobrir o que mais temia: o punhal de Paio Soares, que ela
escondera numa arca, desaparecera!
Filha, roubaram-vos!
Irritada, praguejou em voz alta, enquanto, nas suas costas, Fátima lhe
perguntava o motivo de tanto alarido. Então, Zaida pediu à irmã que se
sentasse na cama e contou-lhe tudo. O roubo do punhal, no dia da morte
da mãe; a inscrição em latim, no cabo; a descoberta no mapa, na Sé; a
proposta de Ermígio Moniz. Quando referiu Abu Zhakaria e a matança
dos galegos, Fátima exclamou:
– Grande Abu!
Há muitos anos que a mais velha das princesas mouras adorava o
destemido cordovês e todas as noites sonhava cair nos seus braços. E ele
não desistia, em Santarém já se cantavam trovas sobre o persistente e
apaixonado muçulmano, que azucrinava os cristãos na esperança de um
dia resgatar Fátima.
– Não me esqueceu... – murmurou esta, embevecida.
Zaida não se distraiu com aquele romantismo tolo e perguntou:
– Não haveis visto ninguém a rondar-nos a casa?
A irmã fez um esforço para se recordar, que se revelou infrutífero.
– Alguém sabia do punhal – concluiu Zaida.
No entanto, de pouco lhe serviu essa primeira dedução, bastante
óbvia, bem como a seguinte, menos evidente:
– O Ramiro não pode ter sido, esteve na Sé a manhã toda.
De repente, uma dúvida assaltou-a:
– Terá sido o Velho? Choquei com ele hoje.
Levantando-se, Fátima lançou-lhe um olhar crítico e disse:
– Talvez tenha sido o cristão que cá veio.
Referia-se a Gonçalo de Sousa, que a irmã ali recebera, mas Zaida
afastou tal possibilidade, pois já passara mais de um ano sobre essas
visitas e ainda hoje ela tivera o punhal nas mãos.
– Pouco interessa quem aqui veio – afirmou Fátima. – Se já sabeis
onde fica Sellium, não necessitamos do punhal!
Era verdade, mas a cortante sensação da vulnerabilidade da casa, a
irritação pela perda da arma tão bem guardada e a suspeita sobre o autor
daquela intromissão estavam a moer Zaida. Foi Fátima, mais
desprendida dessas emoções inúteis, que a puxou à terra.
– Temos é de avisar o meu Abu.
A proposta de Ermígio Moniz começava também a seduzi-la,
sobretudo pela reviravolta no destino que possibilitava, permitindo-lhes
sonhar outra vez. A Andaluzia continuava a sofrer com o jugo de Ali
Yusuf. Porém, o califa almorávida de Marraquexe era cada vez menos
respeitado pelos muçulmanos andaluzes e já se ouvia falar de pequenas
rebeliões em Sevilha, em Badajoz e em Mértola.
– Se voltarmos a Córdova, toda a Andaluzia se levanta contra o
maldito califa berbere! – garantiu Fátima.
A legitimidade dos sonhos de grandeza das duas princesas
alimentava-se no sangue real que lhes corria nas veias, fosse do lado
paterno, pois eram netas de Hixam III, último califa de Córdova, fosse
do lado materno, pois sua mãe, Zulmira, também era neta do antigo rei
de Sevilha Al-Mutamid.
As duas princesas desejavam regressar pela porta grande ao Azzahrat,
o palácio real de Córdova, acreditando que as taifas muçulmanas da
Andaluzia, os pequenos reinos mouros que no presente se submetiam a
Ali Yusuf, se revoltariam contra aquele estrangeiro africano e correriam
a agrupar-se em redor das herdeiras legítimas dos Benu Ummeya.
No entanto, ambas sabiam que aquele glorioso desfecho só seria
possível se fosse dado o primeiro passo. Para se libertarem daquele
longo cativeiro em Coimbra, precisavam da relíquia e para chegar a ela
necessitavam de alguém que as ajudasse!
– Por onde andará o Mem? – perguntou Zaida.
Fátima torceu o nariz, desconfiava daquele almocreve, que
considerava um interesseiro.
– Anda sempre atrás das cristãs... – comentou.
Zaida sorriu, com uma ponta de orgulho. Mem era um galanteador,
amável com as mulheres e muito bonito. A mãe das raparigas
apaixonara-se por ele, mesmo sendo muito mais velha, e Zaida também
o beijara várias vezes. Mas a morte de Zulmira ensombrara o coração do
almocreve e nos últimos anos este afastara-se delas, cumprindo o triste
luto por Zulmira.
– Mem é a nossa única esperança! – insistiu Zaida.
Descontente, Fátima colocou-lhe uma pertinente questão.
– O Abu vai vasculhar nas ruínas? Demorará semanas!
De nada valia enviar uma mensagem a Abu Zhakaria, dirigindo-o a
Sellium, se ele não soubesse exatamente onde procurar a relíquia. O
perímetro da busca ainda era largo e as ruínas obrigariam a escavações
demoradas. Tinham de ser mais exatas, caso contrário Abu arriscaria a
vida em vão.
Enervada, Fátima concedeu:
– Só a bruxa, a tal Sohba, que dizem ser nossa tia, é que sabe onde
enterraram a coisa! Por onde andará essa louca?
Zaida partilhou com a irmã uma hipótese que há muito lhe pairava no
espírito. A mãe Zulmira escondera-se uns tempos em Lisboa, onde
conhecera o pai delas, Hixam de Hisn Abi Cherif, um homem culto,
bom e rico, por quem se apaixonara.
– Sohba pode ter fugido para lá – admitiu Zaida.
Lisboa era uma cidade anárquica, onde cristãos, árabes, moçárabes e
até judeus conviviam, sem prestar tributo a ninguém. Nem o califa de
Marraquexe conseguia controlar aquela povoação rebelde. Talvez Sohba
lá estivesse e talvez Mem pudesse ir a Lisboa, sugeriu Zaida.
– Duvido – resmungou Fátima.
Uma coisa era Mem ir a Santarém dar um recado a Abu Zhakaria.
Outra era pedir-lhe que se dirigisse a Lisboa, à procura de uma
misteriosa bruxa.
– Não temos outra solução! – rematou Zaida – Terei de o convencer.
Fátima olhou-a de soslaio. Se a irmã já se amigara com um cristão,
Gonçalo de Sousa, não teria qualquer pudor em dar-se também ao
almocreve. Havia, porém, um risco. Anos antes, Zaida prometera a Mem
que ele seria o seu primeiro homem.
– O almocreve vai descobrir que foi ultrapassado... – avisou Fátima.
Zaida encolheu os ombros. Sendo certo que não podia cumprir essa
sua antiga promessa, não desistiu e adiantou:
– Nossa mãe ensinou-nos como se engana um homem.
Com uma certa arrogância que por vezes a iludia, aquela bela Eva
julgava-se muito hábil, esquecendo-se, porém, de que teria de ludibriar
um experiente Adão.
Coimbra, agosto de 1132

Há já uma semana que uma canícula tremenda assentara arraiais em


Coimbra. O povo refrescava-se em banhos no Mondego e mesmo àquela
hora da madrugada, quando a leste surgia a luz nascente do novo dia, um
bafo pesado começava já a abater-se sobre a cidade. Mem avançou
devagar pelas ruas desertas, regressando ao casão agrícola, enquanto
dentro da sua alma a serenidade se sobrepunha aos maus pensamentos,
acompanhada de ditos espirituosos, um hábito que herdara de seu pai.
Amigo enganado, passado negado...
Notara perfeitamente que aquelas manchas vermelhas não eram de
Zaida. Pelo cheiro, era sangue de carneiro. O almocreve estava
habituado aos odores dos animais, mortos ou vivos, e era um macho
vivido, que já dormira com muitas mulheres. Bonito e simpático, com
uns olhos azuis e uns cabelos onde sobressaíam alguns caracóis
dourados, vestígios herdados de uma mãe cristã e clara de pele, Mem
sempre se safara bem. Conhecera na intimidade mouras e judias,
moçárabes e cristãs, novas e velhas, casadas e solteiras, virgens e
soldadeiras, por isso sabia reconhecer uma mulher inaugurada.
Marota sabida, já foi comida...
Ao dar-se conta de que Zaida o enganava, o seu primeiro pensamento
fora sobre o potencial rival que o precedera. Quem tivera o privilégio de
a tomar pela primeira vez? Naturalmente, Mem nada comentou ou
perguntou, pois respeitava muito as mulheres e, não sendo casado com
nenhuma, não tinha o direito de lhes exigir fidelidade. Zaida não lhe
devia explicações, nem queria colocá-la na posição desconfortável de ser
apanhada a mentir. Portanto, ignorou a questão. Fosse quem fosse o
primeiro homem de Zaida, não fora ele.
Bom proveito, enche-nos o peito...
A verdade é que a possuíra e seria deselegante não se sentir grato,
arruinando a tórrida noite com perguntas inconvenientes. Zaida era bela
e dona de um corpo glorioso, dos melhores que lhe haviam passado
pelas mãos, e adorou tê-la tomado finalmente por inteiro.
No passado tinham estado juntos, mas sempre a três, na presença de
Zulmira. Respeitando o seu papel secundário, Zaida deixara-o sempre
para a mãe. Havia-o beijado e sido beijada por ele, mas o almocreve
nunca se metera dentro dela, como fizera com Zulmira.
Sentia saudades daquela mulher bem mais velha do que ele e ainda se
castigava por não ter conseguido evitar a sua morte às mãos do maldito
assassin enviado por Ali Yusuf. Mas os três anos já passados sobre esse
fatídico dia haviam minorado o sofrimento da perda de Zulmira, e Mem
estava contente por Zaida o querer. Sendo assim, limitou-se a tentar
entender o truque intencional dela e a conclusão a que chegou foi
simples: ela enganara-o para ressuscitar a amizade.
Já à porta do seu casão agrícola, Mem recordou o que se passara nessa
tarde, quando Zaida ali chegara, afogueada pelo calor.
– Mem querido, é bom ver-vos!
Aquelas palavras encantaram-no. Mem querido era a expressão usada
no passado por Zulmira, o subtil convite para ele entrar numa terra
prometida. Quando ouvira Zaida repetir esse código, ficara com a
absoluta certeza de que, naquele dia, iria tê-la pela primeira vez.
Primeiro dia, exige sabedoria...
Convidara-a a entrar no casão agrícola, mas ela não conseguira.
Aflita, olhara para a porta e justificara-se: era-lhe insuportável a visão do
local onde a mãe fora degolada. Mem respeitara esse impedimento da
alma dela e sugerira um passeio aos banhos públicos.
Pelo caminho, Zaida fora-lhe narrando os acontecimentos recentes e o
almocreve ouvira-a em silêncio, notando a excitação que se apoderara
do coração da princesa, prevendo a possibilidade de ser libertada. A
dada altura, Mem sentira-se triste, quando verificara que ninguém, nem
ele, faria Zaida ficar em Coimbra, tal era a vontade dela em regressar a
Córdova.
Sem revelar tal sentimento, escutara o pedido de ajuda para ir a
Lisboa procurar Sohba. O almocreve já estivera naquela cidade algumas
vezes e podia trazer de lá mel, frutas, vinho e queijadas, abastecendo a
sua carroça de requintados produtos que depois venderia em Coimbra ou
em Santarém. A viagem seria fácil, a sua maior preocupação era o
fossado de Peres Cativo.
– É mau para os almocreves, o comércio diminui com as guerras.
Por isso, a urgência, exclamara Zaida! Sohba e Zhakaria tinham de
encontrar a relíquia antes de a região se transformar num inferno!
Apesar da crença entusiasta da princesa, Mem duvidara da execução
do plano, pois Sohba seria difícil de encontrar em pouco tempo.
– Zhakaria devia ir já para Sellium – sugerira.
Como conhecia as ruínas, por ter passado lá perto várias vezes nas
suas viagens comerciais, Mem podia juntar-se ao cordovês na velha
povoação, à procura da relíquia do conde Henrique.
– Para quê perder tempo? – ripostara Zaida – Se Sohba sabe onde está
o tesouro, é mais fácil descobri-la em Lisboa e levá-la a Sellium.
E estaria Sohba em Lisboa? Ao falar nela, Mem sentiu saudades.
Nutria um duradouro sentimento de gratidão para com aquela misteriosa
e idosa senhora de negro. Depois do que haviam passado juntos,
mantivera-se vivo um elo de forte cumplicidade entre eles. Mem era o
único que não lhe chamava bruxa, nem a temia.
– Sohba gosta de vós – reconhecera Zaida, com um sorriso meigo e já
prometedor, acrescentando – Como todas as mulheres...
Porém, o almocreve temia os riscos da aventura. Equilibrar-se
naqueles tempos duvidosos era uma arte difícil.
– Há guerras na Andaluzia. Afonso VII combate os mouros e estes
lutam entre si. Irem para Córdova agora é arriscado – recordara.
Sem qualquer sinal de desânimo, Zaida contrapusera o argumento de
que Zhakaria era um grande combatente, seria capaz de as levar até lá
sãs e salvas. Além disso, o novo governador de Córdova, chamado
Ismar, um árabe andaluz que odiava os berberes e o califa Ali Yusuf,
certamente as iria receber de braços abertos no Azzahrat.
– Tudo é frágil nestes tempos – murmurara Mem, preocupado.
Sentindo-o hesitante, Zaida encostara-se a ele, o seu peito tocando-lhe
no antebraço. Mem escutara o coração a acelerar. Recordara os seios
cheios dela, pressionados contra as costas dele e relembrara-se da
primeira vez que os tinha beijado. Fora ali mesmo, naqueles banhos
públicos à porta dos quais estavam agora.
Memória quente, anima a gente...
Como fazia muito calor, Mem sugerira que entrassem no local, que
em breve seria destruído devido à construção do Mosteiro de Santa
Cruz. Porém, ao verem várias pessoas lá dentro, Zaida deduzira que os
cristãos não iriam aceitar tais liberdades em público.
– É melhor voltarmos à noite – dissera ela.
Mem prometera então descobrir quem roubara o punhal de casa das
irmãs e dirigira-se às portas da cidade, à Sé e à alcáçova, fazendo aqui e
ali discretas perguntas, ficando a saber que, no dia do assalto à casa das
mouras, Ramiro havia chegado pela manhã a Coimbra, trazendo à
pendura o Velho, que, no entanto, já não acompanhara o jovem
templário de regresso a Soure.
Ao princípio da noite, Zaida regressara e depois de Mem revelar que o
autor do roubo devia ter sido o Velho, os dois dirigiram-se de novo aos
banhos públicos e haviam entrado, avançando até próximo da piscina
onde, anos antes, ambos se tinham banhado com Zulmira. Nesse
momento, a nostalgia invadira Mem, que suspirara.
– Que foi? – perguntara Zaida.
O almocreve murmurara:
– Todos os dias me lembro de vossa mãe.
Zaida comovera-se e chorara durante algum tempo, encostada ao
ombro dele. Por fim, limpara as lágrimas ao lenço e desabafara:
– Não aguento mais esta cidade.
A sua vontade de regressar a Córdova, uma terra donde tinha saído
em criança, era suplantada pelo irreprimível desejo de fuga de Coimbra,
onde as recordações da mãe lhe eram insuportáveis.
– Tirai-me daqui, Mem, por favor! – pedira.
Zaida desejava regressar para junto da sua mãe e de seu pai, ambos
enterrados no pequeno mausoléu onde estavam também depositados os
restos mortais do avô das raparigas, Hixam III, o último califa de
Córdova.
– Levai-me para lá, Mem querido – insistira Zaida.
Fora aquele segundo Mem querido que precipitara o momento. Zaida
tirara o vestido e entrara na água nua. O almocreve fizera o mesmo e já
dentro da piscina enlaçara o corpo dela, enquanto fechava os olhos e se
recordava de Zulmira. As mãos que o tocavam agora pareciam as dela.
– Sois tão bela como a vossa mãe – murmurara ele.
Zaida sorrira-lhe e dissera:
– Eu sou a minha mãe.
O almocreve permanecera de olhos fechados, imaginando que era
mesmo Zulmira que estava ali, como naquele dia já longínquo.
encostada à borda da piscina, de costas para ele.
– Eu sou a minha mãe – repetira Zaida.
Mem encaixara-se nela e de repente recordara-se de que da outra vez
tinham sido interrompidos pelo berro de Fátima, vindo da rua. Agora,
não havia ninguém a gritar, mas a lembrança perturbou-o.
Coração alarmado, coito parado...
Se Zaida era Zulmira, não podiam continuar na piscina, pois ali nada
mais acontecera a não ser uma interrupção desagradável das carícias.
– Vamos – dissera então Zaida, sentindo o mal-estar dele.
A rapariga dirigira-se ao corredor e Mem ouvira-a nos seus afazeres
íntimos, enquanto se secava. Avançara depois até a uma pequena salinha
onde existia um colchão e Zaida viera ter com ele, sorrindo e já pronta.
Mem abraçara-a de novo e beijara-a na boca e fechara os olhos e vira a
mãe dela.
Mãe amorosa, filha dengosa...
Fora ali que Zaida o tentara enganar, gemendo de dor e mostrando os
vestígios da quebra da virgindade no colchão. Mem sorrira e agradecera-
lhe ter cumprido a jura que um dia lhe fizera. Mesmo sabendo que ela o
enganara, não valia a pena estragar o momento e mostrara-se encantado.
Tal como um dia fizera a Zulmira, prometera a Zaida ser o seu criado, o
seu anjo-da-guarda, o seu soldado mais feroz, que a poria a salvo de
qualquer demónio, com uma lealdade cega que não exigia qualquer
contrapartida. Infinitamente grata, Zaida comovera-se com tanta
dedicação e entregara-se novamente, com doçura e atrevimento,
levantando para ele as nádegas.
Rabo arqueado, menino consolado...

Mais tarde, quando Mem a deixou em casa, sabia que por causa daquela
bela moura iria a Lisboa, a Córdova ou ao fim do mundo, se fosse
preciso, mas nunca esqueceria o seu estatuto menor. Podia tomá-la,
como um dia fizera a Zulmira, mas nunca seria mais do que um leal
amigo, pois, tal como a mãe, Zaida era uma princesa e as princesas não
casavam com almocreves.
Compostela, dezembro de 1132

Uma bela rapariga rezava, compenetrada e solitária, num canto da


grande catedral de Compostela e por várias vezes Afonso VII tentou
cruzar o seu olhar com o da beldade, mas não foi bem-sucedido, pois a
absorta moça nada ligava ao que se passava à sua volta.
O rei de Leão, de Castela e da Galiza viera ali para pedir a ajuda
divina nas muitas guerras que enfrentava. A sul de Toledo, tinha de
suster os berberes almorávidas do califa Ali Yusuf. A leste, mantinha-se
intensa a contenda com o antigo marido de sua mãe, Dona Urraca, o rei
Afonso I de Aragão, que lhe disputava a hegemonia peninsular. Por fim,
a oeste, havia o sempre irrequieto Afonso Henriques, que persistia em
recusar-lhe vassalagem e construíra um novo castelo em plena Galiza,
na povoação de Celmes.
Além disso, também o perturbava a divisão religiosa da Igreja de
Roma, o cisma grave verificado quando Anacleto recusou a eleição de
Inocêncio II para Papa, disputando-lhe o trono de São Pedro. O monarca
leonês apoiara o Antipapa na esperança de que ele vencesse o conflito,
mas as querelas agudizavam-se e Anacleto exigia que ele proibisse os
«monges apostólicos», que por toda a península se começavam a
instalar.
Como se tudo isso não fosse já suficiente, Berengária de Barcelona,
sua esposa há quatro anos, mostrava-se incapaz de engravidar. Sem
qualquer herdeiro para exibir, Afonso VII começava a sentir a pressão
da paternidade, matutando já numa possível alternativa a tanta
esterilidade e certamente por isso se alvoroçara com a visão daquela
magnífica rapariga. Os cabelos loiros e os olhos verdes da moça tinham
feito trepidar as suas entranhas masculinas, o que era coisa rara, pois
Afonso VII sempre se mostrara contido e de reputação intocável, para
assim esbater a desvairada herança materna. Dona Urraca colecionara
inúmeros amantes e o seu inconstante útero multiplicara os problemas
nos territórios cristãos onde reinava. Não querendo repetir tais
desgraças, Afonso VII impusera a si próprio o recato e evitava galantear
as senhoras.
Porém, pela primeira vez e perante tal visão celestial, o monarca
leonês sentiu-se tentado a meter conversa. Mas foi tanta a hesitação que,
quando finalmente já se tinha decidido, viu que a beldade se levantava,
sempre de olhos no chão e com um ar tristíssimo, desaparecendo entre
as gentes que rezavam na catedral. Angustiado, Afonso VII sentiu que
alguém tinha apagado a luz que o ofuscara e uma breve angústia
assolou-o, como se tivesse perdido a oportunidade de uma vida.

No final da missa, Fernão Peres de Trava veio ter com ele. O alto e bem-
parecido galego continuava sombrio e Afonso VII concluiu que ele
nunca recuperara totalmente da morte da sua grande paixão, Dona
Teresa de Portugal, a mãe de Afonso Henriques.
– O meu homem de Soure já chegou. Trouxe-me isto...
O Trava entregou ao rei de Leão um bonito punhal, com uma pérola
no topo do cabo e a palavra Sellium gravada de lado. A sua companhia
de galegos morrera junto ao rio Nabão e a arma fora roubada pelo seu
fiel espião, que vivera vários anos integrado, em segredo, na Ordem do
Templo de Salomão, em Soure.
– E a relíquia? – perguntou Afonso VII.
O Trava abanou a cabeça, desconsolado. Os seus homens não tinham
encontrado o sagrado artefacto do conde Henrique.
– Não há maneira! – irritou-se Afonso VII.
Fora por não ter conseguido extrair ao conde Henrique o esconderijo
da famosa relíquia que Dona Urraca o mandara envenenar, coisa que
Afonso Henriques jamais esquecera.
– De quem era este punhal? – perguntou o monarca.
A arma pertencera ao já falecido Paio Soares, antigo alferes do conde
Henrique, que o acompanhara até ao esconderijo do tesouro.
– Paio Soares... – suspirou Afonso VII. – Minha mãe estimava-o, mas
ele nunca lhe revelou esse segredo.
Dito isto, o rei de Leão quis saber quais eram os próximos passos do
Trava. Desejava fortemente a relíquia, pois queria oferecê-la ao
Antipapa Anacleto, para que este o apoiasse no seu desejo de se coroar
imperador das Hispânias, sucedendo ao seu avô, Afonso VI.
– Enviarei o meu homem sozinho. Dará menos nas vistas. Mas antes
devíamos atacar Celmes! – propôs Fernão Peres.
Afonso VII refletiu em silêncio. As lutas mais ferozes contra Afonso I
de Aragão travavam-se sempre no verão, tal como as que o opunham aos
almorávidas. Talvez fosse possível cercar Celmes um pouco antes, no
final do próximo inverno. Porém, não podia dispensar demasiadas tropas
para essa aventura.
– Só há quinhentos portucalenses por lá, serão fáceis de derrotar –
garantiu Fernão Peres de Trava.
Afonso Henriques, perdido o Castelo de Celmes, certamente atacaria
Tui ou Límia em retaliação. Como o príncipe de Portugal não tinha
vastas tropas, teria de trazer as que se encontravam em Coimbra ou mais
a sul, no fossado liderado por Peres Cativo.
– Virão todos a correr! – exclamou o Trava.
Os seus ódios aos portucalenses não se resumiam a Afonso
Henriques, mas também a Gonçalo de Sousa, alcaide de Celmes, que o
humilhara na batalha de São Mamede, bem como a Peres Cativo, seu
meio-irmão, que o traíra na mesma refrega.
– Ides ajustar contas com eles – disse Afonso VII, a sorrir.
O Trava alegrou-se, mas pouco depois lembrou que tinham de ser
discretos na busca da relíquia, pois era sabido que o arcebispo Gelmires,
que estava nesse momento ainda no altar da catedral, à frente deles, era
um grande apreciador de relíquias sagradas, já tendo roubado várias aos
portucalenses, em Braga. Não podiam deixá-lo apoderar-se de mais
uma!
– Há pouco, temi que minha sobrinha tivesse vindo falar com ele...
O Trava resumiu ao rei a história de Chamoa Gomes, que, apesar de
ter já quatro filhos de dois homens, ainda amava o príncipe de Portugal e
tudo faria para o ajudar, incluindo tentar aliar-se ao arcebispo de
Compostela.
– Vou ter de vigiá-la – concluiu o Trava – Quando daqui saiu, ordenei
aos meus soldados que a acompanhassem de volta para Tui.
O rei de Leão franziu a testa e perguntou:
– Vossa sobrinha estava cá?
O Trava descreveu-lhe Chamoa e Afonso VII sentiu o coração a
trepidar. A belíssima rapariga que tanto o emocionara há pouco era a
sobrinha de Fernão Peres e paixão de Afonso Henriques! Alvoroçado,
quis conhecê-la, mas o Trava disse que a rapariga já partira para Tui.
Irritado, mas consciente de que não podia exagerar nos seus desejos, o
monarca leonês pediu então ao nobre galego que fizesse tudo para
impedir que Chamoa se juntasse a Afonso Henriques.
– Assim farei! – prometeu o Trava.
Agradado, Afonso VII estabeleceu as prioridades. Cercariam Celmes,
obteriam a relíquia da Terra Santa e manteriam Chamoa longe do
príncipe de Portugal. Mal conseguissem derrotar Afonso I de Aragão, o
monarca leonês poderia oferecer a relíquia a Anacleto e coroar-se
imperador das Hispânias!
– E, sendo Chamoa tão fértil, talvez me dê finalmente um filho! –
exclamou o primo de Afonso Henriques, deveras entusiasmado.
Tui, dezembro de 1132

No cruzamento da estrada que vinha de Compostela, Mem Tougues


esperou que seu tio Fernão Peres de Trava se lhe reunisse, enquanto
tentava afastar o desconforto que sentia ao aproximar-se de Tui. Tal
como no ano anterior, fora convidado por Elvira Peres de Trava para
passar o Natal em família. Mas um ano de desilusões desencantara-o e
temia um reencontro desconsolado, como as últimas visitas.
Longe iam as carícias com que, no ano anterior, Chamoa o brindara.
Mem Tougues amava a prima e, quando ela o convidara a entrar na sua
cama, rejubilara. Contudo, aquela noite natalícia não fora o princípio de
um grande enamoramento, mas apenas a primeira das três míseras vezes
que a prima se entregou a ele.
Chamoa acedera às suas visitas, de dois em dois meses e, agradecido
e fascinado, Mem Tougues regressara a Tui em inícios de março e em
finais de maio, ocasiões em que ainda a teve. Porém, as coisas mudaram
com a chegada do verão. Da terceira vez que a visitou, em julho,
Chamoa alegara um impedimento físico. Não queria ter mais filhos,
quatro rapazes era suficiente, e o Tougues, sempre dócil, aceitara com
submissão aquela primeira rejeição.
Só à quarta visita, em setembro e perante nova nega, percebera
finalmente que não estavam a caminho de uma união sólida. Enervado,
queixara-se a Gomes Nunes e a Elvira Peres de Trava, insinuando que
Chamoa não podia continuar a fantasiar com uma reconciliação com o
príncipe de Portugal, que acabara de ser pai de uma menina, filha de
Elvira Gualter.
O pacato Gomes Nunes, como sempre, encolhera os ombros e
continuara a brincar com os quatro netos. Já Elvira Peres de Trava, a
anafada mãe de Chamoa, cuja alma urdia mais intrigas do que as suas
mãos produziam cozinhados, aconselhara-o em surdina:
– Deixai-a arder em ciúme, vereis que vos abrirá as pernas.
Mas, a crença de que Chamoa se perturbaria com a notícia de que
Afonso Henriques emprenhara outra mulher revelara-se infundada.
– Tenho três filhos de Paio Soares e um vosso, e nunca deixei de amar
o príncipe de Portugal! – exclamara minha cunhada.
Portanto, a esterilidade das visitas do Tougues a Tui mantivera-se
também em setembro e em novembro, razão pela qual ele estava agora
ansioso. E, quando seu tio Fernão Peres o cumprimentou, a
incomodidade cresceu, pois este zombou-o:
– Ó tolo sobrinho, já não sois capaz de domar vossa prima?
O Tougues não lhe ripostou, pois tivera um mau pressentimento ao
ver, uns poucos metros atrás, um velho a cavalo, de olhar frio e firme.
Assustado, perguntou quem era aquele desconhecido.
– É meu servo, homem da minha confiança – esclareceu o Trava.
Chamava-se Velho, estivera vários anos em Soure e regressara no
verão, trazendo com ele o célebre punhal de Paio Soares. Agora seria o
que fora no passado, um leal servidor, capaz de cumprir qualquer ordem,
até de degolar mulheres e crianças.
Estas palavras provocaram um arrepio no Tougues, que conhecia as
ameaças do tio a Chamoa e por isso o questionou:
– Irá matar alguém em Tui?
Fernão Peres ignorou a questão do sobrinho e informou-o das novas
ordens de Afonso VII, decididas em Compostela, avisando-o:
– Chamoa não as pode saber.
O Trava temia que a sobrinha usasse o mesmo expediente do anterior
Natal, oferecendo-se a Mem Tougues para em troca conhecer os planos
contra Afonso Henriques.
– Tereis de tomá-la de boca fechada.
Mem Tougues mordeu o lábio, sentindo-se encurralado. Não sendo
estúpido, percebera que a prima lhe fechara as pernas desde que ele
suspendera as revelações. Sempre vaidoso, compôs o novo balandrau
azul, enquanto dava voltas à cabeça para resolver o imbróglio de dormir
com Chamoa sem lhe bufar os segredos do tio.
Inesperadamente, a ocasião surgiu na noite de Natal. A dada altura, os
homens ficaram sozinhos a conversar. A Mem Tougues e ao anfitrião
Gomes Nunes – que tinha a seus pés o neto mais velho, Pêro Pais, filho
de Chamoa e Paio Soares – juntavam-se os irmãos Bermudo e Fernão,
tendo este último revelado que o ataque a Celmes seria comandado pelo
próprio Afonso VII.
Prevista para o início da primavera, a operação exigia a participação
dos soldados de Gomes Nunes, caso contrário o monarca considerá-lo-ia
um traidor e viria também cercá-lo a Tui. Atrapalhado, o pai de Chamoa
mandou o neto sair da sala, pois não queria assustá-lo com conversas
guerreiras. Depois, invocou a sua difícil situação: se alinhasse com um
dos Afonsos, teria de se haver com o outro!
– Escolhei: Afonso VII ou Afonso Henriques! – exigiu o Trava.
Perante este desagradável dilema, Gomes Nunes acabou por ceder.
Ajudaria o Trava e Afonso VII, pois ainda estava agastado com a forma
como Afonso Henriques o destratara em São Mamede.
– Mas tendes de manter segredo – acrescentou Fernão Peres.
Relembrou ao pai de Chamoa as suspeitas que tinha sobre as
lealdades desta e informou-o de que um homem da sua confiança, o
Velho, iria vigiá-la em permanência em Tui. Gomes Nunes sentiu-se
afrontado: a filha seria tratada como uma prisioneira no castelo do
próprio pai? Orgulhoso, ripostou, alegando que os seus soldados podiam
guardá-la, mas o Trava impôs a sua vontade.
À hora da ceia, o Tougues ficou desapontado, pois não viu Chamoa.
Inquieto, aproximou-se de Elvira Peres de Trava, que lhe disse que a
filha fora deitar Pêro Pais, acrescentado com matreirice:
– Esperai um pouco e levai-lhe vinho galego.
Com um olhar guloso que arrepiou o Tougues, rematou:
– Todas precisamos de homem, de vez em quando...
O Tougues correu ao quarto de Chamoa bem fornecido de vinho, mas
nem a visão da bebida amaciou o coração da rapariga galega, que
franziu a testa, contrariada.
– Que desejais?
O primo recordou que fora no Natal anterior que se tinham
reaproximado. Era tempo de amizade outra vez! Contudo, Chamoa
revelou-se impenetrável e mirou-o, em desafio.
– Sei bem o que tramais com nosso tio.
Mem Tougues estava preparado para lhe revelar alguns segredos, tal
era a ânsia de a possuir, mas não contara que ela já os tivesse conhecido
por outras vias. Espantado, ouviu Chamoa afirmar:
– Afonso VII e Fernão Peres vão atacar o Castelo de Celmes!
O primo surpreendeu-se, como poderia ela já saber? Fosse como
fosse, Mem Tougues farejou na situação uma oportunidade.
– É verdade o que dizeis, bela prima, mas sei mais do que isso...
A curiosidade da rapariga acendeu-se de imediato e olhou-o de forma
menos hostil, tendo depois desviado os olhos para o vinho.
– Desejais que vos sirva? – perguntou o primo.
Ofereceu-lhe um vaso cheio e foi contando as intenções gerais de
leoneses e galegos. Interessada, Chamoa escutou-o e Mem Tougues
tomou aquela atenção como desejo. Já inebriado, cometeu um erro fatal,
confessando-lhe que o Trava tinha destinado o Velho para a vigiar a
toda a hora.
Mal o soube, Chamoa abandonou a atitude conciliatória. A suavidade
do seu rosto, que regressara aos poucos, desapareceu num ápice e nos
seus olhos verdes nasceu uma ira primitiva.
– Sou prisioneira na minha própria casa?
O Tougues tentou amansá-la, seria só por uns tempos, até à
primavera, era coisa pouca, ele próprio ficaria sempre junto dela.
– Se eu estiver convosco, será diferente! – defendeu.
Zangada, Chamoa desprezou o argumento:
– Ou durmo convosco ou tenho um desconhecido à perna?
Desesperado, Mem Tougues tentou falar-lhe ao coração:
– Bela prima, não vos preocupeis! Falemos do nosso filho comum.
Com brusquidão, Chamoa interrompeu-o e gritou:
– Quem vos julgais? O único que amo e desejo é Afonso Henriques!
Colérica, expulsou-o dos seus aposentos, numa berraria estrondosa
que obrigou a família a comparecer no corredor para tentar acalmá-la, o
que verdadeiramente só aconteceu quando Pêro Pais, seu filho mais
velho, surgiu de repente e lhe pegou na mão, ao mesmo tempo que
ordenava aos restantes presentes:
– Deixai minha mãe em paz!
Com convicção, conduziu Chamoa para dentro do quarto e fechou a
porta, deixando o resto da família pasmado com a forma imperativa
como falava, que todos consideraram prematura numa criança que nem
seis anos tinha. Só a venenosa Elvira Peres de Trava não se espantou,
perguntando maldosamente ao Tougues:
– Sobrinho, não haveis dado vinho suficiente a Chamoa?

Se a minha sogra pensava que mais bebida teria amansado a


determinação zangada da filha, estava bem enganada. Naquela noite, a
imensa fúria de Chamoa iria levá-la a tomar uma decisão totalmente
inesperada.
Tui, dezembro de 1132

Há meses que Chamoa se sentia uma estranha em Tui, mas a vontade


violenta de partir para Guimarães, que tantas vezes a assolava,
encontrava um constante travão num pensamento doloroso: a filha que
nascera a Afonso Henriques, gerada pela normanda Elvira. Um ciúme
irracional obrigava-a à contenção, pois regressar a Guimarães para dar
de caras com a rival e o rebento representaria uma suprema humilhação,
um golpe demasiado duro no seu orgulho.
O que tem a normanda que eu não tenho?
Chamoa, na sua desconsolada existência, não se julgava pior do que
ninguém, apenas mais azarada. Por isso, decidira só voltar a Guimarães
com um troféu, uma prova de suprema lealdade ao príncipe de Portugal,
uma exibição irrecusável de fidelidade que o fizesse aceitá-la, mesmo
sendo já pai de uma filha da normanda.
Também tenho quatro filhos...
A filha do príncipe de Portugal não seria um obstáculo, o essencial era
recuperar a confiança dele com uma demonstração de heroísmo altruísta.
Revelar-lhe a armadilha que se preparava contra Celmes era a sua
oportunidade!
Vou fugir, vou ter com ele!
Chamoa beijou o filho Pêro Pais na têmpora e saiu pela porta do
quarto, sorrateira e silenciosa, deixando o petiz a dormir. Amava aquele
primogénito fortemente, mas decidira não o levar, pois uma surtida
noturna, em pleno inverno, poderia colocá-lo em risco. Porém,
abandoná-lo custava-lhe, reconheceu Chamoa, enquanto descia as
escadas do Castelo de Tui pé ante pé.
Pêro Pais era um miúdo invulgarmente afiado de espírito, corajoso e
com mais sangue-frio do que ela, a sua companhia durante a viagem até
Guimarães ser-lhe-ia muito agradável. Mas se o levasse podia ficar
doente, era inverno, fazia muito frio!
Fora Pêro Pais quem, na tarde daquele dia, revelara a Chamoa os
planos escutados na sala sobre a invasão de Celmes. Aflita, logo ali ela
decidira fugir e, para ganhar coragem, bebera algum vinho. Pêro Pais,
que sempre se preocupava quando a via assim, chamara-lhe a atenção
para os perigos do tinto galego.
– O avô diz que o vinho nos faz ver a dobrar. Tende cuidado, minha
mãe, o Tougues dá-vos de beber para vos ter.
Chamoa sorrira, o filho começava a perceber a vida:
– Não temais, Pêro, desta vez não será assim.
O menino confessou à mãe que sonhava com o dia em que ele e seus
três irmãos iriam viver para Guimarães, para junto de Afonso Henriques,
que se casaria com Chamoa. Esta rira-se, mas depois os seus olhos
haviam-se enchido de lágrimas e murmurara:
– Não sei se esse dia vai chegar.
Com a inocência própria da pouca idade que tinha, o filho não
partilhara as dúvidas dela e afirmara com solenidade:
– Se salvarmos Celmes, o príncipe de Portugal casará convosco!
Para aquele decidido menino, o essencial era informar Afonso
Henriques das manigâncias do Trava e de Afonso VII. Não podiam
deixar que leoneses, castelhanos e galegos destruíssem o novo castelo
dos portucalenses!
– Enviamos um pombo ao tio Lourenço Viegas, amanhã de manhã! –
sugerira Pêro Pais.
Chamoa suspirara, desalentada. Da primeira vez que tinha tentado
semelhante estratégia, fora descoberta pelo tio e agora a vigilância era
apertada, tinha à perna um mostrengo leal ao Trava.
– Pêro, tendes de dormir – dissera por fim.
Na sua imaginação já fervilhava a decisão de correr ao estábulo,
montar um cavalo e partir à desfilada, rumo ao adorado príncipe.
– Aconteça o que acontecer, amo-vos muito – dissera ao petiz.
Este, desconfiado, perguntou-lhe se ela ia fugir, mas Chamoa negou,
perentória, ficando junto a ele até adormecê-lo. Agora, já a chegar às
cavalariças, mortificava-se por ter mentido.
Desculpai-me, meu filho...
Um arrepio de medo percorreu-lhe a espinha ao escutar o chiar da
porta do estábulo. Alguém podia acordar, se fizesse barulho.
Lentamente, avançou na direção do seu cavalo. Foi quando o selava que
voltou a estremecer, escutando a porta ranger mais uma vez.
Tenho medo...
Susteve a respiração e deixou-se ficar quieta, concluindo que talvez
fosse o vento a abanar a porta. Como nada mais ouviu, pegou no cavalo
pela rédea e obrigou-o a dar meia-volta, mas nesse momento um vulto
surgiu à sua frente e ela gritou, aterrada. No escuro do estábulo, não
conseguia ver mais do que os contornos de uma vaga silhueta
masculina.
– Prendei o cavalo – ordenou uma voz áspera.
– Quem sois? – inquiriu Chamoa.
O homem deu um passo em frente e ela viu um rosto envelhecido, uns
olhos concentrados, era o vigilante do Trava.
– Afastai-vos da minha frente – berrou – Ou mato-vos!
A intenção, um pouco tonta dadas as circunstâncias, levou o Velho a
soltar um risada, desprezando a falsa determinação dela.
– Com quê? Com as vossas mãos de passarinho?
Chamoa tremeu de nervosismo. Não estava armada, não via por ali
nem sequer um pau ou uma enxada, nada com que atingir o
desagradável servo do tio. Mas, com o hábito que têm as filhas dos
ricos-homens, que julgam que a superioridade social lhes dá o direito de
subjugarem os inferiores aos seus caprichos, disse ao Velho que iria
queixar-se a seu pai, conde de Toronho, que certamente o colocaria a
ferros nas masmorras do Castelo de Tui!
Sou uma Trava, estúpido!
Sem surpresa, o Velho não se atemorizou com aquela pífia ameaça,
mas tais palavras devem tê-lo irritado, pois deu um passo na direção da
rapariga e nas suas mãos apareceu um punhal, que levantou,
aproximando-o da barriga de Chamoa.
– Eu é que vos mato!
Espantada, ela viu na mão do Velho o punhal de Paio Soares, que fora
roubado muitos anos antes ao seu falecido esposo.
Porque tem ele o punhal do Paio?
– Esse punhal pertence-me, dai-mo! – exigiu Chamoa.
O Velho soltou uma risada desdenhosa e comentou:
– Atrevimento não vos falta.
Confiante, a rapariga empertigou-se e invocou ser sobrinha de Fernão
Peres, prometendo uma punição para aquele descarado. Porém, o Velho
limitou-se a abanar a cabeça, divertido.
– Que traidora espertalhona...
De repente, como se uma sombra negra lhe tivesse passado pela alma,
a sua voz tornou-se mais ácida e desatou a ofendê-la.
– Sois uma galdéria chupa-piças!
Chamoa estremeceu, mas o Velho nem a deixou ripostar e prosseguiu,
num acesso furioso de moralidade:
– Haveis chupado o pobre Ramiro, que virou de bordo; o vosso primo
Tougues; o príncipe; e, claro, o pai de Ramiro, vosso falecido marido
Paio Soares, a quem haveis chifrado tantas vezes!
Com um olhar alucinado, perguntou:
– Porque não ma chupais a mim, agora que estamos sós?
Um violento abanão de pavor sacudiu Chamoa. Estava indefesa ali,
nas mãos daquele desvairado. O estábulo era longe da alcáçova, se
berrasse ninguém a ouviria. Horrorizada, viu que o Velho avançava
lentamente e encostou-se às paredes de madeira do estábulo, em aflição,
enquanto o ouvia murmurar:
– Há anos que não estou com mulher...
Sem aviso, o Velho ergueu o punhal, enquanto com a outra mão a
agarrava, colocando a arma junto ao pescoço dela. Chamoa sentiu a
lâmina fria na pele da garganta e castigou-se por se ter metido naquela
alhada.
Sou tão tola, porque tentei fugir?
Com um berro, voltou às ameaças:
– Se me desonrares, pagareis cara a afronta!
O bafo malcheiroso do Velho chegou-lhe às narinas, quando este
rosnou:
– E quem vai saber?
Agarrou-a pelos cabelos e, num gesto rápido, que Chamoa não
conseguiu suster, obrigou-a a virar-se de costas para ele e encostou-a à
parede. Depois, voltou a levar o punhal ao seu pescoço e forçou-a a
permanecer quieta. Chamoa sentiu a mão esquerda dele levantar-lhe as
saias e tentou dar um pontapé para trás, mas o Velho aplicou-lhe uma
pancada nas costelas, que a deixou com dificuldades de respirar.
– Quieta, cabrita – ordenou o Velho, reerguendo-lhe as saias.
A rapariga sentiu-o mexer-lhe nas roupas interiores e começou a
chorar, impotente para o parar. Ouviu-o murmurar outra vez, junto do
seu ouvido:
– Vais levar com ele.
Quando o Velho estava já a soltar as calças, preparando-se para a
penetrar, ouviu-se uma voz de criança, à entrada do estábulo.
– Mãe? Estais aqui?
Chamoa nem queria acreditar, era seu filho, Pêro Pais! Gritou-lhe de
imediato, dando-lhe instruções!
– Pêro, ide chamar meu pai, depressa!
O Velho compreendeu que não conseguiria dominar os dois ao
mesmo tempo. Ou permanecia com Chamoa, caso em que Pêro Pais
teria tempo para ir avisar o avô, ou corria para agarrar o menino, caso
em que Chamoa gritaria por socorro. Enervado, deu uma pancada na
cabeça de Chamoa com o cabo do punhal, deixando-a atordoada,
enquanto desaparecia pelos fundos do estábulo.
Atarantada, a minha cunhada cambaleou até à porta, onde um aflito
Pêro Pais a abraçou e logo quis saber o que ali se passara.
Meu querido filho!
Chamoa ainda tremia de raiva, de medo, de frustração, mas não
desejou assustá-lo mais, dizendo-lhe apenas que fora descoberta a fugir
pelo lacaio do Trava.
– Magoou-vos? – perguntou o menino, preocupado.
Mais calma, Chamoa suspirou e respondeu:
– Só no orgulho.
Abraçou o filho, que, ao vê-la mais serena, a mirou com um ar
desapontado e lavrou o seu protesto:
– Haveis tentado fugir sem mim.
Naquele instante, Chamoa percebeu que, bem mais grave do que ter
sido abalroada por aquela sinistra criatura, era ter provocado uma
desilusão ao seu amado filho mais velho. Por isso, pediu-lhe
compreensão e desculpa, justificando-se com o receio das agruras de
uma fuga invernal e noturna. O filho escutou-a com atenção e no final
limitou-se a um pedido:
– Da próxima vez, levai-me convosco.
Chamoa sorriu, orgulhosa. No meio das desagradáveis ocorrências
que lhe atazanavam a vida, a existência daquele menino corajoso,
esperto e leal era um bálsamo de valor incalculável.

O meu sobrinho era um rapaz único e raro, dotado de grandes


qualidades, que muito nos iria ajudar. Pouca gente sabe disso e lhes dá o
devido valor, mas foram as nossas crianças, os primeiros filhos de
Portugal, que nos fizeram acreditar no futuro. Por elas, valia a pena ir ao
Inferno, numa terrível viagem que ia começar...
Guimarães, dezembro de 1132

Precisamente no mesmo dia em que as anteriores peripécias ocorriam


em Tui, nós festejávamos o nosso último Natal pacífico, numa
Guimarães engalada para as festividades. Há quatro anos e meio que não
havia guerra no Condado Portucalense, contrariando as promessas
bélicas do Trava. Afonso VII, primo direito de Afonso Henriques,
parecia alheado dos destinos do Condado Portucalense, aparentemente
esquecido da recusa do nosso príncipe em lhe prestar vassalagem, o que
nos permitira quatro anos de bonança.
A prosperidade era visível em todo o lado. Os inúmeros mendigos que
antes percorriam Coimbra, Viseu ou Guimarães, em busca de alívio dos
seus sofrimentos, quase haviam desaparecido. O povo, sobretudo os
agricultores, enfrentava menos dificuldades do que no passado. As
sensatas decisões de Afonso Henriques tinham melhorado as colheitas e
os almocreves circulavam livremente nas antigas estradas que os
romanos deixaram construídas.
Sinal de que as balbúrdias do passado estavam suspensas, era também
a explosão de crianças que se notava. Nas pequenas aldeias, nas
almedinas dos principais castelos, corriam petizes alegres e centenas de
mães carregavam bebés ao colo, felizes por os poderem alimentar e sem
temores quanto ao futuro da região. Mesmo entre os ricos-homens e os
infanções se multiplicavam os nascimentos e também no nosso círculo
íntimo havia agora uma fornada de novos representantes das várias
famílias.
O Braganção, nosso amigo e senhor de Bragança, já apresentava dois
rebentos de sua esposa, a irmã do príncipe, Sancha Henriques, que a
maternidade parecia ter amansado, contendo o seu carácter quezilento.
Meu pai, Egas Moniz, tivera também dois petizes de sua segunda
esposa, Teresa de Celanova; e eu próprio era pai de um primeiro filho de
minha Maria Gomes, que já esperava um segundo. A juntar a esses, no
Castelo de Guimarães morava também a filha de Afonso Henriques e
Elvira Gualter, a quem o príncipe chamara Elvira, como a sua mãe
normanda, que se somava às irmãs do príncipe, Sancha e Teresa de
Trava, filhas de Dona Teresa e de Fernão Peres.
O nosso Natal passava-se, pois, repleto de choros infantis e atenções
redobradas com recém-nascidos e foi também por isso que, pelo
segundo ano consecutivo, Maria e eu não fomos passar a quadra a Tui
com a família Trava. Tempos depois, mortifiquei-me fortemente por
pensar que tinham sido as minhas decisões que nos haviam prejudicado,
mantendo-nos na ignorância sobre os planos bélicos de Afonso VII e do
Trava. Mas, naqueles derradeiros dias de alegria e paz em Guimarães,
Celmes era só um grande motivo de orgulho.
Por paradoxal que fosse, apenas o nosso amigo Gonçalo de Sousa,
que o príncipe elegera como alcaide desse castelo, não se mostrou
contente ao confrontar-se com aquele mosaico de felicidade. Apesar de
nos ter saudado com o seu habitual tudo espeta?, acrescentou,
desapontado, que, pelos vistos, se espetava de mais!
– Todos cheios de filhos e eu desterrado em Celmes! – protestou.
A ausência de companhia feminina desconsolava-o e lamentava ser a
povoação um ermo tão solitário que nem as soldadeiras lá iam!
– Terei de convencer algumas para voltarem comigo – afirmou.
Ao ouvi-lo, Teresa de Celanova insurgiu-se contra aquele permanente
recurso dos homens, um pecado aos olhos de Deus.
– Gonçalo, não amais a princesa Zaida? Melhor seria levá-la
convosco!
O visado olhou para Afonso Henriques e resmungou:
– Este mafarrico não deixa... É como o avô, quer tudo para ele!
Irritado, Gonçalo acusou o príncipe de Portugal de açambarcar as
mulheres por quem ele se enamorara. Primeiro, Elvira Gualter, que
Gonçalo descobrira e agora dera uma filha a Afonso Henriques; e depois
Zaida, que obviamente o príncipe também cobiçava, razão pela qual o
enviara para o exílio de Celmes.
No seu canto, Elvira negou prontamente aquela falsa narrativa.
– Jamais vos quis, Sousinha! Meu coração foi sempre do príncipe!
Exaltado, o alcaide de Celmes considerou-a uma interesseira, ao que a
serena e imponente normanda respondeu:
– Descansai, sei bem o meu lugar.
Sempre simples e honesta, Elvira Gualter recordou-nos que, apesar de
ser mãe da primeira filha do príncipe de Portugal, mais nenhuma
honraria desejava. Sem ponta de ciúme e fiel à sua antiga crença de que
aqueles dois deviam ficar juntos, a bondosa normanda virou-se para
Afonso Henriques e incentivou-o:
– Ide ter com Chamoa, salvai-a das garras do Trava!
Enervado, o meu melhor amigo resmungou:
– Parai com esses disparates! Não quero Chamoa, nunca mais!
Perante aquela reveladora rejeição, Gonçalo de Sousa concluiu:
– É evidente, desejais a minha Zaida!
O príncipe tranquilizou-o, tal não passava de um tonto receio.
– Estou bem com quem estou.
Depois, levantou-se e foi ao canto da sala, erguendo do berço uma
criança, com poucos meses, que exibiu a todos.
– Eis a primeira filha de Afonso Henriques! Será a próxima rainha
portucalense!
Muitos sorriram, mas a mãe da menina duvidou de tal futuro e lançou
mais uma das suas já famosas profecias.
– Os meus deuses do Norte revelaram-me que, daqui a muitos
invernos, casareis com uma princesa estrangeira, que vos dará herdeiros
legítimos. Um deles será rei!
O príncipe sorriu à mulher que lhe aquecia os pés à noite e sugeriu:
– Posso sempre casar-me convosco...
A determinada recusa de Elvira Gualter evitou que alguém se tivesse
de declarar em público contrário àquele matrimónio.
– Comigo não ireis casar! Onde já se viu? Um príncipe, neto do
imperador das Hispânias, desposar uma taberneira, ainda por cima
descendente de bandidos normandos?
Depois de pousar a filha no berço, Afonso Henriques respondeu-lhe:
– Antes vós que uma galega tonta, já com filhos de dois homens!
Perante mais aquele ataque à ausente, que nem se podia defender,
Teresa de Celanova tomou as dores de Chamoa e murmurou:
– Pelo menos é nobre...
Elvira Gualter concordou, com um aceno de cabeça, mas, como a
conversa não lhe agradava, Afonso Henriques revelou que o seu mais
forte desejo era partir para o Sul, na senda das pequenas vitórias iniciais
de Peres Cativo, que já destruíra algumas aldeias mouras.
– É lá que serão as nossas próximas conquistas!
Entusiasmado, o príncipe declarou que Santarém estava enfraquecida.
O governador encontrava-se às portas da morte e os locais detestavam
Abu Zhakaria!
– E deixais-me desterrado em Celmes? – indignou-se Gonçalo.
Afonso Henriques observou-o com ar sério e retorquiu:
– É a vossa obrigação!
Dito isto, o príncipe decidiu juntar-se aos festejos da população e
todos o acompanhámos. As iluminações dos archotes davam uma
tonalidade laranja a Guimarães, a almedina encontrava-se forrada de
fogueiras, repleta de jograis e bobos, que cantavam trovas ou largavam
as suas larachas. Por todo o lado se viam cavaleiros-vilões, exibindo
troféus de caça, mortos nessa manhã, ou preparando-se para as justas do
dia seguinte, torneios onde lutariam uns com os outros, para
entretenimento geral.
A dado momento, um ainda trombudo Gonçalo exigiu que o
seguíssemos até às portas dos estábulos, onde entrou sozinho, tendo
reaparecido com um enorme cavalo castanho pelas rédeas, um
magnífico exemplar das Astúrias, que provocou a admiração geral.
Divertido e sorridente, Gonçalo declarou:
– Não guardo ressentimentos por me terdes enviado para Celmes!
Serei sempre vosso amigo e leal companheiro, esta é a prova disso!
Entregou a Afonso Henriques as rédeas do cavalo e exclamou:
– Não mais precisareis de montar pilecas que nos envergonham!
Os meus dois grandes amigos trocaram um forte abraço e depois
Elvira Gualter aproximou-se de Gonçalo e deu-lhe um inesperado e
rápido beijo na boca, dizendo:
– É merecido, mas é o único que vos dou, malandro!
Empolgados, desatámos todos a gritar:
– Monta, monta!
Então, o príncipe subiu para a sela daquele gigantesco cavalo, que o
recebeu sem dificuldades e começou a andar a passo, enquanto
brindávamos o imponente dueto com nova salva de palmas.

Aquele Natal foi o último de concórdia e tranquilidade, antes de a nossa


viagem ao Inferno começar. Hoje, quando recordo esses dias,
surpreendo-me com o quanto estávamos iludidos sobre as nossas forças.
Como éramos inocentes e jovens... Mas, se até meu tio Ermígio e meu
pai, bem mais experientes, foram surpreendidos pelas tempestades que
se ergueram, como poderíamos nós, rapazes com pouco mais de vinte
anos, mais interessados em mulheres atrevidas ou cavalos de raça
apurada, adivinhar o duríssimo futuro que nos esperava?
III
Mentiras
de Guerra
1133 – 1134
Serra Morena, perto de Córdova, fevereiro de 1133

Ao entrar pelo portão do Castelo de Hisn Abi Cherif, o cordovês Abu


Zhakaria comoveu-se ao reparar nos canteiros de flores que cercavam a
pequena torre de menagem. Tal como da última vez que ali estivera, sete
anos antes, continuavam repletos de belas e coloridas plantas, sinal de
que alguém os cuidava em permanência.
Fora naquele local que Taxfin, segundo marido de Zulmira, o obrigara
a prometer que traria de volta Fátima e Zaida, prisioneiras dos cristãos.
Desconsolado, o cordovês recordou o seu falhanço. Os fundos que
Taxfin lhe colocara ao dispor, tão vastos há sete anos, haviam sido
consumidos a alimentar uma companhia de mercenários que, sendo
exímia a matar cristãos em campo aberto, não possuía força suficiente
para invadir Coimbra e resgatar as princesas.
A somar à fraqueza financeira, a situação política em Santarém
alterara-se. A lendária paixão de Abu Zhakaria por Fátima, geradora de
admiração e respeito no povo, tinha como alto preço a desconfiança com
que o miravam os influentes da cidade. Para forte azar, o seu único
aliado, o governador de Santarém, morrera no final do ano passado.
O posto de wali de Santarém permanecia vago. Ali Yusuf, que
governava o califado a partir de Marraquexe, não parecia preocupado
em nomear sucessor, vivendo Santarém ao sabor dos interesses das
principais famílias da região, para quem Zhakaria não passava de um
inútil subversivo. Abandonado pelos mercenários a quem deixara de
pagar e sem apoios relevantes na cidade, Abu depressa percebera que
teria de regressar a Córdova, à procura de novos aliados, pois os
fossados de Peres Cativo aproximavam-se perigosamente de Santarém,
aumentando o alarme social.
Quando um dia ouviu, no conselho municipal, alguém sugerir que se
fizesse a paz com Afonso Henriques, pagando-lhe até um tributo, o
cordovês suspeitou de que os assustados notáveis da cidade facilmente o
entregariam ao príncipe de Portugal, como prova de boa vontade.
A fúria perdera-o, concluíra Zhakaria. No verão anterior, degolara
uma companhia inteira de galegos, deixando nove deles empalados junto
ao rio Nabão e enviando o décimo até Soure, numa provocação
maliciosa aos cristãos. Com essa exibição bárbara e fútil, o seu prestígio
em Santarém ensombrara-se e, mal faleceu o governador, viu-se solitário
e cercado de hostilidade.
Desanimado, metera-se a caminho de Córdova, sabendo a tristeza que
iria causar a Fátima mal ela soubesse do seu abandono. Tantos anos
separados e ainda a amava! Desde que ela ficara refém, apenas a vira por
duas vezes, em Soure e em Coimbra, quando estivera bem perto de
resgatar as duas irmãs mouras. Apesar disso, o amor resistia dentro dele
e recordava com intensidade a profecia de Taxfin de que um dia
Zhakaria se casaria com Fátima ali, em Hisn Abi Cherif!
Pouco antes de chegar ao portão do belo e original castelo de arenito
vermelho, perdido nos contrafortes da serra Morena, passara perto de
um pequeno mausoléu, o túmulo dos Benu Ummeya, onde sabia
repousarem os restos mortais de vários elementos da família. Lá estavam
enterrados Hixam III, o último califa de Córdova, bem como o seu filho,
Hixam de Hisn, primeiro marido de Zulmira e pai de Fátima e Zaida. E
lá estavam também Taxfin, antigo governador de Córdova e segundo
marido de Zulmira, bem como esta última, que, depois de assassinada
em Coimbra, fora para ali trazida pelo almocreve Mem.
A morte e a tragédia ensombravam a história dos Benu Ummeya. No
presente, restavam apenas as duas princesas, presas em Coimbra. Os
épicos sonhos do passado, a quimera de ressuscitar o glorioso califado
de Córdova, sempre alimentada por Taxfin e Zulmira, não passava agora
de uma fantasia cruel. Aquela espantosa família, que durante trezentos
anos reinara em toda a Andaluzia, perdera a força vital, pois o maldito
califa Ali Yusuf aniquilara os seus pilares.
Que podia Abu Zhakaria contra aquele almorávida asqueroso e
vingativo? Ou contra o emergente poder de Afonso Henriques no
Condado Portucalense? A sua derradeira esperança era o atual
governador de Córdova, Ismar, um árabe andaluz que conhecia os seus
esforços para resgatar as princesas.
Será que ele ainda se lembraria de Abu Zhakaria, o fiel ajudante de
Taxfin? O poder mudava os homens. Sendo Ismar o atual wali de
Córdova, não era certo que o auxiliasse, pois provavelmente tinha
excelentes relações com Ali Yusuf. Mais um que se vendera? Abu não
sabia, mas Ismar era a sua última esperança.
Nas taifas de Badajoz, Mértola ou Sevilha, os governadores eram
berberes, almorávidas leais ao califa. Qualquer menção à reabilitação da
família Benu Ummeya equivalia a uma condenação à morte. E mesmo
noutras cidades, como Beja, Lisboa ou Santarém, eram curtos os apoios
para a romântica causa da ressurreição do califado de Córdova, poucos
mostravam coragem para se opor ao invencível e aterrorizador califa de
Marraquexe.
Zhakaria desmontou e apreciou Hisn Abi Cherif. O pequeno castelo
estava limpo, as árvores podadas, a lareira acesa, saía fumo da chaminé.
O guerreiro cordovês concluiu que a velha criada de Zulmira continuava
viva precisamente no momento em que ouviu uma voz, nas suas costas.
– Não as trazeis de volta.
Abu voltou-se, de mão no cabo do alfange, mas logo o largou ao ver
que quem lhe falava era uma mulher idosa e curvada, de andar lento e
olhar vago, que se aproximou dele e perguntou, preocupada:
– Morreram?
Zhakaria acalmou-lhe a angústia: as princesas Fátima e Zaida
continuavam vivas, mas também prisioneiras de Ibn Henrik, nome que
os muçulmanos davam a Afonso Henriques. A região a sul de Coimbra
estava a ferro e fogo e Zhakaria já não tinha com que pagar aos seus
desleais mercenários.
– Aqui não há ouro – murmurou a criada.
Era uma mulher mirrada pelo tempo, com milhares de rugas na pele e
o pescoço seco e rugoso, como o de uma galinha. Usava um lenço na
cabeça e os seus olhos baços não pareciam fixar o interlocutor,
provavelmente já mal o via. Quando Abu manifestou a esperança de
convencer Ismar a ajudá-lo, ela deu a sua condordância.
– É dos nossos.
Sentaram-se num banco corrido, no pequeno pátio da alcáçova. O
antigo ajudante militar de Taxfin perguntou se era verdade que Sohba, a
velha mulher de negro que vivia perto de Soure, era a irmã gémea de
Hixam de Hisn, sendo, portanto, tia das princesas.
– Não sei, há tanto tempo que não a vejo – respondeu a criada.
Décadas antes, a gémea de Hixam de Hisn, convencida de que possuía
artes mágicas, estivera na origem do acidente que vitimara o seu irmão,
pai das princesas. Ao explodir bolas de fogo, assustara o cavalo, que se
empinara, atirando ao chão o cavaleiro. A queda partira o pescoço de
Hixam de Hisn, que morrera sem sequer soltar um grito, para grande
tristeza de Zulmira e suas filhas.
A velha criada suspirou:
– Depois desse terrível dia, Sohba fugiu para os píncaros desta serra, a
que chamam Morena.
A criada ainda ouvira falar dela, mas, anos mais tarde, Zulmira e as
duas princesas haviam partido para Coimbra, acompanhando Taxfin,
segundo marido de Zulmira, na primeira expedição bélica imposta pelo
califa Ali Yusuf. Desde então, nunca mais se ouvira falar ali da
misteriosa e azarada bruxa.
– Desapareceu.
A guardiã de Hisn contou que o almocreve Mem, quando viera
depositar no mausoléu o corpo de Zulmira, descrevera os seus encontros
com uma mulher semelhante, sempre vestida de negro, que vivia perto
de Coimbra e vigiava à distância as raparigas. Essa mulher chamava-se
Sohba e o almocreve concluíra que era a tia das princesas.
– Pode ser que Mem esteja certo... – sorriu a idosa.
Zhakaria recordou que haviam procurado Sohba em Santarém e nas
redondezas, mas ninguém sabia dela.
– Talvez tenha morrido – sugeriu a criada de Hisn.
O cordovês não acreditava, Sohba era uma mulher rija.
– Para onde poderia ir? – perguntou.
A sua interlocutora ficou em silêncio algum tempo, como se estivesse
a desenterrar da memória algo custoso. Depois disse:
– Para cá não veio. Córdova cheira-lhe a morte.
Todos os familiares de Sohba tinham morrido, desde o pai, Hixam III,
o último califa de Córdova, até ao irmão Hixam de Hisn, passando por
uma filha que a criada nunca conhecera e que se dizia ter falecido
jovem, sendo essa a primordial razão da loucura de Sohba.
A criada apontou um olhar triste na direção dos túmulos e comentou:
– Uma grande desgraça abraçou os Benu Ummeya.
Depois de um suspiro, prosseguiu:
– Quem larga um trono, como Hixam III fez, condena a família.
A idosa acrescentou que o maldito Ali Yusuf não descansaria
enquanto não os degolasse a todos.
– Já aviou Zulmira e Taxfin, só faltam as minhas meninas.
Com o olhar embaciado que sempre exibia, aconselhou Zhakaria:
– Ide falar com Ismar. É andaluz e é fino, hábil e firme. Desde Taxfin
que não se via governador tão bom em Córdova.
De seguida, a velha criada descreveu ao cordovês o que se estava a
passar na Andaluzia muçulmana, que sofria uma inesperada mutação.
– Sinto-o, pela primeira vez em muitos anos.
Mesmo aquela mulher, que vivia em Hisn como uma eremita, notara o
califado de Ali Yusuf em perda. O respeito ao trono de Marraquexe já
não era o de outrora. Pelas taifas de Sevilha, Córdova, Mértola ou
Badajoz corria já um claro, embora ainda ténue, rumor de revolta.
– Ismar sabe do que falo – avisou a criada.
Incentivado por ela, Abu Zhakaria foi ao encontro daquele príncipe de
Córdova, que viria a ser um dos mais ferozes inimigos de Afonso
Henriques e do nosso futuro reino de Portugal.
Córdova, fevereiro de 1133

– Já vos esperava.
O governador Ismar levantou-se ao ver Abu Zhakaria entrar no seu
salão privado, situado no primeiro andar do magnífico Azzahrat.
Construído dois séculos antes pelo mais célebre califa da Andaluzia, o
valoroso e sapiente Abd al Rahman III, aquele grandioso palácio
destinara-se a albergar o detentor do trono de Córdova e a sua família,
os seus infindáveis criados e o seu bem recheado harém. Mas, no
presente, servia apenas de residência exclusiva do wali da cidade,
embora permanecesse um esplendoroso edifício, onde se multiplicavam
os claustros, os minaretes, os jardins interiores, as piscinas e uma
quantidade incontável de quartos, salas e salões.
Se aquele monumento estava de pé, ornamentado e mobilado como se
lá morassem deuses e não pessoas, à família Benu Ummeya se devia,
concluiu Zhakaria. Mas, como era possível que quem tão bem governara
o califado de Córdova trezentos anos, quem construíra centenas de
mesquitas pela cidade, quem a tornara um local de fé visitado por
milhões de muçulmanos, tivesse caído em desgraça? O que acontecera
de tão profundo e corrupto para que as gentes se revoltassem contra
aqueles a quem tanto deviam?
Os livros antigos responsabilizavam os próprios Benu Ummeya, a
degradação inexorável do seu sangue, embora houvesse quem atribuísse
mais culpas ao hájibe Al-Mansor, o todo-poderoso ministro e usurpador
dos poderes da família, que pedira ajuda aos berberes africanos para
combater os cristãos e, de caminho, remetera um jovem califa a uma
posição secundária, condenando-o a vaguear pelos jardins do Azzahrat
como um tonto impotente.
Pouco importava agora: Hixam III, avô das princesas, fora o último
monarca que ali vivera, antes de ter renunciado ao trono, por se
considerar incapaz de pacificar a Andaluzia. Cem anos tinham passado e
nada de bom se aproveitava. O poder muçulmano fragmentara-se, o
califado cordovês estilhaçara-se em pequenos reinos, as primeiras taifas,
permitindo aos cristãos avançarem para sul, conquistando Toledo,
Coimbra e outras cidades. E anos depois, os almorávidas tinham
assentado arraiais, substituindo o califado de Córdova pelo de
Marraquexe, primeiramente liderado por Yusuf, pai do atual califa, Ali
Yusuf, que Zhakaria odiava.
Matava-o se pudesse...
Estaria prestes a dar-se a queda de Marraquexe, questionou-se
Zhakaria? A criada de Hisn afirmara que a instabilidade grassava na
Andaluzia, mas a ele afigurava-se-lhe impensável que o domínio de Ali
Yusuf estivesse em risco. O maldito berbere, que, por temer a
concorrência dos descendentes dos Benu Ummeya, condenara à morte
Taxfin e Zulmira, além de ter colocado a prémio a cabeça das princesas
Zaida e Fátima, era um homem poderoso, escudado nos seus
implacáveis guerreiros dos desertos africanos, cuja brutalidade assustava
os mais suaves árabes andaluzes.
Ismar, apesar de ser governador nomeado pelo califa, não era um
almorávida, nem um berbere, era descendente de sírios. Zhakaria
examinou aquele homem alto e entroncado, de traços perfeitos, com
uma barba meticulosamente desenhada, uma fina tira que acompanhava
os contornos do maxilar e do queixo. Era bonito, com uns olhos negros
brilhantes e um encanto físico que seduzia, e Zhakaria rapidamente
notou que ele era dotado de um carisma invulgar, pois falava com uma
segurança e uma calma imperiais, às quais acrescentava um sentido de
humor sofisticado, que usou para explicar a sua correspondência com a
velha criada de Hisn, feita através dos corvos negros.
– Não sei como ainda os consegue lançar, tem mais de duzentos anos
em cada braço!
Zhakaria primeiro riu-se, depois cumprimentou-o e por fim disse:
– Santarém está sem governador.
Para sua surpresa, o outro já sabia quase tudo o que se preparava para
contar. Recordava-se de Zhakaria e conhecia o propósito de resgatar as
princesas, até ali mal-sucedido, bem como as mortes de Taxfin e
Zulmira. Além disso, acrescentou misteriosamente:
– Sois amado pelo povo, em Santarém...
Abu informou-o de que estava sem fundos e sem o apoio dos notáveis
locais, que o consideravam um agitador de má fama, um provocador que
apenas por motivos de interesse individual desejava uma guerra
desnecessária com Afonso Henriques.
– São uns cobardolas – apreciou Ismar, encolhendo os ombros.
Existia muita gente assim espalhada pela Andaluzia árabe, declarou o
príncipe de Córdova. Gente que desistira de lutar, cansada por séculos
de combates, temendo ver mais sangue derramado, aterrorizada com a
possibilidade do regresso dos esquadrões da morte de Ali Yusuf.
– Sem mercenários, não as conseguirei salvar... – insistiu Zhakaria.
O governador fitou-o demoradamente, como se, por fazê-lo, pudesse
compreender melhor os seus remotos segredos. Curioso, perguntou:
– Porque o desejais fazer? Por amor a Fátima?
Abu Zhakaria, um guerreiro duro e implacável, tinha no coração um
ponto fraco e corou, pois regressava a um estado de vergonha infantil
sempre que falava na sua princesa.
Amo-a de mais...
Estar no Azzahrat gerara em Zhakaria uma nostalgia aguda, povoada
por recordações dos tempos ali passados, como principal ajudante
militar de Taxfin. Sobretudo, relembrara o olhar enamorado que um dia
lhe dirigira Fátima, uma menina de apenas nove anos, quando o viu a
primeira vez no jardim das camélias.
– É mesmo verdade o que dizem... – comentou Ismar ao vê-lo
ruborescer. – Não desejais honrarias? Fortuna? Um castelo?
O humilde cordovês suspirou, concedendo que a sua existência se
reduzira ao objetivo de resgatar as princesas, mas Ismar logo o
interrompeu, declarando que devia tentar perceber os sinais emitidos
pelos indígenas de Santarém.
– Sois respeitado pelas gentes, é importante.
Dito isto, o governador de Córdova expandiu a conversa, examinando
o estado da Andaluzia. A maior parte das taifas, como Sevilha,
Saragoça, Mértola ou Badajoz, não passava de meras kuras, embora
algumas ambicionassem ascender a emiratos.
– O tontinho que manda em Sevilha, por exemplo, obriga os súbditos
a chamarem-lhe emir! É um reles gato que tem a mania de que é leão.
Berbere e ambicioso, mas estúpido, é mais uma marioneta de Ali Yusuf
que se julga destinada a grandes voos!
Aos poucos, Zhakaria confirmou o que lhe dissera a criada: Ismar já
não admirava o califa, embora ainda se submetesse a ele. E, sobretudo,
odiava os berberes que governavam as restantes cidades andaluzas, que
dizia não servirem nem para lavar as escadas dos palácios! Aqueles
incompetentes walis tinham o futuro incerto, profetizou o governador,
sem o apoio militar de Ali Yusuf cairiam como folhas secas no outono.
A pressão que os cristãos continuavam a fazer, tanto Afonso VII, a partir
de Toledo, como Afonso I de Aragão, próximo de Saragoça, obrigara o
califa a enviar o próprio irmão, Temin, para comandar as forças
almorávidas.
– Não é grande chefe, mas o terror que os berberes inspiram ainda
cala muita gente – rematou Ismar.
Além disso, em África existiam já relevantes revoltas contra o
califado de Marraquexe. Nas montanhas e nos desertos, uma nova seita,
os almóadas, contestava os almorávidas. Com interpretações diferentes
do Corão e uma vontade enfurecida de recusar o jugo de Ali Yusuf, os
almóadas, que se intitulavam «unitários», eram uma infeção que
alastrava e contaminava os territórios antes pacificados e submissos do
califa berbere.
O atual líder espiritual e militar da nova seita, de seu nome Abdul-
Mumen, que sucedera ao fundador e primeiro profeta, Al-Mahdi, já
falecido, tivera a impensável ousadia de se declarar igualmente califa,
provocando um cisma no império dos almorávidas e de Ali Yusuf.
– Pressão a norte, dos cristãos; pressão a sul e a leste, dos almóadas; e
representantes palermas na Andaluzia! É o que tem Ali Yusuf.
Depois de praguejar, o wali de Córdova concluiu com nova previsão:
– Se não fosse Temin e a sua guarda sangrenta, o califado de
Marraquexe ruiria em poucos meses! Assim, vai demorar uns anos.
Perante tal desagradável cenário, Ismar defendeu que os muçulmanos
andaluzes tinham de tentar acelerar o lento apodrecimento do poder dos
almorávidas. Se conseguissem colocar gente de confiança como walis de
Sevilha e Saragoça, poderiam disputar o futuro.
– E Santarém também terá de cair para o nosso lado – murmurou
Ismar, olhando fixamente para o seu interlocutor.
– Qual a vossa sugestão? – perguntou Zhakaria, curioso.
Com um sorriso, Ismar levantou-se do seu cadeirão e, sentindo talvez
que ainda não chegara o momento das revelações, perguntou:
– Vamos comer?
Inesperadamente, lançou-se a declamar versos, na sua voz forte, mas
não por isso menos melodiosa:

Eu só quero que me fales


De cantigas e de vinho
Deixa lá e não te rales
Deus perdoa o descaminho!

Deixa essa gente vã


Com promessas e intrigas
Elas não interessam nada
Pois o meu maior afã
É beber minha golada
De vinho na tarde vã
Ao som de belas cantigas!

Zhakaria riu-se enquanto o governador fazia uma vénia, como se


agradecesse uma ronda de aplausos, proclamando em seguida:
– Da autoria de Al-Mutamid, antigo rei de Sevilha!
Ao ver Zhakaria franzir a testa, esclareceu:
– Sim, era o pai de Zaida de Sevilha e o avô de Zulmira. Foi, portanto,
o bisavô de Fátima e de Zaida!
Depois, piscando o olho, acrescentou:
– E grande apreciador de levar na peideira!
Era conhecida a paixão por mancebos do célebre e já falecido
monarca de Sevilha, mas Ismar não elaborou mais sobre o assunto,
enquanto conduzia o seu convidado pelos corredores do Azzahrat,
pejados de vasos dourados e com as paredes forradas de belas pinturas.
Num segundo salão, cujos azulejos resplandeciam, foram servidos por
inúmeros criados, que lhes trouxeram tâmaras e pão folhado, presuntos e
laranjas, sopas de sêmola e variadas hortaliças. De seguida, surgiram os
escabeches originais, de lampreia ou salmão, de javali ou urso, tendo o
repasto terminado com um saboroso e doce aluá e umas qajjatas, pastéis
de queijo perfumado com água de rosas.
Que bem se vive aqui...
O vinho que acompanhara as iguarias deixou Zhakaria sonolento. Não
estava habituado a tantas delícias, pois submetera-se, em Santarém, a
regime frugal, para nunca perder a lucidez bélica. Quando o viu
molengão, Ismar sugeriu que dormissem uma sesta, mas o exigente
militar que existia dentro de Zhakaria rebelou-se. Esforçando-se a
despertar, voltou a perguntar o que quisera o outro dizer sobre Santarém
e escutou a seguinte resposta:
– Sois o governador ideal para a cidade, o povo adora-vos e os
notáveis invejam-vos. Não há melhor combinação.
Ismar pertencia a uma das mais antigas famílias de Córdova, cuja
riqueza lhe permitira aguentar o jugo dos almorávidas, até que estes se
degradassem. Agora que o poder da cidade lhe caíra nas mãos, notava-se
que crescera em meios influentes e esses predicados garantiam-lhe uma
segurança íntima de que obviamente Abu Zhakaria não dispunha.
– Não sou de Santarém, nem nasci em berço de ouro – recordou este.
Ismar ripostou: mas era corajoso e hábil, qualidades que o podiam
erguer a wali de Santarém! Com a desfaçatez de quem está habituado
desde criança às intrigas políticas, revelou um plano arrojado, que
exigiria de Zhakaria uma arte que ele não dominava, a da mentira.
Que insanidade...
Ismar propôs que Abu fosse a Marraquexe falar com o próprio califa
Ali Yusuf, recordando-lhe quem era e o que fizera durante sete anos.
Frustrado, explicaria porque se desiludira com as princesas, alegando
que estas se tinham convertido ao cristianismo!
Havia um precedente familiar que credibilizaria a farsa, recordou o
wali de Córdova. Muitos anos antes, a avó de Fátima e Zaida, também
chamada Zaida, princesa de Sevilha e filha de Al-Mutamid, convertera-
se ao cristianismo para poder casar com o imperador Afonso VI, a quem
dera um filho.
Empolgado, Ismar exclamou:
– Com essa mentira, a que chamareis uma traição das princesas,
convencereis o califa! E o vosso ódio fingido terá de ser tão intenso que
vos proporeis a governar Santarém, para mais rápido as matar!
Zhakaria ficou estupefacto. O que Ismar defendia era alta traição, uma
fraude aplicada ao califa de Marraquexe, perigosa e aventureira. E o
mais difícil era ter de mentir sobre Fátima, dizendo que ela se convertera
a Cristo, pensamento insuportável só de o contemplar.
– Não sou dado a dissimulações, sou um soldado – declarou.
Embora no seu espírito fosse perfeitamente clara a vantagem de
ocupar o posto de wali de Santarém, que lhe daria o comando militar das
operações contra as fronteiras de Afonso Henriques e a força suficiente
para cumprir a promessa que fizera a Taxfin, vestir a pele de uma cobra
infiel não lhe era fácil.
Não sei mentir...
Abu Zhakaria não temia ir a Marraquexe, ao covil do berbere, pois a
morte nunca lhe metera medo, apenas receava não ser convincente no
papel de falsete.
– Recordai-vos das cabeças de Taxfin e de Zulmira, degoladas,
quando vos pesar a hesitação – insistiu Ismar, sabendo que aquele
sinistro apelo era a sua última munição para convencer o outro.
No entanto, como Abu permaneceu relutante, Ismar mudou de tática e
propôs que fumassem haxixe para relaxar. Rumaram a nova sala, mais
pequena, onde um enorme cachimbo de água os aguardava. No topo
deste, umas pedras ardiam e, sentados em confortáveis e grandes
almocelas de seda, ambos puxaram pelos tubos, inspirando aquela
substância purificada pela água.
Deixaram-se ficar a curtir os efeitos, mas passado algum tempo o
inquieto Zhakaria perguntou a Ismar que futuro via para as duas
princesas, se as salvassem de Coimbra, ao que o governador de Córdova
respondeu:
– Vós casais com Fátima, eu com a mais nova!
Riram-se, divertidos, enquanto o wali de Córdova revelava porque se
mantivera solteiro. Embora com muitas e belas amantes no harém,
nunca conhecera uma mulher com quem valesse a pena casar.
– Os casamentos são alianças políticas! Se em Sevilha houvesse rei,
casava-me logo com a filha dele, roubava-lhe o trono e tornava-me rei,
lá e aqui! – rematou, dando uma pequena risada.
Zhakaria pressentiu naquele homem inteligente e rico uma profunda
ambição, que as turbulências presentes da Andaluzia já animavam, mas
ao mesmo tempo ainda continham, para que os seus planos não se
revelassem passíveis de anulamento pelo califa Ali Yusuf.
De repente, viu-o levantar-se depressa de mais e logo fechar os olhos,
devido a uma fugaz tontura, antes de perguntar:
– E mulheres? Não acredito que sois abstinente por amor a Fátima!
Por lhe custar revelar a intimidade a estranhos, Zhakaria mentiu,
dizendo que por vezes consultava umas especialistas em ternuras, em
Santarém, que lhe secavam as excitações de macho.
Há anos que não estou com uma mulher...
No entanto, garantiu a Ismar que o seu coração permanecia guardado
para a princesa mais velha, nunca se deixando afeiçoar a nenhuma outra
rapariga, por mais mimosa que fosse.
– Muito bonito... – apreciou Ismar.
Piscou mais uma vez o olho canhoto e murmurou:
– Mas julgo que nos esperam na piscina!
Zhakaria não vira mulheres toda a tarde e atravessou mais um
corredor, com expectativa, até chegar a um claustro interior, de teto
abobadado, no centro do qual existia uma límpida e azul piscina.
– Sabeis nadar? – perguntou Ismar, enquanto se despia.
O wali entrou na piscina já completamente nu, depois de retirar num
ápice a sua camisa de linho e os seus calções largos e compridos,
atirando com os chinelos para um canto. Ao fazê-lo, avisou Abu de que,
se tivesse receio de afogar-se, deveria manter-se junto aos degraus, onde
tinha pé.
O cordovês seguiu o conselho e, após despir a roupa, entrou também
na água morna, colocando os pés no chão com cuidado, para este não lhe
fugir. O momento produziu-lhe agradáveis sensações e afundou-se com
lentidão, submergindo a cabeça e fechando os olhos.
Quando voltou à superfície, Zhakaria reparou que seis mulheres
tinham surgido e se desfaziam dos vestidos, ainda fora da piscina. Três
delas tinham a pele negra como breu e três eram brancas e loiras, mas
todas eram dotadas de corpos admiráveis, embora umas fossem baixas e
outras altas, umas tivessem pernas curtas e outras mais longas, umas
exibissem seios grandes e outras mais pequenos, e umas apresentassem
nádegas rechonchudas e outras empinadas.
Ouviu Ismar cantarolar, divertido:

Ela é uma frágil gazela


Olhares de narciso
Acenos de açucena
Sorriso de margarida...

De súbito, o governador perguntou-lhe, a sorrir, como se fossem


amigos há muitos anos:
– Três eslavas e três núbias. Por quais tendes preferência?
De repente, Zhakaria sentiu que ia trair Fátima pela primeira vez. Não
aguentava mais aquele sacrifício. Respirou fundo e olhou as núbias
negras. Nos seus tempos de combatente nos exércitos muçulmanos de
Taxfin, Zhakaria derretera-se várias vezes com uma núbia parecida com
estas.
Gostei muito...
Aquela memória decidiu-o, apontando para as três negras, que
soltaram de imediato gritinhos de satisfação, entrando na água tépida,
enquanto Ismar cantava:

Feita de graça e feitiços


Me acende no coração
A fogueira da paixão
A moça de negros frisos

Dando uma curta risadinha, nomeou o autor do verso:


– Ibn Sara! Por certo haveis ouvido falar, era natural de Santarém!
Com um estalar dos dedos, convidou as três eslavas a aproximarem-se
e acrescentou:
– Amanhã podereis provar estas, não sou ciumento.
Abu Zhakaria nem queria acreditar naquelas prendas dos deuses e
viu-se rodeado pelas três ninfas negras, enquanto os seus ouvidos
escutavam mais uma demonstração de conhecimentos de poesia daquele
culto governador de Córdova, já abraçado às loiras.

Doce refúgio encontrava


Entre ancas opulentas
E tão estreitas cinturas!
Mulheres níveas e morenas
Atravessavam-me a alma
Como brancas espadas
E lanças escuras...

O espantado Zhakaria, mimado em simultâneo por aquela trindade


nua, deixou-se transportar para um paraíso incandescente, enquanto as
belas núbias o beijavam, se enrolavam nele e se ofereciam com gosto
aos seus desejos. Nunca estivera com três mulheres ao mesmo tempo,
nem sequer com duas, por isso espantou-se com as possibilidades
daquele esfuziante exercício.
Nos tórridos dias que passou no Azzahrat, Abu Zhakaria também
experimentou as eslavas, para grande contentamento de Ismar, que
considerava serem aquelas tropelias a melhor forma de solidificar uma
amizade masculina! O hábil governador de Córdova sabia perfeitamente
que, após estas orgias inesquecíveis, seria impossível a Zhakaria recusar
ser seu aliado.
Comprou-me...
Quando se despediram, Ismar abraçou-o com simpatia, pois ele
aceitara finalmente viajar até Marraquexe, para lá executar a
manipulação fraudulenta contra o califa Ali Yusuf, que ali se preparara
com mais gozo do que zelo.
Marraquexe, março de 1133

Se a passagem por Córdova e o convívio alegre e excitante com Ismar


lhe devolveram a confiança, Marraquexe mostrou a Abu Zhakaria o
terrível espetáculo de um velho califa consumido pelo medo.
Ali Yusuf vivia aterrado, via traições em todas as esquinas e a sua
capital real transformara-se num covil de animais assustados, vítima
fácil do puro terror que habitava a alma do monarca. Em pânico com
imaginadas ou reais revoltas, este obrigava os súbditos a um estado de
alerta e susto permanentes, pois qualquer movimento suspeito era
denunciado e qualquer denúncia era premiada com uma execução
bárbara, que se pretendia uma lição exemplar. A ideia óbvia era
desencorajar os afoitos, mas o resultado era a desmoralização geral de
uma cidade, que se propagava depois a todo o califado.
À medida que se aproximava, num grupo composto por ele e mais
quatro soldados cedidos por Ismar, Abu já notara sinais desagradáveis.
Num oásis, a vários dias de caminho de Marraquexe, onde uma caravana
de centenas de mercadores acampava, recuperando as forças depois de
longas viagens, um bando de soldados do califa, comandado por um
tiranete berbere, executou vários homens, acusando-os de traição só por
trazerem armas.
Foi uma exagerada queixa, todos tinham cimitarras, alfanges, punhais
e lanças. Os desertos e os caminhos haviam-se tornado perigosos e a
defesa individual era a única solução quando o califa já não garantia a
segurança geral.
Está perdido, o velho califa...
A revolta entre os mercadores fora imensa e os soldados viram-se
obrigados a partir, tal fora a rejeição dos seus excessos. O resto da
viagem prosseguira num ambiente de desagrado geral com a injustiça,
mas o prudente Zhakaria, já perto da capital, decidiu parar com os seus
homens e esperar um dia, pois temia que a caravana fosse fustigada mal
entrasse na cidade.
Foi uma decisão inteligente. Dois dias depois, quando finalmente
passaram os portões de Marraquexe, souberam que os mercadores que
os tinham precedido haviam sido sumariamente executados, pois o
maldoso tiranete avisara Ali Yusuf de que estava a caminho da capital
do califado uma rebelião armada.
Zhakaria viu-os, mais de uma centena, pendurados nas muralhas, de
cabeça para baixo, alguns degolados, outros empalados, e concluiu que
Marraquexe vivia no pavor. Qualquer idiota, como o chefe berbere
responsável pela perturbação no oásis, podia lançar uma acusação errada
e obter em troca a possibilidade de matar uma centena de inocentes.
Se Ali Yusuf julgava que com métodos daqueles ia pacificar o seu
califado, estava redondamente enganado. Assassinar mercadores sem
culpa, homens que comerciavam bens essenciais, era um erro fatal. Não
só se paravam as trocas necessárias para o bem-estar das cidades, como
se espalhavam mais as odiosas notícias, pois os outros mercadores não
se iriam calar. A fama inútil de uma Marraquexe sanguinária
corromperia ainda mais depressa a já desgastada legitimidade do califa.
Ali Yusuf vai durar pouco...
Neste ambiente perigoso, Abu redobrou as cautelas. Qualquer
irritação dos berberes podia ser-lhe fatal. Nunca se sentira em tanto
perigo, mesmo com o salvo-conduto e a mensagem de Ismar. Por isso,
deixou-se ser revistado pela primeira linha de guardas, ainda antes dos
portões da cidade. Permitiu que lhe retirassem as armas num controlo
por que os recém-chegados tinham de passar, para entrarem em
Marraquexe sem qualquer arma que fosse um risco para o aterrorizado
Ali Yusuf.
O que o cordovês não esperava é que, entre os portões da capital e a
sala de audiências do califa, onde horas mais tarde foi recebido, tivesse
de passar por mais catorze postos de controlo, onde mostrou o salvo-
conduto e a mensagem, a cada irritante guarda, que berrava com ele!
Que insanidade é esta?
Zhakaria estava espantado com aquela exibição doentia de receio. O
pavor de Ali Yusuf com os atentados, os ataques, as revoltas, era de tal
ordem que qualquer pessoa que desejasse ser recebida por ele demorava
pelo menos três horas a passar pelas revistas todas, onde tinha de dizer o
nome, a razão de ali estar, o motivo do encontro com o califa, quanto
tempo pensava demorar, onde estava instalado, quem lhe passara o
salvo-conduto, qual o seu local de nascimento e aquele onde vivia fora
de Marraquexe, terminando com o nome das esposas e dos filhos, se eles
existissem!
Zhakaria já estava farto a meio do processo e, a dado momento,
cresceu-lhe um desejo de impertinência. Ao passar no décimo quarto
controlo, à porta da sala do califa, perguntou ao comandante daquele
posto se, no final da audiência, teria de voltar a passar por todos aqueles
incómodos, tendo o homem olhado para ele sem expressão na cara e
apenas afirmado:
– Podeis sempre ser condenado à morte.
Era um risco real. Já dentro da sala, Abu escutou os guinchos
histéricos do seu predecessor, que esperneava, negando ser um traidor
almóada, berros que se multiplicaram em pouco tempo, depois de um
enorme soldado aparecer, de alfange na mão.
Com um gesto brusco, o carrasco decepou o desgraçado, cuja cabeça
rolou pelo chão, enquanto o corpo caía, mole e ensanguentado, sendo
depois recolhido por um grupo de infelizes escravos negros.
Abu Zhakaria, ao ver aquela exibição de perícia do carrasco,
recordou-se da Morte com Duas Pernas, o persa que viera de Alamut e
que matara Taxfin e Zulmira. Fizera-o a mando daquele califa que agora
se encontrava à sua frente, o berbere maldito que Taxfin e Zulmira tanto
odiavam.
Matava-o, se pudesse, mas não posso...
Admirado, notou que Ali Yusuf envelhecera bastante naqueles sete
anos. Estava mais curvado, a sua cara tinha muitas rugas, os seus
cabelos haviam-se acinzentado e os olhos já pareciam embaciados pela
dúvida sobre o seu próprio destino. Calado, o monarca ouviu o relato de
Abu Zhakaria, de quem obviamente se recordava, só intervindo quando
este referiu a morte do assassin persa.
– Que saudades tenho do meu feddayin! Este é burro como uma
pedra! – declarou Ali Yusuf, apontando para o carrasco.
Depois de respirar fundo para ganhar coragem, Zhakaria reconheceu
que fora para Coimbra com os objetivos opostos aos do facínora persa.
Enquanto o assassin queria matar Zulmira e as filhas, ele tentara resgatá-
las. Porém, ambos haviam falhado e as princesas continuavam em
Coimbra, prisioneiras de Afonso Henriques.
De repente, Ali Yusuf indignou-se:
– Porque estais aqui? Sois um traidor! Devia mandar matar-vos!
Zhakaria, notando que o carrasco já o examinava, exclamou aflito:
– Fátima e Zaida converteram-se ao cristianismo!
Surpreendido, o califa franziu a testa.
– Que dizeis?
Zhakaria expôs a sua mentira de forma calma e cuidadosa, como
treinara com Ismar. Sofrera uma funda deceção ao saber que, tal como a
avó das princesas, Zaida de Sevilha, que no passado se convertera à
religião de Cristo para poder desposar o imperador Afonso VI, também
as netas dela, Fátima e Zaida, as únicas descendentes dos Benu
Ummeya, haviam seguido destino semelhante.
Estará a acreditar em mim?
Acrescentou que o príncipe de Portugal convencera as princesas e
estas tinham repudiado o Corão e jurado fidelidade à Bíblia,
provavelmente com intenções parecidas com as da avó materna.
– Querem casar com Ibn Henrik? – questionou o califa.
Abu confirmou, com um aceno de cabeça. Era essa a informação que
tinha: as princesas, ou apenas uma delas, não podia precisar qual,
desejavam desposar o regente do Condado Portucalense, para que
pudessem depois unir esse território ao delas. As taifas de Córdova e
Sevilha, talvez até a de Badajoz, seriam anexadas ao Condado
Portucalense, formando um novo reino cristão, poderoso e vasto, no Sul
e no Oeste da Andaluzia, relembrando que o mesmo fizera Afonso VI,
quando se passara a intitular Imperador das Duas Religiões.
Ao ouvir isto, o califa enfureceu-se:
– Por isso matei o filho dele!
Na batalha de Úcles, mais de vinte anos antes, Ali Yusuf batera os
cristãos e terminara com a vida de Sancho, o único filho varão de
Afonso VI, nascido nas entranhas de Zaida de Sevilha.
– Acabei com o patético sonho de unir as duas religiões! Jamais
deixarei que isso aconteça!
Cavalgando a cólera do califa, Abu rejeitou, inflamado, aquela
escandalosa e herética reunião de duas fés, acrescentando que também
Ismar assim pensava. Por isso, este o incentivara a vir até Marraquexe
revelar ao supremo califa que ambos estavam prontos para lutar contra
esse absurdo desejo.
– Temos de matar as princesas, para impedir tal tragédia!
O califa franziu a testa, pois julgava que o cordovês as estimava, mas
este ampliou a sua fúria, justificando-a com a conversão religiosa e o
desejo de matrimónio de uma das mouras com Afonso Henriques.
– Traíram o pai, a mãe, o padrasto, a nossa religião!
Indignado, Zhakaria acrescentou que, se fosse essa a vontade do
califa, passaria outros sete anos a fazer o oposto do que tentara e traria
as cabeças das duas irmãs até Marraquexe, para as colocar aos pés do
grandioso Ali Yusuf!
Nem sei como fui capaz de dizer tal coisa!
A extremada convicção com que produziu aquelas afirmações animou
o velho califa, que valorizou aquela energia vingativa há muito alheada
de Marraquexe. Contudo, persistiam nele dúvidas sobre a lealdade do
governador de Córdova.
– Meu irmão Temin não gosta de Ismar – murmurou Ali Yusuf.
Zhakaria jurou-lhe que o wali de Córdova era fiel, nunca lançara ou
apoiara qualquer sedição e combatera sob as ordens de Temin os
exércitos cristãos, cada vez mais ameaçadores.
Aterrorizado com a sensação de cerco ao seu trono, o califa suspirou:
– A última coisa de que preciso é de um novo imperador cristão a
atacar Córdova ou Sevilha!
Nesse momento, Abu Zhakaria entregou-lhe a mensagem de Ismar,
que Ali Yusuf leu prontamente, ficando pensativo por momentos.
Depois, olhou para o cordovês e perguntou:
– Prometeis matar as princesas? E a tia delas, a tal Sohba?
Zhakaria ajoelhou de pronto em frente do califa e repetiu a sua
vontade férrea: encontraria as duas princesas e matá-las-ia, bem como a
Sohba! Satisfeito, o monarca disse:
– Nesse caso, nomeio-vos governador de Santarém.
O carrasco olhou para o califa com estranheza, sem perceber ainda
como era possível aquele volte-face, espantado por não ir cortar mais
uma cabeça. Quanto a Zhakaria, fingiu-se surpreendido, proclamou não
esperar tal honraria, que não merecia, mas aceitava.
Prometeu também que cumpriria todas as ordens do seu magnífico rei,
o sempre justo Ali Yusuf, liderando a luta contra os cristãos em seu
nome, naquela exigente frente de combate que era Santarém, o que
levou o califa a abraçá-lo, comovido e muito agradado.
Quase que chora, o verme...
Quando na manhã seguinte deixou Marraquexe, Abu Zhakaria ia
contente e esperançado. Erguido a wali de Santarém por ordem expressa
do califa, poderia relançar a luta contra Afonso Henriques e resgatar as
princesas. Para mais, dispunha agora de um poderoso aliado, o príncipe
Ismar, que prometera financiar as suas batalhas. Com o passar do tempo,
os dois assistiriam à queda ruidosa do califado de Ali Yusuf.
Em apenas três meses, tudo mudara na vida de Abu Zhakaria, cujo
coração estava agora repleto de uma grande certeza: ainda haveria de
casar com Fátima, em Hisn Abi Cherif, o castelo de arenito vermelho na
serra Morena!
Fátima, meu amor, estamos mais perto!
Celmes, abril de 1133

A fraqueza dos espiões portucalenses, praticamente inexistentes nessa


época, ficou demonstrada de forma trágica no ataque a Celmes,
totalmente imprevisto por nós. Vigiada pelo Velho em permanência,
Chamoa foi incapaz de nos avisar e assim cinco mil galegos, leoneses e
castelhanos avançaram para Celmes em segredo, comandados pelo
próprio rei de Leão, Afonso VII, primo direito de Afonso Henriques.
O mais importante monarca cristão da Hispânia, cujos domínios iam
do Atlântico até aos Pirenéus, tinha no antigo sogro, Afonso I de
Aragão, o seu mais feroz inimigo. Ambos desejavam ser imperadores da
Hispânia e só os invernos suspendiam os combates entre os respetivos
exércitos, que duravam há sete longos anos. Por isso, Afonso VII teve
finalmente tempo para se dedicar ao seu energético primo portucalense,
que erguera Celmes em plena Galiza.
Situada perto de Límia e a norte do rio Minho, a nova fortificação que
Gonçalo de Sousa liderava pretendia demonstrar as aspirações galegas
de Afonso Henriques. O filho do conde Henrique e de Dona Teresa
mantinha vivas as antigas pretensões dos pais, considerando que eram
seus vários condados a norte do rio Minho, como Toronho, Celanova,
Límia, Astorga e Zamora.
Esta velha ambição dos condes portucalenses nunca fora reconhecida
pelos familiares leoneses. Nem pelo falecido imperador, o avô Afonso
VI, nem por Dona Urraca, que lhe sucedeu, nem finalmente pelo filho
desta, Afonso VII. Para estes, o Condado Portucalense terminava no
Minho e os territórios a norte do rio eram parte essencial de uma Galiza
indivisível, onde Afonso VII exigia reinar.
Construir Celmes nessa zona era uma provocação e a hora da
retaliação tinha por fim chegado. O cerco foi rápido, os cinco mil
homens que Afonso VII trazia não encontraram réplica até às muralhas
de Celmes. Os terrenos em redor da fortificação encheram-se de tropas,
tendas, máquinas de guerra e cavalos, e aos portucalenses foram
apresentadas duas hipóteses: ou a rendição imediata, abandonando o
castelo; ou um combate desigual até à morte, destino proposto aos
quinhentos portucalenses ali estacionados, divididos em cavaleiros-
vilões, escudeiros e besteiros.
Na tenda do rei leonês, quando regressou a resposta, estranhou-se a
ousadia dos sitiados, que se julgou absurda.
– Gonçalo de Sousa assinou a sua sentença de morte! – rugiu o
Trava.
Há pelo menos três anos, desde o falecimento da sua amada Dona
Teresa, que o nobre galego esperava com ansiedade o momento da
desforra de São Mamede. Prometera uma guerra sem tréguas a Afonso
Henriques, mas convencer Afonso VII fora um árduo trabalho. Chegara
o momento da primeira estocada e os de Celmes seriam as vítimas
iniciais da sua fúria. Fernão Peres ainda recordava, com uma cólera que
não se extinguia, os comentários jocosos com que o brindara Gonçalo de
Sousa, depois da batalha de São Mamede. Agora, o descarado ia engoli-
los, um a um.
Só que Afonso VII hesitava. Orgulhoso, sempre de coroa no topo da
cabeça, o leonês era mais baixo e mais velho do que Afonso Henriques,
mas bem menos impetuoso, só decidindo pela certa. Além disso,
lembrava com nostalgia as brincadeiras entre primos, na já distante
infância de ambos. No seu coração, permanecia uma resistente simpatia
pelo príncipe de Portugal, que sempre admirara.
– Que imprudência, deixar apenas quinhentos homens a defenderem
um castelo! Ainda por cima, uns tontos. Corajosos, mas tontos...
Para o rei leonês, Gonçalo de Sousa, ao recusar uma pronta deposição
das armas, estava a condenar os seus homens a uma morte horrível.
– Nem vão dar luta – murmurou Afonso VII.
O Trava mordeu o lábio, enervado. Era necessário espicaçar o rei.
– Afonso Henriques matou os meus soldados no Nabão! Está prestes a
descobrir a relíquia que vós desejais! Só atacando Celmes o humilhamos
e o obrigamos a vir ao Norte!
O relutante monarca não ligou a estes elaborados argumentos, pois
custava-lhe passar aqueles portucalenses a ferro. O primo tomaria juízo
se lhe fizesse ver a tontaria em que se metera!
– Enviai novo mensageiro amanhã – decidiu. – Gonçalo de Sousa
poderá ir a Guimarães receber instruções.
Uma viagem de ida e volta demoraria semanas, o Trava não queria
acreditar que Afonso VII estava disposto a ficar sentado no seu
acampamento, à espera do primo!
– Afonso Henriques é mais teimoso do que um burro! – exclamou,
indignado. – E nunca cumpre com a palavra dada!
Aproximando-se do rei, sussurrou-lhe ao ouvido:
– Um homem que lança a mãe a ferros é capaz de tudo!
Aquela recordação impressionava sempre o rei leonês, que jamais
tivera coragem de aplicar a mesma receita à própria mãe, Dona Urraca,
embora a vontade não lhe faltasse. Contudo, nem essa invocação dos
excessos de Afonso Henriques o convenceu e frustrou o Trava, impondo
uma nova tentativa de conciliação.
Já desesperado, Fernão Peres optou por uma tática miserável. Em
segredo, colocou o seu mais hábil arqueiro escondido nuns rochedos
laterais. Quando o mensageiro de Afonso VII se aproximou de Celmes
no início da manhã seguinte, com nova proposta de paz, uma flecha
atingiu-o e o Trava desatou a culpar os portucalenses pela ignomínia.
Acabado de acordar, com o mau despertar que sempre tinha, o rei
leonês irritou-se com tamanha desfaçatez e deu por fim ordem de ataque.
Tentara tudo para poupar Celmes e os portucalenses, mas perante tão
maldosa estupidez, era evidente que Gonçalo de Sousa não merecia a
sua real vontade de pacificação!
A investida iniciou-se a meio da manhã. O Trava mandou avançar
duas catapultas recentemente construídas, que começaram a fustigar
Celmes com pedras. Uma primeira vaga de assalto aproximou-se das
muralhas, mas foi forçada a recuar, brindada com o habitual azeite a
ferver lançado pelos portucalenses.
– Tanta timidez – rosnou o Trava, de regresso à tenda do rei.
Este olhou-o e perguntou:
– Que desejais então?
Fernão Peres defendeu um ataque em massa, por todos os pontos
cardeais da muralha, alguma parte havia de ceder. Convencido, Afonso
VII deu o seu aval, apenas acrescentando uma imposição:
– Trazei Gonçalo de Sousa vivo, à minha presença!
O que se seguiu, como nos contou depois o nosso bom amigo, foi uma
inqualificável carnificina. Comandados pelo irado Trava, os atacantes
lançaram-se em matilhas contra as muralhas de Celmes, e por mais
intensa que fosse a defesa daquele novo castelo, que tanto orgulhava o
príncipe de Portugal, a resistência começou a quebrar a meio da tarde,
quando uma parte da muralha norte ruiu, destruída pelo trabalhar
constante das catapultas.
Centenas de inimigos, aos gritos, correram para aquela frecha.
Naturalmente, Gonçalo tentou sustê-los, dirigindo para ali mais dos
seus. Só que, a manta era curta, puxando de um lado destapava o outro.
O Trava pressentiu esta segunda fragilidade, sobretudo no leste da
fortaleza, mandando investir por aí um novo contingente de soldados,
frescos e descansados.
As escadas lançadas encheram-se de uma quantidade infindável de
tropas e, sentindo uma insuportável pressão, Gonçalo de Sousa mandou
recuar. Os portucalenses resistentes fecharam-se na pequena alcáçova,
enquanto os desgraçados a quem faltou o tempo, cerca de cento e
cinquenta, foram sumariamente degolados ainda na almedina, por ordem
do Trava, embora quase todos já estivessem moribundos ou feridos.
A visão da matança desmoralizou os restantes portucalenses, que,
assustados, pretenderam evitar idêntico fim, convencendo um renitente
Gonçalo a render-se. Contudo, essa admissão tardia de derrota nunca
chegou aos ouvidos do rei leonês, pois o Trava sabotou-a, eliminando o
mensageiro dos portucalenses. O seu inexorável desejo de vingança não
admitia qualquer paragem nos combates e arremessou as tropas contra a
alcáçova sem piedade.
Restavam pouco mais de trezentos homens a Gonçalo, que tentou
tudo para suster os adversários, até a lei do cansaço se impor. Aqueles
poucos portucalenses lutavam há horas, sem um instante de descanso,
enquanto os inimigos se revezavam, substituindo os já esgotados por
soldados frescos, numa rotativa energia bélica que decidiu a contenda.
Quando os portões da alcáçova cederam, uma vaga de leoneses e
castelhanos furiosos entrou, cumprindo as ordens facínoras do Trava,
que mandara todos matar, exceto Gonçalo. Um a um, os cavaleiros-
vilões portucalenses foram sendo cercados, batidos e mortos, fosse com
a espada, com a flecha ou à paulada. Os seus fiéis escudeiros viam-nos
cair e baixavam as armas, na esperança de serem poupados, mas nem
isso acontecia. Contrariamente às leis cristãs da guerra, que mandavam
prender quem se rendia, as ordens do Trava mantinham-se implacáveis e
trezentos e cinquenta portucalenses foram dizimados, transformando
aquele pequeno castelo num rio vermelho de sangue.
Gonçalo, um valente, ainda espadeirava, no alto da torre de menagem,
rodeado por uma derradeira dezena de resistentes, mas uma horda de
fogosos adversários, com o Trava à cabeça, conseguiu subir até lá.
Numa luta corpo a corpo, terrível mas de resultado óbvio, aniquilaram
com facilidade as últimas almas portucalenses.
Já sozinho num canto, ainda de espada na mão, Gonçalo de Sousa
examinou o horizonte, onde se via a tenda do rei. Fechou os olhos. A sua
hora chegara e pensou em Zaida e no seu amigo Afonso Henriques.
Teria sido isto que o príncipe de Portugal desejara, uma morte prematura
mas honrada, para poder afastá-lo para sempre da bela princesa moura?
– Largai a espada! – gritou o Trava. – Tenho ordens de Afonso VII
para vos poupar, embora não seja o meu desejo!
Num ímpeto vertiginoso, que por vezes assola os que viram morrer à
sua volta tantos solidários companheiros, Gonçalo levantou a sua espada
e prometeu luta, mas o Trava avisou-o:
– Sereis empalado, se não vos renderdes!
Cerrando os dentes, com o coração cheio de ódio por aquele galego
nefasto, Gonçalo de Sousa revelou o seu habitual espírito e gritou:
– Os portucalenses têm o cu duro, canalha!
Sem medo, avançou contra os inimigos e ainda furou dois, mas
rapidamente foi atirado ao chão e desarmado. Já paralisado, obrigaram-
no a assistir à degola póstuma dos portucalenses que ali tinham subido
com ele, os últimos resistentes de Celmes.
– Olhai o que faço aos vossos! – gritou o Trava, decepando um.
Mal habituado àqueles golpes, que normalmente deixava para os
carrascos ou para os brutos, não conseguiu fazer saltar a penúltima
cabeça portucalense e a sua espada ficou presa nos ossos do pescoço do
desgraçado, que ainda berrou em agonia.
Triste, Gonçalo rezou uma curta oração pelo infeliz, mas depois
cuspiu no chão, à frente do Trava e provocou-o:
– Sois um merdoso, nem uma cabeça sabeis cortar!
Atingido na sua honra, Fernão Peres enfureceu-se e obrigou um dos
seus soldados a ceder-lhe uma lança. Apontou-a à barriga de Gonçalo e
vociferou, a babar de raiva:
– Vejamos se as vossas tripas são tão duras como o vosso cu!
Uma voz imperativa ouviu-se então, mandando-o parar. Os olhares
voltaram-se para a escada da torre de menagem, onde surgiu Afonso
VII, que, ao saber dos progressos da querela, entrara na alcáçova,
examinando, perplexo, a bestial mortandade.
– Quem vos deu ordens para tanta sangria? – gritou.
Fernão Peres justificou-se: os portucalenses não se rendiam, ainda
agora Gonçalo matara dois galegos e mais mataria se não o tivessem
desarmado. Afonso VII abanou a cabeça, incrédulo, declarando não ser
possível que cinco mil dos seus, com o castelo conquistado, tivessem
tanta ira aos portucalenses ao ponto daquela excessiva barbaridade.
Fosse como fosse, Celmes estava tomada. O monarca, de regresso ao
seu acampamento, mandou lançar fogo ao castelo, depois de lá serem
enterrados os mortos adversários. A mensagem ao primo estava enviada
e, antes de partir, o rei leonês obrigou o Trava a prometer levar Gonçalo
até Guimarães, onde ele descreveria a Afonso Henriques o que ali se
passara.
Mas nem isso o Trava fez. Quando a sua comitiva galega se separou
da do monarca, que regressava a Toledo, o tio de Chamoa limitou-se a
transportar Gonçalo para Tui, onde o colocou a ferros nas masmorras. A
sua sede de desforra ainda não ficara saciada com aquele sangue todo
que empapara o granito das pedras de Celmes e, nos meses seguintes,
Gonçalo de Sousa provou o fel que habitava a alma daquele cínico.
Tui, setembro de 1133

Os gritos de Gonçalo de Sousa, oriundos das profundezas do Castelo de


Tui, há meses que incomodavam a família de Gomes Nunes, sobretudo
Chamoa. Atarantada, a minha cunhada já por várias vezes implorara a
seu tio, Fernão Peres, que parasse aquelas torturas.
Nossa Senhora, não aguento mais...
Gonçalo fora trazido para ali em finais de abril, logo após a tomada de
Celmes pelo rei Afonso VII, e era guardado como valioso refém. Por
debaixo do velho Castelo de Tui existia uma galeria escura, de pedra
granítica, gelada no inverno e abafada no verão, que terminava numa
única cela, cheia de argolas e correntes pregadas nas paredes, onde no
passado os prisioneiros eram deixados a apodrecer.
Os atuais habitantes do castelo chamavam-lhe masmorras, mas na
verdade tratava-se apenas de um buraco, esquecido pela família há anos
por falta de uso, onde o Trava decidiu colocar Gonçalo. O nosso
desgraçado amigo chegou a Tui ferido, sujo e desgrenhado, a cheirar a
suor e a cavalo, com manchas de sangue nas vestes e a cota de malha
esburacada, mas nem a intervenção de Gomes Nunes, a pedir alguma
clemência a Fernão Peres, alegando que aquele cheiro imundo iria atrair
as ratazanas, teve qualquer efeito. Gonçalo foi atirado para o buraco
perante o gozo do Trava, que o avisou das malícias a que iria ser
sujeito.
O Velho, vigilante de Chamoa, logo que a madrugada nascia deixava
um soldado a substituí-lo à porta do quarto dela, indo cumprir as ordens
do nobre galego, que o acompanhava na descida à masmorra.
Desatavam aos pontapés a Gonçalo, esticavam as correntes que o
prendiam à parede, nos pés e nas mãos, de modo a que ficasse só a rasar
os costados no chão. Seminu, apenas com uns calções esfarrapados a
tapar-lhe os órgãos, o nosso amigo via o Velho aproximar-se, enquanto
ouvia o Trava cantarolar:
– Sellium, Sellium, lá vai mais um...
Desde o início, Fernão Peres estabelecera uma macabra e lenta
punição. Com o punhal de Paio Soares, onde estava escrita aquela
inscrição em latim, o Velho fazia um buraquinho no corpo de Gonçalo,
por dia e por cada castelhano, leonês ou galego que os portucalenses
tinham morto em Celmes.
– Foram trezentos e sessenta e um, temos para quase um ano –
contabilizara Fernão Peres.
Naquele dia de setembro, tinham passado cinco meses, portanto
Gonçalo já contava com inúmeros pequenos cortes, espalhados pelo
corpo todo, pontos que pingavam sangue, o que atraia as ratazanas, que
um soldado, à entrada da galeria, enxotava.
– Cães tinhosos! – rugia o nosso amigo, todas as manhãs.
Aquele inútil e estúpido desporto continuava, enquanto o Trava se
justificava a Gomes Nunes, prometendo só parar no momento em que o
preso lhe revelasse os próximos planos de Afonso Henriques.
– Mas o que sabe ele? – perguntava o senhor de Toronho.
Certamente que o príncipe de Portugal se iria vingar da derrota
contundente de Celmes, mas como poderia Gonçalo conhecer o que se
preparava, enfiado nas masmorras de Tui? Perante tantas insistências, o
Trava limitava-se a sorrir e a perguntar:
– Gomes Nunes, temeis ser atacado por Afonso Henriques?
O pai de Chamoa sabia perfeitamente que Tui seria a primeira
paragem do enfurecido regente do Condado Portucalense. E apostava
que Afonso VII nem se ia incomodar com isso, pois não lhe perdoava a
recusa em prestar vassalagem. Contudo, bem piores do que esses
temores eram os berros madrugadores de Gonçalo.
– Os meus netos assustam-se, poupai-os a este inferno! – pedia ele.
Naquela manhã, o seu neto mais velho, Pêro Pais, relatara ao avô o
choro pungente de Chamoa, desesperada com tanta gritaria e com as
insónias matinais dos seus quatro rebentos.
– Minha mãe diz que enlouquece, se isto continuar – dissera o petiz.
Com um arremesso de autoridade, pois afinal era o dono daquele
castelo, Gomes Nunes foi ter com o Trava, acompanhado pelo neto.
Encontrou-o no pátio da alcáçova, junto ao Velho e a Mem Tougues.
Dirigindo-se a este último, implorou pela sanidade de Chamoa e do
filho que ambos tinham, o mais novo dos seus quatro netos e o mais
choroso todas as manhãs.
O primo, que ainda tinha sentimentos por ela, perguntou:
– Chamoa chora?
Antes que Gomes Nunes ou Pêro Pais respondessem, o Trava
antecipou-se e ditou a sua sugestão tortuosa:
– Ela que se dê aqui ao Mem Tougues, que nós acabamos com isto
hoje mesmo!
O nomeado sorriu, entusiasmado com a possibilidade, mas Gomes
Nunes perguntou, espantado:
– Torturais Gonçalo para que minha filha se deite com um primo?
O Trava mirou-o com frieza e depois, em voz pausada, replicou:
– Estamos em guerra. Gonçalo está contra nós, Chamoa também. Se
quiser ser leal a nós, será bem recebida. Caso contrário... – acercando-se
de Gomes Nunes, murmurou: – E vós, tende cuidado, só por serdes
casado com minha irmã Elvira é que vos poupo.
Calado e assustado, o senhor de Toronho empalideceu, mas junto às
suas pernas, Pêro Pais empertigou-se e perguntou ao Trava:
– Estais a ameaçar o meu avô?
Sem aviso, o nobre galego deu-lhe um tabefe, que atirou com o petiz
ao chão. Gomes Nunes indignou-se, não admitia que os seus netos
fossem tratados assim, ao que o Trava ripostou que, se Chamoa se
juntasse a Mem Tougues, alinhando com os partidários de Afonso VII,
todos seriam bem tratados. Porém, se ela persistisse naquela teimosia
desleal, todos sofreriam.
– Está nas mãos de vossa mãe – declarou Fernão Peres, sorrindo
maldosamente para Pêro Pais, que já se levantara, mas ainda esfregava a
cara.
Nessa mesma tarde, o rapaz foi ter com a mãe e disse-lhe que queria ir
a Guimarães avisar Afonso Henriques. Em Tui, estavam três cavaleiros-
vilões portucalenses, vindos de Compostela, que iriam atravessar o rio
Minho na manhã seguinte, podendo levá-lo com eles.
– Quem vos meteu isso na cabeça? – inquietou-se Chamoa.
Pêro Pais denunciou o estalo do tio, a preocupação impotente do avô,
os desejos prementes do Tougues, a responsabilidade última e severa
que o Trava colocava aos ombros dela.
Alarmado, perguntou:
– Ides ceder ao Tougues, minha mãe?
O coração de Chamoa enraiveceu-se. Era inaceitável o tio bater-lhe no
filho, mas como impedi-lo? Fernão Peres controlava Tui com o apoio de
sua irmã Elvira e sobretudo com a presença do maldoso Velho.
Abraçando o filho, Chamoa louvou a sua firmeza e declarou:
– Prefiro morrer do que me dar ao Tougues outra vez!
O menino insistiu no seu plano de fuga e Chamoa percebeu que o
autor da mirabolante ideia era Gomes Nunes. Finalmente, o seu pai
começava a mudar as lealdades, mas com suficiente subtileza, para que
nem a esposa nem o cunhado Fernão Peres pudessem acusá-lo de
participar numa conspiração.
Nem isso diminuía o grau de loucura de uma fuga daquelas. Chamoa
não podia deixar o filho de apenas seis anos arriscar-se assim, temia que
ele fosse apanhado, mas Pêro Pais prometeu-lhe que escaparia do castelo
sem ser visto e, perante tamanha demonstração de convicção, Chamoa
acabou por ceder, babada de orgulho.
Sois tão corajoso, meu filho.
Na manhã do dia seguinte, vestiu o menino e, como sempre, viu-o sair
do quarto a caminho da cozinha, o destino matinal da criança. Desatou a
rezar, ajoelhada junto à cama. O Trava e o Velho estavam ainda na
masmorra, ouvia os gritos de Gonçalo, nenhum veria o petiz.
Nossa Senhora, ajudai-o!
Depois de atravessar a alcáçova encostado às paredes, Pêro Pais
correu à cavalariça e enfiou-se num saco, colocado na carroça dos
cavaleiros-vilões, que já tinham sido avisados. Mas, quando o veículo
passava pelos portões de Tui, ouviu-se um grito. A cavalo, o Velho
chegou, esbaforido, e perguntou aos guardas:
– Haveis visto o filho mais velho de Chamoa, Pêro Pais?
Um dos cavaleiros-vilões, chamado Paio Guterres, virou-se para o
Velho e inquiriu-o:
– Não sois um templário de Soure?
Vira-o em Coimbra, no dia em que os monges guerreiros haviam
prestado o seu juramento na nova Ordem do Templo. Descoberta a sua
falsa identidade, o Velho calou-se, ligeiramente atrapalhado.
– Julgava que os monges guerreiros serviam a Ordem até ao dia da
sua morte – acrescentou o cavaleiro-vilão, desconfiado.
O Velho enervou-se e replicou:
– Ide-vos, portucalenses, antes que vos prenda. Nada me dá mais
gosto do que torturar a vossa gente!
Tendo ouvido os gritos de Gonçalo, Paio Guterres fingiu-se assustado
e deu ordens para a carroça avançar, saindo daquele sinistro castelo. Só
quando chegaram à margem oposta do rio Minho, depois de o
atravessarem numa barcaça, é que o pequeno Pêro Pais teve ordem para
sair do saco e sentar-se junto a eles.
Suspirando de alívio, o menino concluiu:
– Foi por pouco.
À medida que se afastavam de Tui, Pêro Pais revelou que temia o
Velho, que já tentara magoar Chamoa Gomes, receando também pela
frágil saúde do azarado Gonçalo de Sousa.
– Tenho de salvá-los – declarou Pêro Pais.
O cavaleiro-vilão Paio Guterres, portucalense de gema, combatera em
São Mamede e conhecia a lendária história dos amores atribulados de
Afonso Henriques e Chamoa. Mesmo assim, espantou-se que o filho
mais velho de Paio Soares quisesse juntar a sua mãe ao príncipe que lhe
matara o pai.
– Sou um portucalense – justificou-se a criança, sem hesitar.

Foi assim que nasceu Portugal: um sentimento único, uma identidade


que se forjava naqueles conturbados tempos, uma admiração pelo nosso
príncipe, uma lealdade férrea que até as crianças partilhavam. Pêro Pais,
um petiz de seis anos, foi dos primeiros a verbalizarem essa emoção
forte que nos unia, mas quando o recebi em Guimarães, recém-chegado
de Tui, minha esposa Maria comentou, preocupada, só aos meus
ouvidos:
– Chamoa vai perder-se no vinho. Este menino era a sua rocha.
Lisboa, setembro de 1133

Ansiosas com a notícia de que Abu Zhakaria tinha sido nomeado


governador de Santarém pelo califa Ali Yusuf, o que levantava dúvidas
sobre as suas lealdades, as princesas sabiam igualmente que existia uma
nova oportunidade para encontrar a relíquia, pois Afonso Henrique iria
para o Norte e o fossado de Peres Cativo fora suspenso. Porém, Zaida
andava desagradada, pois Mem já fora a Lisboa três vezes e não
encontrara Sohba. Com subtileza fina, duvidara da motivação dele,
insinuando que só ia a Lisboa para continuar a receber carícias.
O esperto almocreve percebeu a mensagem implícita: ou encontrava
Sohba ou os mimos de Zaida paravam de vez, coisa que não desejava.
Na manhã seguinte a este aviso, despedira-se dela com um beijo na boca
e a promessa solene de encontrar a velha mulher e, agora que chegara a
Lisboa pela quarta vez, estava certo de que seria bem-sucedido,
sobretudo depois de ouvir o misterioso comentário de uma jovem
soldadeira...
Pergunta adiada, tarde estragada...
Mem conhecera-a na sua ida inicial à cidade onde o Tejo desaguava.
Era uma rapariga muito magra e não especialmente bonita, que vendia o
corpo numa ruela de Alfama, mas que saía a perder quando comparada
com as muitas outras soldadeiras que lhe faziam concorrência.
Porto marítimo que ligava os mares africanos e mediterrânicos aos do
Norte, por Lisboa passava toda a espécie de gente, oriunda das mais
diversas proveniências, o que dava um colorido único à povoação. Pelas
ruas daquela almedina, tanto se podiam ver berberes ou normandos,
como escravos loiros ou negros, adoradores de Maomé ou de Cristo.
Embora existissem mesquitas, igrejas e até uma sinagoga, com o seu
imã, bispo ou rabi, a presença religiosa era como um eco distante e
poucos na cidade ligavam ao seu Deus, limitando-se a despachar as
rezas e a seguir os imperativos das tentações.
Em Lisboa, abundavam os pecadores. As lojas dos artífices, as feiras
de lavoura, o porto, enchiam-se de indivíduos que, mal feito o negócio
público, corriam a saborear o seu vício privado. Almocreves e artífices,
criadas e padeiras, soldadeiras e falsos jograis, até esposas e esposos de
alguma nobreza, aceitavam em plena rua os pedidos dos mais
apressados. Eufóricos, abraçavam-se com matronas mal dobravam uma
esquina, beijavam mineiros da Adriça ainda na soleira das suas portas,
ou amigavam-se a escravas nos logradouros das traseiras das casas, sem
pudor ou pausa.
A cidade parecia consumida pela ânsia de fornicar. Para Mem, um
sedutor habituado à conversa serena, ao galanteio e ao mimo doce,
aquela velocidade de acasalamento soava demasiado agressiva, pois para
ele qualquer encontro a dois, por mais fugaz que fosse, tinha
necessidade de respeitar um ritual próprio, onde era essencial existir um
mínimo de encanto mútuo.
Em Lisboa, machos, fêmeas e homens efeminados atacavam quem
por eles passasse, exibindo os atributos físicos, prometendo coisas que
diziam só elas e eles saberem fazer. E logo marinheiros duros, com a
pele gretada pelo sol e pelo sal, de quem ninguém suspeitava, caíam de
súbito nos braços de um moço imberbe, de cara pintada e pestanas
longas; enquanto, ao lado, o companheiro, igualmente rude, se abraçava
a duas gorduchas soldadeiras e se juntava aos primeiros num beco, onde
se consumava mais uma orgia indecorosa.
Aquela confusão geral, primitiva e enjoativa, gerara em Mem uma
sensação próxima da repugnância. Pela primeira vez, aquele almocreve
sempre bem-sucedido com as mulheres rejeitou os avanços de muitas
matronas, que ao verem-no, bonito e bem constituído, se multiplicavam
em abraços, dando a entender que o queriam com um desespero
amoroso exagerado, que lhe soava ridículo; para depois da recusa o
ofenderem com os seus protestos, antes de partirem fugazes, ao assalto
do próximo macho disponível.
Mulher rejeitada, vai-se zangada...
A almedina inteira crepitava neste frenesim, entre o comércio dos
bens e o dos corpos, e fora talvez por isso que Mem não avançara mais
nos seus inquéritos sobre Sohba, pois ninguém lhe respondia, não
estando ele disponível para que o provassem a baixo preço. Perguntara
inúmeras vezes aos comerciantes, aos moradores mais antigos, aos
religiosos e aos curandeiros, mas depressa descobriu que a maioria
estava ali de passagem, não permanecia mais de uns meses, um ano no
máximo, por isso nada sabiam.
Desanimado, nessa primeira ida a Lisboa rumara ao casebre em que
se instalara, à porta do qual deixara a carroça, decidido a regressar a
Santarém. As ruas continuavam pejadas de uma turba façanhuda e
inquieta, por mais de uma vez tivera de se desviar, para evitar
escaramuças com um mineiro trôpego, incomodado por ver uma escrava
a publicitar-se a Mem.
Muito encontrão, dá confusão...
Em Lisboa, não se viam soldados para manter a ordem e nas ruas
imperava a lei do mais forte. Embora existisse um conselho de anciãos
mouros e também um bispo moçárabe, a cidade não tinha wali nomeado
pelo califa Ali Yusuf e vegetava num limbo anárquico.
Em teoria, Lisboa fazia parte da kura de Badajoz e o seu território, tal
como os de Santarém e Alcácer, estava incluído nessa taifa, mas a
verdade é que, ao contrário dessas duas povoações, ali ninguém
mandava, e mesmo o califa almorávida parecia uma entidade distante e,
perante as circunstâncias, de invocação inútil.
Aquela massa de gente, na sua maioria itinerante e passageira,
governava-se a si própria e ignorava as ordens vindas de Marraquexe ou
de Badajoz. Quando um mais distraído comerciante perguntava ao
almoxarife para quem eram a dízima ou as portagens que pagava,
obtinha a resposta de sempre: para Lisboa.
Já próximo do seu poiso, Mem ouvira uma rapariga oferecida a
assobiar-lhe. Ao observá-la, concluíra que um corpo tão enxuto e um ar
tão triste não tinham hipóteses contra as outras soldadeiras, mais
exuberantes, polpudas ou mandonas.
Mulher magricela, ninguém trata dela...
Decerto era por isso que ela atacava ali, nas margens da cidade, onde
só vinham os desesperados.
– Quereis que vos chupe? – perguntou a rapariga.
Sob o luar, Mem tivera pena daquela moça de voz rouca. Ela tinha a
cara marcada com cicatrizes e era quase desprovida de seios, por
debaixo do trapo velho que a cobria.
– Obrigado, mas não – respondeu.
A rapariga insistira, gabando os seus dotes, como todas faziam:
– Faço milagres com a língua e tenho a fenda quente, à vossa espera.
Sem saber bem porquê, Mem justificara-se: estava bem servido em
Coimbra, com uma rapariga que estimava.
– É cristã? – perguntara a magricela, aproximando-se.
Talvez com saudades de Zaida, Mem sentira vontade de recordá-la e
descrevera à soldadeira o seu enamoramento por uma princesa moura,
prisioneira dos cristãos há anos, mas nascida em Córdova. Para seu
enorme espanto, a criatura perguntara-lhe:
– A Fátima ou a Zaida?
De olhos esbugalhados, Mem interrogara a soldadeira, que, por ter
vivido uns anos no Condado Portucalense, se recordava daquelas belas
raparigas mouras, cativas há tanto tempo.
– Em Coimbra, todos as conhecem.
Curioso, o almocreve quisera prolongar a conversa, mas a magra
soldadeira, que era esperta, dissera logo que não era paga para isso.
Então, Mem ofereceu-lhe umas moedas, para a convencer a falar.
– Fugi porque me maltrataram. Os cristãos abusaram de mim, era eu
pequena. Até os da minha família.
Mem comoveu-se. Como muitas a quem os próprios pais, irmãos ou
tios usavam desde meninas, acabara naquele sujo ofício.
– Mas, como vedes, nem em Lisboa me saio bem – suspirara ela,
desiludida – Os homens pelam-se por tetas grandes e peideiras fofas, e
só fico com os restos... E vós, porque estais aqui?
O almocreve contou que viera abastecer a carroça, mas também à
procura de uma velha mulher chamada Sohba, que vestia de negro e a
quem muitos chamavam bruxa. Como não a encontrara, tinha de
regressar a Santarém, os seus afazeres assim o impunham.
– Não quereis mesmo que vos chupe? Já que haveis pago... –
murmurara a rapariga, ao ouvi-lo despedir-se.
Dando uma carinhosa festa no braço do almocreve, adiantara:
– Sois belo, até gostava.
Mem sorrira-lhe de volta e incentivara-a a procurar outro ofício,
chegando mesmo a sugerir que trabalhasse com ele, como ajudante de
almocreve, mas a rapariga recusara, dizendo que não necessitava de ser
salva.
Alma fodida, vida perdida...
No fim do colóquio, Mem prometera voltar àquela esquina, coisa que
fizera nas duas viagens seguintes a Lisboa. Ao terceiro encontro, a
rapariga perguntara-lhe por Zulmira, a mãe das princesas, de quem
também se lembrava, tendo Mem narrado que fora degolada por um
assassin, o mesmo que queimara Sohba.
E hoje, quando se encontraram pela quarta vez, ouvira um estranho
comentário. Tudo começara com a pergunta do costume:
– Quereis que vos chupe?
O almocreve, que ainda digeria a pressão que Zaida lhe colocara aos
ombros, disse-lhe que não voltasse a repetir tal questão, por já saber o
que ele procurava, ao que a magricela respondeu, ofendida, antes de lhe
virar as costas, que se o chupasse ele iria sentir uma bola de fogo a
explodir-lhe na ponta do pau!
Na altura, Mem não ligou e reiniciou o seu périplo inquisitório por
Lisboa, mas aquela frase ficou-lhe a matutar na cabeça, como se fosse
um código indireto ou uma pista enviesada.
Ao final da noite, regressou pelo caminho habitual, ansioso por a
encontrar. No entanto, desiludiu-se, pois a soldadeira não se instalara na
esquina que costumava ocupar. Mem ainda esperou algum tempo, mas,
vendo que ela não chegava, concluiu que aquela estava a ser uma noite
rentável para a rapariga e não podia levar isso a mal.
Rumou ao seu poiso, desapontado. Porém, mal entrou no casebre,
notou logo a presença de alguém.
– Fui entrando – informou a soldadeira.
Mem perguntou-lhe o que ela fazia ali e ouviu-a dizer:
– Sois teimoso.
O almocreve achou que a rapariga se referia à recusa dele e ripostou:
– E vós sois demasiado insistente, não procuro folguedos.
No escuro do casebre, pareceu-lhe que a rapariga sorriu. Lembrou-se
do comentário dela e perguntou:
– Porque haveis falado em bolas de fogo?
A soldadeira baixou os olhos para as calças dele e Mem encolheu os
ombros, enquanto a ouvia dizer:
– Ides gostar do que tenho para vós.
O almocreve suspirou, naquela cidade só se pensava em fornicar.
Mas, nesse momento, a soldadeira espantou-o, pois declarou:
– Sohba vive comigo.
Estarrecido, o almocreve ouviu-a contar como se tinha cruzado com a
tia das princesas. Cinco anos antes e depois de lançada à fogueira pelo
assassin, nas cavernas próximas de Soure, a velha mulher de negro
fugira. Massacrada pelas queimaduras, rumara até Santarém, onde um
curandeiro a metera num barco, com destino a Lisboa.
O homem, uma boa alma que recolhia feridos ou soldados desertores
dos combates, também ajudara a soldadeira, que fugira do Norte, cheia
de cicatrizes na cara. Quando esta última chegou a Lisboa, conhecera a
velha de negro e ajudara-a a sarar as mazelas. Contudo, sem posses, a
rapariga caíra naquele último recurso, vendendo o corpo para poder
sobreviver e, de caminho, ajudar a alimentar a idosa acamada.
– Quando vos ouvi falar nas princesas e em Sohba, fiquei alerta.
Falara à mulher de negro sobre Mem e esta dissera-lhe que conhecia o
almocreve e o estimava, mas que continuava com muito medo de se
revelar. Só quando, na sua terceira ida a Lisboa, Mem contara à
soldadeira que o assassin morrera, é que Sohba ganhara confiança e as
duas tinham decidido finalmente promover um encontro.
– Está à vossa espera – informou a soldadeira.
Lisboa, setembro de 1133

Mem contou-me mais tarde que ficou impressionado com o quanto


Sohba envelhecera e mirrara. Com a cara marcada pelas queimaduras e
os braços enrugados pela má cicatrização das feridas, parecia um animal
encolhido, deitada numa cama.
Frágil mulher, Deus já a quer.
O almocreve abraçou-a e ela sorriu-lhe, grata ao salvador que a tirara
da horrível fogueira onde o assassin a tentara imolar.
– Se não fossem vocês e o curandeiro de Santarém, hoje não estaria cá
– murmurou Sohba, olhando também para a soldadeira.
Depois, curiosa, perguntou:
– E as minhas sobrinhas?
Estavam bem de saúde, disse Mem, embora ainda em cativeiro e
tristes devido à morte de Zulmira.
– Só pode ser morto por um califa, ou por um rei – recordou.
A previsão antiga de Sohba verificara-se: fora Afonso Henriques
quem matara o assassin.
– Soube que sois tia das princesas, falei com a velha criada que ainda
vive em Hisn Abi Cherif – acrescentou Mem.
Sohba sorriu levemente e comentou:
– Tem menos dez anos do que eu, deve ter oitenta e muitos.
De seguida, a velha mulher caracterizou a sua quase centenária vida
como um mar de tragédias. Mal conhecera o pai, o último monarca Benu
Ummeya. A filha, nascida tardiamente, morrera também. E Hixam de
Hisn, seu irmão gémeo, havia sido vítima de um estúpido acidente do
qual ela fora responsável. A forte culpa que ainda sentia obrigara-a a
dedicar a vida à proteção das princesas, suas sobrinhas, ofício que
apenas suspendera depois de ter sido barbaramente ferida.
– Como me haveis descoberto? – perguntou Sohba.
Fora Zaida quem se lembrara da gente que os Benu Ummeya
conheciam em Lisboa e o almocreve iniciara a busca, mas só podia
atribuir os méritos daquele reencontro à sorte, que o cruzara com a
soldadeira numa ruela lisboeta.
– E nunca mo deixou chupar – protestou esta.
Sohba soltou um risinho e declarou, num arrebite feminino carregado
de convencimento:
– Se fosse mais nova, não me escapava, é tão bonito!
Mem deve ter corado ligeiramente, pois ao vê-lo assim embaraçado a
velha mulher suspeitou das emoções dele e inquiriu-o:
– Estais enamorado de Zaida?
O almocreve desviou o olhar, atrapalhado. Lúcida, Sohba avisou-o de
que Zaida era uma princesa, cujo destino matrimonial seria certamente
impeditivo de um relacionamento duradouro com Mem, que não passava
de um mero almocreve, para quem amá-la era um perigo.
– Bem sei – respondeu este, com um suspiro pesaroso. – Por isso
precisamos de as libertar.
Recordou que só Sohba sabia onde estava escondida a relíquia,
algures em Sellium. Ao ouvi-lo pronunciar aquele nome latino, a velha
mulher enrugou a testa, desconfiada:
– Como sabeis que está em Sellium?
Mem contou-lhe que Zaida se apoderara do punhal de Paio Soares,
onde estava gravada essa indicação. Na biblioteca da Sé de Coimbra, a
curiosa princesa moura descobrira em antigos mapas a localização das
ruínas romanas.
– Mas, em Sellium, só vós sabeis onde está – rematou Mem.
Encostando-se para trás na cama e convidando-o a sentar-se, Sohba
contrapôs-lhe uma revelação antiga. Treze anos antes, um velho monge,
que ela encontrara moribundo num eremitério próximo do rio Nabão,
falara-lhe nos três homens que tinham ido esconder o sagrado artefacto.
O primeiro era o conde Henrique; o segundo, Paio Soares; e do terceiro
Sohba não conhecia o nome, mas conseguiria reconhecê-lo, pois
haviam-se cruzado uma vez.
Depois de uma ligeira pausa, a velha de negro perguntou:
– Para que quereis a relíquia?
Mem revelou a proposta dos portucalenses: os sarracenos entregavam
a relíquia, os cristãos devolviam Fátima e Zaida.
Convencida, Sohba concedeu:
– Faz sentido.
No entanto, estava limitada para viajar e as chuvas e os frios
chegariam em breve. Marchar para a zona do Nabão no inverno era um
risco grave, a morte poderia agarrá-la. Teriam de esperar pela próxima
primavera!
A sugestão levou Mem a morder o lábio, contrariado.
– Agora é o momento! Os fossados dos cristãos estão suspensos, eles
foram quase todos para o Norte!
Aberta essa oportunidade, a única preocupação do almocreve era a
recente dúvida que pairava sobre Abu Zhakaria, agora ao serviço do
califa Ali Yusuf, como wali de Santarém. Porém, para sua surpresa,
Sohba jurou que Abu continuava do lado deles. A recente jura de
lealdade ao califa era apenas uma máscara, falsa e provisória.
– Não compreendo – admitiu Mem.
A Andaluzia trepidava de ressentimentos, esperava-se uma revolta
generalizada contra o califa berbere de Marraquexe, explicou Sohba. O
principal cabecilha do movimento era o príncipe Ismar, governador de
Córdova. Fora ele quem convencera Zhakaria a propor-se ao cargo de
wali de Santarém, ludibriando Ali Yusuf.
– Como o sabeis? – perguntou Mem.
A mulher de negro, apesar de fragilizada, ainda trocava mensagens
com gente espalhada pela Andaluzia. Em Córdova, planeava-se em
surdina o fim do califado de Marraquexe e a libertação de Fátima e de
Zaida era uma peça essencial desse grandioso plano.
– Está a chegar a hora delas – afirmou Sohba.
Mal as rebeliões andaluzas rebentassem, as descendentes dos Benu
Ummeya regressariam em glória à antiga capital do califado.
– O trono será delas. Ou dos seus maridos – acrescentou a velha de
negro, misteriosamente.
Mem refletiu em silêncio. Fátima nutria uma duradoura paixão por
Abu Zhakaria, mas o cordovês não era um candidato credível a futuro
emir de Córdova, muito menos a califa. Restavam Ismar e Zaida, um
casal bem mais apropriado a tais ambições. De repente, o almocreve
sentiu-se uma pequena alma perdida naquele universo de poderosos.
Homem sem posses, restam-lhe as tosses.
Forçou o espírito a afastar esse pensamento pessimista e disse:
– Uma jornada longa começa com o primeiro passo. Temos de
encontrar a relíquia antes que outros o façam.
Contou a Sohba que uma companhia de galegos fora dizimada, perto
do Nabão, por Zhakaria. Dizia-se que Fernão Peres de Trava também
procurava o tesouro, para o oferecer ao rei de Leão, Afonso VII. Se o
nobre galego chegasse à relíquia primeiro, o plano deles ruía.
– Se não podeis vir já, dizei-me onde está escondida – sugeriu Mem.
Sohba olhou-o, mas abanou a cabeça, não o faria.
– Nesse caso, volto para Coimbra e falarei com Ermígio Moniz, para
preparar a troca na primavera – prometeu o almocreve.
De repente, e em simultâneo, Sohba e a soldadeira perguntaram:
– Quem?
Mem descreveu-lhes o meu tio Ermígio, notando uma estranha
agitação em ambas, mas as duas negaram conhecê-lo. Contudo, aquela
referência ao meu tio precipitou decisões e Sohba exigiu apenas a Mem
um total silêncio sobre o seu refúgio lisboeta.
– Nem as minhas sobrinhas o podem conhecer.
Selada essa combinação, Mem partiu. Pouco depois e ardendo em
curiosidade, Sohba perguntou à soldadeira porque se alterara ao ouvir
falar de Ermígio Moniz, mas a magra rapariga deitou-se na sua esteira e
fechou-se num silêncio teimoso, que só quebrou às primeiras horas da
manhã seguinte.
– Ermígio Moniz é meu pai – disse a soldadeira, numa voz
monocórdica e seca, como se estivesse a dizer que estava a chover.
A velha mulher empalideceu, agitada por um turbilhão de emoções.
– Raimunda, como é isso possível? Dizei-me a verdade!

Sim, aquela soldadeira era a minha prima Raimunda, filha bastarda de


meu tio, que todos julgávamos ter morrido! Como que por milagre,
reaparecera viva e estava agora em Lisboa, ao lado de Sohba!
Crescida no seio da família Moniz de Ribadouro, a minha prima
idolatrava Afonso Henriques desde menina. Aos catorze anos, dera-se a
ele pela primeira vez. A partir daí e às escondidas, entrava no quarto do
príncipe e enfiava-se na cama dele, primeiro cobrindo-o só de beijos na
boca, mas depois avançando para outros mimos.
– Fui a sua primeira mulher, amava-o com loucura e ofereci-me toda,
mas nem isso chegou – contou à espantada Sohba.
Quando Raimunda tinha dezasseis anos, em Viseu aparecera Chamoa,
por quem Afonso Henriques se enamorara loucamente, esquecendo a
minha prima. Esta ainda se alegrara quando a galega fora obrigada a
casar com Paio Soares, e uma segunda vez quando Chamoa se encerrara
num mosteiro, mas rapidamente se desiludira.
– O príncipe trocou-me por uma normanda pernilonga, loira e de tetas
grandes, chamada Elvira Gualter.
Sohba mantinha-se silenciosa, enquanto se abriam as comportas
profundas da alma torturada de Raimunda, que, cheia de amargura, se
lançara de uma ponte, perto de Toledo.
– Nem matar-me consegui.
Sentira-se a afogar, numa noite escura, envolta pelas águas do Tejo,
mas talvez São Pedro a tenha recusado, às portas do céu, pois desmaiara
e acordara bem longe, numa das margens do rio.
– Passei a odiar o mundo inteiro, sobretudo Afonso Henriques.
Aquele violento sentimento mantivera-a viva. Dias depois, cruzara-se
com o curandeiro e com ele descera o Tejo. Tinha a cara pejada de
cicatrizes, provavelmente batera em pedras no rio, o seu corpo e a sua
alma estavam uma lástima. Fora o amável indivíduo que a convencera a
tratar-se, trazendo-a para Lisboa.
– O resto vós sabeis – concluiu Raimunda.
A minha prima decidira que vender o corpo era o caminho mais
rápido e mais torto para a sua perdição. Deixou-se ser tomada, para lavar
com os líquidos de outros machos o desprezo que Afonso Henriques lhe
despertava.
– Mil homens fodi para o esquecer, mas nem isso consegui.
Depois de uma curta pausa, acrescentou:
– Chegou a hora da vingança!
Aterrada com a determinação maligna que via nos olhos brilhantes
daquela rapariga, Sohba obrigou-a a prometer que não iria sabotar o
resgate das princesas. Raimunda ainda resistiu, mas depois lá acedeu.
Ficaram as duas caladas, cada uma absorvendo as novidades à sua
maneira. Porém, Sohba não conseguiu conter a curiosidade e perguntou
à magra soldadeira se havia conhecido a mãe.
– Não – respondeu Raimunda, acrescentando com desprezo. – Mas
devia ser moura, para o meu pai nunca falar dela.
Então, Sohba recordou-lhe o quanto a estimava e lhe devia a vida,
acrescentando uma frase enigmática:
– O destino juntou-nos por alguma razão.
A minha prima sorriu, condescendente. A bruxa tinha a mania das
coincidências cósmicas, mesmo ferida e doente continuava convencida
de que era uma vidente iluminada. De qualquer forma, aquela mulher
quase centenária era o único ser humano por quem sentia simpatia.
– O mundo dá-nos sofrimento, Raimunda, mas também coisas boas –
afirmou Sohba, cujos olhos brilhavam com uma torturada alegria.

Quando soube destas conversas, lembrei-me de que Zaida costumava


sempre dizer que a bruxa é que nos ligou a todos. Assim foi, mais uma
vez. Sohba trouxe a minha prima Raimunda, miraculosamente
ressuscitada e absolutamente furiosa, de volta ao nosso universo
portucalense, para mal dos nossos pecados.
Soure, outubro de 1133

A animosidade que Ramiro sempre sentira pelo almocreve Mem ganhou


um ímpeto novo por razões impuras. Assim é muitas vezes na vida, as
ações dos seres humanos são mais comandadas pelo ciúme ou pelo ódio
do que por nobres sentimentos.
É preciso dizer que Mem nada fez para que tal acontecesse. Prometera
a Sohba não revelar a toca obscura onde esta se enfiara e assim fez.
Quando, certa tarde outonal, passou por Soure, no seu regresso de
Lisboa e depois de ter comerciado em Santarém, evitou cruzar-se com
Ramiro, tendo apenas vendido umas carnes e umas frutas ao pároco
Martinho. E já estava em cima da carroça, pronto para partir, quando um
afogueado Ramiro chegou a correr.
– Haveis estado em Santarém e falado com Zhakaria?
Mem respondeu afirmativamente à primeira parte da questão,
negando a segunda.
Homem avisado, bico calado.
Em Santarém, o convívio com os locais permitira a Mem saber que as
principais famílias da cidade haviam convencido Zhakaria a não atacar
os cristãos. O cordovês já era governador, mas, embora fosse um herói
do povo, ainda não dominava os influentes.
– Zhakaria tem a relíquia? – inquiriu Ramiro.
O almocreve respondeu o que sabia:
– Não.
Mesmo assim, Ramiro indignou-se:
– Os infiéis não lhe podem deitar a mão!
Mem relembrou a proposta de Ermígio Moniz, talvez cristãos e
muçulmanos devessem trocar as princesas pelo tesouro, sem
necessidades de escaramuças e mortes sangrentas. Porém, Ramiro
recusou tal ideia, jamais aceitaria negociar com mouros!
– Vós é que sois amigo deles! – acusou.
Entretanto, chegara perto da carroça o mestre da Ordem do Templo
em Soure, Jean Raymond, que, ao ouvir a referência à proposta de
Ermígio Moniz, se pronunciou:
– Era esse o plano de mestre Gondomar.
Primeiro comandante dos templários em Soure, Gondomar fora um
velho cavaleiro que vivera muitos anos na Terra Santa. Chegado a
Portugal para procurar a relíquia sagrada, quando soubera da existência
da bruxa Sohba tentara ir ter com ela. Pelos vistos, o seu objetivo era
semelhante ao de meu tio Ermígio Moniz, uma troca entre mouros e
cristãos. Contudo, mestre Gondomar nunca chegara a falar com Sohba,
pois também ele fora eliminado pelo assassin.
Mesmo confrontado com esta relevante recordação, Ramiro reforçou
a sua convicção de que os mouros usariam todas as artimanhas para
enganar os cristãos. Suspenso o fossado de Peres Cativo, era tempo de
os templários de Soure voltarem a liderar a demanda da relíquia.
– Mestre, temos de ser nós a encontrá-la! – exclamou.
Jean Raymond estava ciente de que era essa a superior missão da
Ordem do Templo naquelas terras de fronteira, mas não queria alimentar
uma querela inútil com Afonso Henriques, que afastara os templários
das buscas.
– Então, tenho de convencer o príncipe! – afirmou Ramiro. – Vou a
Coimbra hoje mesmo, antes que ele rume ao Norte!
A comitiva bélica portucalense estava prestes a partir para as guerras
na Galiza e, por isso, Ramiro correu à cavalariça e trouxe um cavalo,
que logo montou, reaproximando-se da carroça, enquanto Mem escondia
o seu desagrado num silêncio indiferente. Não gostava de Ramiro,
julgava-o um homem de carácter duvidoso, com o coração carregado de
iras mal resolvidas, que odiava mulheres e sempre fora hostil às
princesas. Teria de gramar a sua companhia solitária, mas de súbito
surpreendeu-se, quando o Rato, um templário menor sem funções
hierárquicas na Ordem, pediu a Jean que o deixasse ir também. Obtida a
autorização, o Rato saltou para a garupa do cavalo do seu colega,
cumprindo a tradição de partilha do mesmo animal por dois monges
guerreiros.
– Vamos! – gritou, entusiasmado e já abraçado à cintura de Ramiro –
E queira Deus que os mouros não nos apanhem, como da outra vez!
Sete verões antes, Mem tinha ajudado Ramiro e os outros monges
guerreiros a fugirem de um ataque de Abu Zhakaria a Soure. Nessa
época, começara por estimar Ramiro, mas a forma desrespeitosa como o
outro tratara Zaida e Fátima tinha alterado a sua opinião.
Mil anos depois, são outros os bois...
Os três saíram de Soure e chegaram à estrada principal, que ligava
Santarém a Coimbra, rumando ao Norte. O almocreve temia a
curiosidade de Ramiro, as perguntas sobre Sohba. Não queria mentir,
não gostava de o fazer e, portanto, deixou-se ficar calado e assim
prosseguiram, cada um com os seus pensamentos privados, até
chegarem ao Mondego. Enquanto esperavam por um barqueiro, já a
tarde caía, Mem partilhou com os monges guerreiros um pedaço de pão,
carne e fruta, mas só depois de comer o Rato produziu uma inesperada
apreciação:
– Deveis ter muitas mulheres... sois tão bonito.
Fez uma careta insinuante e Mem percebeu onde ele queria chegar.
Como nunca tivera nem curiosidade nem receio dessas coisas, não se
incomodou e apenas disse:
– As mulheres precisam de atenção.
À sua frente, Ramiro enervou-se e comentou:
– Precisam é de pedir perdão por serem tão mentirosas!
O acinte do bastardo de Paio Soares continuava uma ferida aberta.
Mem conhecia a velha afeição do jovem templário por Chamoa, o seu
sofrimento por ela ter casado com o pai dele, mas o que mais o
espantava era que, passados todos aqueles anos, Ramiro ainda destilasse
tanta raiva às mulheres, quando só uma o desgostara.
– Gostais muito de mulheres? – perguntou o Rato.
Mem citou uma frase bíblica que o pai costumava usar:
– Não se procuram figos nos pinheiros.
Insistente, o Rato lançou nova questão:
– Nunca nenhuma vos mentiu?
Como o almocreve não lhe deu troco, o monge guerreiro riu-se.
Convicto de que tinha tocado num ponto fraco, avançou uma
constatação ousada e intrometida:
– Se mentem aos maridos para estarem convosco, é provável que vos
mintam também!
A fama de Mem era conhecida, corriam rumores de que se deleitava
com senhoras casadas de Coimbra, chifrando os respetivos esposos.
Também se dizia que tomava criaditas do castelo, além de muitos
suspeitarem de que o fizera igualmente com Zulmira e Zaida. Só que o
almocreve nunca se gabava e por isso o Rato repetiu o elogio inicial com
que o brindara:
– As mulheres pelam-se por homens bonitos, como vós.
Mem observou o rio, para ver se o barqueiro já estava mais perto, mas
viu-o ainda distante. Teria de aturá-los mais algum tempo e, por isso,
decidiu mudar de atitude e mirou o Rato nos olhos:
– Gostais de homens bonitos?
O Rato soltou um risinho nervoso e Mem percebeu que ele estava
disposto a tudo. Era um monge guerreiro com voto de castidade, mas
não se conseguia conter com homens, só perante mulheres.
Quem não se avia, espuma na pia.
Agora que chegava a Coimbra, onde poderia gozar uns dias de
liberdade, a excitação já o consumia.
– Um homem bonito é uma dádiva de Deus! – exclamou o Rato. –
Sentimo-nos vivos, só de o olhar!
Mem notou que Ramiro cruzava e descruzava as pernas, agitado.
Estava obviamente enciumado com os galanteios do Rato, embora tenha
usado um argumento religioso para o criticar.
– É pecado falar assim, ó miserável! – avisou.
O Rato enfrentou o amigo, ofendido e magoado:
– Escusais de me apoucar, só vos quero bem!
Depois, como quem remói algum agravo anterior, acrescentou:
– De há uns meses para cá, tratais-me com os pés.
Ramiro fulminou-o com o olhar, como se lhe desse uma ordem
silenciosa, mas imperativa, para evitar aquele caminho e Mem teve a
certeza de que aqueles dois eram amantes desavindos. Talvez Ramiro
houvesse optado pela abstinência, cancelando as clandestinidades com o
Rato, para não comprometer a sua reputação na Ordem do Templo,
concluiu Mem, vendo que o barqueiro atracava e levantando-se para se
dirigir à embarcação. Puxou pela trela os seus dois jumentos e a carroça,
enquanto os templários traziam o cavalo.
A travessia do rio decorreu em silêncio e foi só quando se meteram a
caminho das portas de Coimbra que o Rato perguntou:
– Onde ides pernoitar? No vosso casão?
Mem confirmou, mas reparou na careta enervada de Ramiro,
enquanto ouvia o Rato murmurar:
– Se desejardes, posso visitar-vos esta noite... Posso ensinar-vos
truques secretos e prazenteiros, as vossas mulheres iriam gostar!
Mem não desejava ser incorreto com ele, mas também não lhe queria
dar esperanças. Preparava-se para o desincentivar quando Ramiro gritou,
voltando-se para trás, em cima do cavalo:
– Rato estúpido, acabai com isso!
Aquela podia ter sido apenas uma desagradável ordem hierárquica,
dada por um superior preocupado com a incontinência pecaminosa de
um monge guerreiro, mas o almocreve teve a certeza de que não era
apenas disso que se tratava.
Homens enciumados, horários alterados...
Ramiro transtornara-se por ver o Rato encher Mem com ofertas de
ternuras. E isso tinha um significado óbvio. Aqueles dois dificilmente se
manteriam castos em Coimbra...
Coimbra, outubro de 1133

Notava-se na cidade de Coimbra a agitação que precedia os grandes


momentos militares. Centenas de homens circulavam na almedina e
outros tantos encontravam-se acampados fora das muralhas, esperando a
ordem de partida. O exército portucalense reagrupara-se depois dos
fossados de Peres Cativo e preparava-se para rumar ao Norte, na ânsia
de vingar a derrota de Celmes.
Quase todos estávamos lá naquele dia. Afonso Henriques, meu tio
Ermígio, eu e meus dois irmãos; Peres Cativo e os prelados Teotónio,
Telo e João Peculiar; e ainda o bispo Bernardo. A estes, haviam-se
juntado o jovem Pêro Pais, filho de Chamoa, bem como o cavaleiro-
vilão que o trouxera desde Tui, Paio Guterres, que o príncipe de
Portugal considerava valoroso guerreiro. Só faltava meu pai, Egas
Moniz, que em Guimarães supervisionava já a reunião dos restantes
exércitos; e o Braganção, senhor de Bragança, que prometera juntar-se a
nós perto do local dos combates.
O plano de batalha estava traçado: marcharíamos para Tui, cercando a
cidade e os Trava, que lá se reuniam no Natal. Além da humilhação de
Fernão Peres, obteríamos a libertação do nosso amigo Gonçalo de
Sousa, preso nas masmorras do castelo galego. Há meses que o
desejávamos e a espera, talvez longa de mais, justificara-se pelo
recuperar das tropas, pois o fossado de Peres Cativo fora longo e
cansativo e não tínhamos homens suficientes para travar guerras
simultâneas em duas frentes.
Não era, no entanto, sobre a iminente operação bélica que se falava
naquele fim de tarde na Sé, onde estávamos reunidos quando Ramiro e o
Rato por lá apareceram. O tema imposto pelo bispo Bernardo era a festa
de inauguração da capela do Mosteiro de Santa Cruz, às portas de
Coimbra. Embora parte do edifício ainda estivesse em obras, o prior
Teotónio não queria esperar pela sua conclusão e pretendia dizer uma
missa antes da partida do príncipe de Portugal.
A fúria do bispo Bernardo, sempre exposta quando se falava de Santa
Cruz, crescera mais uma vez e ele voltara a recordar-nos o cisma que a
Igreja de Roma vivia no presente, dividida entre Inocêncio II, o Papa
eleito, e Anacleto, o Antipapa apoiado por alguns monarcas da
Cristandade, incluindo Afonso VII.
Um dos motivos da discórdia era precisamente o impulso que
Inocêncio II dava aos monges «apostólicos», a quem os defensores de
Anacleto se opunham. O bispo Bernardo, depois da derrota dos
portucalenses em Celmes, acirrara a sua oposição a um mosteiro
«apostólico» às portas de Coimbra, alegando que isso iria enfurecer
ainda mais os leoneses e castelhanos contra o Condado Portucalense.
Afonso VII, o mais poderoso rei da Hispânia, que já nos humilhara em
Celmes, podia usar o novo mosteiro «apostólico» de Coimbra para atiçar
contra nós mais ódios e prejudicar-nos junto de Anacleto. Se o Antipapa
vencesse o cisma, estaríamos perdidos, proclamara o palavroso bispo!
– A prudência é o rigor dos fracos – ripostara João Peculiar.
O calvo e fino prelado, que fora um eremita no passado, considerava
um enorme sinal de fraqueza a suspensão da construção do mosteiro,
devido a uma hipotética vitória de Anacleto. O cisma papal, contrapunha
Peculiar, estava votado ao fracasso. Poderia durar ainda uns anos, mas
os apoios de Inocêncio II eram muito mais vastos do que os de Anacleto.
Além disso, sobretudo depois da derrota de Celmes, os portucalenses
não podiam amouxar perante Afonso VII, mas sim persistir, com genica
e ânimo, na luta pela independência. Afonso Henriques sempre recusara
prestar vassalagem ao primo e devia invadir Tui em breve! A guerra
seria aberta e frontal!
Contudo, o bispo Bernardo mantivera-se entrincheirado na sua crença
e apresentara um argumento poderoso: Afonso I de Aragão estava velho
e doente, Afonso VII em breve lhe conquistaria os tronos de Aragão e
Navarra. Como poderia o Condado Portucalense resistir sozinho, em
toda a Hispânia cristã, contra o rei de Leão, que ambicionava ser o
futuro imperador da península?
Numa derradeira tentativa para mudar a estratégia portucalenses, o
bispo propusera a Afonso Henriques fazer a paz com o seu primo
direito, prestando-lhe vassalagem, enquanto dirigia as nossas forças
militares contra Abu Zhakaria, o novo governador de Santarém.
Foi nesse momento que Ramiro entrou na Sé, seguido pelo Rato, mas
provavelmente não terá ouvido as últimas palavras do bispo, pois
quando o príncipe de Portugal lhe perguntou que novas trazia o
templário informou que Abu Zhakaria não tinha intenções de atacar
Coimbra. Os mouros iriam ficar quietos em Santarém, o que, somado à
suspensão do fossado de Peres Cativo, permitia a pacificação da zona,
possibilitando aos templários reiniciarem a busca da famosa relíquia.
– É o momento certo – defendeu Ramiro.
O bispo Bernardo, que assim via a sua lógica política ruir, dirigiu-lhe
um olhar furioso, mas a sugestão de Ramiro não convenceu Afonso
Henriques. A Ordem do Templo já antes tentara, sem sucesso, procurar
o artefacto sagrado. Além disso, lembrou meu tio Ermígio Moniz, uma
ida dos templários até ao Nabão seria sentida pelos mouros como uma
provocação torpe.
– Se Zhakaria não nos ataca, também não o devemos fazer, é uma
insensatez! – considerou meu tio Ermígio.
Mais valia promover um encontro pacífico, em que ambos cediam o
que a outra parte desejava. Ao ouvi-lo, Ramiro indignou-se:
– Não é admissível comerciar com infiéis!
Desta vez, notei que o bispo Bernardo sorriu, pois também pensava
assim e já o proclamara. E Afonso Henriques continuava a defender
idêntica postura, embora lhe desagradasse concordar com aquele
truculento e antipático religioso. Talvez por isso, mostrou-se
estranhamente desinteressado da relíquia.
– Nada disso é prioritário! Quero atacar Tui e libertar Gonçalo!
Levantando-se, pareceu-me um gigante inimitável quando apontou
para Pêro Pais e exclamou:
– Este rapaz de seis anos arriscou a vida para nos vir avisar! Temos de
lutar por ele, por Gonçalo e por todos os portucalenses que morreram em
Celmes!
Ouviu-se uma aclamação geral. O intenso desejo de retaliação
guerreira inflamava os nossos corações, sobrepondo-se a tudo o resto. A
busca da relíquia ficaria suspensa, as princesas continuariam presas em
Coimbra e a inauguração da capela do Mosteiro de Santa Cruz avançaria
mesmo!
Dito isto, o príncipe de Portugal anunciou mais uma novidade: como
Peres Cativo iria connosco para o Norte, o comandante das tropas no Sul
seria Paio Guterres, em quem depositava a máxima confiança! O
cavaleiro-vilão ajoelhou à sua frente, agradecendo a honra, enquanto o
príncipe acrescentava:
– Além de destemido guerreiro, haveis trazido até nós, são e salvo, o
filho primogénito de Chamoa!
O coração do meu melhor amigo amaciara-se um pouco, ao ouvir da
boca do petiz os relatos das sucessivas tentativas da mãe de nos avisar
dos planos de ataque contra Celmes. Comovera-o essa manifestação de
lealdade da minha cunhada galega, bem como o encontro com Pêro Pais,
que todos admirávamos e em quem se viam estampadas as nobres
qualidades do seu defunto pai, Paio Soares.
Quem ficou atarantado com aquela declaração do príncipe foi Ramiro.
O pobre templário, ao ouvir falar em Chamoa, tornou-se lívido. Olhava
para Pêro Pais, abria e fechava a boca, engolindo em seco, sem entender.
Vendo-o paralisado, Afonso Henriques perguntou-lhe, espantado por ele
nada fazer ou dizer:
– Não abraçais vosso irmão?
O bastardo de Paio Soares manteve-se mudo e siderado. Recordei-me
das suas aflições do passado, na presença do pai ou de Chamoa, e admiti
que as antigas fragilidades estavam de volta, pois a sua palidez indiciava
a possibilidade de tombar à nossa frente. O príncipe deve ter temido o
mesmo, pois questionou Ramiro, com uma ponta de malícia na voz:
– Ides desmaiar?
Ouviram-se os risos de Peres Cativo, que desprezava o jovem
templário. Mas o simpático Pêro Pais estendeu-lhe a mão, dizendo:
– Minha mãe falou-me de vós.
Numa criança tão nova, era impossível haver naquela frase ironia ou
maldade. Pêro Pais relatava apenas uma verdade límpida e simples:
Chamoa falara-lhe de Ramiro, seu meio-irmão mais velho, filho de Paio
Soares e de uma outra mulher, um bastardo, é certo, mas do mesmo
sangue do que ele.
Porém, no desconfiado Ramiro, a frase do meio-irmão teve o condão
de lhe agravar uma dor silenciosa, como ele revelou depois ao bispo
Bernardo. Que dissera Chamoa ao miúdo? Que eles tinham sido amigos?
Que Paio Soares, pai de ambos, humilhava Ramiro em criança? Que se
casara com Chamoa, adorada pelo seu bastardo? Que este fugira de
Viseu, depois de admitir matar-se? Que desmaiava sempre que a via?
Que também odiava Afonso Henriques, por este lhe ter disputado
Chamoa? Sim, o que lhe dissera aquela mulher desvairada que dormia
com vários homens? Gozara Ramiro, escarnecendo dele em frente do
irmão, o primogénito que ia herdar tudo, enquanto ele, um infanção
bastardo, nada teria?
Pai, porque me enviais este teu filho e meu irmão?
Era assim, tortuosa, que funcionava a mente de Ramiro, mas da sua
boca não saíra ainda uma única palavra.
– Não o cumprimentais? – perguntou Afonso Henriques.
O templário engoliu em seco e finalmente balbuciou:
– Vossa mãe está bem?
Pêro Pais primeiro sorriu-lhe, agradado com o que julgava ser uma
preocupação genuína. Depois, colocou um ar sério e contou que Chamoa
se encontrava prisioneira em Tui, no castelo do pai dela.
– Fernão Peres pôs um facínora a vigiá-la, dia e noite.
Paio Guterres, que ajudara o menino a fugir, revelou que o vigilante
da minha cunhada era um antigo templário de Soure. Com uma ténue
hostilidade, enfrentou Ramiro e o Rato e afirmou:
– Deveis conhecê-lo, chamam-lhe Velho.
Se Ramiro já estava embasbacado, mais ficou. Incrédulo, negou que
tal pudesse ser verdade, secundado pelo Rato, alegando ambos que o
Velho, por estar doente, se retirara da Ordem para morrer em paz!
O transtorno dos dois templários foi notável, quando perceberam que
haviam sido enganados. O Velho não só era um traidor que sempre
trabalhara para o Trava, como lhe entregara o antigo punhal de Paio
Soares! O espanto de Ramiro e do Rato multiplicou-se, a profundidade
da fraude daquele magistral embusteiro era dolorosa para os seus antigos
colegas.
– É um canalha, em Tui tentou possuir à força a minha mãe –
acrescentou Pêro Pais. – Depois, virando-se para o príncipe, exclamou: –
Mas ela só vos ama a vós! Recusa o Mem Tougues por vossa causa!
Dei por mim a sorrir, animado. A presença daquele menino e
sobretudo o que ele dizia estavam a reabilitar Chamoa. Aos poucos,
Afonso Henriques recomeçava a acreditar que ela não era tão má rês
como a julgara.
Reação oposta teve Ramiro. As palavras de Pêro Pais enfureceram-no,
embora tenha silenciado a sua ira, que só libertou mais tarde perante o
bispo.
Pai, vossa esposa é uma desvairada!
Afinal, Chamoa ainda amava Afonso Henriques! Só recusava o
Tougues por causa do príncipe, cravando mais a espada da dor no
coração já tão ferido de Ramiro!
– Vamos então salvá-la! E ao Gonçalo! – proclamou Afonso
Henriques, dando um abraço àquela criança, que o mirava com
admiração.
Contentes e entusiasmados, esquecemos Ramiro, que abandonou a Sé
amparado pelo Rato, ambos atordoados com tantas revelações. Mas, se
no coração deste último morava apenas uma funda desilusão com o
Velho, no de Ramiro crescia um redemoinho de traições e ódios, intrigas
mesquinhas e desconsiderações.
A explosão não ia tardar.
Coimbra, outubro de 1133

Nas horas seguintes, enquanto a noite caía, Ramiro e o Rato vaguearam,


abalados, pelas ruas de Coimbra. Comeram numa taberna, mas como as
regras da Ordem do Templo lhes proibiam o consumo de vinho, saíram
de lá rapidamente, para evitar as tentações, continuando às voltas pela
cidade. A dada altura, deram por eles em frente do casão agrícola de
Mem e o Rato animou-se:
– Vou bater-lhe à porta, pode ser que me safe!
Dissera-o para ver se espevitava Ramiro, mas este, ainda
desorientado, desatou a acusá-lo de ser um pecador desvairado, que os ia
perder, se continuasse com aquelas pecaminosas investidas.
Pai, ele é o Demónio em pessoa!
Ofendido, o Rato deu-lhe réplica e acusou-o: era má pessoa, andava
insuportável, passava os dias a destratá-lo! Depois de desembuchar,
virou as costas a Ramiro e caminhou resoluto em direção ao casão,
quase chocando contra o almocreve, que saía do local onde dormia.
– Olá, bonitão, vim visitar-vos! – disse ele.
Perante nova abordagem atiradiça do colega, Ramiro descontrolou-se.
Mas, em vez de repreender o Rato, como fizera anteriormente, dirigiu a
sua ira contra Mem:
– Ides fornicar as mouras ou ajudá-las a fugir?
Os outros dois miraram-no, surpreendidos com tanta antipatia. E mais
ficaram quando o bastardo de Paio Soares, esgazeado, largou uma
enxurrada de insultos impróprios e acusações maliciosas, apontando o
dedo a Mem, numa postura agressiva.
– Sois o culpado da morte da Zulmira! Quem vos mandou trazê-la
para aqui? E Sohba só fugiu porque a haveis salvo da fogueira! – perante
a completa perplexidade dos outros, prosseguiu: – Trabalhais para
Zhakaria ou sois um lacaio do califa Ali Yusuf?
O espantado Mem, que deixara o arco e as flechas no casão, viu
Ramiro desembainhar a espada e apontá-la à sua barriga.
– Devia furar-vos, mouro estúpido! E agora quereis o Rato? Vamos lá
ver se continuais bonito depois de vos rasgar esse focinho!
Enquanto o incrédulo almocreve dava um passo atrás, o aflito Rato
meteu-se entre eles, tentando acalmar o colega templário.
– Ramiro, sois um monge guerreiro, não podeis matá-lo!
Mas o companheiro, possuído por uma cólera enciumada, acusou-o:
– Estais mortinho por o chupar, cabrão de merda! Não pensais noutra
coisa! Sois todos uns traidores, como o Velho e a estúpida galega!
Assustado com tamanha ira, o Rato gritou-lhe que deixasse Mem ir
embora, caso contrário acabaria pendurado numa forca, lançando a
vergonha sobre a Ordem do Templo. Contudo, como Ramiro não
pareceu temer tais consequências, o Rato baixou o tom de voz baixo,
reconhecendo que não desejava o almocreve, que não era como eles!
– Nunca vos traí, só gosto de vós!
Aquelas promessas íntimas acalmaram ligeiramente Ramiro, que
baixou os olhos, recuperando por momentos a noção do disparate que se
preparava para cometer. O Rato aproveitou a acalmia para sugerir a
Mem que se fosse dali, e o almocreve partiu, escutando nas suas costas
um último insulto de Ramiro.
– Ide ter com a vossa soldadeira, mouro de merda!
Só quando viu o almocreve virar a esquina é que o Rato perguntou:
– Que vos deu?
Alarmado, notou o olhar de Ramiro, de novo esgazeado. O corpo do
colega agitava-se numa espécie de turbulência animalesca e ouviu-o
gritar-lhe, como se o quisesse castigar ali mesmo, em plena ruela:
– Quereis um homem a sério? Eu mostro-vos um!
Sem aviso, empurrou o Rato, obrigando-o a avançar, mas estas
ferozes insinuações, de violência mas também de desejos carnais,
produziram um efeito estranhamente tranquilizador. O Rato ansiava
pelas ternuras do amigo e, se tivesse de haver dureza na sua
administração, que fosse, até gostava. Assim, deixou-se ser conduzido à
bruta para dentro do casão de Mem.
No final da luta amorosa, os dois deixaram-se ficar nus e deitados na
palha, no mesmo local onde anos antes tinham encontrado Zulmira
degolada. Ramiro parecia mais calmo, mas os seus pensamentos
depressa vaguearam e interrogou-se em voz alta:
– Como é que o Velho roubou daqui o punhal?
Nesse momento, ouviram de surpresa uma voz, proveniente de um
dos obscuros cantos daquele edifício de madeira.
– Não foi o Velho, foi a minha irmã.
Os dois templários levantaram-se num ápice, ainda nus e muito
atrapalhados, enquanto Fátima saía do seu esconderijo e se aproximava,
com um sorriso de gozo nos lábios, por os ver assim, frágeis,
envergonhados e desamparados. Contudo, proferiu uma frase
tranquilizadora, tentando aliviá-los do desconforto:
– Sou de Córdova, homens nus nas piscinas era o que mais havia por
lá! E o meu bisavô, o poeta Al-Mutamid, também tinha desses gostos.
Explicou que entrara sem fazer barulho e sem notar que ali estava
alguém, mas ao vê-los decidira não se revelar, o seu único desejo era
ferrar no sono, pois não o podia fazer em casa.
– O Mem está lá a foder a minha irmã...
Os dois templários compuseram-se à pressa, enquanto se espantavam
com a revelação seguinte de Fátima. Ao contrário de Zaida, adorava vir
ao local onde a mãe morrera.
– Para manter viva a minha raiva ao califa Ali Yusuf – explicou.
Só depois os elucidou: Zaida roubara o punhal do casão, no dia da
morte da mãe. Durante vários anos, a irmã guardara-o numa arca, mas o
Velho assaltara a casa delas há tempos, apoderando-se da misteriosa
arma de Paio Soares.
– Haveis visto as inscrições gravadas no cabo? – perguntou Ramiro.
A esperta Fátima não lhes ia revelar tais segredos. Olhou-o com
enorme desprezo e depois murmurou:
– Se a Ordem sabe disto...
O bastardo de Paio Soares ripostou, muito irritado:
– É a palavra de uma moura contra a de dois templários!
Fátima sorriu outra vez, sem se atemorizar.
– Correm muitos rumores sobre vós, acho que têm mais a perder do
que eu. Que me podem fazer? Já estou presa.
Ramiro e o Rato não estavam em condições de suportar uma acusação
tão clara, se ela a fizesse em público, por isso calaram-se. A princesa
moura observou-os, o seu espírito a fervilhar de curiosidade sobre o que
verdadeiramente a interessava.
– Os templários vão procurar a relíquia?
Ramiro alegou que Afonso Henriques não os autorizara. Cristãos e
muçulmanos iriam fazer uma pausa nos confrontos, pois Zhakaria
também não estava em condições de atacar Coimbra.
– Isso é que é uma pena... – comentou Fátima.
Os templários sabiam que ela era apaixonada por Abu Zhakaria.
Recordando-se de que este fora nomeado wali de Santarém pelo califa
almorávida de Marraquexe, Ramiro espicaçou-a:
– Zhakaria vendeu-se ao califa! Se um dia vier, não será para vos
salvar, mas sim para vos matar.
Aquela cortante previsão enfureceu Fátima, que enfrentou os
templários, os olhos chispando de fúria.
– Cuidado, cristão, posso ir daqui à Sé e denunciar-vos ao bispo.
Ramiro acanhou-se e foi o Rato quem a tentou pacificar.
– Que quereis em troca do vosso silêncio? Que procuremos a relíquia
para vós?
Obviamente, a oferta dos seus préstimos à princesa, evitando que ela
os denunciasse, não passava de uma oportuna trapaça. O que o Rato
queria saber era o esconderijo da relíquia, esperando que Fátima se
descaísse. Contudo, rápida e atenta, esta limitou-se a dizer:
– Não sou estúpida, uranista.
Disse-lhes que se fossem embora, pois desejava voltar a dormir.
– Só tenho paz e sossego junto dos meus fantasmas. A minha mãe e o
assassin continuam por cá.
Com um arrepio na espinha, o Rato dirigiu-se para a saída do casão e
Ramiro seguiu-o, de cabeça baixa. Já na rua, a culpa que o atormentava
voltou a explodir, quando se flagelou:
– Deitei tudo a perder!
Apesar de a hora nona já ir lançada, declarou ao Rato que iria à Sé
confessar-se ao bispo Bernardo.
– Que dizeis? – perguntou o colega, espantado.
Ramiro abriu os braços, desesperado:
– Tenho de expiar os meus pecados!
Como um louco, desatou a correr, deixando o Rato confundido. Se
Ramiro contasse ao bispo aquelas ternuras masculinas, aí é que se
perdia, dificilmente o prelado lhe perdoaria pecados tão graves!
Alarmado, perseguiu o amante pelas ruelas e à porta da Sé ainda tentou
demovê-lo daquela abrupta e tonta ideia. Mas Ramiro, sempre de olhar
esgazeado, empurrou-o como se dele sentisse asco, gritando:
– Sois o Demónio, afastai-vos de mim!
Naquele dia, o Rato convenceu-se de que Ramiro enlouquecera. E tinha
razão. Contudo, as duvidosas ações do bastardo de Paio Soares não eram
apenas justificadas pelas suas convulsões íntimas, havia algo mais. Algo
que era superior às perdições individuais dos humanos e que era muito
mais vasto e perigoso para o reino de Portugal. Entusiasmados com a
anunciada guerra contra o Trava e Afonso VII, nunca nos passou pela
cabeça que era também nestes tortuosos momentos privados,
insignificantes e videirinhos, que se jogava o futuro do nosso príncipe e
de todos nós.
Como me disse uma vez meu pai, Egas Moniz:
– Lourenço Viegas, o mundo é feito de pessoas e são as decisões
delas que o fazem avançar, por mais pequenas que sejam.
Meu pai tinha razão, como quase sempre, mas naqueles dias nós só
pensávamos na guerra que ia começar!
Tui, março de 1134

O ataque a Tui foi a operação mais malsucedida que recordo em muitos


anos de batalhas portucalenses. Tudo nos correu torto naquele trágico
mês de março e o culpado foi o gelado e copioso inverno. Afonso
Henriques previra atacar no Natal, para apanhar os Trava desprevenidos
no seu covil durante a época festiva. No entanto, o violento frio, que
cobriu de neve todo o Entre Douro e Minho, e a chuva, que
transformava em insuportáveis lamaçais as estradas, obrigaram a um
primeiro adiamento e o ataque foi remarcado para meados de janeiro.
Para agravar a nossa situação, o Braganção ficara retido nos picos do
Gerês com os seus seiscentos homens. Quando chegou o novo dia de
avançarmos, o cunhado do príncipe ainda não estava em condições de se
juntar a nós e decidimos esperar pelo final de fevereiro. Tínhamos talvez
dois mil e duzentos homens connosco, juntando a esses os do
Braganção, seríamos quase três mil a cercar Tui, cuja guarnição
julgávamos ser curta.
A inexistência de fiáveis espiões a norte do rio Minho iludiu-nos
sobre as forças de Fernão Peres. O hábil nobre galego, sempre capaz de
movimentos inesperados, deslocara-se de propósito a Compostela, em
início de janeiro, conseguindo convencer o arcebispo Gelmires a vir
defender Tui. Se pelo Natal teria sido possível vencer o Trava, pois ele
contava com apenas mil guerreiros na cidade, em inícios de fevereiro
essa possibilidade esfumara-se.
Quando em finais desse mês, ainda debaixo de permanentes cargas de
água, abandonámos finalmente Guimarães, o nosso era um exército
irritado e pouco lúcido. Nem a reunião com o contingente do Braganção,
que se deu já a meio de março e com a cidade de Tui à vista, mudou
definitivamente o estado de espírito de todos nós.
Instalámos os exércitos numa ínsua, à frente de Tui, ainda na margem
portucalense do rio Minho, no mesmo local onde mais de uma década
antes tinham estado as tropas de Dona Teresa, mãe do nosso príncipe.
Talvez nos tenha assombrado o azar que os portucalenses tiveram nesses
dias remotos, em que foram esmagados pelos exércitos de Dona Urraca,
a tresloucada mãe de Afonso VII...
Para cercar Tui era necessário transportar as tropas em barcaças e com
alguma rapidez, evitando que fossem atacadas na outra margem. A
operação exigia inúmeras embarcações em simultâneo, coisa que não
existia por ali, tendo de ser construídas à pressa uma espécie de
jangadas, que os homens temiam e com razão, pois eram instáveis
perante as velozes e traiçoeiras correntes do rio Minho.
Obrigados a entrar nelas, fizeram-no com relutância medrosa e ainda
mais atemorizados ficaram quando uma das primeiras jangadas,
provavelmente depois de ter embatido numa rocha, se desmanchou,
atirando com dezenas de homens à água. Com um nó na garganta, vimos
muitos deles morrerem afogados, seja porque não sabiam nadar ou
porque o peso das armas os impedia.
Um espetáculo semelhante se passou quando outra jangada, repleta de
cavalos, se virou igualmente, atirando com bestas e homens para uma
deriva trágica e aflitiva, a que muitos assistiram já na margem oposta,
como foi o meu caso, deixando-me a pensar como fora possível termos
cometido tão disparatado desafio à Providência, que assim nos castigava
pela nossa estúpida e infantil ousadia.
Afonso Henriques, sempre ao comando, foi dos primeiros a
atravessarem o rio, para mostrar a todos que nada o deteria. Montado no
seu colossal cavalo asturiano, que lhe oferecera Gonçalo, obrigava os
homens a remarem, com uma fé inabalável na sua boa estrela. O
príncipe estava apostado em entrar pelos portões do Castelo de Tui
naquele enorme animal, não só para mostrar ao seu amigo que o
presente natalício contribuíra para o seu salvamento, mas provavelmente
também para impressionar Chamoa, que julgávamos assistir ao
desembarque numa das torres do castelo.
Como um mal nunca vem só, a meio da manhã e quando ainda não
tínhamos mil homens desembarcados na margem, os nossos flancos
foram fustigados por saraivadas de flechas, atiradas por arqueiros
escondidos no meio das árvores. Quando os nossos ripostaram, ouviu-se
um primeiro tropel e uma carga de cavaleiros apareceu, pela estrada que
levava ao castelo, para nos fustigar.
O primeiro embate foi intenso, mas fomos capazes de o suster. O que
não esperávamos é que, quando a primeira vaga de galegos deu meia-
volta, se apresentasse uma segunda. E depois uma terceira e uma quarta,
centenas de cavaleiros que nos zurziam sem descanso, dizimando as
linhas avançadas e forçando o nosso recuo para o rio.
Como poderia o Trava ter tanta gente com ele? A dúvida durou até
meio da tarde, quando vimos os estandartes do maligno Gelmires,
arcebispo de Compostela, a esvoaçarem ao lado das insígnias dos Trava.
Aqueles dois velhos inimigos do Condado Portucalense haviam-se unido
de novo para nos desgraçar e estavam a consegui-lo! Empurrados para
as águas do Minho pela cavalaria galega, os portucalenses chocavam
com os compatriotas que desembarcavam e uma terrível barafunda
nasceu junto à margem. Confundidos, os nossos soldados não sabiam se
deviam recuar ou avançar e os barqueiros das jangadas hesitavam.
Deviam desembarcar os que traziam, ou encher as jangadas com os que
recuavam? Naquelas centenas de metros que iam entre a frente dos
combates e o rio, a trapalhada instalou-se e nem Peres Cativo, um
alferes experiente, nem eu próprio, conseguíamos já ser ouvidos.
Vi Afonso Henriques, sempre indomável, volteando no ar a enorme
espada que pertencera ao seu pai, obrigando os que estavam junto dele a
fincar o pé na lama, enfrentando as cargas adversárias, esporeando o
cavalo, aos gritos, animando os homens para que não esmorecessem.
Com a sua vontade férrea, talvez tivesse conseguido suster o receio
geral, mas não evitou ser sabotado por um traidor improvável, o seu
cavalo asturiano.
Por diversas vezes já me dera conta de que aquele era um animal
demasiado nervoso. Os seus ouvidos tinham dificuldade em suportar o
barulho do acampamento, quanto mais a berraria de uma batalha.
Atordoado e instável, o cavalo do príncipe rendeu-se às evidências. Não
fora feito para participar em combates e pela primeira vez recusou uma
ordem de Afonso Henriques. Vi o meu melhor amigo furioso,
esporeando o animal, um exercício inútil, pois este exibia uma patética
recusa em prosseguir. Decidido a parar por ali, baixou-se e sentou-se na
lama, enfurecendo o príncipe, que lhe gritava, desesperado, enquanto os
soldados o olhavam desconfiados das suas capacidades de comando.
Este absurdo espetáculo hípico, além de alienar a concentração do
príncipe, revelou-se também danoso para a nossa linha da frente. Tendo
visto Afonso Henriques recuar, muitos cavaleiros-vilões, sobretudo os
que estavam longe, julgaram que era essa a intenção e desataram
também a fazê-lo. O movimento, como seria de esperar, ainda agravou
mais a confusão junto à margem. Desanimado mas lúcido, apercebi-me
de que nada havia a fazer, a não ser reconhecer uma humilhante derrota
e promover uma retirada ordeira.
Acerquei-me de Peres Cativo e ambos concordámos que o ataque
estava condenado ao insucesso, mas o alferes alertou-me para o perigo
de um recuo precipitado e demasiado rápido. À medida que os nossos
diminuíssem na margem, os que ficavam tornavam-se presa fácil para os
soldados do Trava.
– Podemos perder mais de seiscentos homens – alertou Peres Cativo.
Passei os olhos pelo combate e depois perguntei:
– Pensais no mesmo que eu?
O alferes acenou com a cabeça: a nossa única hipótese era propor uma
trégua, admitindo o fracasso, mas forçando o Trava a suspender os seus
ataques enquanto saíamos dali. Embora fosse a única solução viável,
vendê-la ao príncipe era tarefa hercúlea, pois todos conhecíamos a sua
renitência em mostrar-se vencido.
Prestei-me a ir dizer-lhe o que decidíramos e, para minha grande
surpresa, Afonso Henriques, que estava ainda junto ao cavalo sentado,
deu o seu acordo. Desconsolado, com a espada do pai nas mãos, mas
sem saber o que fazer com ela, olhou para a sua bela besta castanha
nascida nos topos das Astúrias e afirmou:
– Que animal doido, perde o tino na confusão.
Chamei o escudeiro que transportava as bandeiras, ordenando-lhe que
içasse a branca. Logo que a viram, muitos cavaleiros e soldados, de um
lado e de outro, suspenderam as lutas, como mandavam as regras entre
os cristãos. Passando pelo meio deles, cavalguei em direção a Tui e
depressa me levaram à presença de Fernão Peres.
Ao ver-me entrar pelo portão da muralha de Tui, o nobre galego abriu
um sorriso cínico, mas não mostrou disposição para grandes conversas.
Aceitou a nossa rendição, prometeu deixar-nos embarcar sem nos atacar
e dispensou-me sem mais demoras, o que me obrigou a perguntar por
Gonçalo de Sousa. O Trava fingiu que não percebera, mas depois
questionou-me, numa mímica de surpresa que me irritou:
– É costume os derrotados apresentarem exigências?
Aleguei que Gonçalo estava preso há quase um ano nas masmorras
daquele castelo, cumprira já a pena que merecia, as leis da guerra entre
cristãos mandavam libertá-lo. Porém, o Trava apenas me apontou, com o
dedo indicador da mão direita, o caminho que eu deveria tomar no
regresso para junto das minhas tropas.
– Quem decide tais coisas sou eu – declarou.
Vencido, a última pergunta que lhe lancei foi familiar. Quis saber se
minha cunhada estava bem, pois sua irmã Maria há muito tempo que não
tinha notícias dela. Desta vez, o Trava limitou-se a afirmar:
– Se Chamoa tivesse morrido, todos vós teríeis sabido.
Naquele dia, nem eu podia imaginar o quanto Chamoa sofrera durante
aquele ataque, a forma maldosa como fora tratada pelo tio.
Tui, março de 1134

Na véspera do nosso ataque, imperava em Tui um nervosismo agudo.


Enquanto viam as tropas portucalenses instalarem-se na ínsua do rio
Minho, os homens do Trava faziam contas às forças do inimigo,
temendo-nos. A vontade de vingança é um dos mais poderosos
incentivos à batalha e os galegos sabiam que ela era vasta e profunda do
nosso lado, por causa de Celmes.
Mesmo no seio da poderosa família galega também imperava a
desconfiança, e Chamoa continuava vigiada em permanência pelo
Velho, apesar dos veementes protestos de seu pai. O desamparado
Gomes Nunes, que há décadas era proprietário do condado de Toronho,
adaptara o seu carácter à teia que sempre o cercara.
Entalado entre os portucalenses, os galegos e os leoneses, habituara-se
a dobrar a cerviz, pois as suas curtas forças nada podiam contra quem o
invadia com regularidade. Dona Urraca, Dona Teresa ou o arcebispo
Gelmires tinham massacrado o orgulho e as terras daquele nobre no
passado, e a geração seguinte, de Afonso VII, do Trava, de Afonso
Henriques, repetia o padrão anterior.
Com o passar dos anos, habituei-me a compreender o meu sogro.
Apesar de tudo, o seu apurado instinto de sobrevivência permitira
manter a família intacta e aquele castelo de pé. O pai de Chamoa
submetia-se sempre que o julgava necessário, como era mais uma vez no
presente. O Trava, seu cunhado, é que dava as ordens, preparava as
defesas e mantinha o moral dos homens, enquanto o meu sogro se
limitava a afagar os netos e a aturar as fúrias da esposa, Elvira Peres de
Trava, que culpava Chamoa por aquela inútil guerra.
– Lá está ela, no alto da torre de menagem, à espera do maldito
Afonso Henriques – resmungava a antipática matrona.
Mem Tougues, que também se encontrava em Tui, continuava
apostado em reconquistar Chamoa, e no presente a sua prioridade era
amansar a futura sogra, gabando os seus épicos cozinhados, para logo
depois se aproximar daquele que queria para sogro, revelando-lhe as
últimas decisões, numa tentativa sabuja de cumplicidade que permitiu a
Gomes Nunes ficar a saber que os novos planos do Trava não se
resumiam à defesa de Tui, incluindo igualmente o inesperado envio do
Velho para Sellium. O templário traidor, cuja função em Tui se resumira
a não perder de vista Chamoa, partiu subitamente da cidade na manhã da
véspera do nosso ataque, pois o Trava considerara aquele o momento
certo para se apoderar da relíquia.
Animado, o tolo Tougues bufou de imediato a habilidosa manobra a
Gomes Nunes e este correu de pronto à torre de menagem, para informar
a sua bela filha. Desde a partida de Pêro Pais que Chamoa subia todos os
dias ao topo da torre, mas só naquela manhã o seu coração rejubilou. Ao
saber da viagem do Velho, exclamou em êxtase:
– Vou fugir hoje mesmo!
Alarmado, Gomes Nunes tentou demovê-la de tal ousadia, dizendo-
lhe que Elvira Peres de Trava não hesitaria em a tramar, pois o ódio que
devotava aos portucalenses não parara de crescer.
– Dai-lhe vinho, meu pai – pediu Chamoa.
A minha cunhada depositava uma exagerada confiança nos poderes
luxuriantes da bebida, mas o meu sogro abanou a cabeça, desolado:
– Vossa mãe já nem com vinho lá vai...
Há anos que ele e Elvira não partilhavam a mesma cama e apenas o
interesse comum da preservação de Toronho unia o casal, coisa que
Chamoa já sabia. Um mês antes, quando certa noite observava as
estrelas, vira dois vultos a abandonarem a cavalariça de Tui. O ligeiro
luar permitira-lhe identificar a mãe, que compunha a saia, bem como o
maldito Velho, que chifrara o pai. Com piedade deste, Chamoa nada lhe
contara, nem o fez no presente, declarando apenas:
– Tendes razão, fugir é uma loucura.
Para tranquilizar o pai, regressou ao quarto, fingindo-se cabisbaixa,
mas no seu íntimo preparou-se para uma aventura arriscada. Quando a
noite ia alta, abandonou os aposentos envolta numa manta escura e
atravessou a alcáçova encostada às muralhas, imitando o filho quando
este fugira de Tui. Sentiu no coração uma vertigem nervosa, por se saber
mais próxima de Afonso Henriques.
Vou a caminho, meu amado.
Já a fugir pelo meio das árvores, ouviu um barulho, ramos a partirem-
se. Estacou, com o coração aos pulos, com receio de dar de caras com
um urso, embora fosse improvável tão perto do castelo.
Como não ouviu mais nada, continuou. A floresta parecia tranquila,
ouviu o piar miúdo de um pássaro e ao longe o rumor vago das tropas
acampadas, a prepararem-se para a batalha. Embrenhada nos seus
pensamentos, a minha cunhada só viu o vulto que saiu de trás de uma
árvore quando já era tarde de mais.
Ai, Nossa Senhora!
O Velho foi rápido e pregou-lhe uma rasteira, que a atirou ao chão,
enquanto dizia com desprezo:
– Estúpida galega, desta vez vosso filho não vos vem ajudar!
Atarantada, Chamoa procurou no chão uma pedra ou um ramo com
que se defender, mas depois percebeu que a ameaça do Velho não se
concretizaria, pois uma voz, vinda da floresta, gritou:
– Trazei-a para o castelo!
Era seu tio Fernão Peres, mas Chamoa só o viu quando reentrou na
alcáçova. Com a ponta da espada do Velho encostada às costas, foi
obrigada a fazer o caminho de volta, percebendo que aquele trio de
espertos a enganara.
Sacana do Tougues...
Mem Tougues revelara a partida do Velho ao pai propositadamente,
prevendo que Chamoa seria avisada. Com isso, expusera a colaboração
de Gomes Nunes com a filha, uma traição à família Trava que ambos
iriam agora pagar.
– Gomes Nunes, também estais contra nós! – acusou Fernão Peres.
Vários archotes iluminavam a pequena alcáçova, onde se
encontravam talvez vinte soldados, cercando Chamoa e seu pai. A
zangada mãe, Elvira Peres de Trava, foi incapaz de conter um berro:
– Porque haveis traído a nossa família?
Gomes Nunes, espantado com a declaração da esposa, perguntou:
– Vossos irmãos valem mais do que vossa filha e vosso marido?
Irritada, Elvira Peres de Trava apontou o dedo a Chamoa:
– Colocais o futuro de Toronho nas mãos de uma desvairada que não
sabe fechar as pernas? – Irada, acusou também o marido: – E vós, não
tendes juízo? Haveis esquecido o que vos fez Afonso Henriques? Sois
mais burro do que os nossos jumentos todos juntos!
Enquanto a mãe vociferara contra ela, Chamoa mantivera-se calada,
mas ao ouvi-la insultar o pai daquela maneira abrasiva, a minha cunhada
indignou-se e ripostou:
– Eis como fala a mais pura mulher da Galiza, a minha mãe, que me
aconselhou a chifrar meu marido, Paio Soares!
A progenitora lançou-lhe um olhar furioso, mas Chamoa não se
atemorizou e acrescentou, apontando para o Velho:
– Se vós trepais um velho, porque não pode meu pai trepar a padeira?
Furibunda, Elvira deu um passo em frente e pregou um violento estalo
na cara de Chamoa, surpreendendo-a tal foi a sua rapidez. Quando a
filha se preparava para ripostar na mesma moeda, o Trava mandou calar
todos e impôs as suas ordens:
– Velho, metei-a nas masmorras!
Apesar dos protestos de seu pai, Chamoa foi arrastada para a prisão de
Tui, o buraco onde há meses estava preso Gonçalo de Sousa.
Furibundo, Fernão Peres quis também encarcerar Gomes Nunes, mas
a irmã Elvira pediu-lhe que não o fizesse, era o seu marido e homem de
idade. Então, o Trava ordenou que o senhor de Toronho fosse guardado
por soldados nos seus aposentos.
Algumas horas depois, já o Velho partira para o Sul, Fernão Peres
dirigiu-se à masmorra, onde encontrou Chamoa a um canto, chorosa,
enquanto Gonçalo de Sousa se mantinha calado e encostado à parede,
com os pés e as mãos acorrentados. Depois de pousar um jarro de vinho,
sibilino, o Trava avisou o prisioneiro:
– Mal Afonso Henriques meta um pé em Tui, sereis degolado – e,
volteando no ar o punhal de Paio Soares, acrescentou: – E quanto a vós,
bela sobrinha, ficai sabendo que espetarei este punhal no vosso coração
traidor!
Tui, março de 1134

Sobre o que se passou na masmorra durante o nosso ataque a Tui,


ninguém pode ter absolutas certezas. Os seres humanos são entidades
misteriosas e complexas, cujos sentimentos e interesses se alteram
consoante as circunstâncias. Nunca sabemos se é verdadeiro o que
dizem, pois verdade e mentira são também necessidades do momento.
Só Deus sabe e vê tudo e faz o seu juízo final.
É preciso relembrar que Gonçalo e Chamoa não eram muito
próximos. Tinham-se conhecido em Viseu, oito anos antes, mas até
àquele dia haviam-se visto poucas vezes, embora um círculo de afetos os
unisse. Gonçalo adorava Zaida, grande amiga de Chamoa, que amava
Afonso Henriques, grande amigo de Gonçalo.
No centro dessas conhecidas emoções, existiam as zonas cinzentas.
Gonçalo roía um certo ressentimento, pois temia que Afonso Henriques
o tivesse enviado para Celmes para o afastar da bela moura. E Chamoa,
que receava todas as mulheres, receava também que Zaida lhe roubasse
o príncipe de Portugal.
É, pois, possível admitir um caldo de medos mútuos onde ferveu uma
aproximação, imposta pelas circunstâncias extremas em que ambos se
encontravam. Tanto Gonçalo como Chamoa desejavam ardentemente a
vitória de Afonso Henriques em Tui, mas a perentória condenação do
Trava colocou-os à beira de um terrível abismo: quanto mais perto
estivessem da liberdade, mais perto estavam da morte.
Diz-se que as pessoas, quando confrontadas com a possibilidade real
de morrerem, têm uma certa tendência para o descontrolo. O seu coração
enche-se de angústia e o seu espírito desespera, admitindo o que pouco
tempo antes seria impensável. Terá sido isso o que se passou entre
Chamoa e Gonçalo naquele frio buraco? Ninguém poderá nunca ter a
certeza, pois as versões de ambos divergem.
Tempos depois, Chamoa garantiu que se limitaram a escutar os
rumores da batalha. A meio da tarde, perceberam que os portucalenses já
retiravam, o que os deixou desiludidos por não serem libertados, mas ao
mesmo tempo aliviados, pois não iam morrer. Quanto a Gonçalo, certo
dia gabou-se a Zaida, jurando que Chamoa se montara nele. Pelos
vistos, a princesa moura acreditou. Lembro-me de que, quando falámos
sobre esse assunto, Zaida me perguntou:
– Lourenço Viegas, se os dois estivéssemos numa masmorra,
condenados à morte e depois de virar um jarro de vinho tinto da Galiza,
não me teríeis possuído?
Tremi de excitação, só de pensar na possibilidade... Seja como for, o
mais importante passou-se a seguir.

Um dia depois da estrondosa vitória que obtivera, o Trava deixou Tui à


frente dos seus homens e, antes de partir, ordenou que Gonçalo ficasse
nas masmorras, mas que Chamoa fosse fechada à chave no seu quarto,
em situação idêntica à de Gomes Nunes.
Elvira Peres de Trava, agora a única senhora do Castelo de Tui,
limitou-se a fornecer pão e água ao marido, à filha e a Gonçalo, e esta
estúpida e inútil vingança só terminou quando às portas da capital do
condado de Toronho se apresentou, sozinho, o filho mais velho de
Chamôa, Pêro Pais, que pedira ao príncipe de Portugal que o deixasse
voltar a Tui e, para grande espanto de todos, fez bem mais do que nós.
Os poucos soldados que lá permaneciam deviam lealdade a Gomes
Nunes e gostavam daquele corajoso petiz, informando-o de que o avô e
a mãe continuavam encerrados nos respetivos aposentos. O esperto
menino pediu então que o levassem à presença do avô, sem que a avó
Elvira o soubesse. Divertidos com a sua vivacidade, os soldados
fizeram-no entrar discretamente na alcáçova.
Mal o viu aparecer no quarto, Gomes Nunes emocionou-se e abraçou
o neto, que logo o incentivou a retomar o castelo.
– Minha avó não manda aqui! – afirmou Pêro Pais.
Porém, Gomes Nunes mostrou-se relutante. A estocada maldosa que
encaixara, ao saber que Elvira se envolvera com o Velho, atingira-lhe o
amor próprio. De que lhe valia mandar em Tui? Dali a tempos lá
voltariam os Trava, os leoneses de Afonso VII, o insuportável Gelmires
ou o enérgico Afonso Henriques, para lhe invadirem o território! E,
sobretudo, para quê lutar contra a sua própria mulher?
– É ela quem cozinha, pode envenenar-me – murmurou, temeroso.
De súbito, ouviu-se um rumor agitado e pela porta do quarto entrou
Elvira Peres de Trava, que não se espantou ao ver o neto ali.
– Sempre é verdade, haveis chegado!
Como o menino a ignorou, a irritada mãe de Chamoa perguntou-lhe:
– Não saudais a vossa avó?
Pêro Pais olhou-a finalmente e declarou:
– Vim libertar o meu avô e a minha mãe.
Entusiasmado com a firmeza do neto, logo ali Gomes Nunes deu
ordens aos soldados, que as cumpriram para grande fúria de Elvira Peres
de Trava, tendo esta desatado numa berraria feminina, que é
normalmente um sintoma de derrota e de nada lhe serviu, pois Chamoa e
Gonçalo foram libertados. Na manhã seguinte, depois de um longo e
repousante sono, a minha cunhada avisou que partiria imediatamente
para Guimarães.
– Vou convosco – anunciou Pêro Pais.
Ao ouvi-lo, Chamoa hesitou, mas a sua mãe, que era má e por isso
agudamente perspicaz, logo se intrometeu, alegando que os outros netos
ficavam bem com ela. Ainda ressentida, Chamoa enervou-se:
– E quem vos pediu opinião?
A espevitada matrona, com um sorriso malicioso, logo soltou mais
um pouco do seu veneno:
– Querem mesmo ir sozinhos, a prisão juntou-os...
Chamoa preparava-se para responder-lhe com ferocidade, mas
Gonçalo percebeu o perigo daquela intriga maliciosa e declarou:
– Lançar falsos testemunhos é pecado grave!
Obviamente, Elvira Peres de Trava andava nisto há muito tempo e
limitou-se a murmurar nova insinuação:
– Um jarrinho de vinho faz milagres!
Para terminar de vez com a intrigalhada, Chamoa cedeu e informou a
família de que Pêro Pais iria com ela! Dito isto, despediu-se dos outros
três filhos e do pai, enquanto a progenitora lhe gritava:
– Vede lá se ides prenhe outra vez para Guimarães!

O eco desta violenta frase de Elvira Peres de Trava ensombrou a parte


inicial da viagem daquela pequena comitiva, formada por Pêro Pais,
Gonçalo de Sousa e Chamoa. Só ao final do dia, quando pararam para
pernoitar, é que Gonçalo se aproximou do desconfiado Pêro Pais,
dizendo-lhe que não ligasse aos ditos infames da avó, que faria tudo para
impedir um casamento entre Chamoa e Afonso Henriques.
– A língua das mulheres é mais perigosa do que as nossas espadas.
Incapaz ainda de avaliar tão judiciosos ditos, o rapaz só se interessou
quando Gonçalo lhe pediu que descrevesse a batalha de Tui. A dado
momento, Pêro Pais referiu que o cavalo asturiano do príncipe se
recusara a continuar, o que levou Gonçalo a exclamar:
– Foda-se, que besta mais idiota!
O petiz riu-se, mas Chamoa avisou o nosso amigo de que não falasse
assim e pouco depois levou o filho para o quarto da hospedaria onde se
tinham instalado. Na manhã seguinte e pelo caminho, Gonçalo soltou
mais palavrões e todos galhofaram, especialmente quando passaram por
Braga, onde o nosso amigo os alertou de que não visitassem o arcebispo
Paio Mendes.
– Se vos vê, esse velho insuportável vai mandar-vos dar duas voltas à
Sé de Braga, ajoelhados e em penitência!
Depois de tanto tempo fechado naquele buraco em Tui, o espírito
folgazão do nosso amigo estava a regressar e eu fui o primeiro a senti-lo
quando a pequena comitiva chegou a Guimarães.
– Então, tudo espeta? – perguntou-me Gonçalo.
Abraçámo-nos e congratulei-me com a sua libertação, tal como Maria
Gomes, meu pai e Teresa de Celanova, aliás, os únicos presentes, pois
Afonso Henriques, na ânsia de esquecer as derrotas no Norte, partira já
para o Sul, com Peres Cativo e meu tio Ermígio.
Embora dececionada com a ausência do seu amado, a minha cunhada
ficou feliz por rever a irmã e conhecer os nossos dois filhos, mas
enxofrou-se de imediato quando soube que Elvira Gualter, a normanda,
esperava outra criança de Afonso Henriques.
Como é que ela emprenha tão depressa?
Ao vê-la em tal perturbação, Teresa de Celanova inquiriu-a:
– Continuais a amar o príncipe?
Chamoa confessou que assim era, por causa disso há mais de dois
anos que não dormia com homem algum.
Já esqueci, já esqueci!
Depois, relatou a sua prisão na masmorra e a ameaça mortal do Trava,
narrativa que Gonçalo confirmou com um aceno de cabeça, mas que
tentou prontamente ignorar, ao perguntar-me, curioso:
– E a minha Zaida, onde está?
Só Maria reparou na inquietação ligeira da irmã, enquanto eu
respondia que as princesas mouras continuavam presas em Coimbra.
Relembrei que meu tio Ermígio as desejava trocar pela relíquia sagrada,
o que exaltou Gonçalo.
– Para que queremos mais relíquias? Já há tantas por aí, em
Compostela e em Braga! Se não encontrarem a do conde Henrique,
manda-se vir outra da Terra Santa! – depois, com entusiasmo,
acrescentou: – Zaida é que só há aquela!
Chamoa não se riu e ainda mais séria ficou quando entrou na sala
Elvira Gualter, a companheira do príncipe de Portugal. A normanda
aproximou-se da minha cunhada e saudou-a. Ao ver também Gonçalo,
exclamou:
– Olha o gabarolas!
Gonçalo ia zangar-se, mas a normanda não o deixou, abraçando-o.
– Pedi por vós aos meus deuses!
Ele fingiu-se surpreendido e perguntou, erguendo uma sobrancelha:
– Haveis pensado em mim, bela viking?
A visada repreendeu-o de pronto:
– Ó maroto, estou grávida do príncipe!
Para tranquilizar a enervada Chamoa, a normanda perguntou-lhe se
não desejava ir ver o quarto que lhe estava destinado e Maria Gomes
acompanhou-as. Já no aposento, Elvira sentou-se na beira da cama e
incentivou as outras a fazê-lo também. A medo, decerto surpreendida
com aquele à-vontade, Chamoa colocou-se em frente da rival, mas do
outro lado da cama, enquanto Maria permanecia de pé.
Demonstrando um desejo de pacificação, Elvira afirmou:
– Sei bem o quanto Afonso Henriques vos ama e ficai sabendo que
isso não me incomoda nem um pouco!
Chamoa abriu os olhos, espantada.
Ela não tem ciúmes?
Com um sorriso límpido, Elvira garantiu que seria mãe de duas
crianças e estaria sempre disponível para Afonso Henriques, mas não
para contrair matrimónio.
– Vós é que deveis casar com ele – disse a Chamoa.
A minha cunhada sorriu pela primeira vez.
Afinal, gosto dela.
Com a cumplicidade feminina que rapidamente se gera entre as
mulheres, Chamoa confessou as suas dúvidas, não sobre o amor ao
príncipe, mas sobre o dele para com ela.
– Ele ama-vos, acreditai – insistiu Elvira – Mas...
Suspirou fundo e, de olhos a brilharem de alegria, declarou:
– Afonso Henriques é extraordinário, irá ser um grande rei! Os meus
deuses revelaram-mo! Daqui a mil anos ainda se falará sobre este nosso
rei, as suas conquistas farão eco na eternidade!
Depois das fortes derrotas de Celmes e de Tui, era difícil acreditar
naquele brilhante futuro, mas as três mulheres não perderam tempo a
discuti-lo, preferindo conversar sobre questões mais relevantes.
– Até os gigantes têm um ponto fraco – contou Elvira.
As duas irmãs galegas não sabiam qual a falha de Afonso Henriques
e, portanto, surpreenderam-se quando a normanda a exibiu:
– O príncipe de Portugal não suporta que a mulher de quem gosta se
encante por outro homem. Fica louco, é capaz de matar.
Fingindo-se perplexa, a minha cunhada bateu as pestanas e depois de
uma pausa crítica, com a qual Elvira mostrou que topava perfeitamente a
dissimulação dela, a normanda disse:
– Desde que me dei ao príncipe, nunca mais me dei a homem algum,
nem me vou dar.
Olhando fortemente para Chamoa, declarou:
– Cuidado com os homens. Com todos!
A minha cunhada sorriu-lhe, embaraçada, acrescentado que desejava
ir ter com Afonso Henriques, o que só viria a acontecer quase dois
meses mais tarde, pois o impiedoso inverno impediu-nos de descermos a
Coimbra.
IV
O Despertar
dos Traidores
1134
Rio Lis, junho de 1134

O fossado portucalense ultrapassara os limites cristãos das leis da guerra


e a extrema violência dos estragos provocados nas aldeias mouras
indignou meu tio Ermígio Moniz. Ele também fora um guerreiro no
passado, mas o cargo de mordomo, a idade e sobretudo a experiência
haviam-no convencido de que a brutalidade não era a melhor das
políticas.
– Tanta destruição será vingada um dia – avisou.
Afonso Henriques respeitava muito a opinião do mordomo, mas
dentro da sua alma não havia ainda descanso. Frustrado com o fiasco de
Tui e humilhado pela destruição do Castelo de Celmes, o príncipe de
Portugal partira para o Sul numa ânsia descontrolada e na pequena
povoação de Pombal, um pouco a norte do local onde estavam
acampados agora, o fossado portucalense atingira o auge.
A aldeia mourisca fora saqueada e incendiada. Mas, pior do que isso,
Afonso Henriques dera ordens a Peres Cativo, seu alferes, e a Paio
Guterres para não pouparem os homens e cinco dezenas haviam sido
degolados, sendo depois empalados em lanças, espetadas no chão
empapado de sangue, coisa que meu tio não considerava aceitável.
– Poupei as mulheres e as crianças – alegou Afonso Henriques, como
se essa decisão o absolvesse dos restantes exageros.
– Para conquistar os territórios, não podemos, nem devemos, dizimar
as populações! – exclamou meu tio.
Peres Cativo e Paio Guterres, ambos valiosos combatentes,
contestaram-no prontamente. Na guerra, o objetivo era matar os
inimigos, destruir as suas forças, as suas gentes, as suas cidades!
Aqueles territórios haviam sido cristãos séculos antes, os usurpadores
mouros tinham de ser afastados!
– Para que a vitória dure, temos de seduzir as populações a nosso
favor e depois convertê-las! – insistiu Ermígio Moniz.
Uma campanha bélica que se limitasse a exibições gratuitas de
violência nada acrescentava. Para que aqueles territórios não voltassem a
ser retomados pelos mouros, era necessário mais do que um fossado
breve, eram necessários castelos. Uma linha inteira deles era a única
forma de empurrar os mouros para o Sul e fixar as populações debaixo
do domínio portucalense.
– Quereis construir castelos neste ermo? – interrogou-se Paio
Guterres, espantado.
O acampamento portucalense fora erguido junto à antiga estrada
romana que ligava Coimbra a Santarém, perto do rio Lis. Não se via
vivalma por ali, nenhuma aldeia existia por perto. Contudo, Ermígio
Moniz examinou os campos à sua volta e depois pediu:
– Vinde comigo.
O príncipe, o alferes e o cavaleiro-vilão de Coimbra acompanharam o
mordomo. Estava um fim de tarde sereno e os quatro subiram um
pequeno monte. Quando chegaram ao topo, Ermígio Moniz disse:
– Olhai à vossa volta.
Surpreendidos, os outros examinaram o horizonte. Do alto daquela
elevação podia ver-se a longa estrada romana nas duas direções,
acompanhando os vales para sul, mas também para norte. Estavam num
ponto privilegiado de observação e Ermígio Moniz defendeu que ali se
devia construir um castelo, chamado de Leiria.
– Do alto da sua torre de menagem, veremos os inimigos muito antes
de cá chegarem.
Ninguém podia negar aquela evidência. Curioso, o príncipe de
Portugal perguntou ao seu mordomo:
– Como haveis sabido deste local?
Meu tio respondeu-lhe que os templários de Soure conheciam bem a
região e haviam-lhe chamado a atenção para aquele sítio.
– Foi o Ramiro? – questionou Afonso Henriques.
O príncipe talvez procurasse descobrir novos méritos no bastardo de
Paio Soares, que tanto o desiludira, mas ao ouvi-lo Peres Cativo
protestou de pronto, pois implicava com Ramiro.
– O uranista? Raios, este chão está amaldiçoado!
Paio Guterres deu uma gargalhada, mas o mordomo logo esclareceu
que o autor da sugestão fora o próprio mestre dos templários de Soure,
Jean Raymond. E, para surpresa do príncipe, acrescentou:
– O Ramiro abandonou a Ordem do Templo.
Afonso Henriques franziu a testa:
– Porquê?
Ermígio Moniz suspirou, olhando para Peres Cativo e dando a
entender que a malícia anterior do alferes fora certeira.
– Para não desonrar os templários, foi-se embora.
Levemente inquieto, pois sabia dos antigos enamoramentos de
Ramiro por Chamoa, o príncipe de Portugal perguntou de pronto:
– Para o Norte?
Meu tio Ermígio Moniz não conhecia o destino do bastardo de Paio
Soares e encolheu os ombros, o que levou Peres Cativo a exclamar:
– Que vá mas é para o Diabo!
Paio Guterres riu-se novamente, mas depois o mordomo do Condado
Portucalense insistiu que mais alguns castelos se deviam construir,
talvez em Penalva e Pombal, para solidificar as defesas da região.
Afonso Henriques concordou, mas lembrou que a edificação das
fortificações duraria mais de um ano. Enquanto isso, o fossado teria de
continuar, para obterem mais vitórias e mais território.
– Temos de massacrar Zhakaria! – reforçou Peres Cativo.
Ermígio Moniz era o único que repudiava tanta vontade de destruição,
pois, a observar o horizonte, Paio Guterres comentou:
– Gosto deste local, parece-me bom para lutar!
Nas últimas operações, aquele cavaleiro portucalense revelara o seu
enorme talento como hábil guerreiro. Reconhecendo-o, o príncipe
declarou que ele seria o futuro alcaide de Leiria, mal o castelo estivesse
pronto. Sobre os seus ombros recairia a responsabilidade de defender o
fortim mais a sul e, portanto, o mais perigoso, de todo o Condado
Portucalense.
– Abu Zhakaria vai ouvir falar de mim! – prometeu Paio Guterres.
Os outros abraçaram-no, aplaudindo aquela nomeação e desejando-
lhe sorte. Depois, regressaram ao acampamento, onde Ermígio Moniz
avisou o príncipe de que, com fossados tão grotescos e sangrentos,
jamais seria possível convencer Abu Zhakaria a trocar a relíquia por
Zaida e Fátima. Desinteressado, Afonso Henriques resmungou:
– A bruxa nunca mais apareceu e ninguém sabe da relíquia!
Meu tio ficou ligeiramente abalado, mas o meu melhor amigo nem
deve ter notado, pois comentou:
– E durante o fossado é perigoso a Zaida ir para Córdova.
Dias antes, o príncipe de Portugal cruzara-se com a mais nova das
princesas mouras e meu tio topara uma troca de olhares suspeita entre os
dois. Por isso, perguntou:
– Estais enamorado da Zaida?
Afonso Henriques negou tal sentimento, retorquindo:
– Vós é que gostais de mouras, mordomo!
Meu tio emudeceu, magoado com aquela impertinente referência à
falecida mãe de Raimunda, mas Peres Cativo decidiu provocá-lo,
recordando que tinham feito prisioneiras várias raparigas em Pombal,
algumas delas bem vistosas.
– Mordomo, quereis uma mourinha gostosa na vossa tenda?
Ermígio Moniz encolheu os ombros, como se não tivesse paciência
para aquela conversa de rapazolas, mas Paio Guterres revelou muita
vontade de trocar carícias com as mouras, alegando que tinha direito a
isso, pois combatera bem. Então, o príncipe deu autorização para que
tanto ele como Peres Cativo se divertissem com as prisioneiras e os dois
militares afastaram-se, muito bem-dispostos.
Curioso, meu tio mirou o príncipe e perguntou:
– E vós? Não ides porquê?
Afonso Henriques fechou a dalmática vermelha, como se estivesse
com frio. Em silêncio e em vez de se dirigir para a sua tenda, caminhou
na direção do local onde estavam os cavalos. Quando lá chegou, ficou a
olhar para o seu animal asturiano, que Gonçalo de Sousa lhe oferecera.
– Não presta... – murmurou, desalentado.
Em Pombal, durante o ataque à aldeia, aquela enorme besta castanha
recuara como em Tui, obrigando o príncipe a desmontar e a comandar as
operações a pé.
– Não tenho sorte com os cavalos... – declarou Afonso Henriques,
exclamando de seguida – Nem com as mulheres!
Aquele desabafo pesaroso levou meu tio Ermígio a concluir que,
embora Elvira Gualter fosse a sua companheira em Guimarães e
esperasse uma segunda criança dele, o entusiasmo pela normanda já não
o completava.
– Haveis perdoado Chamoa? – perguntou meu tio.
Afonso Henriques suspirou. Os antigos ressentimentos contra a minha
cunhada pareciam estar a dissolver-se e, depois do que ela fizera por ele,
já admitia uma reconciliação.
– Estão livres, ela e o Gonçalo. Já chegaram a Guimarães...
Um corvo trouxera essa animadora mensagem e meu tio, que sempre
desejara afastar Zaida do príncipe, lançou uma sugestão:
– Porque não ides ter com ela? O fossado pode continuar sem vós.
O orgulhoso príncipe recusou a ideia. Não queria apresentar-se
perante a minha cunhada como um derrotado, incapaz de conquistar a
cidade onde ela estivera presa. Naquele dia, eles ainda não sabiam que
Chamoa já vinha a caminho de Coimbra, mas meu tio, para se certificar
de que os seus receios sobre Zaida eram infundados, avisou:
– O Gonçalo virá certamente ter com a moura...
Competitivo como era, se gostasse da princesa Afonso Henriques
teria reagido, mas não o fez, tendo apenas acrescentado:
– Preciso é de um cavalo de jeito!
Dias depois, incomodado com tanta violência, meu tio Ermígio
decidiu regressar a Coimbra, mas Afonso Henriques preferiu
permanecer ao comando do fossado, o que foi uma pena. Se ele já
estivesse na cidade quando nós chegámos, muita trapalhada se teria
evitado...
Coimbra, junho de 1134

O almocreve Mem sentia um forte receio de que o plano de resgate das


princesas fosse malsucedido, pois o perigo era agora bem maior do que
no ano anterior, quando, em Lisboa, havia planeado com Sohba a ida ao
esconderijo da relíquia. A velha mulher de negro já chegara a Santarém,
onde repousava uns dias, recuperando forças antes de partir para
Sellium, juntamente com Raimunda e Abu Zhakaria.
Mas Mem, que de lá viera, sentia o fossado dos portucalenses a
aproximar-se perigosamente das ruínas romanas. Apressado, dirigiu-se
ao encontro das princesas, mas ao chegar à rua delas viu um homem a
sair da casa, compondo as suas vestes religiosas.
Inquieto e angustiado, Mem lembrou-se de que Zaida frequentava a
biblioteca da Sé com a autorização do bispo Bernardo, cuja fama de
mulherengo era conhecida. Zaida dar-se àquele antipático cristão era um
golpe demasiado profundo, que o chocava! Dentro da sua alma gerou-se
uma luta titânica. De um lado, combatia o seu estatuto menor, que o
puxava para a contenção e o silêncio. Do outro, batalhava o seu orgulho
masculino ferido, que impunha a necessidade de um esclarecimento.
Muita verdade, traz infelicidade...
Mem aproximou-se da porta e bateu, mas ninguém respondeu. Entrou
e chamou por ela, ouvindo-a cantarolar. Avançou, tentando acalmar a
sua agitação interior e dirigiu-se à cozinha, à entrada da qual parou.
Zaida estava nua e de pé, lavando-se, usando um balde com água, que ia
despejando pela cabeça abaixo.
Ela era lindíssima e Mem admirou aquelas redondas nádegas que
costumava agarrar, aqueles volumosos seios que costumava beijar.
De repente, Zaida abriu os olhos e gritou:
– Ai Mem, que susto me haveis pregado!
Como o almocreve permaneceu calado e pálido, ela quis saber o que o
consumia. Por momentos, Mem não conseguiu falar.
Piça esticada, palavra encravada...
Tentou controlar-se, engolindo em seco e, por fim, as palavras saíram-
lhe da boca, como se a vontade dele já não as dominasse:
– Vi o bispo Bernardo a sair daqui, compondo a túnica e o manto.
A princesa de Córdova puxou de um pano e começou a secar-se.
Depois, enfiou um vestido pela cabeça, deixando-o cair pelo corpo
abaixo. Ainda por esclarecer, Mem comentou:
– Lavais-vos sempre, depois de estar com um homem.
Era um hábito dela, dizia que precisava de se purificar após as
emoções carnais, mas Zaida ignorou a afirmação e perguntou:
– Sohba já chegou a Santarém?
Pela primeira vez desde que a conhecera, Mem teve a estranha
sensação de que não estavam a falar um com o outro, mas a sua
condição inferior impediu-o de faltar ao respeito à princesa.
– Ela e Zhakaria vão partir para Sellium.
Porém, a confusão do seu espírito continuava muito forte, queria
obrigá-la a falar no que acabara de ver e perguntou porque viera ali o
bispo Bernardo. Zaida ignorou-o novamente e cirandou pela cozinha,
perguntando-lhe se desejava comer.
– Foi com ele que haveis perdido a virgindade?
Desta vez, Zaida olhou-o com um ar desagradado, como nunca o
fizera antes, mas manteve-se teimosamente calada, o que obrigou Mem
a impor-se. Sereno mas firme, disse-lhe:
– Sei que não fui o vosso primeiro homem.
Zaida paralisou, olhando para ele. Depois, suspirou. Apontou-lhe um
banco, mas ele não se sentou e ouviu-a dizer:
– Gonçalo de Sousa.
Honesta, Zaida recordou que três anos antes se sentia muito sozinha.
Quando Gonçalo lhe fizera a corte, a carência impusera-se e ela dera-se.
Contudo, o portucalense partira para Celmes e, de novo sem companhia,
Zaida correra um dia ao casão de Mem... O resto já ele sabia. Sim, era
verdade, enganara-o da primeira vez, usando um truque que a mãe lhe
ensinara.
– Fi-lo para não vos desiludir, para não vos magoar.
O almocreve sentiu que tinha levado um soco na barriga.
Verdade conhecida, semana fodida.
A desilusão de Mem ainda cresceu mais quando a ouviu protestar:
– Não mais me haveis querido, depois da morte de minha mãe!
Zaida estava a responsabilizá-lo pela promessa que não cumprira. O
almocreve abanou a cabeça e olhou para a porta, com vontade de se ir
embora. Alarmada, notando já o erro cometido, a princesa aproximou-se
dele e sorriu-lhe carinhosamente, procurando garantir-lhe que o passado
já não contava nos seus afetos.
– Esqueci o Gonçalo, agora sou vossa.
Mem continuou descrente e cabisbaixo. Até podia acreditar que ela já
não amava Gonçalo, mas a visão do prelado coimbrão a compor as
vestes era impossível de apagar.
– O que se passou com o bispo? – perguntou.
Como se estivesse espantada por ele não perceber, Zaida ripostou:
– Como pensais que consigo ir à biblioteca?
Mem franziu a testa, perguntando-lhe se entregar-se ao bispo era o
preço das leituras, mas a rapariga indignou-se:
– Como vos atreveis a falar assim comigo?
Impondo o seu ascendente, ela apresentou uma razão poderosa:
– Mem, precisamos de aliados em Coimbra!
O bispo Bernardo sempre se opusera à troca da relíquia pelas
princesas mouras, mas aos poucos Zaida convencera-o.
– Já está do nosso lado, já aceita o acordo com Zhakaria e Sohba!
O almocreve calou-se. Podia ter sido uma coincidência, o bispo a
arranjar as vestes ao sair, ela a tomar um banho, como fazia depois das
ternuras físicas. Mas a situação abalara-o, dando-lhe uma consciência
ainda mais forte do seu estatuto menor na vida de Zaida.
Mulher de sangue real, prefere faisão a pardal.
Dando por ultrapassada a polémica, a princesa ordenou:
– Vamos às cavalariças avisar a Fátima!
Mem acompanhou-a, um passo atrás, pelas ruelas coimbrãs. Nunca
andavam de mão dada, escondiam a sua amizade dos cristãos e só se
tocavam dentro de casa, mas naquele dia nem isso Zaida fizera. Algo
tinha mudado nela, mas Mem não sabia bem o quê. Zaida fora rápida e
honesta a reconhecer que o enganara no passado e também a sua
justificação para a proximidade ao bispo Bernardo fazia sentido, mas
uma coisa são as razões, que o espírito aceita, outra os sentimentos, que
o coração pressente.
Quando se ama, vai-se para a cama...
O seu desconforto ainda persistia quando chegaram aos estábulos,
onde Fátima cavalgava um enorme cavalo, negro e lindíssimo. Ficaram
a observá-la algum tempo e, quando ela se aproximou, o almocreve
perguntou o nome do animal.
– Sultão – respondeu Fátima.
Era um garanhão único e raro, brusco e poderoso, que só ela tivera
coragem de vergar à sua vontade. Orgulhosa, adiantou que os
domadores de cavalos de Coimbra eram medrosos e, como se recusavam
a montar o fogoso bicho, deixavam-na fazê-lo.
– Agora é meu.
Zaida olhou-a, imediatamente alarmada.
– Ides fugir neste cavalo?
Fátima sorriu, afagando a crina do Sultão.
– Queriam chamar-lhe Imperador.
Um rico-homem coimbrão, para se reabilitar dos seus incontáveis
pecados, oferecera aquele presente ao bispo Bernardo. Só que o baixo e
nervoso prelado não se mostrara entusiasmado com a ideia de cavalgar
um mastodonte negro tão musculado e decidira mantê-lo no estábulo,
para um dia o oferecer a Afonso VII, rei de Leão, quando este fosse
coroado imperador da Hispânia.
– Só para chatear os cristãos, mudei-lhe o nome. Agora só responde
por Sultão – declarou Fátima.
Mem e Zaida sorriram, o cargo de sultão era tão importante para os
mouros como o de imperador para os cristãos.
– Quando partir, levo-o comigo – adiantou Fátima.
Mem alertou-a de que aquele não era o momento de fugirem, a região
a sul de Coimbra estava novamente a ferro e fogo.
– Estais enganado – contestou Fátima, baixando a voz. – Montadas no
Sultão, eu e a Zaida só paramos em Santarém...
Nesse momento, Zaida murmurou:
– Sohba e Zhakaria já lá estão e vão partir para Sellium!
A irmã alvoroçou-se, mas era evidente que não podiam falar ali, os
tratadores podiam ouvi-los. Então, Fátima conduziu o animal para a
cavalariça e desaparelhou-o. Terminada a operação, regressaram os três
a casa delas.
– Iremos como os templários, que montam a dois os cavalos... Ainda
há tempos vi por cá o parvo do Ramiro e um colega! – entusiasmou-se
Fátima.
Depois, apontando para Mem, declarou:
– Vós podeis ir atrás, na vossa lenta carroça!
As palavras dela eram como facas a caírem, que ninguém agarra para
não cortar as mãos. Mas o almocreve já estava habituado àquele desdém
e contou algo que surpreendeu as princesas:
– O Ramiro desapareceu de Soure.
Ao ouvir isto, Zaida agitou-se, preocupada, como se soubesse
qualquer coisa importante que não desejava revelar.
– Sohba tem de chegar a Sellium primeiro do que o Ramiro!
O atento Mem estranhou aquela pressa, e quando lhe perguntou se o
bastardo templário conhecia o esconderijo da relíquia Zaida pareceu
momentaneamente atrapalhada, mas a sua fulgurante inteligência
produziu de pronto uma explicação convincente. Ramiro era filho de
Paio Soares, o alferes do conde Henrique, que fora com este esconder a
relíquia a Sellium, muitos anos antes.
– Quem nos garante que o pai, antes de morrer, não revelou ao
bastardo o esconderijo? – questionou-se Zaida.
Ao ouvi-la, Fátima empolgou-se:
– Mais uma razão para fugirmos hoje no Sultão!
Zaida estava agora dividida, parte dela queria fugir, parte queria
esperar, pois temia o perigo de uma aventura. Sentindo-a assim, Mem
defendeu a prudência da segunda opção:
– Fugir agora é um erro disparatado! Ainda por cima, haveis dito que
até o bispo Bernardo já aceita trocar-vos pela relíquia!
Mal ouviu falar no prelado, a viperina Fátima deixou cair um subtil
comentário, olhando para a irmã:
– Não vos fiais nesse baixote, sabeis bem o que quer de vós.
Mem mirou Zaida fixamente, a crítica estampada nos seus olhos. A
insinuação de Fátima legitimava as suas suspeitas. Porém, a mais nova
das princesas defendeu-se com galhardia. Quem roubara o punhal de
Paio Soares, no dia da morte de Zulmira? Quem descobrira Sellium nos
mapas da Sé? Quem se lembrara de que Sohba podia estar em Lisboa?
Quem convencera Mem a ir procurá-la? E, por fim, quem alterara a
opinião do bispo Bernardo, que já aceitava a troca das princesas pela
relíquia?
Com as suas atitudes serenas e afáveis, Zaida conseguira bem mais do
que Fátima, cuja hostilidade permanente aos cristãos nunca lhes
proporcionara nada de útil! Contudo, esta não deu o braço a torcer e,
sentindo que a irmã não seria capaz de fugir, explodiu em insultos:
– Sois uma cobarde! Gostais é de foder cristãos!
Zaida olhou-a com severidade, tentando calá-la apenas com a
expressão do rosto, mas a desbragada continuou a berrar. Fora de si, deu
dois passos a caminho da porta e urrou:
– Vou fugir agora mesmo!
Aflita, Zaida implorou:
– Fátima, não me deixeis sozinha!
Nem este genuíno apelo comoveu a mais velha das princesas, que,
com enorme desdém, rematou:
– Tenho um cavalo fabuloso chamado Sultão, o meu Abu Zhakaria é
wali de Santarém e Sohba vai para Sellium! Que mais preciso para fugir
esta noite?
Foi nesse momento que, inesperadamente, Gonçalo de Sousa entrou,
pois a porta da rua ficara entreaberta, seguido por Chamoa e por mim.
Pelas nossas expressões, Mem, Zaida e Fátima perceberam
perfeitamente que os seus planos haviam sido descobertos.
Coimbra, junho de 1134

Mal entrei naquela sala, o que me captou a atenção foi a mistura de


espanto e ciúme que se colou ao rosto dos restantes presentes. Mem, por
exemplo, ficou lívido ao ver Gonçalo, pois julgava-o preso em Tui. E
este último não reagiu melhor, atordoado por encontrar o almocreve
junto à sua adorada Zaida. Quanto a esta, também paralisou perante a
visão de Gonçalo e Chamoa, enquanto a minha cunhada parecia
enervada por não ser ela o centro das atenções.
Sempre verrinosa, mas finória e perspicaz, Fátima comentou:
– É melhor sentar-me, quero assistir a este espetáculo.
Ficámos a olhar uns para os outros, até que Gonçalo abriu as
hostilidades, mostrando que já conhecia os planos de Fátima e
garantindo que elas nem iam fugir, nem haveria lugar a qualquer troca
das princesas pela relíquia.
– Zaida só sairá de Coimbra comigo!
Num primeiro momento, é evidente que a afirmação perentória de
Gonçalo agradou a Zaida, que se sentiu lisonjeada. Mas as suas palavras
seguintes foram uma clara demonstração de que tinha ideias próprias,
que não eram coincidentes.
– Amigo Gonçalo, estimo-vos muito, mas sou moura e vós cristão. O
meu desejo é voltar para Córdova.
Aproximando-se dele, acrescentou:
– Não nos casaremos.
Contudo, Gonçalo não se deu por vencido e perguntou à princesa se o
trocava por um almocreve, o que levou Fátima a comentar:
– Quem vai ao ar, perde o lugar!
Furioso, o nosso amigo levou a mão à espada e ameaçou-a:
– Quereis que vos corte a língua?
Coloquei-me à frente de Gonçalo, para o acalmar, enquanto Zaida lhe
recordava que estavam presas em Coimbra há dezoito anos e ansiavam
pelo regresso a Córdova, que agora parecia possível. Se Abu Zhakaria,
wali de Santarém, tinha uma relíquia que os cristãos desejavam, porque
não trocá-la pelas princesas?
Nesse momento, Chamoa surpreendeu-nos a todos, contando que o
Velho, o traidor templário, partira de Tui seguindo as instruções do
Trava, podendo já estar perto de Sellium. E Zaida acrescentou algo que
nós, os recém-chegados, ainda desconhecíamos:
– O Ramiro também procura a relíquia.
O templário deixara a Ordem do Templo de forma inesperada e a
princesa relembrou que Paio Soares, o falecido marido de Chamoa,
podia ter revelado ao seu bastardo o esconderijo da relíquia.
– Não creio – afirmou Chamoa. – Meu esposo não estimava esse
filho.
Antes que Fátima pudesse largar mais algum viperino comentário,
afirmei que Ramiro não me preocupava, pois, se encontrasse o tesouro,
viria certamente entregá-lo ao príncipe, para subir na consideração deste.
Só nas mãos do Velho, um traidor a soldo de Fernão Peres de Trava, é
que a relíquia nos fugiria, pois, se fossem Sohba e Zhakaria os primeiros
a chegar, poderíamos sempre trocar o tesouro religioso pelas princesas.
Mesmo assim, o perigo era grande e tínhamos de correr a Sellium!
Saímos dali à pressa, decidindo que Gonçalo e eu iríamos de imediato à
região da Ladeia, reunir-nos a Afonso Henriques, enquanto Chamoa
regressava ao castelo e Mem ficava com as princesas em casa destas.

Nessa noite, depois de prometer ao filho que não beberia vinho enquanto
estivesse em Coimbra, a curiosa Chamoa decidiu regressar à casa das
princesas, apesar dos avisos em contrário dados por sua irmã Maria.
Minha cunhada era tão deslumbrada consigo própria que se lhe
evaporava o bom senso depressa de mais...
Quando entrou na habitação das princesas, onde Fátima já não estava,
Mem e Zaida comiam um ensopado de pescada e esta última convidou
Chamoa a sentar-se, indo buscar um vaso à cozinha e servindo-lhe
vinho, que ela bebeu, esquecendo num ápice a promessa que fizera ao
filho.
São só uns golinhos...
Com um sorriso, Chamoa olhou a amiga e suspirou: a última vez que
haviam estado juntas fora à porta do Mosteiro de Vairão, antes de ela se
fechar em reclusão. Cinco anos tinham passado, tanto havia acontecido!
De rosto sério, disse:
– Chorei muito a morte de vossa mãe.
Para afastar pensamentos pesados, Zaida quis saber como ia o coração
de Chamoa, tendo esta mostrado a sua amarga desilusão. Uma tarde com
o seu primo Mem Tougues estragara-lhe a vida! O príncipe de Portugal
não lhe perdoara a desfeita, expulsando-a para Tui, onde dera à luz o
quarto filho. Por lá, Chamoa oferecera-se umas vezes ao Tougues, com
o único propósito de saber o que tramava o seu tio, Fernão Peres.
À terceira, já tinha nojo dele...
De cara desconfiada, Zaida torceu o nariz àqueles tortuosos
estratagemas, pois conhecia as fraquezas da amiga. Porém, esta jurou
que falava verdade e abriu-se-lhe um sorriso de orgulho no rosto,
quando disse que fora seu filho que a libertara, bem como a seu pai e a
Gonçalo.
– O que se passou na masmorra de Tui? – perguntou Zaida.
Chamoa pestanejou, agitada, mas logo se defendeu, declarando que o
tio os ameaçara de morte, se o ataque fosse bem-sucedido! Mas, no dia
seguinte, tirara-a do buraco e fechara-a num quarto.
Já esqueci, já esqueci!
Com um suspiro pesaroso, acrescentou:
– Coitado do Gonçalo. Tive muita pena dele.
Insatisfeita com aquelas explicações superficiais, pois Chamoa não
negara as ternuras com Gonçalo, Zaida recordou:
– O Mem só esteve uma vez com minha mãe e nunca se esqueceu...
Chamoa olhou-a com curiosidade e perguntou:
– Estais com ciúmes?
A princesa moura negou, afirmando que já não se sentia enamorada
de Gonçalo, o que levou Chamoa a espantar-se com tanta honestidade
em frente do almocreve. Então, Zaida disse:
– O Mem sabe. Tenho carinho pelo Gonçalo, mas já foi há três anos.
Divertida, esboçou uma careta e exclamou que os cristãos eram todos
muito ciumentos! Julgavam que, por as mulheres se darem uma vez,
seriam deles para sempre. Os mouros de Córdova estavam habituados a
ligações menos intensas, mulheres e homens eram mais soltos. A sua
avó, Zaida de Sevilha, fora vista pelo seu avô Ismael agarrada a um
núbio nua e numa piscina, mas o marido, embora desgostoso, aceitara o
desvario.
Reforçando a ideia da amiga, Chamoa contou que Elvira Gualter, que
tivera uma primeira filha do príncipe e já esperava a segunda, também se
mostrara desprovida de ciúmes. Não se importava que ela casasse com
Afonso Henriques, mas avisara-a de que o príncipe também era muito
ciumento, o que fez Zaida abanar a cabeça, concordando.
Imediatamente tensa, Chamoa perguntou:
– Afonso Henriques é vosso amigo?
Zaida não lhe respondeu diretamente e voltou a referir a avó, Zaida de
Sevilha, que, depois de enviuvar de Ismael, casara com o imperador
cristão, Afonso VI, o avô de Afonso Henriques. Com um sorriso
enigmático no rosto, admitiu que o príncipe e ela poderiam um dia reinar
na Andaluzia, o que levou Mem a suspirar e Chamoa a concluir que os
sonhos gloriosos de Zaida não o incluíam.
Com uma leve malícia, provocou a amiga:
– E o Mem?
Como a princesa nada disse, a minha cunhada insistiu, incomodada
com o que lhe parecia ser uma injustiça para o almocreve.
– Será apenas um dos muitos amantes da rainha de Córdova?
Abrindo os olhos, agora já disposta ao despique, Zaida ripostou:
– Vós é que sonhais ser rainha desde criança!
Chamoa agitou-se e bebeu mais um gole do seu vinho.
E vou ser, um dia!
Curiosa, Zaida perguntou-lhe:
– Estais certa de que Afonso Henriques vos vai perdoar?
Foi a vez de Chamoa se desanimar, dizendo ter pouca fé numa
reconciliação. Apesar do seu esforço para reconquistar o príncipe,
duvidava de que este esquecesse o passado turbulento dela.
Acha-me uma tola, como todos...
De repente, Zaida desatou a rir, como se tudo aquilo não passasse de
uma tonta brincadeira e exclamou, divertida:
– Olhai para nós! Duas parvas que sonham ser rainhas, desejosas de
casar com um príncipe que não nos quer!
Depois, com um inesperado desprezo, apontou para Mem.
– No final do dia, tudo o que nos resta é um almocreve!
Este baixou os olhos, atingido na sua condição menor, o que levou
Chamoa a desaprovar aquela segunda desconsideração da princesa.
– Quem me dera ter um homem tão leal!
Zaida encolheu os ombros e insistiu no enxovalho.
– Este sonso? Não há criadita em Coimbra, nem dama casada, que
não o tenha já provado! E o mesmo se passa em Santarém!
De súbito, parecia mesmo irritada com as permanentes infidelidades
do almocreve e largou uma inconfidência vernácula:
– É natural que o queiram, o pau dele parece o de um burro!
Perante aquela espetacular denúncia, Chamoa desatou à gargalhada e
o seu riso contagiou os outros, mas depois ela repreendeu a amiga:
– E mesmo assim sois má com ele?
Zaida riu-se, mas nada acrescentou. Então, olhando para Mem e
sorrindo-lhe, Chamoa exclamou:
– Se este fosse meu, dizia-lhe sempre: anda cá burrinho, vem à dona!
Coimbra, junho de 1134

O reencontro com Gonçalo de Sousa comoveu o príncipe de Portugal,


que se desculpou por lhe ter falhado em Tui e por não ter previsto que
Celmes seria presa fácil de Afonso VII.
– O rei foi correto, o maior canalha foi o Trava – garantiu Gonçalo.
Apesar de não ter afastado o abraço do príncipe, notei nele uma
espécie de subtil recusa em perdoar o esquecimento a que fora votado.
Em parte, compreendi-o. Fora torturado, sofrera na pele as iniquidades
do Trava, além de ter visto centenas de portucalenses serem chacinados.
Mas havia mais do que isso. Estaria Gonçalo já desconfortável devido à
suspeita que pairava em certos espíritos de que tomara Chamoa na
masmorra?
De cada vez que a mencionavam, ele torcia-se todo. Para seu azar,
Afonso Henriques estava encantado com aquela prova irrefutável de
dedicação que era vir a Coimbra em busca do perdão.
– Chamoa jura que me ama? – balbuciou, incrédulo.
Acrescentei que, em Guimarães, até Elvira Gualter a incentivara a
vir.
– Falaram uma com a outra? – espantou-se o príncipe.
Parecia-lhe impensável tal encontro. Agradado, admitiu que Elvira
sempre o incentivara a juntar-se a Chamoa, mas três anos depois de a ter
escorraçado de Guimarães surpreendia-se por aquela mulher tão bela se
revelar também tão leal e fiel.
A meu lado, o visível embaraço de Gonçalo cresceu quando Afonso
Henriques lhe perguntou:
– Nas masmorras, Chamoa falou-vos de mim?
A custo, Gonçalo admitiu que a rapariga galega chorara na prisão,
com receio de finar-se sem ver os filhos. Haviam sido horas terríveis,
pois o Trava prometera matá-los, se Tui caísse.
– Jamais teríamos atacado, se o soubéssemos! – jurou o príncipe.
O ódio aos inimigos multiplicou-se nele quando Gonçalo contou que
um traidor templário, o Velho, estava a caminho de Sellium, para se
apoderar da relíquia e a levar ao Trava.
– Canalhas... – rosnou.
Mas, logo se distraiu e o seu coração regressou a Chamoa,
perguntando, emocionado, se nessa noite terrível ela jurara amá-lo, o
que levou um visivelmente atrapalhado Gonçalo a confessar:
– À sua maneira...
Afonso Henriques nem notou aquela insinuação tão ténue. Já
enfeitiçado pela recordação quente da minha cunhada, desatou a gabá-la.
Chamoa era bela, tinha uns lindos cabelos loiros, mil e uma sardas, um
peito volumoso... Reparei que Gonçalo se torcia ainda mais ao ouvir
tantos e tão entusiasmados elogios. De repente, excitado como uma
criança, Afonso Henriques perguntou-me:
– E se eu fosse ter com ela agora mesmo?
A possibilidade de se reconciliar com Chamoa, de a possuir outra vez,
dominava-o já fortemente, tornando impossível o adiamento de um
reencontro fogoso. Porém, nesse momento, Gonçalo abandonou a sua
postura contida e interveio.
– Temos é de ir a Sellium! Nem Sohba, nem o Velho, nem o Ramiro
se podem apoderar da relíquia!
Ao ouvir falar no bastardo de Paio Soares, Afonso Henriques
espantou-se. O que fazia ele a caminho de Sellium? Expliquei o que se
suspeitava e o príncipe comentou:
– Vai onde o seu pai foi com o meu...
No entanto, de novo agitado, dirigiu-se para a cavalariça, o que
provocou o imediato desagrado de Gonçalo, que lhe gritou:
– Príncipe, cuidado! Chamoa é perigosa, sei bem do que falo!
Alarmado, Afonso Henriques estacou e olhou-o nos olhos. No seu
coração nascera finalmente uma primeira suspeita.
– Tendes algo para me revelar? – perguntou, já tenso.
O embaraçado Gonçalo mordeu o lábio e depois recordou:
– Já vos enganou várias vezes! É mulher que dorme com vários!
Aquela antiga acusação a Chamoa perdera a sua potência, pois a
recente abstinência da minha cunhada era conhecida. Irritado, Afonso
Henriques interrogou o nosso amigo:
– Porque dizeis isso? Acaso a haveis possuído?
Gonçalo de Sousa abanou a cabeça.
– E tentou-vos? – inquiriu o príncipe.
Então, Gonçalo relembrou as amizades de Chamoa com Ramiro e
Mem Tougues. Ela tivera filhos de dois homens e chifrara todos,
incluindo o marido, como Afonso Henriques bem sabia. Sentindo que
aquelas recordações provocavam um sério abalo no regente do Condado
Portucalense, Gonçalo interrogou-se:
– Será possível amar uma mulher assim?
Tive a estranha sensação de que ele não dirigia a questão apenas a
Afonso Henriques, mas também a si próprio, como se estivesse a
convencer-se de que não devia enamorar-se de minha cunhada. Contudo,
este perturbador pensamento permaneceu fechado dentro de mim,
enquanto um visivelmente desagradado Afonso Henriques ordenou a
Gonçalo:
– Proíbo-vos de falar mal de Chamoa! Quem o fizer será castigado!
Perante esta clara ameaça, o nosso amigo espantou-se, incrédulo:
– Ides prender-me e torturar-me, como fez o Trava?
A invocação daquele duro calvário fez o príncipe cair em si mesmo,
mas, sendo orgulhoso, nada mais disse, afastando-se dali e indo acordar
os homens que nos acompanhariam. Como Gonçalo se deixou ficar a
meu lado, nervoso e inquieto, aproveitei para lhe dizer:
– Afastai-vos de Chamoa, ele é muito ciumento.
Porém, Gonçalo barafustou de pronto:
– Ela é que se devia ter afastado de mim!
Nesse momento, convenci-me de que ele possuíra a minha cunhada na
masmorra de Tui, passando a fronteira do admissível e traindo a sua
amizade a Afonso Henriques. A terrível frase dele ecoou nos meus
ouvidos toda a madrugada, como o piar agoirento de uma velha coruja,
enquanto cavalgávamos em direção ao nosso destino. Atravessámos o
Mondego numa barcaça e entrámos pelas portas de Coimbra liderados
por um eufórico Afonso Henriques, que logo correu ao castelo, entrando
de rompante em minha casa, onde julgávamos estar Chamoa. Só que,
como não a encontrámos no quarto, o príncipe pediu-me que fosse
acordar minha esposa, talvez ela soubesse da irmã. Ao ver-me, Maria
gemeu, estremunhada. Sabendo que Chamoa não regressara da visita a
Zaida, lamentou-se:
– Meu Deus, estragou tudo...
Temi o pior e regressei à rua. Os três corremos então a casa das
princesas mouras, onde entrámos sem qualquer aviso prévio.
Uma lamparina iluminava a sala vazia e Afonso Henriques levou o
dedo à boca, ordenando silêncio. Pegou na vela e avançou até à única
porta fechada. Sem hesitar, abriu-a e apontou a luz para dentro do
quarto. De coração apertado, espreitei e espantei-me com o que vi.
Chamoa e Zaida estavam deitadas a dormir num colchão, ambas nuas,
embora parcialmente tapadas por um enorme lençol. A minha cunhada
encontrava-se do lado direito da cama, Zaida do esquerdo, e no meio
delas, de peito descoberto, dormia o almocreve Mem!
Quando os vi tão juntos, não tive qualquer dúvida do que se passara,
tal como não a tiveram Afonso Henriques e Gonçalo. Contudo, eu tinha
a vantagem de não ter afeto por nenhuma delas e dei por mim a apreciar
a cena, reconhecendo que era um prazer raro ver duas mulheres tão
bonitas e tão gostosas, mas ao mesmo tempo tão diferentes uma da
outra, deitadas na mesma cama.
Este pensamento agradável durou um curto instante, pois logo a voz
forte de Afonso Henriques se fez ouvir, obrigando aquele trio a acordar,
atordoado com a nossa brusca aparição. Por momentos, nenhum deles
parecia saber onde estava e só aos poucos a lucidez foi reentrando nos
seus espíritos, certamente ainda toldados pelo vinho.
A maior visada da fúria de Afonso Henriques foi Chamoa. Ainda a
rapariga tentava compor a túnica e já ele a acusava:
– Traidora, mil vezes traidora! Vindes a Coimbra para me ver ou para
vos meterdes na cama com estes dois?
Ao contrário de minha cunhada, Zaida estava totalmente nua e por
isso puxou o lençol para cima, escondendo os seus redondos seios e as
suas fofas coxas. Quanto ao almocreve, foi o único que manteve algo
parecido com calma, ou sangue-frio.
– Não é o que pensais! – justificou-se Mem.
Ainda mais louco do que o príncipe, Gonçalo apontou-lhe a espada.
– Vou cortar-vos a piça, mouro de merda! Andais sempre a foder as
mulheres dos outros!
Mem encostou-se à parede, receoso, mas Zaida deu um forte berro:
– Nenhuma de nós é vossa esposa!
Esta afirmação, de tão verdadeira que era, devolveu uma imediata
lucidez a Afonso Henriques, que se amansou. Porém, cego de fúria,
Gonçalo decerto teria ali mesmo morto o almocreve, se o príncipe, mais
alto e forte, não lhe tivesse agarrado no braço e dito:
– Zaida tem razão!
O direito de matar uma mulher adúltera, bem como o seu amante ou
amigo, era dado ao marido, mas a mais ninguém. Contudo, aquela frase
não pacificou Gonçalo, que berrava impropérios contra o almocreve.
Perante tanto descontrolo, foi necessário que eu e Afonso Henriques o
agarrássemos, obrigando-o a sair daquela casa. Arrastámo-lo de volta
para o castelo, irado e colérico, enquanto o ouvíamos rosnar, vezes sem
conta:
– Vergonhosas! Mil vezes infames!
Era evidente que Gonçalo não estava apenas furioso por ter visto
Zaida com Mem. A presença de Chamoa também o perturbara
fortemente. Por isso, ao chegarmos à porta da torre de menagem, Afonso
Henriques confrontou-o.
– Contai-me a verdade, o que se passou em Tui?
De dentes cerrados, Gonçalo nada admitiu.

Nessa noite, Chamoa chegou a casa lavada em lágrimas e em grande


sofrimento, reconhecendo ser uma tola em quem Afonso Henriques
nunca mais iria acreditar.
– Elvira bem vos avisou para terdes cuidado com os homens!
Mais duras do que as palavras de minha esposa Maria Gomes, foram,
no entanto, as deceções de seu filho, Pêro Pais. Chamoa sentiu o coração
a partir-se quando o abraçou, pedindo-lhe perdão.
– Bebi vinho, menti-vos, estraguei o que vós fizestes com bravura.
Uma única lágrima desceu pela face direita do rapazinho, mas Pêro
Pais limpou-a, orgulhoso. Arriscara a vida por Chamoa, fugindo de Tui
sozinho; gabara os méritos dela a Afonso Henriques; enfrentara a avó
Elvira para libertar o avô, a mãe e Gonçalo. E agora, de uma só vez,
Chamoa destruira tudo o que ele conseguira.
– O maldito vinho muda-vos, minha mãe – disse o menino.
Também ele acreditava no que lhe haviam contado, que Chamoa fora
apanhada na cama com Mem e Zaida, enfurecendo o príncipe. Porém,
nada era tão óbvio como parecia.
Coimbra, junho de 1134

A meio da manhã seguinte, encontrei Afonso Henriques abalado.


Carregado de pessimismo, classificou as suas desventuras militares e
amorosas como os frutos de uma maldição lançada pela mãe, Dona
Teresa, que ele colocara a ferros em Guimarães.
– A sorte sorri aos meus inimigos. Afonso VII vai coroar-se
imperador, a Galiza nunca será nossa e Chamoa dorme com outros!
Recordei-lhe que devíamos ir rapidamente a Sellium, a relíquia não
podia ser descoberta por galegos ou muçulmanos, mas ele parecia
perdido em pensamentos sombrios e murmurou:
– O Gonçalo... Nunca pensei que me traísse!
Lembrei-lhe que o diabólico Trava juntara a minha cunhada e o nosso
amigo na masmorra com óbvias intenções: criar motivos de azedume
entre o príncipe e Chamoa! As minhas lógicas não o convenceram e,
quando o meu melhor amigo estava a comunicar-me que iria reenviar
minha cunhada para Tui, fomos surpreendidos pela entrada na sala do
castelo do cónego João Peculiar.
– Há notícias vindas de Roma! Vinde à Sé comigo! – exigiu ele.
Relutantes, lá o acompanhámos. Na igreja, estava já reunido um
pequeno conselho, que, além do bispo Bernardo, incluía também meu tio
Ermígio Moniz e Gonçalo de Sousa, em cujas olheiras escuras se notava
a falta de sono. O príncipe sentou-se sem saudar o seu amigo, enquanto
João Peculiar nos informava de que o cisma da Igreja de Roma se
agudizara. O Antipapa tinha cada vez mais apoiantes, seduzidos pela
promessa de que Anacleto iria apresentar um tesouro dos tempos de
Cristo, afastando o legítimo Papa Inocêncio II do trono de São Pedro.
– Bernardo de Claraval, abade de Cluny e Cister, patrono da Ordem
do Templo de Salomão e um fervoroso apoiante do Papa Inocêncio II,
avisou-nos de que Afonso VII prometeu ao Antipapa Anacleto a relíquia
sagrada, que diz estar em Coimbra! – contou João Peculiar.
Aquelas palavras espantaram-nos. Como poderia Afonso VII garantir
o tesouro ao Antipapa? O Velho já se apoderara dele sem o sabermos,
entregando-o a alguém em Coimbra? Perante esta vaga denúncia, o
bispo Bernardo foi o primeiro a indignar-se:
– Era o que eu temia! Bem vos avisei!
Ele sempre defendera que a construção do Mosteiro de Santa Cruz
provocaria ódios em Toledo e ali estava a prova: Afonso VII ia oferecer
a relíquia a Anacleto! Mais grave ainda, o rei leonês tinha um apoiante
secreto em Coimbra!
– Quem nos traiu? – perguntou o titular da Sé.
Mencionei Ramiro, o bastardo de Paio Soares, que abandonara a
Ordem do Templo. Fora colega do Velho, podiam ser cúmplices. Porém,
o bispo Bernardo duvidou da possibilidade:
– É um pobre de espírito. Deve ter regressado à Maia, onde nasceu...
Quem poderia ser o reles sabujo que prometera a relíquia a Afonso
VII, que já dominava Navarra, só lhe restando tomar o reino de Aragão
para se coroar imperador dos Cinco Reinos?
– Seja quem for, só indo a Sellium impediremos tal desastre! –
afirmei.
Tomada a decisão, já nos levantávamos quando entrou pela porta
lateral da Sé, vinda da biblioteca, a mais nova das princesas mouras.
– Zaida, agora não é o momento! – exclamou o bispo Bernardo,
estranhamente agitado.
A rapariga ignorou-o e só parou junto do príncipe, revelando-lhe que
desejava falar sobre o que se passara na véspera.
Filha, obrigai-o a ouvir-vos!
De cara fechada, Afonso Henriques ordenou que ela falasse em frente
dos presentes, pois já todos sabiam o que havia acontecido, escusavam
de fingir o contrário. Então, Zaida garantiu que, apesar do que tínhamos
visto, nada de impróprio acontecera.
A princesa acrescentou que Chamoa, Mem e ela tinham apenas
bebido vinho, conversado e adormecido, mas Ermígio Moniz, o bispo
Bernardo e João Peculiar sorriram, sem acreditar naquela narrativa de
abstinência carnal, enquanto um irritado Gonçalo declarava:
– O safado do almocreve tem cá um descaramento! Todos sabem
como era convosco e com Zulmira!
Zaida olhou-o, magoada, pois não esperava aquele ataque.
Filha, os cristãos são sempre ciumentos...
O bispo Bernardo, talvez com uma ponta de inveja, comentou:
– O Mem já provou muitas em Coimbra, até casadas!
Olhámos para ele, espantados, o que o levou a encolher os ombros,
murmurando que as mulheres dos ricos-homens se confessavam...
Concentrada no seu propósito, Zaida não se atemorizou com aquela
descrença generalizada e afirmou com redobrada convicção:
– Príncipe, nem sempre o que parece é!
Enervado com o tom de voz dela, Afonso Henriques contrapôs:
– Dormir na mesma cama que vós e Mem é impróprio!
Com uma admirável calma, Zaida ripostou que, sendo certo que
Chamoa cometera um erro, ele não a devia condenar por tão pouco, o
que levou João Peculiar, sempre arguto, a perguntar:
– O que significa «tão pouco»?
Houve mais sorrisos masculinos, a reputação da minha cunhada não
era propriamente pura. Contudo, Zaida respondeu sem hesitar que
conversar e dormir não eram pecados. Perante aquela teimosa
insistência, recordei à princesa que os havíamos visto aos três, nus e a
dormir na mesma cama.
Apesar de concordar com as minhas palavras, Zaida interrogou-me:
– Lourenço Viegas, haveis visto Mem a possuir Chamoa?
Inteligente, ela agarrava-se à única possibilidade que tinha de nos
gerar dúvidas. Apanhar três adormecidos numa cama não era prova de
pecados da carne. Se o que ela alegava fosse verdade, as nossas
conclusões haviam sido precipitadas.
– Princesa Zaida – disse Afonso Henriques, depois de um curto
silêncio –, Chamoa veio a Coimbra reconciliar-se comigo. Porém, logo
na primeira noite, deita-se na cama convosco e com um almocreve!
Como posso confiar numa mulher assim? – com um suspiro cansado, o
príncipe acrescentou: – Sabeis bem que já me enganou no passado...
Mal ouviu esta frase, Zaida interrompeu-o, mais uma vez indignada:
– Haveis morto o marido dela!
Aquela afirmação teve o condão de gelar a sala. Uma coisa era abonar
Chamoa, outra atacar Afonso Henriques!
Filha, estais a perder-vos!
Percebendo que metera o pé na argola, Zaida emendou a mão,
alegando que Chamoa era uma despassarada! Mas não se deviam
esquecer de que o tio a enfiara numa masmorra só porque ela queria
ajudar os portucalenses! E que arriscara a vida do filho por amor ao
príncipe. Mais confiante, Zaida perguntou:
– Ides desprezá-la outra vez, só porque adormeceu na minha cama?
Afonso Henriques prometeu levar em consideração o que ouvira. De
seguida, dispensou a princesa, pois tinha de tomar decisões que não lhe
diziam respeito. Porém, Zaida não se moveu e anunciou:
– Tenho mais para vos dizer.
Surpreendidos, escutámos a princesa de Córdova relembrar que ela e
a irmã Fátima estavam prisioneiras em Coimbra há dezoito anos, sendo
injusto que ali permanecessem mais tempo. Aquela não era a terra delas,
não eram aqueles os seus costumes, mas foram obrigadas a ficar mesmo
depois da morte da mãe.
– Que sentido tem a nossa prisão?
Nos últimos cinco anos, não haviam causado desacatos. Mesmo
assim, não as deixavam partir para a sua Córdova. As duas tinham
crescido no Azzahrat, um palácio fabuloso, onde, numa piscina de
mercúrio, se podia ver espelhado o sol e havia poetas a declamarem
versos pelas salas, enquanto se serviam mil iguarias! Queriam regressar
ao belo Castelo de Hisn Abi Cherif, na serra Morena, onde num
mausoléu estavam depositados os corpos de Zulmira, de Hixam de Hisn,
do padrasto Taxfin e do avô de ambas, Hixam III, o último califa de
Córdova!
Filha, tenho tantas saudades que me dói o coração.
Depois de uma breve pausa para ganhar fôlego, Zaida prosseguiu:
– Fátima e eu queremos voltar à nossa terra!
Comovida e de lágrimas nos olhos, a bela e morena Zaida,
esplendorosa no seu alifafe laranja e debaixo de um vestido transparente,
que deixava adivinhar os generosos contornos do seu voluptuoso corpo,
aproximou-se de Afonso Henriques e perguntou:
– Quando ides a Guimarães, não sentis uma alegria infantil e o
coração aconchegado por regressar a casa? – o príncipe anuiu e Zaida
concluiu: – É isso que me faz falta. Correr descalça num jardim de
margaridas, no meu castelo! Passear pelos magníficos claustros do
Azzahrat! Ouvir um imã rezar na grandiosa mesquita de Córdova! – com
um soluço, mordendo o lábio, acrescentou: – E depositar uma flor, todos
os dias, no túmulo de minha mãe.
Uma lágrima desceu-lhe pela face e Zaida deixou-a correr, enquanto
um silêncio sepulcral caía na Sé. Era impossível não admirar aquela bela
mulher, cuja inteligência sensível nos tocava o coração e que nos pedia
que as deixassemos ir para Córdova.
– Porque desejais tanto partir? Porque não vos casais comigo?
Gonçalo continuava irritado com a inexorável vontade de Zaida e foi
aí que aquela lindíssima rapariga nos espantou também com a sua
sabedoria política e militar, até àquele dia escondida.
Zaida explicou-nos que se dizia que Temin, irmão do califa Ali Yusuf
e comandante das suas tropas, iria abandonar em breve a península para
guerrear os almóadas em África. Ora, a partida das forças militares do
califa possibilitaria a revolta geral da Andaluzia. O príncipe Ismar ia
sublevar as taifas de Córdova, Badajoz, Sevilha e Mértola, criando um
novo reino muçulmano, independente de Marraquexe. Se Afonso
Henriques as libertasse, Zaida poderia garantir que Ismar e Abu
Zhakaria não lhe fariam guerra.
– Paz a sul de Coimbra, em troca da nossa libertação! – exclamou.
Afonso Henriques parecia fascinado e Zaida aproximou-se um pouco
mais, sorriu-lhe e murmurou:
– Podíamos unir os nossos reinos...
Aquelas palavras doces roçavam uma proposta íntima e Gonçalo
praguejou, furioso. A seu lado e mais preocupado com os cismas que
assolavam a Cristandade e Roma, o bispo Bernardo perguntou:
– E a relíquia?
Zaida prometeu que Abu Zhakaria e Sohba a entregariam aos cristãos.
Ramiro e o Velho nada podiam contra uma companhia de sarracenos. O
fundamental era mouros e portucalenses construírem e manterem a paz,
pois o combate de ambos era contra o futuro imperador dos Cinco
Reinos.
– Afonso VII é o nosso, e o vosso, maior inimigo! – proclamou
Zaida.
No seu banco, o culto e letrado João Peculiar aprovou aquelas sábias
palavras. Porém, e para espanto geral, meu tio Ermígio discordou da
fantasia que era uma paz duradoura entre mouros e cristãos. Ao
contrário do que Zaida previa, os árabes andaluzes iam ficar mais fracos
depois da partida dos berberes, facilitando a reconquista cristã. Os
portucalenses não deviam combater Afonso VII, mas sim aliar-se a ele,
lutando ambos contra os mouros!
Esta opinião de Ermígio Moniz, o primeiro a propor a troca da
relíquia pelas princesas e a contestar a ferocidade dos fossados da
Ladeia, provocou incredulidade no príncipe, que exigiu explicações.
– Não mudei de ideias – garantiu o mordomo do Condado.
Além de lhe repugnar, a crueldade do fossado da Ladeia era
impeditiva da pacificação futura dos territórios conquistados no Sul. E
trocar a relíquia pelas princesas, deixando-as partir para Córdova, era a
forma mais eficaz de afastar das lutas o perigoso Abu Zhakaria.
– Como vedes, sou coerente. O combate aos mouros é a nossa
prioridade, mas devemos fazê-lo de forma inteligente.
Depois, olhando para Zaida com um certo desagrado, acrescentou:
– Uma união vossa com Afonso Henriques não faz sentido.
Sentindo que a infelicidade com a morte da mãe de Raimunda o
impedia de acreditar em sonhos distantes, Zaida perguntou-lhe:
– Sabeis quem está com Sohba?
Nesse momento, o meu pobre tio empalideceu, enquanto a princesa
nos informava de que a soldadeira que acompanhava a bruxa era a
minha prima Raimunda, filha bastarda de Ermígio Moniz.
Filha, cuidado!
Esta revelação provocou um alvoroço geral. Ninguém queria acreditar
naquela impensável ressurreição! Emocionado com a perspetiva de rever
minha prima, pois ainda me culpava por a ter deixado sozinha na noite
em que ela se tentara matar, exclamei que ali estava a razão decisiva
para corrermos a Sellium!
O príncipe concordou e ordenou uma pronta partida, mas reparei que
Zaida observava meu tio Ermígio Moniz, que arfava muito.
– Mordomo, quem era a mãe de Raimunda? – perguntou ela, curiosa.
De súbito, vi meu tio soltar um esgar e começar a babar espuma,
tombando para o lado. Aflita, Zaida correu para ele, obrigando-o a
deitar-se e aplicando-lhe massagens no peito.
Filha, que demónio haveis soltado?
Chamado um curandeiro, este declarou que meu tio sofria de um
grave mal do coração e foi consternados que vimos um grupo de
soldados recolhê-lo numa padiola. No entanto, a agitação voltou a tomar
conta de nós e Afonso Henriques mandou chamar Mem para nos
acompanhar a Sellium, pois só ele conhecia Sohba.
Finalmente, íamos procurar a relíquia, e abandonei a Sé sem sequer
me despedir de Zaida, que ficou à porta, a olhar para nós...
Santarém, junho de 1134

Na véspera de partirem para Sellium, Abu Zhakaria recebeu uma


mensagem desanimadora de Ismar. O príncipe Temin recebera ordens
do califa seu irmão, Ali Yusuf, para permanecer na Andaluzia, pois nos
desertos africanos o rei de Marraquexe obtivera uma inesperada vitória
contra os almóadas e não necessitava de reforços.
O prudente Ismar ordenava a Abu Zhakaria que não desgastasse as
suas forças contra os cristãos. A revolta geral da Andaluzia ficava adiada
por um ano ou dois e, enquanto esperavam esse glorioso momento,
teriam de não cometer erros e poupar os exércitos.
O cordovês sentiu-se apertado num dilema e aliviou a pressão do
cordão que, à cintura, lhe fixava a túnica. A construção do Castelo de
Leiria, cujo fim estava próximo, inflamara os ânimos em Santarém. Os
influentes locais, que nunca haviam aprovado a súbita nomeação de
Zhakaria como wali, exigiam agora dele uma atitude mais feroz. E o
cordovês, mais hábil como guerreiro do que como político, estava
também desejoso de retaliar contra os fossados de Peres Cativo, mas
devia o seu cargo à inteligência subversiva de Ismar.
Foi ele quem me convenceu a trair o califa...
Não podia desrespeitar o seu mentor, mas a situação era volátil, como
explicou a Sohba e a Raimunda, avisando-as de que a ida a Sellium teria
de ser uma operação secreta e levariam poucos soldados, para não
inflamarem aquela fogueira perigosa.
A velha mulher limitou-se a sorrir.
– Não temais, só eu sei onde está a relíquia.
Zhakaria recordou-lhe que as informações vindas de Coimbra
referiam a existência de um templário de Soure, um solitário, que
procurava o tesouro para o entregar a Fernão Peres de Trava.
Ao ouvi-lo, a raivosa Raimunda afirmou:
– Desde que não seja o Afonso Henriques a encontrá-la!
O seu ódio ao príncipe de Portugal não parara de crescer de
intensidade e ela desejava a destruição física do seu primeiro amor, tal
era o asco que lhe tinha. O resgate das princesas dizia-lhe pouco e
considerava mais inteligente planear uma fuga delas de Coimbra.
– Ficávamos com as princesas e entregávamos a relíquia ao Trava,
lixando o aleijadinho – sugeriu a minha prima.
Sohba descobriu nela uma capacidade para engendrar esquemas que a
princípio a espantou, mas depois lembrou-se de que Raimunda era
bastarda de Ermígio Moniz, passara a infância a ouvir falar de guerras e
traições, golpes e tratados. Todos esses ensinamentos pareciam agora
convergir nela, ao serviço de apenas um propósito: destruir o príncipe
portucalense.
– Ismar não quer precipitações! – recordou Zhakaria, temendo que o
descontrolo vingativo se apoderasse da rapariga.
Esta doida ainda estraga tudo...
Sempre excessiva, Raimunda mordeu o lábio até ele sangrar,
enquanto saía da sala, dizendo que ia preparar a carroça delas.
Espantado, Zhakaria perguntou a Sohba como se podia explicar tanto
asco a um homem só, o que levou a velha de negro a revelar-lhe que
Raimunda fora o primeiro amor de Ibn Henrik, nome pelo qual os
muçulmanos conheciam Afonso Henriques, mas este causara-lhe um
profundo desgosto ao trocá-la por outras.
Com um suspiro desiludido, Sohba murmurou:
– A admiração transformou-se em ira.
De seguida, apontando para o sol que se via lá fora, a velha de negro
lavrou uma profecia:
– Ibn Henrik será rei, está escrito nas estrelas.
Abu Zhakaria sentiu um arrepio na espinha, não gostava de saber que
aquele inimigo se tornaria assim tão forte.
Rei de que reino?
Enervado, comentou:
– Nesse caso, Raimunda não terá sorte nenhuma.
A velha de negro olhou-o demoradamente e confessou:
– Sobre ela vejo tudo escuro.
Parecia amargurada com aquela inesperada falha, mas o cordovês
temia os seus poderes mágicos, por isso estremeceu quando Sohba se
sentou num grande almofadão e lhe perguntou:
– E vós, ainda amais Fátima?
Abu Zhakaria corou e a mulher sorriu-lhe, agradada.
– Se a libertarmos, casarás com ela?
O governador de Santarém recordou-lhe a antiga promessa que fizera
a Taxfin, seu mentor e padrasto das princesas: resgataria as duas de
Coimbra, levando-as de volta para Hisn Abi Cherif, o castelo da família
na serra Morena, onde se casaria com Fátima.
Demore o tempo que demorar...
Sem grande convicção, Sohba murmurou:
– Espero que seja possível.
Com um franzir de testa preocupado, Abu Zhakaria interrogou-a:
– Não está escrito nas estrelas?
A mulher de negro incomodou-se com o ceticismo dele e relembrou
que tudo o que previra se concretizara. Depois, acrescentou que, se
Fátima o amasse tanto quanto ele a amava, formariam um belo casal.
Ultrapassado um curto e comprometido momento de silêncio, Sohba
lançou nova pergunta:
– Será Ismar um bom esposo para Zaida?
Abu Zhakaria gostara do governador de Córdova, que descreveu
como inteligente, culto, fino e sagaz, além de solteiro.
– Não sei se chega para ela... – murmurou Sohba.
A mais nova das filhas de Zulmira era demasiado dada a homens e
mulheres. Saía à avó, Zaida de Sevilha, que desposara Afonso VI e se
convertera a Cristo, dando um filho ao antigo imperador.
– Isso é impensável! – protestou Zhakaria.
Para grande surpresa dele, a mulher de negro afirmou que, em
Coimbra, Zaida lia muito a Bíblia e admirava secretamente Afonso
Henriques. A princesa talvez aspirasse a um destino semelhante ao de
sua avó, o que não seria nenhuma originalidade, pois, ao longo dos
últimos séculos, várias princesas mouras tinham desposado príncipes e
reis cristãos.
– Também está escrito nas estrelas? – irritou-se Abu Zhakaria.
Desconsolada, Sohba baixou os olhos e apenas murmurou:
– Não consigo ver o futuro da minha família...
O ansioso cordovês recordou que Ismar desejava casar com Zaida,
mas Sohba afirmou:
– Talvez exista outra possibilidade.
Contou ao wali de Santarém uma história antiga, um segredo sobre
Raimunda que o deixou perplexo e preocupado.
Por isso, mantém a doida ao pé dela...
No entanto, num estremeção de autoridade e confiança, Zhakaria
declarou que, desde que casasse com Fátima em Hisn, pouco lhe
importava o resto. Não desejava mais do que já era, o posto de
governador de Santarém chegava-lhe!
Sohba sorriu perante tanta falta de ambição, mas avisou-o:
– Tendes de ser mais hábil, Abu.
O que lhe acabara de contar poderia tornar-se um trunfo útil, com o
qual o cordovês solidificaria a sua estreita ligação a Ismar, uma aliança
política e militar absolutamente essencial mal se desmoronasse o
desgraçado e odioso califado de Marraquexe.
– Estais crente de que Ali Yusuf vai cair? – perguntou Zhakaria.
Sohba garantiu que os almóadas eram muito fortes. Mesmo tendo sido
derrotados desta vez, iriam vencer em breve, o que era bom para os
árabes andaluzes. A nova seita de berberes controlaria o Norte de África
e destronaria o califa Ali Yusuf, mas pouco se interessaria pelo futuro da
Andaluzia, permitindo a união das taifas mouras.
– Mal o califa tombe do trono, Ismar reinará em Córdova. Não hoje,
mas num amanhã que está cada vez mais próximo. E, nesse dia, terá
uma esposa da família Benu Ummeya! – previu Sohba, que observou o
cordovês e perguntou: – Posso contar convosco?
Abu Zhakaria jurou que só revelaria o segredo a Raimunda e a Ismar
se Sohba falecesse e esta devolveu-lhe um sorriso triste e cansado,
depois do qual lavrou uma previsão sombria:
– Tive uma grande alegria, mas vou morrer em breve.
Inquieto, e tentando ser simpático, o cordovês afastou tais receios.
– Sohba, vou estar por perto, protejo-vos!
Porém, a velha de negro declarou com solenidade:
– O meu fim aproxima-se. Sobre mim, consigo ler nas estrelas.
Aliviada por ter partilhado a certeza da sua própria morte, Sohba
levantou-se lentamente do almofadão, com a ajuda do cordovês, a quem
disse que tinham de partir para Sellium, a fim de poder cumprir a sua
derradeira missão, com a qual a filha do último califa de Córdova
fecharia os seus quase cem anos de atribulada vida.

O pequeno grupo saiu essa noite de Santarém. Ao olhar para a carroça


onde iam as duas mulheres, Abu Zhakaria impressionou-se com o olhar
de Raimunda. Aquela criatura magra estava dominada por uma perigosa
paixão e a sua violenta ira contra Ibn Henrik metia medo, mesmo a um
combatente experiente como o cordovês.
É doida e perigosa...
Futuro diferente teria aquela mulher de negro, que cada vez parecia
mais mirrada e doente. Abu Zhakaria teve o estranho pressentimento de
que a profecia de Sohba estava correta.
Ela não volta a Santarém...
Sellium, junho de 1134

Cauteloso, Ramiro decidiu que só quando a noite caísse é que avançaria


para as ruínas romanas. Durante o dia, rondara a zona à distância e
parecera-lhe ver movimento entre as pedras e os escombros. Talvez
fossem animais, mas, como havia uma aldeia moçárabe por perto,
afastou-se um pouco e esperou.
Ao final da tarde, descobriu ali perto um eremitério vazio e velho. Era
um pequeno espaço, frio e sujo, onde se viam excrementos secos e as
plantas já cresciam pelos cantos, bem enraizadas nas lajes.
Sentou-se num banco de pedra. No chão, havia uma esteira antiga,
roída nos cantos, coberta de terra e pó, que tapava uma pedra tumular,
onde alguém devia estar enterrado. Era costume os monges sepultarem
os companheiros no solo, não se espantaria se debaixo do chão existisse
um cadáver, mas não via vantagem em levantar a laje.
Pai, seja quem for, está em paz.
Também a sua tormenta interior amainara, desde que deixara Soure.
Em Coimbra, depois de se ter confessado ao bispo Bernardo, percebera
que nada mais havia a fazer, a não ser abandonar em definitivo a Ordem
do Templo de Salomão. Tinha de procurar a calma sozinho, fugindo às
tentações. A penitência seria dura, mas mais valia isso do que a
vergonha de uma expulsão pública da Ordem.
Pai, a culpa é vossa.
Regressado a Soure, informara o mestre Jean Raymond, tendo
também admitido os seus vícios a Martinho Árias, o pároco da
povoação, que admirara a sua honestidade, dizendo que poucos eram
capazes de reconhecer tais fraquezas.
– Para enfrentar melhor o Demónio, temos de aceitar que ele está
dentro de nós! – proclamara o prior. Depois, perguntara: – E para onde
ides?
O bastardo de Paio Soares disse que nascera na Maia, terra de seu pai,
mas talvez fosse mais para norte, para as margens do Douro, tornar-se
eremita. Para obrigar-se à castidade, teria de viver longe dos outros,
dedicando o seu tempo a rezar.
– Ou isso, ou a Terra Santa – afirmara Ramiro.
Martinho de Soure aprovara a primeira solução, mas repudiara a
segunda, pois nas peregrinações existiam muitos homens a caminho de
Jerusalém, as tentações dele seriam muitas.
– E o vosso companheiro, aquele a que chamais Rato?
Ramiro alegou que não podia falar pelo colega e, nessa mesma tarde,
informara o Rato e o Peida Gorda da sua partida. Este último, sempre
tímido e calado, limitara-se a abraçá-lo sem fazer perguntas, mas o Rato
não conseguira manter o tino e chamara Ramiro à parte, exigindo
explicações. Como só o silêncio lhe respondia, perguntara:
– Já não me amais?
Ramiro explicara-lhe que aquela amizade era insustentável.
Alarmado, o Rato interrogara-o:
– Quem vos convenceu, o bispo Bernardo?
O bastardo de Paio Soares reconhecera que o bispo o ajudara.
– Sabeis bem o que se diz de mim em Coimbra...
O Rato mantivera-se perplexo.
– E nós?
Ramiro dissera que nunca mais se iriam ver.
– Quanto a vós, fazei o que achardes melhor, mas cuidado, o padre
Martinho não vai aceitar mais desatinos com outros templários.
O Rato continuara aturdido, não porque temesse o pároco de Soure,
mas porque perder a presença de Ramiro lhe era extremamente doloroso.
De repente, já de lágrimas nos olhos, afirmara:
– Partirei convosco, não sei viver sem vós!
Ramiro olhara-o de uma forma fria e seca.
– Estais com o Demónio no corpo, tendes de vos ver livre dele!
O Rato gemera de sofrimento e murmurara:
– Depois de tudo o que vos fiz chamais-me Belzebu?
O outro mantivera o ar sério, a postura firme, o olhar gelado.
– Sim, sois Satanás, não vos quero perto de mim.
Uma lágrima descera pela cara do Rato e o rejeitado templário correra
para a sua casota, onde chorara o momento, enquanto Ramiro
abandonava Soure sem olhar para trás, a pé e sozinho.
Pai, a culpa é vossa, odeio-vos.
Na estrada que ligava Santarém a Coimbra, vendo que ninguém por
ali passava, não rumou a norte, embrenhando-se antes pela floresta, que
conhecia bem, pois sempre fora o mais hábil caçador da Ordem do
Templo. Custara-lhe deixar Soure, vivera ali oito anos, mas não havia
outra forma de exorcizar o seu mal. Tinha de se afastar, prometera isso
ao bispo Bernardo, mas não iria para o Norte.
O seu pai, Paio Soares, viera com o conde Henrique esconder a
relíquia sagrada e Ramiro tinha a certeza de que encontrá-la era o seu
destino. O que lhe faria depois era algo a ver.
Podiam humilhá-lo, gozá-lo e condená-lo, mas iria surpreendê-los a
todos. Era muito hábil com o arco e as flechas, sabia viver na floresta e
conhecia a região como poucos. Durante uma semana, foi-se
aproximando de Sellium com vagar, fugindo das aldeias para não o
verem, escondendo-se nas cavernas para pernoitar, caçando de
madrugada, lavando-se à noite nos riachos, para nunca o ouvirem.
E agora encontrava-se ali, perto das ruínas romanas, no abandonado
eremitério, à espera do seu momento. Iria ao local onde estava escondida
a relíquia sem qualquer temor da velha bruxa. Uma flecha no peito e lá
se ia Sohba, com bolas de fogo ou sem elas.
Pai, vou ter de matar, a culpa é vossa.
Quando a noite chegou, saiu do eremitério com o arco na mão.
Avançou devagar até às ruínas e viu pedaços antigos de casas, vestígios
de uma arquitetura diferente, escombros esculpidos pelas chuvas e pelos
ventos e pelo demorado passar dos séculos. Degradados, caídos,
esburacados, sem cantos, esbatidos, num abandono próprio de uma
civilização há muito terminada.
Pai, foi aqui que haveis vindo com o conde...
Sob o luar, orientou-se, sabia onde ia. Quando se aproximou, o seu
coração bateu mais depressa e o seu espírito encheu-se de pensamentos
rápidos. Iria esfregar-lhes na cara o tesouro do tempo de Cristo!
Finalmente, iriam admirá-lo e calar-se. Podia ter vícios, mas seria
lembrado para sempre, aquele feito histórico iluminaria a sua vida,
expulsando os demónios de si e da boca dos outros!
Estava tão inebriado destes sentimentos que não teve tempo para
reagir quando um vulto surgiu, rápido, nas suas costas, e lhe encostou
um punhal ao pescoço.
– Quieto, ou mato-vos...
Aquela voz era inconfundível, habituara-se a ela durante muitos anos.
O Velho também estava em Sellium! Ramiro castigou-se a si próprio,
não o ouvira, não se prevenira contra aquela investida.
Pai, sou um estúpido, a culpa é vossa!
Ainda por cima, naquela situação era-lhe impossível usar o arco e as
flechas, a vantagem do Velho era total. Mas, se o quisesse matar, o outro
já o teria feito. Se esperava, era porque precisava dele.
– Ides levar-me até ao tesouro, bastardo – rosnou o espião.
Ramiro concluiu que ele não conhecia o esconderijo da relíquia,
enquanto o Velho lhe retirava a aljava e o arco, que atirou para o chão,
dizendo:
– Agora podemos falar.
Manteve o punhal apontado à barriga de Ramiro, que lhe perguntou,
com um leve sorriso:
– Não sabeis onde está, pois não?
O Velho nada disse e Ramiro percebeu que o Trava sabia que a
relíquia estava em Sellium, mas ignorava aonde.
Pai, só eu sei, a culpa é vossa.
Com um sorriso desdenhoso, Ramiro afirmou:
– Meu pai revelou-me o esconderijo, antes de morrer.
O outro mirou-o, desconfiado. Paio Soares morrera cinco anos antes,
porque demorara Ramiro tanto tempo a vir até ali?
– Para quem trabalhais? – perguntou o Velho.
Ramiro disse-lhe que abandonara a Ordem do Templo, devido aos
pecados que cometia com o Rato. Decidira encontrar o tesouro para se
reabilitar. Depois, acusou o outro de ser um enviado de Fernão Peres,
que desejava oferecer a relíquia a Afonso VII. O Velho riu-se e
contrapôs que já viera de Tui sem ninguém dar por isso, não lhe seria
difícil fazer o percurso inverso. Depois, ameaçou:
– Dizei-me onde está a relíquia ou mato-vos!
Ramiro manteve-se calmo e disse:
– Sem mim, ides demorar semanas a vasculhar as ruínas. A bruxa e o
Afonso Henriques chegam cá entretanto.
O Velho cuspiu para o chão e propôs um acordo. Iam buscar o tesouro
e fugiam juntos para o Norte. O Trava pagaria um bom preço pela
relíquia da Terra Santa, ofereceria gado e propriedades que eles podiam
dividir. Ramiro deixou-se ficar em silêncio uns momentos e depois deu
o seu aval à ideia. Iriam juntos.
Pai, vou matá-lo também...
Porém, quando pediu a devolução das suas armas, o Velho colocou a
aljava dele ao ombro e pegou no arco, dizendo:
– És muito certeiro com as flechas.
Ramiro suspirou, mas logo depois apontou para um local.
– Está ali.
Nesse momento, quando os dois olhavam para a zona indicada,
ouviram um ruído e viram ao fundo, nos limites da povoação arruinada,
um archote que iluminava não só a noite, mas também duas mulheres.
– Sohba... – murmurou Ramiro.
A cara do Velho contraiu-se em fúria. Odiava aquela mulher, que
quase o cegara no passado. Se pudesse, não iria deixá-la viva.
Ramiro, ao vê-lo assim, perguntou:
– Que tendes contra a bruxa?
O Velho nada disse, enquanto se escondiam.
Sellium, junho de 1134

O Velho agachou-se atrás de um muro, levando as armas de Ramiro,


enquanto este olhava para o esconderijo da relíquia.
Pai, estou tão perto...
Mantiveram-se quietos, o archote aproximava-se. Sohba vinha com
outra mulher e dirigia-se ao ponto certo, iria cruzar-se com eles.
Esperaram, notando o cansaço da mulher de negro, que tinha de parar
muitas vezes. Quem seria a outra? Ramiro só a reconheceu quando as
duas deram de caras com ele.
– Ramiro! – gritou Raimunda, iluminando-o com o archote.
Sohba lembrava-se do bastardo de Paio Soares, mas este nem parecia
vê-la, paralisado com a aparição de Raimunda, pois julgava-a morta
depois de se atirar ao rio, no regresso de Toledo.
Pai, os mortos vivem?
Ramiro surpreendeu-se por ainda sentir empatia com aquela rapariga
magra. Havia entre eles um elo duradouro, eram cúmplices na sua
condição de bastardos e os dois haviam sofrido um profundo desgosto
ao descobrirem o amor entre Chamoa e Afonso Henriques, Ramiro
porque amava a rapariga galega, Raimunda porque sentia idêntica
paixão pelo príncipe.
– Estais viva? – balbuciou Ramiro.
A rapariga magra contou que sobrevivera ao mergulho no Tejo e fora
para Lisboa, onde conhecera Sohba.
– Ela sabe que sois filha de Ermígio Moniz? – perguntou Ramiro.
Raimunda sorriu:
– Sohba sabe tudo.
A velha de negro estava encostada a um mureto, recuperando forças,
mas, como o antigo templário não explicou a sua presença ali,
perguntou:
– Foi Afonso Henriques quem vos enviou?
Ramiro afirmou que fora seu pai, mas Sohba duvidou.
– Vosso pai já morreu há cinco anos!
O bastardo de Paio Soares recordou que o pai fora ferido mortalmente
pelo príncipe em São Mamede e por isso Ramiro queria a relíquia, para
roubá-la a Afonso Henriques. Agradada por descobrir um sentimento
vingativo tão poderoso como o dela, Raimunda aprovou aquelas
palavras.
– Já somos dois.
Porém, Sohba não estava convencida e perguntou:
– Trabalhais para o Trava, como os galegos que Zhakaria matou?
Ramiro repetiu que o seu defunto progenitor lhe revelara o
esconderijo, mas a velha de negro não acreditou. Se fosse assim, ele já
teria vindo buscar a relíquia há mais tempo.
– Foi o terceiro homem que vos enviou? – perguntou Sohba.
O bastardo de Paio Soares fingiu não perceber a questão, obrigando a
mulher de negro a recordar que, dos três homens que tinham vindo
esconder a relíquia, dois já tinham morrido, o conde Henrique e Paio
Soares. Porém, o terceiro homem continuava vivo.
Indiferente às explicações, Ramiro encolheu os ombros:
– Não sei quem seja...
A quase centenária bruxa sabia distinguir quando alguém não dizia a
verdade e por isso exclamou, alarmada:
– Cuidado, Raimunda, é um mentiroso!
Contudo, a rapariga magricela via nele um amigo do passado e um
futuro aliado. A cumplicidade com Ramiro, gerada em Viseu oito anos
antes, permanecia mais sólida do que ela esperava.
Virando-se para Sohba, Raimunda tentou convencê-la:
– Ele odeia Afonso Henriques tanto como eu!
Depois, olhando para o bastardo, propôs:
– Ramiro, juntais-vos a nós! Roubemos a relíquia ao príncipe!
O antigo templário sorriu levemente, certo de que agora Sohba estava
sozinha... Nem ele, nem o Velho, nem Raimunda queriam entregar a
relíquia a Afonso Henriques.
Pressentindo o perigo, a velha mulher exclamou:
– Raimunda, cuidado, há muito ódio e loucura dentro dele.
Mas a minha prima nem se mexeu e congratulou-se:
– É como eu.
Assustada, a mulher de negro olhou-a e indignou-se:
– Não o sabeis, mas sois muito mais do que isso! Vinde comigo,
vamos ter com Zhakaria!
A rapariga recusou, a sua ira contra Afonso Henriques obrigava-a a
apoderar-se do tesouro. Olhando Sohba fixamente, perguntou:
– Sabeis onde está a relíquia? O que vos disse o monge?
Sohba recusou revelar qualquer segredo à frente de Ramiro, mas este
riu-se e desprezou-a mais uma vez.
– Não sabeis onde está o tesouro, pois não, velha bruxa? – depois de
novo riso, acrescentou: – Parece-me que sou o único que não pode
morrer hoje...
Sohba empalideceu perante aquela ameaça óbvia e levou a mão à sua
bolsa, que sempre trazia. Porém, este instinto defensivo despoletou uma
ação imediata noutro elemento presente nas ruínas romanas. De repente,
das sombras saiu o Velho, de arco esticado e Ramiro notou que a flecha
dele não apontava na sua direção, nem na de Raimunda, mas na de
Sohba.
– Não vos lembrais, velha bruxa? – perguntou o Velho.
Sohba semicerrou os olhos, num esforço para tentar reconhecer
aquele inesperado intruso, mas ao mesmo tempo mexeu a mão dentro da
sua bolsa, o que levou o Velho a ameaçá-la:
– Lançai uma bola de fogo e morrereis sem lhe ver a chama.
Preocupada com a aparição daquele perigoso desconhecido,
Raimunda pediu a Ramiro que interviesse e este tentou acalmar o seu
antigo companheiro.
– Velho, não precisais de a matar, deixai-a ir.
Contudo, o outro tinha contas antigas a ajustar com Sohba.
– Quase me haveis cegado com as vossas malditas bolas de fogo...
A recordação do distante confronto fez Sohba ganhar novo alento.
Odiando já aquele escroque, provocou-o:
– Pena não ter conseguido cegar-vos.
Carregado de ira vingativa, o Velho esticou o arco. Sentindo o
fortíssimo desejo de matar que imperava nele, Raimunda ainda gritou a
Ramiro, mas o espião já estava decidido e declarou:
– Há anos que vos procuro e hoje é o dia em que vos mato!
O Velho disparou a flecha, que se espetou no peito de Sohba,
fazendo-a tombar de costas. Eufórico, ergueu os braços no ar,
celebrando a sua macabra vitória.
– Morre, bruxa!
Aflita, Raimunda olhou para Sohba. Vendo que ela estava condenada,
pousou o archote no chão e, com um pulo inesperado, saltou por cima de
um muro e desapareceu nas sombras, entre as ruínas romanas.
O Velho e Ramiro ouviram de imediato os seus primeiros assobios. A
rapariga magra chamava por Abu Zhakaria.
– Imbecil – vociferou Ramiro. – Os mouros vão cair-nos em cima!
Com um gesto rápido, o Velho carregou o arco com outra flecha.
– Levai-me à relíquia! – ordenou, apontando a Ramiro.
Este ignorou-o. Ajoelhou junto de Sohba e colocou o seu ouvido
próximo da boca da mulher, pois parecia-lhe que ela tentava dizer umas
últimas palavras. Desconfiado, o Velho gritou:
– Mentiroso, também não sabeis onde está o tesouro!
Ramiro continuava de costas para ele, tentando escutar o que dizia a
bruxa, mas o Velho esticou o arco e disparou uma segunda flecha, que
se cravou também no peito de Sohba. Surpreendido, Ramiro deu um
salto para o lado e acusou o outro de estupidez, enquanto o Velho
desatava à gargalhada, mau e satisfeito. O seu contentamento era tal que
se esqueceu de colocar uma nova flecha no arco, distração que Ramiro
aproveitou de pronto. Ao ajoelhar junto à mulher de negro, metera-lhe a
mão na bolsa e retirara de lá uma bola de fogo.
Pai, vou matar!
Quando viu a bola na mão de Ramiro, o Velho empalideceu, mas era
tarde. O bastardo de Paio Soares atirou-a, e ela rebentou em fogo aos pés
do outro, cegando-o e desequilibrando-o. Então, Ramiro correu na
direção dele e retirou-lhe o punhal do cinto, apontando-o ao pescoço do
Velho, que ainda rosnou entredentes:
– Canalha, gostais é de levar na peideira!
Furioso, com um golpe brusco do punhal Ramiro cortou-lhe as veias
da garganta e o Velho morreu em instantes.
Pai, vede do que sou capaz!
O antigo templário ficou a olhar para aquele corpo mole, já caído no
chão, mas depois acalmou a respiração e observou o local onde estava a
relíquia. Tinha de lá ir, distava poucos metros.
De repente, ouviu-se um grito, que não vinha da outra margem do
Nabão, para onde fugira Raimunda, mas sim de norte.
– Ramiro, estais cercado!
Aquela voz era inconfundível, odiava-a tanto, saberia reconhecê-la à
distância! Afonso Henriques dava-lhe ordens!
Pai, eis o cabrão que vos matou!
Ramiro estimou que o príncipe estivesse a cerca de quinze metros
dele, no meio da escuridão das ruínas. Rápido, pegou no seu arco e na
aljava cheia de flechas e desatou a correr, na direção tomada por
Raimunda. O príncipe não o ia apanhar!

Quando, a pouca distância, Afonso Henriques e Mem viram o vulto de


Ramiro desaparecer na noite, o primeiro decidiu perseguir o bastardo,
enquanto o segundo se dirigia ao local onde estavam dois corpos no
chão, que, àquela distância, não conseguia identificar. Ouviram mais
assobios dos sarracenos, junto ao Nabão. O príncipe ia meter-se na boca
do lobo! Aflito, Mem desatou a gritar, chamando pelos outros
portucalenses. Atrás dele, acenderam-se dez ou quinze archotes e várias
sombras correram no meio das ruínas. Já lá vínhamos eu, Peres Cativo,
Gonçalo e alguns soldados.
Então, o almocreve verificou que no chão se encontrava o Velho, cuja
garganta sangrava profusamente, e Sohba, que apresentava duas flechas
cravadas no peito. Mem comoveu-se, aterrado, ela estava moribunda e
não a podia salvar, como da outra vez, quando a retirara de uma
fogueira. Restava-lhe escutar os seus últimos murmúrios, por isso
perguntou:
– Onde está a relíquia?
A velha mulher perdera muito sangue, mas ainda balbuciou:
– Fogo... mortos... queima...
Confundido, Mem gritou-lhe:
– Onde, onde?
Eu estava já junto dele quando Sohba partiu deste mundo, amparada
pelos braços de Mem, o bonito almocreve de quem ela tanto gostava. E
senti a tristeza infinita que penetrou no coração dele por ver aquela
longa vida terminar. Duas lágrimas escorreram-lhe pelo rosto, enquanto
me dizia que era a segunda mulher da família Benu Ummeya que morria
à sua frente. Anos antes, a sua amada Zulmira fora degolada pelo
assassin; e hoje Sohba, a mulher de negro, morrera trespassada pelo
maldoso Velho.
Coloquei-lhe a mão no ombro, tentando confortá-lo, mas logo Mem
me apontou o escuro da noite e avisou:
– O príncipe! Abu Zhakaria vai matá-lo!
Gonçalo, que parara também junto a nós, desatou a correr e marchei
atrás dele, de espada na mão. Afonso Henriques, o príncipe de Portugal,
lançara-se sozinho em perseguição de Raimunda e de Ramiro e ia dar de
caras com os mouros, junto ao Nabão!
Santarém, agosto de 1134

Sentado no seu almofadão, na sala do palácio de Santarém, mordiscando


umas tâmaras, Abu Zhakaria recordou a malsucedida operação em
Sellium, mais de um mês antes.
Nenhuma glória para os traidores...
Raimunda contara-lhe que deixara para trás Sohba, mortalmente
ferida, mas, apesar da distância a que já se encontrava, ainda vira
Ramiro matar o Velho e fugir. De coração acelerado, a rapariga magra
esperara-o, vendo que vinha aos ziguezagues. Ele iria chocar de frente
com os sarracenos, que o abateriam sem misericórdia, por isso chamara-
o e ele estacara junto a ela e exclamara:
– Afonso Henriques vem atrás de mim!
Uma agitação trepidante apoderara-se de Raimunda, que exigira do
bastardo uma ação drástica:
– Matai-o, matai-o!
Contudo, Ramiro preferia o rio, onde o espaço era mais aberto e
poderia ver melhor o seu alvo. Correram e, já à beira do Nabão, ela
imitara o piar de um mocho, escutando uma réplica na outra margem. Os
dois atravessaram as águas, que nem lhes chegavam à cintura e
esconderam-se, enquanto um vulto surgira nas suas costas.
Quase que degolava o antigo templário...
Abu Zhakaria, ao ver Ramiro, ainda erguera o seu alfange, mas
Raimunda colocara-se entre eles e apontara para o rio, murmurando que
Afonso Henriques os estava a perseguir. O cordovês contivera-se ao ver
Ramiro preparar as flechas, espantado com a ironia da situação. Cinco
anos antes, em Coimbra, Ramiro impedira-o de matar o príncipe. Mas,
em Sellium, tentava eliminar Afonso Henriques!
Ramiro, o traidor...
De súbito, um gigante aparecera na outra margem, escondendo-se
atrás de umas pedras. Raimunda apontara para lá e Ramiro acenara a
cabeça, já vira Afonso Henriques. Ouviam-se os outros cristãos,
estariam ali em pouco tempo, por isso Ramiro só teria uma oportunidade
de atingir o príncipe, que não se movia e gritou:
– Raimunda, Ramiro!
Rápida, Raimunda atirara uma bola de fogo para o local donde partira
a voz, iluminando a margem oposta e o gigante parado. Vendo-o com
nitidez, Ramiro disparara a sua flecha. Ouvira-se um esgar e Afonso
Henriques caíra de costas.
Como os archotes dos cristãos lançavam já a sua luz laranja sobre o
rio, os três deram meia-volta e desataram a correr. Montaram os cavalos
à pressa e só mais à frente Raimunda perguntara a Ramiro:
– Haveis acertado?
Este nem chegara a responder, pois ouviram novos gritos.
– Raimunda! Ramiro!
Afonso Henriques não estava morto e o antigo templário praguejara:
– Merda!
Quando finalmente perceberam que os cristãos não os perseguiam,
Abu Zhakaria perguntara por Sohba e ficara fortemente abalado ao saber
da sua morte. A velha era uma importante aliada, com uma invulgar
capacidade de interpretação das atribulações que sacudiam não só a
Andaluzia árabe, mas também a África berbere e a Hispânia cristã.
Zhakaria perdera um farol de inspiração pacífica, para quem o ódio a
Afonso Henriques não era uma motivação dominante, ao contrário do
que se passava com aqueles dois bastardos cristãos.
Fiquei com os doidos...

Já em Santarém, Raimunda e Ramiro haviam permanecido sempre


juntos, mas Zhakaria duvidava de que desejassem ficar na cidade.
Era tempo de uma clarificação, a carta de Ismar assim o exigia.
Sentando-se melhor no seu longo almofadão, Abu Zhakaria releu a
missiva do governador de Córdova, em resposta à que ele lhe enviara,
relatando o falhanço em se apoderarem da relíquia, a morte de Sohba e o
segredo que esta lhe deixara.
O wali de Santarém permanecia fascinado pelo seu mentor político.
Ficara encantado com a visita que, mais de um ano antes, realizara ao
Azzahrat. Seduzido pelo fausto da vida do príncipe Ismar, tentava
reproduzir na sua cidade aquele espírito, carregado de poesia bela e
fantásticas iguarias.
Tudo menos as mulheres...
Abu Zhakaria não tinha um harém repleto de escravas. O mito do
guerreiro eternamente enamorado, que tentava resgatar uma princesa aos
cristãos, continuava popular entre o povo local e ele não o desejava
corromper, evitando rodear-se de mulheres, para que não o julgassem
um frívolo ou um mentiroso.
Nesse momento, apareceram Raimunda e Ramiro. Depois de os
convidar a sentarem-se, Zhakaria perguntou:
– Porque se desejam vingar de Ibn Henrik?
Ramiro e Raimunda contaram as suas histórias de desgosto rancoroso.
O ódio que devotavam a Afonso Henriques era infinito, só a morte o
pacificaria, declarou a rapariga.
– Lamento ter falhado aquela flecha – acrescentou Ramiro.
O cordovês perguntou o que eles pretendiam fazer, agora que Sohba
morrera. Queria perceber se seriam fiáveis aliados, ou apenas causadores
de distúrbios. Ramiro foi o primeiro a responder:
– Afonso Henriques não pode apoderar-se da relíquia.
Zhakaria lembrou que Sellium se encontrava-se cercada, Peres Cativo
ficara por lá com os seus homens. Mais tarde ou mais cedo, os cristãos
iriam encontrar o tesouro.
Raimunda incentivou Ramiro com o olhar e este disse:
– Sei onde está a relíquia. Meu pai, Paio Soares, disse-mo.
O cordovês mirou-o, desconfiado:
– E para que a quereis?
O bastardo declarou que o tesouro viera da Terra Santa e era do tempo
de Cristo. Quem o descobrisse seria abençoado por Deus, herdando a
poderosa capacidade de unir à sua volta os cristãos.
– Se o encontrar, Afonso Henriques tornar-se-á imbatível.
Ora Abu Zhakaria também não desejava o príncipe de Portugal mais
poderoso. Portanto, os três tinham objetivos comuns, bem como aliados
comuns. O Trava procurava a relíquia, para a oferecer ao futuro
imperador, Afonso VII, se eles lhe entregassem o tesouro desferiam um
rude golpe em Afonso Henriques.
Desagradado, o wali de Santarém discordou de Ramiro e desabafou:
– Perigoso é o Castelo de Leiria!
Tanto os notáveis de Santarém como o povo da cidade não admitiam
um posto avançado cristão tão próximo. No entanto, como não
dispunham de uma guarnição para aspirar a tais aventuras, Ismar
propusera vir ele mesmo, à frente dos seus exércitos, ajudar Zhakaria,
num dos próximos verões.
– Até lá, terei de treinar os meus soldados – afirmou o wali.
Ramiro, com um sorriso ligeiramente cínico, murmurou:
– Pelos vistos, resgatar Fátima também não é a vossa prioridade.
Abu Zhakaria enxofrou-se, garantindo que amava a mais velha das
princesas mouras, mas um wali de Santarém tinha de pensar também na
cidade que governava. Não podia lançar um ataque desenfreado contra
Sellium, tinham de ser pacientes!
– Não conheço essa palavra – declarou Raimunda. – Sonho com a
morte do príncipe de Portugal todas as noites.
Abu Zhakaria olhou-a, pensativo. Sohba pedira-lhe que só revelasse o
segredo de Raimunda na presença de Ismar e ele tencionava cumprir a
promessa. Por isso, limitou-se a informar os seus interlocutores de que
não estavam autorizados a dirigir-se a Sellium ou a Coimbra, dando por
terminado o encontro.

No dia seguinte, a minha prima Raimunda fugiu sozinha de Santarém.


Não ia esperar um ano ou dois, como Zhakaria e Ismar queriam. Agora
que regressara ao Condado Portucalense, apoderara-se dela uma vontade
violenta de vingança e não iria descansar enquanto não a consumasse.
Raimunda, só o compreendi tarde de mais, fora ao Inferno e voltara de lá
com a alma negra, queimada pelas chamas, coberta de carvão, cinzas e
fuligem. No seu espírito, preparava-se já uma operação de dimensões
épicas, que a todos nos espantaria. Se foi Sohba quem nos ligou, como
sempre dizia a princesa Zaida, foi Raimunda quem nos dividiu para
sempre.
Guimarães, outubro de 1134

Os meses que se seguiram ao falhanço em Sellium foram dos mais duros


na vida de Afonso Henriques. Pesavam-lhe os ecos das derrotas
militares de Celmes e Tui, bem como a sensação de impotência por não
ter encontrado a relíquia, mas o que o desolava mais era o círculo de
traições que o cercava. Alguém, em Coimbra, trabalhava na sombra para
Afonso VII; Ramiro e Raimunda alinhavam agora com o muçulmano
Zhakaria; Gonçalo, Mem e Zaida haviam-no chifrado com Chamoa.
Assolado por uma tremenda vontade punitiva, administrou castigos a
torto e a direito. Ainda em Coimbra, obrigou que Sohba fosse cremada
junto ao Mondego, não admitindo a Mem uma nova viagem fúnebre à
serra Morena, como acontecera aquando da morte de Zulmira. E não
poupou as princesas mouras: os movimentos das duas passaram a ser
vigiados por soldados.
Quanto a Chamoa, usou requintes de malvadez. Semanas depois dos
acontecimentos de Sellium, Afonso Henriques partiu para Guimarães e
na comitiva incluiu a minha cunhada, o que erradamente considerei um
indicador promissor de um possível perdão. Porém, nunca falava com
ela, nem dela se aproximava. Só já em Guimarães, no dia do nascimento
da sua segunda filha, é que o príncipe me ordenou que trouxesse
Chamoa à sua presença.
– Quero que ela veja a criança nascer! – exclamou.
Avisei-o de que era uma exigência dura, minha cunhada jamais
esqueceria tal humilhação, mas o príncipe replicou-me:
– Também não esqueço o que vi naquela cama em Coimbra!
Ao longo da nossa vida, existiram momentos em que não aprovei as
ações do meu melhor amigo e esse foi um deles. Era uma enormidade
obrigar Chamoa a assistir ao parto, mas os meus protestos, e os da
mulher de meu pai, Teresa de Celanova, caíram em saco roto.
A normanda Elvira Gualter, grande e suada, estava já de pernas
abertas quando viu entrar Chamoa no quarto. Intuindo o que se passava,
murmurou o seu desapontamento:
– Afonso Henriques, sois um bruto!
Pouco depois, começou com contrações. Reparei que minha cunhada
estava de olhos postos no chão, mas de súbito, quando se ouviram os
primeiros gritos de dor de Elvira, avançou para perto da normanda, a
quem deu a mão e disse:
– Apertai-a, minha amiga.
A mesquinha vingança do príncipe fora sabotada pela presença de
espírito de minha cunhada e pela solidariedade feminina que sempre
sentem as mulheres nestes momentos, que só elas sabem quanto custam.
Em vez de odiar Elvira, por esta trazer ao mundo uma filha do homem
que ambas amavam, Chamoa ofereceu-lhe amizade e dedicação e, se
sofreu naquele momento, não o demonstrou.
Irritado por não a ter vergado, mal o parto se concluiu Afonso
Henriques ordenou que minha cunhada partisse para Tui e nessa mesma
tarde Chamoa abalou para a cidade dos seus pais, mais uma vez expulsa
do Castelo de Guimarães. A sua única consolação foi a aceitação do
pedido que fez ao príncipe. Seu filho Pêro Pais permaneceria connosco.
Admirado por todos pela sua coragem, seria, a partir dali, a única
ligação de Chamoa a Afonso Henriques.
No dia seguinte, um cada vez mais triste príncipe anunciou a todos
que a sua segunda filha tomaria o nome de sua mãe. Porém, a singela
homenagem que fazia a Dona Teresa era mais uma tentativa de
exorcizar uma maldição do que um sinal de saudade da defunta. Naquele
outono, Afonso Henriques acreditava piamente na existência de uma
vingança maternal a partir do túmulo, ou do purgatório onde Dona
Teresa ainda estaria certamente, lavando o rol de inúmeros e graves
pecados cometidos em vida. Era agora evidente para ele que a decisão
de prender a mãe nas masmorras de Guimarães, logo no final da batalha
de São Mamede, tivera como retribuição uma valente praga. Se me
prendeis com ferros, um dia os ferros vos colherão também, gritara-lhe
Dona Teresa e, perante a lista de desgraças que o fustigava, Afonso
Henriques considerava a dolorosa maldição não já uma mera
possibilidade vaga, mas uma realidade bem presente.
Elvira Gualter, mais prática, duvidou do expediente com que ele
queria exorcizar o castigo maternal:
– Chamar Teresa à menina não garante o perdão da falecida!
O príncipe não se demoveu e promoveu uma festa logo após o
batizado da criança, que decorreu na Igreja de São Mamede, onde ele
recebera idêntico sacramento, vinte e cinco anos antes.
Debaixo da tenda, junto ao castelo, Elvira Gualter recuperara um
pouco as cores, mas parecia desiludida com o seu amado. Ouvi-a
perorar, mais uma vez, que não aprovara o afastamento de Chamoa.
– Só faz isso quem, por orgulho, recusa a paixão do coração!
Afonso Henriques olhou-a com estranheza e resmungou:
– Calai-vos, normanda, não sabeis o que dizeis!
Já durante o repasto, enquanto todos nos deleitávamos com carnes,
vinhos e sopas, o príncipe perguntou por Gonçalo, que não via a comer
connosco. Sentada à minha esquerda, Elvira sorriu e, com aquele sexto
sentido que sempre têm as mulheres, murmurou:
– É tão ciumento que receia que o outro vá ter com Chamoa.
Meu pai, Egas Moniz, afirmou que o nosso amigo devia estar com as
soldadeiras locais, de quem era grande cliente, o que levou Afonso
Henriques a mandar chamá-lo com urgência, exclamando:
– Vou enviá-lo para Leiria, para ajudar Paio Guterres!
Meu pai franziu a testa, relembrando que Gonçalo de Sousa fora
malsucedido em Celmes e certamente os soldados portucalenses não o
desejariam, assombrando o novo castelo com o seu passado infeliz.
Afonso Henriques classificou tal receio como um disparate infantil:
Gonçalo era bom lutador, resistira meses às torturas, seria útil no Sul.
Pela segunda vez, Elvira Gualter sussurrou aos meus ouvidos:
– Vai mandá-lo para perto de Zaida?
Esperei que Gonçalo chegasse, o que demorou o seu tempo. De
cabelo desgrenhado e sem o habitual rabo-de-cavalo, com as olheiras
cavadas e os olhos raiados de sangue, devido ao muito vinho ingerido, o
antigo alcaide de Celmes passou por mim, lançando o habitual bordão
então, tudo espeta?, mas depois parou à frente do príncipe e perguntou-
lhe, em desafio:
– Que é tão urgente que interrompa a minha folgança?
De cara fechada e séria, Afonso Henriques perguntou-lhe:
– Quereis ir combater para Leiria?
Gonçalo mirou-o e respondeu de pronto:
– Nem pensar!
Aquela veemente resposta convenceu o enciumado príncipe de que
Gonçalo preferia ficar perto de Chamoa. A galega montou-me era a frase
que agora pairava por ali, entre aqueles dois grandes amigos desavindos,
como uma parede indestrutível.
De súbito, Afonso Henriques gritou:
– Estais a pensar em ir a Tui?
Ressacado, Gonçalo cuspiu para o chão e resmungou:
– Que pode haver para mim nesse buraco?
Como ele não negava o desejo de lá ir, o príncipe não ficou satisfeito
e o seu desejo punitivo impôs-se novamente, queria castigá-lo por
aquela infidelidade, que considerava inaceitável.
– Ireis para a terra de vosso pai Soeiro, onde ficareis até vos chamar!
Incrédulo, Gonçalo perguntou-lhe:
– Isso faz-se a quem sempre esteve ao vosso lado?
Ameaçador, o príncipe ripostou-lhe:
– E tende cuidado! Se sei que haveis ido a Tui ou a Coimbra...
O olhar turvo de Gonçalo ensombrou-se mais, enquanto Elvira
Gualter murmurava aos meus ouvidos, pela terceira vez:
– Nem Chamoa, nem Zaida...
Mantive-me calado, enquanto o nosso amigo Gonçalo nos virava as
costas, ofendido e humilhado por aquela reprimenda pública. Durante
meses, não mais o veríamos, mas as voltas que o destino dá são
inesperadas e deixámos de pensar nele quase imediatamente, pois entrou
de rompante na tenda um mensageiro do rei de Leão, que cavalgara sem
parar desde Toledo.
Solene e empertigado, o emissário leonês informou-nos da marcação
da cerimónia de coroação de Afonso VII como imperador da Hispânia,
que ocorreria em maio do ano seguinte e que finalmente se tornara
possível devido à morte recente de Afonso I de Aragão.
A lista de convocados era longa e incluía Afonso Henriques, meu tio
Ermígio, meu pai, Egas Moniz, e toda a sua família, mas também o
arcebispo de Braga, Paio Mendes, os bispos do Porto e de Coimbra, o
mestre da Ordem do Templo, Jean Raymond, e ainda um considerável
número de nobres da região de Entre Douro e Minho e da Baixa Galiza,
entre os quais se encontravam o pai de Teresa de Celanova e o pai de
Chamoa, Gomes Nunes.
Terminada a leitura deste demorado anúncio, o príncipe de Portugal
levantou-se e exclamou com solenidade e convicção:
– Não irei à Catedral de Leão! Recuso prestar vassalagem a meu
primo, seja ele rei ou imperador!
Uma agitação geral percorreu a tenda. Devido à doença de meu tio
Ermígio, acamado e abúlico desde o ataque que sofrera em Coimbra,
meu pai absorvera as funções de mordomo e, por isso, foi o único a
tentar chamar o príncipe à razão. Sempre conciliador, disse-lhe que seria
um erro grave afrontar dessa forma o imperador, ao que Afonso
Henriques lhe replicou:
– Ele que me venha buscar!

Horas mais tarde, o príncipe de Portugal chamou-me à sua sala, para


onde se recolhera, solitário. Sentindo-se à vontade na minha presença,
recordou as dores que lhe massacravam a alma, referindo Raimunda,
Ramiro, Mem, Zaida ou o desconhecido sabotador de Coimbra. Por fim,
amargurado, disse-me que não compreendia porque Chamoa, cujas
sardas no peito lhe faziam suster a respiração e cuja graça feminina lhe
acelerava o pulso, era tão infiel e mentirosa!
– Até ao Gonçalo se deu...
Com um suspiro, desabafou um lamento:
– Estou rodeado de traidores!
Aproximou-se de mim e, emocionado, abraçou-me.
– Lourenço, sois o único que não me traiu!
Mantive-me em silêncio, orgulhoso daquele elogio, mas ao mesmo
tempo desalentado com aquela constatação, enquanto ele se dirigia para
junto de um enorme cofre. Abrindo-o, Afonso Henriques retirou de lá a
longa e pesada espada do conde Henrique, que ergueu à frente da cara,
antes de a beijar na lâmina suavemente e dizer:
– As portas do Inferno estão a abrir-se para nós.
A luta dos portucalenses ia endurecer, logo que Afonso VII se
coroasse imperador dos reinos cristãos da Hispânia. A rebeldia
irreprimível que levava Afonso Henriques a recusar-se a prestar
vassalagem ao primo direito geraria uma tormenta cujas trágicas
consequências se iriam abater sobre nós.
– Teremos de lutar muito pela independência de Portugal!
Num instante, a tristeza que o consumira desapareceu. Uma onda de
energia e sagacidade evaporara o desgosto pelas traições ou a suposta
maldição de Dona Teresa, que o vitimava. Os pensamentos bélicos já o
animavam e recordar o pai, o grande guerreiro que fora o conde
Henrique, ressuscitara-o da letargia derrotista em que caíra.
Com um brilho nos olhos, aquele gigante que eu tanto admirava
reconheceu:
– Não podemos mudar a história do passado, mas podemos mudar a
história do futuro!
Depois, erguendo ainda mais a sua espada, Afonso Henriques
declarou com uma forte crença:
– Aqui vos prometo, Lourenço Viegas, que serei o único a vencer o
imperador dos Cinco Reinos!
V
Os Desejos
do Imperador
1135 – 1137
Leão, maio de 1135

A imponente Catedral de Leão engalanara-se para glorificar, digna e


pomposamente, o novo imperador dos Cinco Reinos. Sentado num
cadeirão no altar, ladeado pelos arcebispos de Toledo e de Compostela,
Afonso VII resplandecia de brilho, com a coroa de seu avô no topo da
cabeça e uma dalmática verde a cobrir-lhe o corpo.
Na primeira fila à sua frente, encontrava-se o distinto Anacleto. O
Antipapa, como o classificavam os defensores do legítimo Inocêncio II,
tinha vindo propositadamente de Roma para demonstrar a sua estima
pelo novo imperador da península Ibérica. O gesto não era desprovido
de interesse, pois, abençoando o rei leonês e legitimando o domínio
indisputado deste na Hispânia cristã, o Antipapa recebia em troca o claro
apoio imperial no desagradável cisma católico.
Na catedral onde se celebrava a glória de Afonso VII estavam
também dois reis, logo na segunda fila, confirmando que o augusto
imperador era um monarca ímpar, o único a quem outros reis prestavam
vassalagem. Neste caso, eram Garcia de Navarra e Ramiro II de Aragão.
O primeiro submetera-se no início do ano, o segundo logo após a morte
de Afonso I de Aragão.
Atrás destes, apresentavam-se inúmeros condes independentes. De
terras francesas tinham vindo o conde de Toulouse e o de Montpellier;
das catalãs, o conde de Barcelona; e das de Castela, Leão ou Galiza
diversos exemplares, como os irrequietos Vela, os intrigantes Lara, os
frenéticos Veilaz ou os orgulhosos Trava, encabeçados por Fernão
Peres.
Um pouco afastado destes, como que para vincar a sua autonomia,
encontrava-se o conde das Astúrias, o sempre indomável Gonçalo Pais.
A sua imponente figura quase ocultava os representantes da Baixa
Galiza que junto a ele se alinhavam, os condes menores de Celanova,
Límia e Toronho, bem como a nossa comitiva portucalense, que se
remetera a um local de pouco protagonismo, já quase fora da nave
central, como se quisesse passar despercebida.
Contudo, e mesmo nesse ponto secundário onde me encontrava, junto
a meu pai e às nossas respetivas esposas, era-me fácil de perceber que o
monarca leonês estava enervado connosco. Só um dos representantes do
seu universo hispânico e cristão não se via naquela catedral. Afonso
Henriques, primo direito do imperador e regente do Condado
Portucalense, primava pela ausência!
Fosse qual fosse a razão do meu melhor amigo, certamente que o
imperador se sentiria ofendido com aquela inaceitável e afrontosa
decisão! O primo direito, com quem brincara em criança e com quem
fora rezar a Compostela, desapontava-o! E ele estimava-o! Ao longo dos
anos que se seguiram, tornou-se evidente para mim que havia em
Afonso VII uma misteriosa mas permanente admiração pelo nosso
príncipe. Afonso Henriques era corajoso e intrépido e, à sua maneira, o
novo imperador sempre respeitou aquela tenacidade juvenil, aquela
teimosa crença na independência portucalense.
Se Afonso Henriques tivesse vindo, o imperador talvez o tivesse
surpreendido, colocando-o na segunda fila, atrás de Anacleto, mas ao
lado dos reis de Navarra e de Aragão, como se ele tivesse idêntico
estatuto. Porém, perante aquela desonrosa ausência, a necessidade de
resposta impunha-se com dureza, para satisfazer a sua honra ferida! Se o
primo não estava ali, seriam os portucalenses e os seus aliados da Baixa
Galiza a pagarem o preço pela ofensa.
A confrontação connosco deu-se pouco depois, ainda em plena
catedral. A cerimónia terminara com um Te Deum, após o qual os
convidados começaram a abandonar a igreja, rumando ao grande pátio,
onde centenas de populares davam vivas ao imperador e à boa estrela
que lhe iluminava a existência. Afonso VII submetera Aragão, Navarra,
os nobres duros de Castela, o conde das Astúrias. Agora era tempo de se
virar para o Sul, empurrando os sarracenos até África. O califa Ali
Yusuf estava em perda, era o momento de atacar e essa era mais uma
razão por que o incomodava a resistência irritante de Afonso Henriques.
No entanto, quando se aproximou, o imperador estacou, espantado
com Chamoa. Ela estava um pouco atrás de meu pai, junto a mim, à sua
irmã Maria e a Teresa de Celanova, e era a mais bela do evento,
nenhuma nobre da Galiza, de Leão, de Castela, de Navarra ou de Aragão
a ofuscava em doçura e graça. Os seus longos cabelos cor de mel,
apanhados numa trança, os seus límpidos olhos verdes, o peito sardento,
que o decote atrevido deixava à mostra, a dalmática cor-de-rosa
esvoaçante, tudo lhe conferia uma aura inimitável.
Ao vê-la, o imperador leonês, que tinha fama de ser contido nos
elogios às senhoras, galanteou a magnífica filha de Gomes Nunes e de
Elvira Peres de Trava.
– Bela Chamoa, em todo o meu império não há beleza igual!
A minha cunhada corou, dobrou o joelhinho direito e fez uma vénia,
agradecendo os simpáticos piropos. Animado, o monarca leonês
perguntou-lhe:
– Ficais para os festejos desta noite?
Chamoa preparava-se para responder, mas meu pai, Egas Moniz, foi
mais lesto e afirmou que Afonso Henriques enviava os seus
cumprimentos, o que despoletou de imediato a ira imperial.
– O meu obtuso primo não percebe que temos de lutar, lado a lado,
contra os infiéis? Porque se arroga a bater-me o pé? Porque não se
comporta como o dócil Ramiro II de Aragão ou o esperto Garcia de
Navarra?
Olhando para meu pai, Afonso VII acrescentou:
– As cordas ao vosso pescoço onde estão? Hoje dar-lhes-ia bom uso!
A referência à anterior ida a Toledo tinha um significado óbvio e
quando meu pai se preparava para lhe justificar a ausência de Afonso
Henriques e de seu irmão Ermígio, o imperador levou a mão ao alto.
– Sei que vosso irmão está a morrer e lamento-o. Deve ser o único
portucalense a quem o tino não se esgotou!
Reparei que Fernão Peres e seu irmão Bermudo se riam a dois passos
de nós, junto à irmã de ambos, Elvira Peres de Trava.
– Já vos demos uma lição em Celmes e outra em Tui! – recordou um
zangado Afonso VII. – Não chegou?
Com a sua lendária sabedoria e contenção, meu pai optou por não
escarafunchar na polémica, mas, apontando para os muitos ricos-homens
que ali se viam, Afonso VII interrogou-o:
– Não vedes aqui os revoltosos de Castela? Não vedes ali o Lara,
amante de minha mãe, que se julgava um príncipe? Não vedes o Pais, o
das Astúrias, que me dá tanta luta?
Sacudindo a dalmática esverdeada com irritação, prosseguiu:
– Estão todos aqui, até o Papa Anacleto! E sabeis porquê, velho
Egas?
O monarca leonês carregou intencionalmente na palavra «velho»,
antes de responder à sua própria pergunta:
– Sou o imperador! Todos terão de vergar-se à minha vontade!
Mesmo os netos do meu avô!
Muitos dos notáveis hispânicos rejubilaram e até o Antipapa Anacleto
já nos mirava, enquanto, a seu lado, o bispo Bernardo, lívido e
atrapalhado, temia que a cólera imperial o atingisse a ele, obrigando-o a
fechar o Mosteiro de Santa Cruz e a enxotar os «apostólicos» de
Coimbra.
– Quem pensais que sois, ó portucalenses? O que vos distingue dos
outros súbditos? Um primo com a mania das grandezas?
As perguntas de Afonso VII ficaram sem resposta e, depois de olhar
para Fernão Peres de Trava, que lhe fez um sinal quase impercetível de
aprovação, o monarca rematou:
– A relíquia da Terra Santa será minha! O Condado Portucalense é
meu! Afonso Henriques irá ajoelhar-se à minha frente!
Nesse momento e para nossa enorme surpresa, o filho de Chamoa,
Pêro Pais, que se encontrava ao lado de seu avô Gomes Nunes, desafiou-
o em voz alta:
– Isso é o que vamos ver!
O olhar irado de Afonso VII caiu sobre o local, mas, vendo que se
tratava de uma criança de apenas oito anos, deu uma curta risada, o que
aliviou a tensão e permitiu que muitos à nossa volta o imitassem,
divertidos com o atrevimento do rapaz. Porém, o monarca logo
regressou ao seu estado de irritação, dirigindo-se ao avô do petiz.
– Gomes Nunes...
A pausa indiciava uma humilhação pública. Aflito, o pai de Chamoa
colocou-se à frente de Pêro Pais, como para o defender de um castigo
iminente.
– Revoltas contra minha mãe, contra minha tia, contra o arcebispo
Gelmires, contra Fernão Peres de Trava! Tanta deslealdade tem de
acabar! – resmungou Afonso VII.
Dito isto, olhou para a esposa de Gomes Nunes, a anafada Elvira
Peres de Trava. Sorrindo-lhe, disse:
– Sois a única em que se pode confiar em Tui!
A visada corou, orgulhosa, mas a voz do imperador voltou a
endurecer, enquanto mirava outra vez Gomes Nunes.
– Se alinhardes com Afonso Henriques, perdereis Toronho!
Depois, olhando para Chamoa, murmurou:
– A não ser que...
Elvira Peres de Trava aplicou um ligeiro empurrão na filha,
oferecendo-a ao imperador, mas Chamoa deu um passo atrás,
atrapalhada, o que levou Afonso VII a conter-se, talvez porque estivesse
demasiada gente a assistir à cena, enquanto o pai de Chamoa lhe
prometia uma imediata submissão, revelando a sua habitual identidade
acobardada.
Contente com a pronta jura, depois de sorrir a Chamoa mais uma vez,
Afonso VII afagou Pêro Pais no cocuruto.
– Tomai juízo nessa cabecinha, menino, ou podeis perdê-la...
Dito isto, o imperador afastou-se de nós, mas vimos que o pequeno e
irrequieto bispo Bernardo se apresentava à sua frente, como que para o
compensar das atribulações causadas pelos pérfidos portucalenses. Com
um toque de sabujice e outro de diplomacia, anunciou uma oferta
coimbrã ao rei de Leão.
– Um magnífico cavalo negro, que foi batizado com o nome de
Imperador! – exclamou o bispo, acrescentando – Está lá fora, junto à
vossa cavalariça, estou certo de que vos agradará!
Para espanto do religioso, Afonso VII mostrou-se desagradado.
– Foi um bobo que deu à besta o nome de Imperador?
Aflito, o bispo Bernardo reconheceu que fora ele o autor da ideia, mas
não existia qualquer problema, o cavalo até respondia pelo nome de
Sultão, pois a sua tratadora era uma moça árabe.
– Julgais que vou montar o rei dos mouros? – indignou-se de novo
Afonso VII.
Visivelmente desagradado e antes de se afastar, sugeriu ao bispo
Bernardo que regressasse com o cavalo a Coimbra, pois ninguém o
queria em Leão ou mesmo em Toledo.
Depois deste fiasco protocolar, o embaraçado prelado desapareceu
também, enquanto os portucalenses se agrupavam junto aos notáveis da
Baixa Galiza. Hostilizadas pelo novo imperador, as gentes da margem
norte do rio Minho e do Condado Portucalense uniam-se e foi minha
esposa Maria quem melhor definiu o nosso novo espírito, quando disse:
– Prefiro mil vezes Afonso Henriques a este emproado.
No entanto, Chamoa não pensava o mesmo, pois murmurou:
– É pena... Haveis visto como gostou de mim?
A minha cunhada iluminava-se com os elogios masculinos e os do
imperador haviam-lhe certamente sabido muito bem.
Guimarães, setembro de 1135

Os estridentes berros das carpideiras ouviam-se ao longe, naquela tarde


calma de final de verão. A Igreja de São Mamede estava apinhada, mas
os gritos quase enlouquecidos daquelas mulheres incomodavam-me
muito mais do que a tristeza que sentia pela morte de meu tio Ermígio
Moniz.
A sua lenta decadência, que começara naquele agudo estremeção em
Coimbra, chegara ao fim. Em silêncio, e depois de um ano de agonia,
finara-se o primeiro mordomo do Condado Portucalense nomeado por
Afonso Henriques. Habituado já à ideia da sua partida, para mim o seu
enterro foi uma mera despedida protocolar.
Dias antes, prevendo este desfecho, recordara os momentos passados
na companhia dele, a sua tradicional calma e o seu olhar lúcido sobre o
mundo, bem como o azar com que vivera os seus amores. A primeira
esposa morrera-lhe cedo, o que lhe causara profundo desgosto; e uma
amiga mourisca, que lhe compensara com ternuras a viuvez prematura,
morrera também ao dar à luz Raimunda.
A partir daí, não mais lhe conhecera companhias femininas e talvez
essa dificuldade em amar as mulheres o tenha afastado de minha prima.
Ermígio Moniz devotava-lhe pouca atenção, mas julgo que era o medo
que o tolhia. Temia tanto um terceiro desgosto que travava o seu afeto.
Raimunda crescera no meio de nós, seus primos, adorando Afonso
Henriques, mas sempre sem o carinho do seu pai, o que terá contribuído
para o caminho tortuoso que percorria.
Terminada a cerimónia fúnebre, o meu melhor amigo fez-me sinal
para o seguir. Devagar, deixámos a Igreja de São Mamede e
caminhámos junto à muralha. Ao olhar para trás, enquanto os outros se
afastavam, vi um vulto entrar na igreja e parei. Com um olhar
inquisitivo, Afonso Henriques perguntou-me o que se passava e eu
disse-lhe que queria voltar para trás.
Regressámos em passo acelerado e, quando entrei no pequeno
edifício, pareceu-me ver por detrás do altar o mesmo vulto, que se
movimentava no escuro. Por isso, gritei:
– Raimunda!!
Afonso Henriques ficou surpreendido com a minha atitude e mais
ainda quando desatei a correr na direção do altar e depois parei, olhando
para todos os lados.
– O que se passa? – perguntou o príncipe.
Não lhe respondi e corri para uma pequena porta, que se encontrava
entreaberta, passando por ela e entrando na sacristia, onde vi Paio
Mendes acompanhado de dois sacristãos, que o ajudavam a despir as
vestes com que oficiara o enterro.
– Que desejais? – interrogou-me o arcebispo de Braga.
Perguntei-lhe se alguém passara por ali agora mesmo, mas respondeu
que não, enquanto Afonso Henriques aparecia, espantado.
– Que bicho vos mordeu?
Mais uma vez não lhe respondi e regressei à igreja. Coloquei-me atrás
do altar, mirando o teto, e vi lá no alto umas vigas separadas e uma
pequena abertura. Incrédulo, exclamei:
– Safada!
Desatei de novo a correr e, já cá fora, dei a volta à igreja, mas só vi os
últimos populares que se afastavam, descendo a encosta. Instantes
depois, um exasperado Afonso Henriques surgiu.
– Ides explicar-me o que andais a fazer?
Suspirei e afirmei:
– A Raimunda veio ao enterro do pai.
O príncipe balbuciou, surpreendido:
– Que dizeis?
Apontei para a igreja.
– Vi um vulto a entrar ali. Tenho a certeza de que era ela!
Apontei para o telhado do edifício, onde se notava uma fenda. Fora
por aquela abertura que ela saíra! Desde criança que Raimunda se
habituara a espiar e era extremamente hábil a esconder-se, a subir aos
telhados, a movimentar-se nas sombras, a mascarar-se, a fundir-se com
as outras pessoas, para ninguém a topar.
– Andais a ver coisas... – comentou Afonso Henriques, descrente.
Mas eu estava certo do que vira. Minha prima soubera que o pai
morrera e viera despedir-se dele. Entrara a correr na igreja e depois,
notando que eu me dirigia para lá, trepara pela parede, enfiando-se na
abertura do teto e saindo cá para fora, confundindo-se por fim com a
multidão de populares que regressava à almedina.
– E ninguém a viu a saltar do telhado? – contestou Afonso
Henriques.
Relembrei-lhe que certa noite, em Viseu, ela ouvira as conversas entre
Dona Teresa e Fernão Trava empoleirada num telhado!
O príncipe sorriu e concedeu:
– A Raimunda era danada... Contava-me tudo o que minha mãe e o
Trava faziam na cama! Aprendi muito com ela...
Largou um longo suspiro, como se tivesse saudades desses tempos em
que tinha catorze ou quinze anos. Raimunda fora o seu primeiro amor,
desde criança que ia para a cama dele beijá-lo. Era-lhe custoso acreditar
que agora andava a querer matá-lo, que tanto ela como Ramiro, antes tão
próximos dele, eram agora seus inimigos! Desanimado, suspirou
novamente e depois disse:
– Vamos, quero falar convosco num local discreto.
Voltámos a afastar-nos da igreja, caminhando para perto da muralha.
Quando passámos junto de umas árvores e já ninguém nos podia ver,
Afonso Henriques levou a mão ao interior da sua dalmática vermelha e
retirou de lá um pergaminho dobrado, dizendo que o criado de meu tio
Ermígio lho entregara no momento em que este morrera. Como o
príncipe tinha dificuldades na leitura, entregou-me o rolo.
– Sois o único em quem confio, Lourenço Viegas.
Estranhei aquela declaração. Meu pai acabava de ser nomeado por
Afonso Henriques como o seu novo mordomo, os negócios do Condado
eram decididos entre os dois, eu era apenas um amigo!
– Porque não haveis feito esse pedido a Egas Moniz? – perguntei.
Não queria causar embaraços a meu pai, que podia sentir-se
ultrapassado, se soubesse disto. Porém, o príncipe justificou-se: temia
que as palavras de meu tio Ermígio fossem graves de mais para serem
conhecidas no Condado Portucalense, até por meu pai.
– Ora, eles eram unha com carne! – exclamei, indignado.
Então Afonso Henriques, já cansado da minha relutância, disse:
– Preciso de um amigo, não de um conselheiro, Lourenço Viegas.
Ligeiramente contrariado, acedi e desenrolei o pergaminho. Tinha
apenas três curtos parágrafos escritos e em voz baixa li-os a Afonso
Henriques. A cada palavra que proferia o meu coração ia-se agitando
mais. Quando cheguei ao fim, senti-me tonto e maldisposto, como se as
minhas entranhas se estivessem a revoltar.
– Por isso, Ermígio Moniz ficava tão incomodado... – murmurou
Afonso Henriques – Foi isto que o destruiu.
Recordei-me do ataque inesperado que meu tio tivera em Coimbra e
voltei a reler as palavras com que ele revelava o segredo do nascimento
da filha bastarda.
– Meu Deus... – murmurei. – Será que a Raimunda sabe disto?
– É impossível sabermos – ripostou Afonso Henriques.
– E o Mem, a Zaida, a Fátima? – perguntei.
O almocreve e as princesas conheciam Raimunda superficialmente e
nunca se havia falado em nada assim, relembrou o príncipe, mas eu
enchi-me de dúvidas. Zaida era tão enigmática e inteligente que podia
perfeitamente ter ligado as pontas daquele estranho novelo, sem nunca o
revelar. Recordei-me de que meu tio tivera o seu colapso na sequência
de uma pergunta, que Zaida lhe lançara, sobre quem era a mãe de
Raimunda. Certamente que a princesa desconfiava.
– Só Sohba tinha a certeza – murmurei.
Afonso Henriques concordou:
– Essa sabia tudo.
Ao recordar-se do que acontecera junto ao Nabão, o príncipe
pressentiu o perigo que corria e deu-me instruções para mandar alguém
dar uma volta atenta pela cidade.
– Se a Raimunda estiver por aí, devemos ter cuidado! Eles tentaram
matar-me em Sellium.
Aos nossos olhos, Raimunda mudara definitivamente. Depois do que
acontecera nas ruínas e após a leitura daquele pergaminho, a minha
prima transformara-se numa antagonista perigosa e muito agressiva nos
seus métodos.
– Temos de manter isto em segredo – rematou Afonso Henriques.
Nem à minha esposa Maria contei as novidades. Aquela
extraordinária revelação permaneceu apenas nossa, até porque não
descobrimos Raimunda em Guimarães. E nos meses seguintes também
não a encontrámos no Sul, para onde voltámos algum tempo depois do
enterro de meu tio.
Já no final desse ano, regressámos a Guimarães, para junto de minha
mulher e da normanda Elvira, que o príncipe voltou a tomar com
fogosidade. Porém, ele não era capaz de se contentar com pequenas
vitórias no Sul e no seu coração nascia já uma nova e grandiosa ideia.
No Dia de Natal, informou-nos de que iria preparar um novo exército
para lançar uma grande ofensiva na Galiza.
– Quero conquistar Tui e Límia! E desta vez vou consegui-lo!
Perante aquele desejo tão perentório, Elvira Gualter sugeriu:
– Espero que façais as pazes com Chamoa, já era tempo.
No entanto, o meu melhor amigo negou tal intenção.
– Nada disso! Desta vez, vindes comigo, normanda! Ides entrar em
Tui a meu lado, para que todos vejam quem é a minha mulher!
Tui, março de 1136

Enquanto o Sol nascia e a neblina matinal levantava lentamente,


destapando as águas do rio Minho, a melancólica Chamoa previu que se
anunciava uma primavera tão pouco calorosa como as anteriores. Sentia-
se sempre triste, como se essa não fosse uma emoção passageira, mas
um estado constante, pesado e custoso.
Desde criança que era dada a esperanças esfuziantes e tontarias
divertidas e mesmo a atribulada vida amorosa não havia causado mais
do que mossas transitórias no seu carácter vivaço. Os períodos de dor
tinham sido superados por arrebatamentos de otimismo e alegria juvenil,
por vezes fúteis, mas sempre irreprimíveis, que lhe devolviam a vontade
de viver mesmo em circunstâncias adversas.
Desta vez, a sua energia frenética e subversiva, que a levava a apostar
nas tropelias e no vinho como curas rápidas, não tinha feito a sua
aparição. Desde que fora afastada por Afonso Henriques, há ano e meio,
por ter sido apanhada na cama com Mem e Zaida, que ruminava numa
letargia abúlica, como se tivesse desistido de ser feliz, rendendo-se
perante uma derrota inultrapassável.
Afonso nunca me irá perdoar...
A absorção desta certeza, inabalável agora no seu espírito, não a
fizera reagir como no passado, quando buscara alternativas noutros
homens, cometendo erros que lhe haviam custado caro. Desta vez, nada
existia, a não ser uma lassidão magoada que, não a levando à cama em
desistência, a mantinha desprovida de iniciativa sedutora, como se o
fogo do desejo já não a queimasse por dentro.
Não quero homem...
Durante esse longo ano e meio, experimentara algo que nunca pensara
possível, a abstinência dos prazeres físicos. Vários homens haviam
tentado seduzi-la, mas nenhum a convencera à entrega. Mem Tougues, o
primo, ainda vinha a Tui com frequência, sempre esperançoso e
justificando-se com as visitas ao filho. Porém, abandonava o castelo de
mãos a abanar.
Não foi o único...
Dois condes que a haviam visto em Leão aquando da coroação do
imperador, tinham visitado Tui de surpresa, supostamente para caçarem
ursos na região, na verdade apenas para lhe demonstrarem a
disponibilidade para um matrimónio. Mas também eles haviam
regressado às suas terras sem sorte, pois ela limitara-se à boa educação
desinteressada e depois fugira, incomodada com a persistência com que
a sua mãe Elvira os tentara impor.
Se tivesse querido, Chamoa poderia ter sido proprietária de ricos
condados em Castela ou Leão, mas a verdade é que nem por um
momento se animara a tal, atrofiada nos sentimentos e descrente em
definitivo na sua boa estrela. A sua vida limitava-se à educação dos
filhos e às ocasionais viagens religiosas a Compostela ou a Sahágun.
Nesses interlúdios simpáticos, a agitação das deslocações distraía-a,
criando-lhe uma transitória ilusão e devolvendo-lhe o gosto pelas
dalmáticas e pelos penteados. Só que, mal o regresso a Tui se iniciava,
voltava também a sua tristeza. Ninguém lhe tocara o coração, nem
sequer Afonso VII, com aqueles elogios na catedral.
Sinto-me velha...
Como se tal fosse possível numa mulher que tinha apenas vinte e
cinco anos! A confiança nos seus dotes físicos evaporara-se, mesmo
sabendo ela perfeitamente que nunca estivera tão bonita como em Leão
e que o seu corpo permanecia um monumento épico que faria as delícias
de qualquer macho.
Para quem faço isto?
Para quem eram aqueles penteados, aquelas tranças, aqueles banhos
diários que Zaida lhe ensinara a tomar, o perfumar permanente do corpo,
as mezinhas com que mantinha os seios firmes, o aparar constante dos
pelos, os óleos que esfregava nas pernas ou nas coxas?
Chamoa já não sentia amor por si própria, era como se a felicidade
tivesse passado por ela sem assentar arraiais, substituída pela aguda
certeza de que nunca o seu destino seria a harmonia amorosa com
Afonso Henriques. E, triste, permanecia assim, sem que a antiga
rebeldia ressuscitasse. Apenas os filhos a entretinham e tentava educá-
los o melhor que podia, notando, no entanto, que a ausência de um pai
os agitava, tornando-os nervosos e medrosos.
Os seus três meninos mais novos compensavam as carências paternais
agarrando-se à dalmática do avô, Gomes Nunes, mas também este
passava uma época de desilusão. Elvira Peres de Trava ignorava-o, não
partilhavam qualquer momento de ternura e corria o rumor de que a mãe
de Chamoa e de Maria Gomes visitava um amigo em Compostela, de
dois em dois meses.
É como eu fui, mas já não sou...
Foi esse estado de desligamento geral do mundo, partilhado por filha
e pai, que os impediu de perceberem que algo mudara na Galiza. O
arcebispo Gelmires, em Compostela, adoecera com gravidade, o que
limitava as suas interferências militares nas refregas que sacudiam a
região. Quando Gonçalo Pais, conde das Astúrias, se rebelou mais uma
vez em janeiro, o arcebispo não ajudou o Trava. A ausência de reforços
manteve a refrega empatada e as forças de Fernão Peres imobilizadas
perto da mítica Covadonga, onde séculos antes os visigodos tinham
vencido os mouros.
Ao mesmo tempo, em Navarra, o irrequieto Garcia esperneou e
obrigou Afonso VII a dirigir-se para lá, na ânsia de o submeter. De um
momento para o outro, o imperador, que quase um ano antes se coroara
acreditando ter pacificado a Hispânia cristã em definitivo, via-se a
braços com duas sublevações simultâneas. A Baixa Galiza, com a
exceção do adormecido Gomes Nunes, percebeu rapidamente a
mensagem, e tanto Celanova como Límia se agitaram, recuperando as
antigas pretensões de se juntarem ao Condado Portucalense.
As mensagens começaram a sobrevoar o Minho e um embrião de
revolta estava em gestação, mas naquela manhã em Tui nada disso
chegara aos ouvidos distraídos de Chamoa e, portanto, foi com enorme
surpresa que ela viu aparecer, na ínsua da margem oposta do rio Minho,
um contingente portucalense de cerca de quinhentos homens.
Meu Deus, é o Afonso?
A nossa estratégia mudara completamente depois das bem-sucedidas
razias nas aldeias mouras do Sul. Informados de que o Trava estava
retido nas Astúrias e o imperador em Navarra, tínhamo-nos decido por
um fossado e não por um cerco tradicional. Chamoa, na sua melancólica
janela do castelo, foi a primeira a topar-nos. A rapariga galega julgou
que a terra tremia debaixo dos seus pés, até perceber que era ela que
chocalhava como um guizo, enquanto o seu coração batia
desenfreadamente.
Estou doida?
Obrigou-se a reagir e cobriu-se com uma manta, descendo ao quarto
de Gomes Nunes, onde este ainda ressonava. Sacudiu-o e o pai acordou
estremunhado, espantado com o grito da filha.
– Entregai Tui a Afonso Henriques, rendei-vos!
O primeiro instinto de Gomes Nunes sempre fora o de sobrevivência
e, nos seus prudentes cálculos, o imperador era o mais forte. Além disso,
uma revolta implicava um conflito frontal com a esposa Elvira e uma
ameaça de perda da regência de Toronho, que Fernão Peres se
encarregaria de executar. Para o convencer, Chamoa dramatizou a
questão, magoando o pai no orgulho masculino e na honra da família.
– Minha mãe chifra-vos de dois em dois meses! Como podeis educar
meus filhos nesses princípios?
Gomes Nunes gemeu, atingido na única identidade de que se
orgulhava, a de avô empenhado. Já derrotado pela verve esperta da filha,
perguntou-lhe:
– Que desejais fazer?
Chamoa defendeu a deposição das armas sem um único combate, mas
Gomes Nunes encostou-se para trás na cama, dizendo-lhe que teria de
ser ela a falar com os portucalenses, pois estava demasiado cansado para
o fazer. Então, Chamoa correu à alcáçova e, vendo que os soldados se
refugiavam já dentro dela, cerrando os portões, deu ordens opostas e
mandou reabri-los.
Porém, mal os portucalenses chegaram, Chamoa recolheu-se e quando
Afonso Henriques apareceu a cavalo, vendo que não ia haver luta,
mandou chamar a normanda Elvira, que viajava na retaguarda das
tropas. Enquanto esperávamos por ela, o príncipe explicou ao pai de
Chamoa que a Galiza já se consumia em lutas.
– Tui é minha e em breve tomarei Límia!
Pêro Pais, que vinha connosco, antecipou-se ao avô e eufórico
declarou que o Condado de Toronho prestava vassalagem ao príncipe de
Portugal, pois era portucalense e sempre seria!
Nesse momento, o inquieto Gomes Nunes perguntou:
– E minha esposa, que lhe fareis?
O príncipe declarou que a mãe de Chamoa merecia o mesmo
tratamento que o Trava dera a Gonçalo, uma temporada nas masmorras
de Tui! Contudo, por respeito ao seu esposo e aos seus netos, sugeriu
como alternativa a sua expulsão imediata.
– Que vá ter com os irmãos!
Pouco depois, uma enfurecida Elvira Peres de Trava foi colocada
numa carroça e, na companhia de quatro soldados, enviada para o Norte
da Galiza, enquanto gritava palavrões, ameaçando o marido, a filha e até
os netos com tenebrosas pragas, prometendo uma vingança épica
liderada pelo irmão Fernão Peres!
Entretanto, a normanda Elvira Gualter chegou e perguntou ao príncipe
se ele havia agradecido a Chamoa, pois fora esta quem lhe entregara o
castelo sem ser necessária uma refrega! A normanda persistia na sua
crença altruísta: Afonso Henriques e Chamoa tinham de ficar juntos,
unindo as terras da Baixa Galiza às do Condado Portucalense e
fortalecendo as pretensões do príncipe. No entanto, este encolheu os
ombros, dizendo que era Elvira Gualter a sua esposa.
– Mandai chamar a rapariga! – gritou então a normanda.
Enfrentando o olhar desagradado de Afonso Henriques, declarou:
– Se sou vossa esposa, posso dar ordens!
Esperta que nem um alho, Elvira Gualter aproveitava o estatuto ímpar
que o príncipe lhe dera para o contrariar. Quando a bela Chamoa
apareceu, bem vestida e penteada, a normanda abraçou-a e gabou os
seus préstimos. Mas, quando pediu ao príncipe que a acompanhasse nos
agradecimentos, este escorraçou a minha cunhada:
– Livrai-me desse Satanás de saias!
Dando meia-volta no seu cavalo asturiano, Afonso Henriques afastou-
se, enquanto Elvira Gualter protestava:
– É mais teimoso do que um burro!
Um abatimento colossal apoderou-se de Chamoa e vi duas lágrimas
descerem pelo seu rosto.
Não mereço isto...
De repente e para surpresa de todos, sobretudo da própria, a
trepidação juvenil que sempre a caracterizara regressou em todo o seu
esplendor. Enfurecida, Chamoa exclamou:
– Fama sem proveito é que não!
Na manhã seguinte, a orgulhosa galega montou um cavalo e partiu
para Coimbra, dizendo que se iria juntar às únicas pessoas que lhe
tinham amizade: o almocreve Mem e a princesa Zaida. Nem Pêro Pais a
demoveu, embora Chamoa lhe tenha feito um pedido final.
– Ficai com o Afonso.
Aquele filho era o único elo que não podia ser quebrado entre ela e o
príncipe de Portugal.
Coimbra, setembro de 1136

O arcediago Telo encontrava-se deitado e a respiração quase não se


notava. Naquela tarde, em que a sua morte já se pressentia, o príncipe e
eu entrámos no seu quarto, no Mosteiro de Santa Cruz, sentando-nos a
rezar junto à cama onde Telo agonizava, na companhia do prior
Teotónio e do novo bispo do Porto, João Peculiar.
Este último, sempre calvo e esguio, vestia uma túnica branca, mais
própria do eremita que no passado fora do que de um recém-nomeado
bispo, mas parecia agitado, talvez pela pressa de partir para Burgos,
onde se iniciaria dentro de dias um concílio liderado pelo representante
de Inocêncio II, o cardeal Guido de Vico.
O cisma papal da Igreja de Roma mantinha-se, mas o ascendente que
o Antipapa Anacleto evidenciava um ano antes, quando fora a Leão
assistir à coroação do imperador Afonso VII, sofrera um notável eclipse.
Europa fora, os seus apoios minguavam, enquanto cresciam os de
Inocêncio II. Contudo, como a querela cristã não estava definitivamente
resolvida, João Peculiar temia que, em Burgos, novos desenvolvimentos
prejudicassem a causa portucalense.
No final do terço, Teotónio beijou a mão do moribundo arcediago,
gesto que foi imitado pelo príncipe de Portugal, mas logo João Peculiar
nos fez sinal para sairmos depressa do quarto. O bispo do Porto chegara
a Coimbra na véspera e verificara com desagrado que o seu homólogo
local já partira para Burgos sem esperar por ele.
– O bispo Bernardo conspira contra vós! – acusou João Peculiar.
Eram conhecidas as más relações entre os dois bispos, o de Coimbra e
o do Porto. O primeiro tentara sabotar a eleição do segundo, insinuando
que este era um duvidoso religioso, dado a crenças malignas e impuras e
a simpatias inaceitáveis por eremitas quase heréticos. Esta maliciosa
campanha obrigara mesmo às intervenções enérgicas do arcebispo de
Braga, Paio Mendes, e até do longínquo abade de Cluny e Cister,
Bernardo de Claraval, para que a escolha de João Peculiar saísse
vencedora.
Tal como as querelas internas de Roma, as da Igreja portucalense
também eram ferozes, mas o príncipe de Portugal duvidou de que as
maquinações intriguistas do bispo Bernardo fossem ao ponto de nos
prejudicar num concílio religioso em Burgos.
– Contra mim ou apenas contra vós? – ripostou Afonso Henriques,
com uma ponta de ironia. – Inocêncio II está connosco!
Em Pisa, no ano anterior, João Peculiar e o arcediago Telo tinham
conhecido o Papa legítimo, regressando de lá com a sensação clara de
que ele apoiava os portucalenses. Porém, João Peculiar insistiu:
– O cardeal Guido de Vico não é o Papa! Pode ser manipulado pelo
bispo Bernardo! Temo por vós e por Portugal!
Como o príncipe permanecia descrente, o prelado interrogou-o:
– Tendes a certeza de que ninguém encontrou a relíquia em Sellium?
O alferes Peres Cativo continuava a manter nas ruínas romanas uma
pequena guarnição e, numa povoação próxima a que chamavam Tomar,
Afonso Henriques decidira construir um castelo. Mas a relíquia
continuava desaparecida.
– O almocreve Mem garantiu-me que Raimunda e Ramiro continuam
em Santarém, tal como Abu Zhakaria! – acrescentei.
Afagando ligeiramente o topo calvo da sua cabeça, Peculiar declarou,
com um toque misterioso na voz:
– Não são os muçulmanos que temo, mas os cristãos.
O famoso abade de Cluny e Cister, Bernardo de Claraval, com quem
Peculiar e o moribundo arcediago haviam estado durante o Concílio de
Pisa, tinha-lhes garantido que a sagrada relíquia podia mudar os destinos
da Cristandade.
Curioso, perguntei-lhe:
– Bernardo de Claraval disse-vos o que é o tesouro?
O bispo do Porto suspirou: o notável abade fora vago, referindo
apenas que o artefacto remontava aos tempos de Cristo, sendo algo em
que o próprio filho de Deus tocara! Em Jerusalém, os templários
originais haviam descoberto a relíquia nas catacumbas do Templo do rei
Salomão, mas como o local estava sempre a ser atacado por mouros e
salteadores os monges guerreiros haviam decidido entregar o valioso
tesouro ao conde Henrique.
– Vosso pai era francês, tal como os primeiros templários de
Jerusalém – recordou João Peculiar.
Depois de abandonar a cidade onde Cristo morrera, o pai de Afonso
Henriques apanhara um barco e deveria ter entregue o artefacto no Sul
de França, mas não o fizera, talvez devido às muitas guerras que
assolavam a região. Em vez disso, o conde Henrique regressara a
Portugal, sempre por mar, dirigindo-se depois a Sellium, onde escondera
a relíquia.
– Vosso pai decidiu que ela seria para vós! – rematou João Peculiar.
Depois de um curto e embaraçado silêncio, Afonso Henriques
perguntou se o prelado estava a insinuar que seu pai traíra os templários,
mas João Peculiar negou-o com veemência.
– Bernardo de Claraval jurou-me que não!
Segundo contara o notável abade, o cavaleiro Gondomar, um dos
nove templários originais de Jerusalém, teria dito expressamente ao
conde Henrique que, caso não conseguisse encontrar em França o
primeiro mestre dos templários, Hughes de Paiyn, deveria levar consigo
o tesouro para terras portuguesas.
– Vosso pai cumpriu o que lhe pediram até chegar a Portugal. Foi só
aqui que tomou decisões inesperadas...
A frase de João Peculiar recordou ao príncipe o que se dizia sobre o
seu progenitor, que nos últimos anos de vida andava confundido, sem as
certezas que sempre aparentara. O conde Henrique era um grande
guerreiro, só que os conflitos políticos com o sogro, Afonso VI, com a
cunhada, Dona Urraca, ou mesmo com a esposa, Dona Teresa, tinham-
lhe retirado a lucidez.
Sentindo-se na obrigação de defender a memória do pai, Afonso
Henriques exclamou:
– Meu pai zangou-se porque não lhe deram a prometida Galiza! Quem
faltou à palavra foi meu avô, Afonso VI, e depois minha tia, Dona
Urraca. Foi por isso que ela o mandou matar!
As agruras daquele passado divisionista, que haviam feito sucumbir o
conde Henrique, permaneciam feridas vivas no coração do príncipe e
eram ainda a principal justificação para as suas lutas imparáveis no
presente. Aliás, Afonso Henriques só viera a Coimbra para se despedir
do arcediago Telo, pois em Guimarães acompanhava melhor os
acontecimentos na Galiza, onde, depois de Tui, também Zamora,
Astorga, Celanova e Límia lhe tinham prestado vassalagem, num
afrontamento claro ao imperador Afonso VII.
– É em honra de meu pai que travo esta luta! – exclamou,
emocionado.
João Peculiar olhou então para todos nós e murmurou:
– Bernardo Claraval teme uma reedição dessa horrível tragédia...
Ficámos incrédulos. O conde Henrique fora mandado envenenar por
Dona Urraca de Leão. Seria possível que alguém andasse a preparar
golpe semelhante contra Afonso Henriques? Sabíamos que existia um
traidor em Coimbra, mas não nos passava pela cabeça que chegasse a
esse ponto de hostilidade. Contudo, João Peculiar avisou que a traição
atual não seria desse tipo, um envenenamento com peçonha, mas sim de
outra natureza, concretizando-se com o roubo da relíquia!
– É um desejo antigo dos leoneses! Já vossa tia Dona Urraca a
procurava e foi por não ter revelado onde a escondera que envenenaram
vosso pai!
De repente, baixando a voz, João Peculiar recordou:
– O traidor é daqui, de Coimbra...
Afonso Henriques mirou-o, desconfiado, e perguntou:
– Achais que é o bispo Bernardo?
O prior Teotónio, incomodado com aquela drástica suspeita, declarou-
a improvável. O bispo Bernardo era francês, viera para Portugal com o
conde Henrique e sempre estivera ao lado deste contra Dona Urraca! É
certo que se tornara um opositor do Mosteiro de Santa Cruz, mas isso
não chegava para o qualificar como traidor!
– João Peculiar, é sabido que o odiais... – acusou o prior.
O bispo do Porto calou-se, visivelmente embaraçado. Porém, também
eu tinha dúvidas sobre as lealdades do bispo Bernardo e relatei aos
presentes que, em Leão, ele se esforçara para agradar ao Antipapa
Anacleto e a Afonso VII.
– Até ofereceu um belo cavalo negro, que vosso primo rejeitou!
Afonso Henriques sorriu, divertido com a inabilidade do bispo
Bernardo, mas considerou que o prelado realizara esse gesto diplomático
para evitar que o monarca leonês exigisse a subjugação de Coimbra ao
arcebispo de Toledo. Depois, acrescentou:
– Apesar da sua oposição ao Mosteiro de Santa Cruz, não acredito que
o bispo Bernardo fosse capaz de nos ser desleal!
Irritado com uma certeza tão definitiva, João Peculiar perguntou:
– Nesse caso, quem é o traidor? Quem, aqui em Coimbra, trabalha na
sombra para Afonso VII?
Aquela desagradável e perniciosa dúvida persistia, mas, para o meu
melhor amigo, as suspeitas de João Peculiar eram apenas motivadas
pelas anteriores guerras pessoais entre os dois bispos. Por isso, logo após
a morte do arcediago Telo, o bispo do Porto partiu para Burgos com
instruções claras: deveria defender as nossas pretensões à Galiza junto
do cardeal Guido de Vico, mas sem hostilizar o bispo Bernardo. Já nos
chegavam os inimigos externos que colecionávamos e que tanto mal
contra nós preparavam...
Coimbra, novembro de 1136

Sempre a primeira a acordar, Chamoa deixou-se ficar quieta na cama e


teve vontade de chorar, com saudades dos filhos, que já não via desde
março. O pai, Gomes Nunes, levara-os no início do verão para
Guimarães, para junto de mim e de minha mulher. Embora os soubesse
bem, a falta dos abraços dos quatro rapazinhos torturava aquela solitária
mãe.
Já falta pouco para o Natal...
Chamoa iria visitá-los, mesmo sabendo que teria de aguentar o olhar
crítico do mais velho, Pêro Pais, quase com dez anos. Firme e decidido,
o filho não tinha gostado da sua partida para Coimbra, nem certamente
aprovaria a sua presença naquela cama.
A dura rejeição de que fora alvo despoletara em Chamoa uma
transformação irreprimível. Em Tui, se Afonso Henriques a tivesse
querido, correria para ele sem hesitar. Mas, perante aquela teimosia
acintosa, perante aquela incapacidade para o perdão, perante aquele
desejo de humilhação permanente com que ele a brindara, desistiu
definitivamente de o amar.
Quem é ele para me desprezar assim?
Transtornada, Chamoa rumara a Coimbra e deixara-se cair nos braços
dos únicos que a amavam sem lhe cobrar e sem lhe castrar as liberdades,
deixando-a ser como ela era, independente e divertida, mas amável e
dedicada. Mem e Zaida eram muito mais tolerantes e justos com ela do
que os cristãos que conhecia.
Ramiro, Mem Tougues, Paio Soares, Afonso Henriques ou Gonçalo
de Sousa eram todos iguais! Queriam mandar nela, ser proprietários
exclusivos do seu corpo e do seu espírito, exigindo-lhe uma fidelidade
que não retribuíam, tratando-a como um ser inferior, só por ser mulher e
não homem! Mem e Zaida nunca a consideravam assim, era igual a eles,
não exigiam mais dela do que a amizade.
Olhou para o seu lado direito e admirou o almocreve, que dormia
tranquilo. Ainda por cima era bonito como poucos, o safadinho. E Mem
fazia-a a sentir protegida, quando se aninhava no seu ombro. Reparou
nas suas mãos grandes e recordou-as a percorrer-lhe o corpo, quentes e
firmes apesar de ásperas, pois Mem passava vida a carregar sacos, pipas
ou animais. Não conhecia um homem tão meigo e atencioso, mas
também tão firme e intenso.
Burrinho, vem à dona...
Chaoma riu-se, divertida. Nunca ninguém lhe dedicara tanta atenção
na cama, revelando um altruísmo inesperado num macho. Os outros
homens haviam sido fervorosos no seu desejo, mas parecia-lhe agora
que o objetivo deles fora o seu próprio prazer individual, ficando
Chamoa remetida ao papel secundário de satisfazer as fantasias alheias.
Para ela, no passado, o sexo sempre fora uma luta entre dois egoísmos,
que normalmente perdia.
Com Mem não era assim... Sendo ainda mais ousado do que os
outros, Mem dedicava-se à procura do prazer dela, dando-lhe a ilusão de
que ignorava o seu. Esta hábil inverdade, pois era evidente que ele
também se extasiava, enchia-a de encantamento e dava-lhe ainda mais
desejo de se submeter às vontades dele, como se já fossem suas.
Sorrindo, com o calor a percorrer-lhe o corpo, Chamoa admitiu, no
entanto, que aquela tórrida química não era apenas um mérito da dupla
que formavam. O mistério daquela explosão permanente de êxtases não
se devia só aos dois.
Ela é que muda tudo...
Olhou para o seu lado esquerdo e observou Zaida. A princesa moura
também dormia e Chamoa apreciou a sua original beleza. Era morena,
os cabelos longos dançavam-lhe pelas costas e tinha um corpo tão bonito
como o dela, apesar de mais roliço nas nádegas e nas ancas. Mas o que
mais apreciava na amiga era a tranquilidade com que vivia cada
momento íntimo, como se tudo nela fosse natural.
Sai à mãe dela...
Nos primeiros dias, depois de chegar a Coimbra, Chamoa tivera
dificuldades em entregar-se. No passado, trocara beijos e carícias com a
princesa e com a mãe dela, Zulmira, mas foi-lhe difícil vencer o pudor e
a culpa que a consumiam. Foram necessárias muita amabilidade e
paciência, de Zaida e do almocreve, para ela finalmente se soltar.
Evidentemente, o vinho ajudou, mas só no verão se libertou dos
derradeiros travões que a sua alma ainda lhe impunha e se deixou ir,
aproveitando ao máximo aquela festa dos sentidos.
Zaida era uma infindável fonte de sabedoria luxuriante, dizia que
aprendera com a mãe, com um livro que haviam trazido de Córdova e
com os ensinamentos com que os haréns da Andaluzia, durante séculos,
haviam treinado as mulheres. E Mem era um professor experimentado,
um mestre silencioso daquelas artes.
E onde é que isto nos vai levar?
No entanto, e apesar daquela harmonia, alarmava-a a incerteza sobre o
seu futuro. Chamoa sabia perfeitamente que um dia Zaida e Fátima, e
talvez também Mem, iriam partir para Córdova. Sentia-se num limbo
quente, a boiar no nada, como se o seu mundo estivesse parado à espera
de que algo acontecesse. Afonso Henriques só viera a Coimbra em
setembro, aquando da morte do arcediago Telo, mas não quisera saber
dela e partira de novo para o Norte.
O imperador gostou de mim...
Afastou aquele pensamento inútil. Afonso VII certamente tinha mais
em que pensar do que nela.
Vai lutar com o Afonso...
Chamoa mordeu o lábio, ligeiramente angustiada. Andava com um
mau pressentimento há dias e dançava-lhe na cabeça a estranha e
macabra profecia de Elvira Gualter
A normanda vê o horror e a luz...
Aflita, puxou o lençol, assustada, e sentiu vontade de ir rezar a
Compostela. Talvez devido à sua agitação, Zaida despertou e perguntou-
lhe se passava bem. Chamoa abriu-lhe o coração, mas a princesa moura
limitou-se a declarar que ela estava com saudades dos filhos. Depois,
abraçou-a, deu-lhe um beijo e desatou a fazer-lhe uma trança, enquanto
Mem acordava também.
Estremunhado, o almocreve perguntou:
– Começaram sem mim?
Elas riram-se e ele murmurou:
– Ainda temos tempo até a Fátima voltar...
Chamoa riu-se e Mem beijou-a primeiro e depois beijou também
Zaida, e abraçou-as às duas.

À mesma hora, no casão agrícola onde dormia sempre que o almocreve


estava em Coimbra, Fátima encontrava-se deitada num colchão de palha,
apenas coberta por uma manta e de olhos ainda fechados. A irmã de
Zaida acordara a meio de um sonho recorrente, mas recusara-se a sair
dele. Vira a mãe Zulmira a ser degolada pelo assassin, o sangue a
espirrar, um punhal a voar. Adorava aquele pesadelo, a angústia que se
apoderava dela, o terror puro que lhe morava na cabeça, o ódio que
despertava no coração. Alimentava-se disso, como os outros dois se
alimentavam da galega. Ela não gostava de homens nem de mulheres,
odiava-os a todos, exceto a Abu Zhakaria, com quem um dia casaria.
Quando abriu os olhos, estava um vulto à sua frente, sentado no chão.
Viu que era Raimunda e decidiu provocá-la:
– Vindes matar-me, magricela?
A bastarda de Ermígio Moniz avisou-a:
– Ismar vai atacar Leiria em maio. Têm de lá ir ter connosco.
Quando se haviam conhecido, uma década antes, em Viseu, Fátima
odiara aquela magricela enamorada do príncipe de Portugal. Porém,
conhecia a história do seu rancor a Afonso Henriques e encontrou nela
uma vontade de vingança com a qual sentiu cumplicidade.
– Como iremos a Leiria? – perguntou. – Estamos prisioneiras.
Raimunda respondeu-lhe sem hesitar:
– A Zaida que convença o bispo Bernardo, ele faz tudo o que ela
pede.
Fátima olhou-a, espantada. Como podia Raimunda conhecer os
segredos mais íntimos da irmã? Incrédula, ouviu-a acrescentar:
– E levem a Chamoa, para ninguém desconfiar de vós.
Raimunda confirmou que o wali de Santarém tinha o exército pronto,
que em conjunto com o de Ismar viria destruir Leiria.
– Afonso Henriques vai desconfiar, se ouvir notícias de que tantos
soldados se aproximam – alertou Fátima.
A rapariga magra não mostrou qualquer preocupação.
– O príncipe vai lutar contra o imperador, não poderá vir.
Dito isto, Raimunda levantou-se, mas antes de sair do casão virou-se
para trás e deu a Fátima uma derradeira instrução:
– Levai o Sultão convosco.
A mais velha das duas princesas mouras sorriu ao pensar no seu
adorado animal e, pela primeira vez em muitos anos, acreditou mesmo
que iam fugir.
Toledo, dezembro de 1136

No salão nobre do Castelo de Toledo, a antiga capital do reino visigodo


reconquistada aos mouros, o Trava fez a vénia devida ao rei dos Cinco
Reinos, que lhe sorriu de volta, agradado com aquele fiel e obstinado
servidor. O nobre galego vencera finalmente o rebelde Gonçalo Pais, no
alto das Astúrias, e estava ali para convencer o imperador a guerrear o
seu belicoso primo, Afonso Henriques.
Vencidas as refregas contra Garcia de Navarra, contidos os berberes
de Temin, irmão do califa Ali Yusuf, que castigavam em permanência o
seu flanco sul, Afonso VII considerava a possibilidade de travar uma
grande batalha contra os portucalenses. Contudo, o prudente imperador
temia dedicar demasiados recursos a essa frente, descurando as outras.
Além disso, o cisma religioso que atravessava a Igreja de Roma e no
qual Afonso VII escolhera apoiar o Antipapa Anacleto contra o Papa
legítimo, Inocêncio II, sofrera uma alteração considerável. O inábil
Anacleto alienara o apoio de muitos reis europeus e de várias
importantes ordens religiosas, como os templários e os hospitalários. Era
uma questão de tempo até ter de admitir a derrota, retirando-se da luta
sem glória e devolvendo o usurpado trono de São Pedro a Inocêncio II.
Porém, a queda em desgraça do incompetente Anacleto seria também
uma humilhação para o seu mais poderoso apoiante, o imperador da
Hispânia.
– Para vos punir, Inocêncio II poderá reconhecer vosso primo como
rei de Portugal – avisou o Trava.
Durante o Concílio de Burgos, o cardeal Guido de Vico, representante
de Inocêncio II, mostrara-se inclinado a apoiar as pretensões de Afonso
Henriques na Galiza, embora sem entusiasmo excessivo.
Era, pois, necessário engendrar uma alternativa que complicasse a
posição de Afonso Henriques aos olhos do Papa. Ardiloso, o Trava
declarou que só tinham como opção uma nova guerra. Afonso Henriques
tomara Tui, Celanova, Límia, Astorga, até Zamora. Em menos de um
ano, a Baixa Galiza submetera-se a ele, afrontando o rei de Leão, de
quem se exigia uma retaliação implacável.
Mas o imperador hesitava: se as tropas leonesas e castelhanas
abandonassem Toledo para subir ao Norte, deixavam a capital do
Império Hispânico à mercê dos almorávidas.
– Temin não parte! Ouve-se dizer que vai para África há três anos,
mas tem ficado sempre – resmungou Afonso VII.
O Trava recordou que o general almorávida tinha de esmagar as
revoltas que já sacudiam Valência, Mérida e Sevilha, certamente não iria
atacar Toledo, mas Afonso VII manteve-se em silêncio algum tempo e
depois perguntou:
– Os templários apoiam o meu primo?
A Ordem do Templo, cujo inspirador fora o francês Bernardo de
Claraval, estava claramente com o Papa Inocêncio II. Além disso,
explicou o Trava, o abade de Cluny era francês, como o conde Henrique,
e nutria grande simpatia por Afonso Henriques.
– Bernardo de Claraval diz que a relíquia é dele.
O imperador praguejou, irritado, mas Fernão Peres sossegou-o: para
já, o artefacto estava impossível de encontrar, não existia esse perigo.
– O importante é derrotar Afonso Henriques! – exclamou o Trava. –
Se o eliminarmos, Claraval fica sem o seu paladino portucalense.
Se o príncipe desaparecesse, defendeu o Trava, os territórios
portucalenses seriam dedicados vassalos de Afonso VII.
– A relíquia será vossa nesse dia! – prometeu Fernão Peres.
O rei dos Cinco Reinos olhou-o, desagradado, e declarou em voz
baixa:
– Não desejo a morte de meu primo.
Imediatamente tenso, o Trava insistiu:
– Só assim haverá sossego!
O imperador não aceitou tal destino, pois, apesar de tudo, estimava o
primo. Embora o considerasse um impetuoso e até um quebrador de
promessas, concedia alguma legitimidade às velhas pretensões do conde
Henrique e de Dona Teresa, que o filho de ambos mantinha vivas.
– Foi nesta mesma sala que meu avô, Afonso VI, os prejudicou.
Pouco antes de morrer, o anterior imperador decidira que a Galiza não
ficaria para a sua segunda filha, Dona Teresa, mas que todos os reinos
hispânicos se deviam unir com o casamento de Dona Urraca e Afonso I
de Aragão. Os pais de Afonso Henriques haviam sido afastados e, logo
após a morte de Afonso VI, as guerras civis começaram a sacudir os
reinos cristãos e até ao presente não se haviam extinguido.
– Talvez devesse coroar meu primo como rei de Portugal e da Galiza,
corrigindo o terrível erro de meu avô – murmurou Afonso VII.
O Trava mostrou-se siderado com tal perspetiva. Afonso Henriques
guerreara a própria mãe! Roubara-lhe o Condado Portucalense,
lançando-a depois a ferros e ignorando-a até ao dia da sua morte! Era
um usurpador, um falso Judas, que até já prometera vassalagem a
Afonso VII mas nunca a prestara!
– Está a espalhar a rebelião na Galiza, e Gonçalo Pais, o conde das
Astúrias, juntou-se a ele!
O príncipe de Portugal tinha agora um fortíssimo aliado. Notando a
testa franzida do imperador, o Trava lançou mais achas na fogueira.
– Vosso primo ainda vira o arcebispo de Compostela contra vós...
Sabeis bem o quanto Gelmires se pela por relíquias!
A desagradável perspetiva de ver um fortíssimo rival a dominar a
Galiza e o Condado Portucalense, apoiado pelo Papa legítimo, pelos
templários de Bernardo de Claraval e talvez mesmo pelo arcebispo de
Compostela, fez aumentar os receios do imperador, mas não da forma
que o Trava esperava. Para sua grande surpresa, aquele agigantamento
do príncipe de Portugal fascinou Afonso VII.
– Meu primo tem uma aura...
Afonso Henriques era amado por Deus desde pequeno, nascera com
as pernas atrofiadas e por milagre elas haviam crescido, tornando-o num
gigante!
– E a busca da relíquia está amaldiçoada. É como se Deus não
quisesse que ela me viesse parar às mãos, mas sim às de Afonso
Henriques...
Estranhamente, o imperador parecia já aceitar que o primo era o
desejado rei cristão do Oeste peninsular, como proclamava Bernardo de
Claraval. De repente, erguendo o sobrolho, perguntou:
– Vossa sobrinha ainda o ama?
Fernão Peres de Trava enervou-se:
– Chamoa é uma tola!
O imperador sorriu-lhe e murmurou:
– Que bela tola...
Irritado, o Trava anunciou que a filha de Gomes Nunes fora repudiada
pelo príncipe de Portugal em Tui e rumara a Coimbra, onde vivia no
presente em casa de uma moura. Até os filhos deixara, mostrando o seu
carácter dissoluto e irrazoável.
– E se a convidássemos a vir a Toledo, fazer-me uma visita? –
perguntou o imperador, já sorridente.
O Trava ficou uns momentos pensativo, tentando engendrar uma
forma de satisfazer o seu monarca, e depois murmurou:
– Há uma possibilidade...
Uma pessoa chegara recentemente à capital, para lhes fazer uma
proposta inesperada, vinda da parte do príncipe Ismar. Talvez o
imperador a devesse ouvir.
– Que tem isso a ver com Chamoa? – perguntou Afonso VII.
O Trava alegou que a mulher em causa poderia convencer Chamoa a
vir até Toledo. Mais agradado, Afonso VII lá acedeu e o Trava mandou
entrar na sala a minha prima Raimunda, a quem disse:
– Contai ao imperador o que me haveis contado a mim.
Sem que a voz lhe tremesse, Raimunda informou o rei de Leão de que
o príncipe Ismar, governador de Córdova, tinha já pronto um exército
para se juntar ao de Abu Zhakaria, wali de Santarém. Cinco mil homens
iriam atacar o novo Castelo de Leiria e destroçar Peres Cativo, em
Sellium. Porém, e para ser mais eficaz, Ismar queria que o ataque
mouro, no Sul, se desse em simultâneo com uma batalha onde Afonso
VII enfrentaria os portucalenses, algures na Galiza.
Entusiasmado, o Trava exclamou:
– Atacamo-lo nas duas frentes ao mesmo tempo!
O imperador sorriu, o plano de Ismar agradava-lhe. Não queria matar
o primo, mas era importante enfraquecê-lo fortemente. Por outro lado,
os mouros não desejavam conquistar Coimbra, mas apenas Leiria e
Sellium. Obteriam uma vitória que, não pondo em risco fatal o Condado
Portucalense, seria mesmo assim dolorosa.
Além disso, matutou Afonso VII, existia outra consequência
positiva... Vencendo em Leiria, o príncipe Ismar tornava-se um
revoltado perigoso, capaz de unir a Andaluzia árabe, e certamente que
Temin iria receber ordens do califa Ali Yusuf para o guerrear. Quanto
mais os mouros lutassem entre eles, mais facilmente os poderia vencer,
concluiu o imperador, que, contente, aprovou o sofisticado estratagema
de Raimunda, impondo uma exigência:
– Se for encontrada, a relíquia de Sellium terá de me ser entregue.
Como é óbvio, a minha prima aceitou a condição. Para ela, bem como
para os muçulmanos, a relíquia não tinha qualquer valor. Tudo o que
Raimunda desejava era a desgraça de Afonso Henriques, que começaria
com aquela simultânea derrocada, na Galiza e em Leiria.
Quando a minha prima se preparava para se retirar, Afonso VII
lançou-lhe uma pergunta final:
– Sabeis quem é Chamoa Gomes?
Raimunda empalideceu, mas confirmou que conhecia a sobrinha do
Trava. Então, o imperador exigiu-lhe, com um sorriso nos lábios:
– Além da relíquia, trazei-me também Chamoa!
Cerneja, maio de 1137

A grande batalha da Galiza estava prestes a começar e uma sensação


mista de excitação e temor apoderara-se de mim, pois nunca estivera
integrado num exército tão vasto e confrontado com um inimigo tão
numeroso. Ali, nos campos de Cerneja, ao norte da cidade de Límia,
travaríamos sem qualquer dúvida a nossa maior batalha de sempre.
O imperador e o Trava chefiavam dez mil leoneses, castelhanos e
galegos. À nossa frente, via-se um lençol de armas, cavalos, tendas e
gente estendido pelo horizonte, para parecer ainda mais vasto e
assustador. Mas, se eles pensavam que assim nos intimidavam, estavam
enganados. Pela primeira vez na história do Condado Portucalense, o
nosso exército era quase tão grande como o do imperador e sabíamos
que, a haver surpresa, ela estava do lado dos adversários, que não
esperavam tanta gente nossa.
Éramos ao todo oito mil. Quatro mil estavam connosco desde o início
do ano, recrutados no Entre Douro e Minho, cujos ricos-homens nos
apoiavam fielmente. Da Maia, do Porto, de Baião, de Lanhoso, de
Braga, de Lamego e, claro, de Guimarães tinham vindo hordas de
besteiros, escudeiros, peões e cavaleiros-vilões, que se haviam juntado à
gesta histórica de cavaleiros de Coimbra.
Para além destes, o Braganção apresentara dois mil homens, um
esforço tremendo que a todos espantou! Essa fora a primeira das duas
boas surpresas que tivemos, pois poucos dias após a chegada do senhor
de Bragança apareceu Peres Cativo com os seus mil homens, que
trouxera do Sul, onde suspendera os fossados deixando apenas uma
pequena guarnição de cem homens em Sellium.
Por fim, contávamos ainda com mil asturianos, fiéis de Gonçalo Pais,
conde das Astúrias, que, depois de ter sido expulso dos seus castelos
pelo Trava, tinha atravessado o Minho e aparecido em Guimarães, onde
nos prometera a sua lealdade, com um violento desejo de desforra a
habitar-lhe o coração.
De braços abertos, Afonso Henriques recebera aquele homem de
quase sessenta anos, sólido como uma rocha e com vastíssima
experiência de combates, e só lhe revelara um único pesar:
– Lamento que o meu cavalo não seja tão corajoso como vós!
O animal colossal que anos antes Gonçalo de Sousa lhe oferecera
continuava a demonstrar as suas fragilidades e, na véspera do grande
confronto, era essa a principal preocupação do príncipe, que confiava
muitos nos seus homens, mas pouco na sua cavalgadura.
– Se vires que recua, matai-o!
A proposta de Gonçalo Pais era reveladora da dureza característica
dos naturais das rochosas e altas Astúrias, mas o príncipe tinha
dificuldade em ser tão drástico, pois, apesar de tudo, afeiçoara-se ao
animal e considerava-o o único capaz de o carregar juntamente com o
seu escudo e a sua espada.
– Não tenho melhor – comentara Afonso Henriques.
Entregando o cavalo ao escudeiro, o príncipe e eu dirigimo-nos à sua
tenda, seguidos por Pêro Pais. Depois de despir a armadura e a cota de
malha, o meu melhor amigo pousou o escudo e, apenas com a túnica
vestida, levantou a grande espada de seu pai.
– Amanhã cumpro a promessa que vos fiz, Lourenço Viegas... Vamos
derrotar o imperador!
Sorri, confiante que assim seria, e nesse momento entraram na tenda
Peres Cativo, o Braganção, alguns cavaleiros-vilões e também o
silencioso Gonçalo de Sousa, que Afonso Henriques chamara desta vez
depois de algum tempo de exílio, mas a quem não dirigiu a palavra, pois
continuava ressentido com ele.
O príncipe pousou a espada e sentámo-nos todos de roda de uma
mesa, examinando os mapas da região, procurando decidir qual a melhor
estratégia, quando surgiu também o conde das Astúrias, que se dirigiu à
espada do conde Henrique e, para surpresa de muitos, a levantou no ar,
admirando-a. Alguns dos presentes franziram a testa, enquanto Gonçalo
Pais recordava:
– Combati com vosso pai em Saragoça, contra os mouros. Ambos
fazíamos parte dos exércitos daquele casal de doidos, Dona Urraca e
Afonso I de Aragão.
Volteando a arma, que tinha de pegar com as duas mãos, pois era
extremamente pesada, o asturiano proclamou:
– Vi-o a destroçar mais de trinta mouros com esta espada!
Certo dia pedira ao conde Henrique que lha emprestasse, para ver se
com ela conseguia combater, mas ao fim de pouco tempo pousara-a,
esgotado. Com a voz embargada de emoção, continuou:
– Ele fazia-o com uma única mão. Ficávamos todos espantados...
Examinado a longa lâmina, perguntou a Afonso Henriques:
– Sabeis o nome dela?
O príncipe não fazia ideia de que aquela espada tinha um nome, nunca
ninguém lho dissera, o que levou Gonçalo Pais a revelar que fora ele a
sugerir aquele batismo ao pai de Afonso Henriques, que o aprovara. Por
fim, levantando a espada ao alto, nomeou-a:
– Tormenta!
Uma emoção forte nasceu nos nossos corações, aquela arma tinha um
nome assustador e apropriado. Intrigado, Gonçalo Pais perguntou:
– Ides usá-la amanhã?
O príncipe declarou que a usava sempre, o que levou Gonçalo Pais a
suspirar.
– É pena que a tenhais de usar contra cristãos.
Pousou a grande espada e olhou para os mapas à nossa frente. Havia
um consenso já formado, as nossas tropas seriam dispostas em três
grandes contingentes. No meio, ficariam os quatro mil soldados de
Afonso Henriques, liderados por ele e por mim; à esquerda estaria o
Braganção, com os seus homens, contando com a ajuda de Gonçalo de
Sousa; e à direita os restantes soldados, liderados por Peres Cativo, a
quem se juntariam os asturianos de Gonçalo Pais.
A nossa ideia era travar um combate tradicional. Os arqueiros e
besteiros disparariam as primeiras salvas, tentando causar estragos ao
inimigo. Depois, a nossa cavalaria avançaria, a partir do centro,
carregando contra os exércitos do imperador. Sendo diferente o total das
tropas de ambos os lados, com vantagem de dois mil homens para os
adversários, considerávamos, no entanto, que tal desequilíbrio não era
suficiente. Se conseguíssemos quebrar as primeiras vagas de soldados
opositores, poderíamos vencer no corpo a corpo que se seguiria.
Contudo, Gonçalo Pais avisou-nos de que os adversários usariam uma
arma nova, a lança comprida.
– Foram essas malditas que me derrotaram.
Eram lanças de cinco ou sete metros, de madeira, mas com ponta de
ferro, que davam uma vantagem enorme aos cavaleiros que as traziam,
pois atingiam os seus opositores primeiro. Tal como nós, os asturianos
usavam lanças mais curtas, de dois metros, e por isso nem chegavam a
atingir os inimigos.
– A nossa cavalaria foi dizimada – murmurou Gonçalo Pais.
O velho conde tinha a certeza de que o Trava ia repetir o
procedimento. Quando os leoneses, castelhanos e galegos embatessem
nos nossos, seríamos destroçados sem piedade.
– O que podemos fazer então? – perguntei.
Gonçalo Pais notara que aquela grande campina, a meio da qual se
daria o combate, era na verdade um vale pouco pronunciado.
– Colocai arqueiros escondidos nas encostas destas ligeiras elevações.
Aqui, aqui, ali e ali – apontou o conde no mapa.
Durante a noite, os besteiros e os arqueiros avançariam a coberto do
escuro, misturando-se com as ervas e as pedras e escondendo-se de
forma a poderem atacar lateralmente a cavalaria inimiga.
– À direita e à esquerda, no vale central, fustigarão os cavaleiros do
imperador com as suas flechas. – disse Gonçalo Pais.
Aquele hábil estratagema seria complicado de levar à prática, pois era
difícil colocar tanta gente naqueles locais sem o inimigo reparar.
– Há o risco de condenarmos essa gente à morte – avisou Peres
Cativo.
Sugeri então uma forma de distrair o adversário:
– Podemos provocar um incêndio no nosso acampamento. Se pegar
ainda de noite, ninguém vai estranhar o movimento das pessoas, a
gritaria, o Trava pensará que estamos a apagar o fogo.
Assim foi. Quando a noite atingiu o seu ponto mais alto, as primeiras
labaredas surgiram e o incêndio propagou-se, crescendo em intensidade,
embora sempre controlado. A azáfama que gerou permitiu que mil
arqueiros e besteiros rastejassem na direção do inimigo, instalando-se
secretamente nas duas encostas do vale.
Já de madrugada, nada se via, pois os homens escondidos estavam a
ser irrepreensíveis no seu silêncio e na sua quietude, os gritos que ainda
se ouviam eram os dos combatentes do fogo, divertidos a executarem
aquele engenhoso embuste.
Depois das rezas e do nascer do Sol, os combates começaram. Os
adversários atiraram as primeiras salvas de flechas e atacaram com o seu
mais forte trunfo, as lanças compridas. Três mil cavaleiros leoneses,
castelhanos e galegos, lançaram-se numa correria desenfreada e, nesse
momento, percebi o quanto Gonçalo Pais estava certo. Se aquelas lanças
compridas chegassem a embater nas nossas, curtas, teria sido um
desastre...
Mas não foi, pois quando a cavalaria do imperador estava a atravessar
o pouco pronunciado vale central, os nossos arqueiros e besteiros
levantaram-se e, colocando um joelho no chão, dispararam uma, duas,
três, quatro, cinco salvas de flechas certeiras, que dizimaram a cavalaria
inimiga. Em pouco tempo, mais de mil cavaleiros adversários
tombaram, enquanto os restantes, aterrados e confundidos, davam meia-
volta, recuando à pressa, tentando proteger-se de uma morte quase certa
ou de terríveis ferimentos, em especial os causados pelos besteiros, cujas
pequenas flechas atingiam uma velocidade tremenda, trespassando as
cotas de malha dos seus alvos.
Pressionado, o imperador mandou recuar os homens, e quando
Afonso Henriques notou esse movimento defensivo lançou a cavalaria à
desfilada, aproveitando a circunstância de a maioria dos galegos,
leoneses e castelhanos estarem no chão a agonizar, feridos pelas nossas
flechas iniciais. O desfecho da contenda parecia traçado, a vitória estava
ao nosso alcance, embora ainda demorasse, pois havia quem lutasse
ferozmente contra nós, num corpo-a-corpo perigoso e demorado.
Aliás, chegou mesmo a viver-se um terrível susto entre os
portucalenses. O cavalo asturiano de Afonso Henriques pregou mais
uma das suas partidas e recuou, sentando-se e obrigando o príncipe a
desmontar muito perto dos leoneses. Irritado, o meu melhor amigo
saltou para o chão, mas não reparou que um cavaleiro inimigo se
aproximava sorrateiramente das suas costas. Aflito, tentei gritar-lhe, mas
o barulho que nos cercava impediu-o de me ouvir.
Para minha grande surpresa, vi surgir Pêro Pais, o filho de Chamoa,
com uma espada na mão. De cabeça baixa, correndo entre os cavalos e
os soldados, o rapazito aproximou-se do leonês e, quando este levantava
a lança para a atirar contra as costas de Afonso Henriques, o filho de
Chamoa espetou-lhe a espada junto aos rins.
Ouvi o inimigo gritar de dor, dobrando-se, ao mesmo tempo que o
príncipe de Portugal se virava para trás, percebendo o que estava a
acontecer. Pêro Pais salvara-lhe a vida e, quando cheguei perto de
ambos, abracei-o, enquanto Afonso Henriques lhe sorria, orgulhoso do
feito do rapaz.
Afonso VII era um homem inteligente e rapidamente concluiu que
não valia a pena sacrificar mais tropas. De súbito, vimos as bandeiras
brancas a esvoaçarem na nossa direção e a euforia que se instalou entre
os portucalenses foi imensa. Aos berros, saudámos o príncipe de
Portugal por aquela tremenda e épica vitória, e agradecemos ao conde
das Astúrias os seus essenciais conselhos, sem os quais não teríamos
vencido.
O único que não participou nos festejos grandiosos que se
prolongaram a tarde toda foi o cavalo asturiano de Afonso Henriques,
que continuava sentado, decerto baralhado com tanta agitação.
– Matai-o com a Tormenta, cortai-lhe a cabeça! Esse cabrão
envergonha-me, não presta para nada! – rugiu Gonçalo Pais.
O conde asturiano estava furioso perante o embaraço que o animal,
nascido na sua terra, lhe estava a causar. Só que Afonso Henriques não
teve coragem para matar o cavalo e mandou os escudeiros levarem-no
de volta para o acampamento, enquanto declarava aos enviados do
imperador que aceitava ir até Tui, onde assinaria a paz proposta pelo
primo.
Enquanto os últimos ecos da batalha se extinguiam, o meu melhor
amigo chamou Pêro Pais. Os seus principais conselheiros estavam de
roda dele, quando o filho mais velho de Chamoa se aproximou, de
cabeça levantada, mas olhar preocupado.
– Sois demasiado jovem para guerrear – disse-lhe Afonso Henriques.
Pêro Pais baixou a cabeça, aceitando o sermão. Tinha dez anos e não
chegara ainda à idade de combater.
– Se vossa mãe sabe disto, vai zangar-se comigo...
Sorri levemente. Chamoa já estava zangada com ele, mas certamente
iria admirar o filho, que, ignorando as ordens, correra para o centro da
batalha para salvar Afonso Henriques.
– Mas... – continuou o príncipe de Portugal – o que haveis feito revela
a vossa grande coragem e a vossa extrema lealdade!
Pêro Pais sorriu, encantado por ouvir aquelas palavras do seu ídolo,
enquanto eu me dava conta de quanto eram irónicos os caminhos de
Deus. O pai daquela criança, Paio Soares, fora ferido com brutalidade
por Afonso Henriques durante a batalha de São Mamede, morrendo em
consequência desses ferimentos. Nove anos depois, em Cerneja, o seu
filho salvara a vida do homem que o matara.
Mostrando um descaramento impetuoso nada habitual num rapaz tão
novo, Pêro Pais ajoelhou-se ao pés do príncipe e pediu:
– Armai-me cavaleiro, pois quero servir-vos para sempre!
Comovido, Afonso Henriques aproximou-se do filho mais velho de
Chamoa, tocou-lhe no ombro direito com a ponta da Tormenta, depois
no esquerdo e por fim no topo da cabeça, enquanto dizia, numa voz
solene:
– Em nome de Deus e do apóstolo Santiago, eu, Afonso Henriques,
príncipe de Portugal, armo cavaleiro Pêro Pais, filho de Paio Soares e
Chamoa Gomes, pela graça de Jesus Cristo e de Nossa Senhora.
De seguida, mandou o rapaz levantar-se, abraçou-o e disse-lhe:
– Na próxima batalha, estareis a meu lado, prometo-vos.
Sorri, comovido com aquele momento. Assim nascia Portugal, com
um príncipe vitorioso e orgulhoso dos seus valentes filhos, mas sem
saber ainda das terríveis ciladas que os inimigos lhe preparavam.
VI
A Relíquia
Sagrada
1137
Leiria, maio de 1137

A meio da manhã, Zaida viu aparecer ao longe o novo Castelo de Leiria,


situado numa elevação junto ao rio Lis. Ela, Chamoa e Mem viajavam
na carroça do almocreve, enquanto uma sorridente Fátima montava o
Sultão, seguida por uma companhia de dez soldados, que o bispo de
Coimbra destinara que os acompanhassem.
Filha, porque sorri vossa irmã?
Meses antes, durante uma refeição em casa das princesas, Fátima
louvara a beleza e a imponência do novo Castelo de Leiria, sugerindo
que elas o deviam visitar. Mortinha por uma viagem, Chamoa propusera
uma ida a quatro, mas Fátima recordara o estado de cativeiro das duas
princesas, acrescentando de forma subtil que, estando Afonso Henriques
ausente, só o bispo Bernardo as podia autorizar.
– Nesse caso, vamos falar com ele! – exclamara Chamoa.
Apesar do óbvio incómodo de Mem, sempre inquieto quando o bispo
e Zaida se aproximavam, Chamoa arrastara esta última até à Sé,
alegando que o prelado a adorava e certamente aprovaria.
Durante algum tempo, o bispo Bernardo resistiu e foram necessárias
várias visitas amáveis de Zaida, até ele dar finalmente a permissão
desejada para a viagem dos três, desde que vigiados pelos soldados.
Partiram em maio e a jornada demorou dois dias. Quando entraram no
castelo, Zaida reparou que o olhar de Fátima brilhava de emoção, o que
só se justificava se Abu Zhakaria andasse por perto.
Filha, ficai atenta...
À porta de Leiria, Chamoa mostrou-se deslumbrada com as suas
muralhas e ameias, onde as pedras graníticas, ainda esbranquiçadas e
sem a usura do tempo, resplandeciam de brilho ao sol. Depois, referiu
Paio Guterres, o alcaide a quem chamavam Cipião Africano, pois era um
hábil guerreiro que lembrava o célebre romano.
– Será bonito? – perguntou ela, pela décima vez.
Mem sussurrou a Zaida que o dito era feio como os trovões, mas era
melhor não estragar a surpresa. O almocreve temia um imprevisto e
decidiu precaver-se, colocando ao ombro o seu arco e a aljava, carregada
de flechas. De seguida, murmurou a Zaida:
– Se Zhakaria atacar, temos de nos esconder.
A princesa mais nova olhou para Chamoa, mas Mem abanou a
cabeça, dando a entender que a galega não iria com eles. Pouco depois,
o alcaide veio recebê-los à entrada da alcáçova e, num frenesim
esperançoso, Chamoa desatou a parlamentar com ele, volteando a
dalmática e batendo as pestanas.
Filha, é tão tola...
Paio Guterres, entusiasmado com o charme ostensivo de Chamoa e
talvez já fantasiando com uma possível sorte noturna, convidou-a a
instalar-se numa casa junto à sua, mas destinou às princesas mouras
outra habitação na almedina. Enquanto Chamoa aceitava, lisonjeada,
Zaida agradou-se em silêncio com aquela separação forçada.
Ela não sabia ainda o que esperar e Fátima também não a elucidou.
Depois da ceia, a mais velha das princesas avisou Zaida e Mem de que
ia passear junto às muralhas do Castelo de Leiria e, se fosse caso disso,
viria avisá-los. No entanto, Fátima nunca reapareceu, quem o fez foi
uma sorridente Chamoa, que ao entrar na casa deles declarou, divertida:
– Tive saudades vossas!
Mem e a princesa moura trocaram um olhar angustiado, enquanto a
minha cunhada contava que recusara os avanços de Paio Guterres, por
ele ser tão feio. Contudo, ao vê-los tão tensos, calou-se.
– Ide para a alcáçova... – disse Zaida.
Com uma suspeita crescente, a rapariga galega interrogou-a:
– Onde está a Fátima?
A princesa mais nova preparava-se para justificar a ausência da irmã
quando Chamoa, de olhos esbugalhados, deduziu que eles não tinham
vindo conhecer a cidade. Embaraçado, Mem baixou os olhos, enquanto
Zaida se mantinha calada. Enervada, sentindo-se já à margem, Chamoa
exclamou:
– Por esta não esperava!
Irritada, saiu porta fora. O almocreve praguejou e correu atrás dela,
obrigando também Zaida a segui-los. Os três foram andando pela
almedina, ouvindo Chamoa barafustar, indignada por a quererem enrolar
de uma forma tão descarada.
– Queriam fugir sem mim? Que ricos amigos!
Ia em passo apressado, mas perto da cavalariça viram um vulto surgir
à sua frente e a rapariga galega parou de imediato. O almocreve retirou
uma flecha da aljava, apontou-a ao desconhecido e perguntou:
– Quem sois?
Envolto num manto negro, o homem avançou e, quando a luz da Lua
lhe iluminou o rosto, Zaida reconheceu-o: era Ramiro!
Filha, cuidado, é gente má!
Mem manteve o arco tenso, mas Chamoa não hesitou. Dando dois
passos em frente, abraçou o bastardo do seu falecido marido Paio
Soares, mostrando-se muito feliz por ver Ramiro. Embasbacado com
tanta ternura, este balbuciou, os olhos fixos nela:
– Chamoa...
Ela interrogou-o, perguntando-lhe o que se passara com ele e o antigo
templário engoliu em seco, atrapalhado.
– Estive preso pelos mouros.
Zaida fez um esforço para reavivar a memória. Em Sellium, Mem vira
Ramiro matar o Velho e depois correr atrás de Raimunda. Teria sido
preso por Zhakaria? Afonso Henriques fora alvejado por uma flecha,
mas teria sido mesmo o bastardo a dispará-la?
Encantada, Chamoa exclamou:
– Nunca acreditei na vossa traição!
Depois e sempre empolgada, beijou-o no rosto e sugeriu:
– Vinde falar com o alcaide!
Nesse momento, o pálido Ramiro afirmou, assustado:
– Os mouros estão perto, vão atacar Leiria!
Zaida deduziu que era esse o plano de Fátima: enquanto Zhakaria
atacava o castelo, elas escapavam-se. Por isso, a irmã a levara a
convencer o bispo, por isso trouxera o Sultão!
Filha, é hoje!
A seu lado, com uma voz preocupada, o almocreve disse:
– Vamos...
Porém, e muito aflito, Ramiro agarrou Chamoa e gritou-lhe:
– Tendes de fugir, eles querem matar-vos!
O antigo templário desatou a falar muito depressa. Ismar e Zhakaria
tinham decidido lançar uma ofensiva contra Leiria! Mas Raimunda
odiava Chamoa, queria matá-la para enfurecer Afonso Henriques!
Angustiado, olhou para o almocreve e perguntou:
– Tendes a vossa carroça?
Nesse momento, ouviu-se uma trombeta cristã, anunciando perigo. Ao
fundo, junto ao portão leste, os quatro viram um grupo de homens
entrar, de alfange na mão. Em pânico, Ramiro puxou Chamoa pela mão
e começou a correr na direção da cavalariça, gritando que os outros o
seguissem. Ainda numa rua da almedina, cruzaram-se com Paio
Guterres, que liderava um grupo de soldados portucalenses e lhes disse
que Leiria estava a ser fortemente atacada por mouros, sendo melhor
que eles se fechassem na alcáçova. Olhando para Chamoa, embevecido,
o alcaide exclamou:
– Ide, bela Chamoa, já volto para vos proteger!
O valoroso Paio Guterres seguiu em direção aos primeiros combates,
enquanto ela começava a caminhar para a alcáçova. Porém, o alterado
Ramiro pegou-lhe na mão e repetiu:
– Chamoa, os mouros vão matar-vos!
Tinham de ir à cavalariça buscar a carroça, reforçou o bastardo, mas
quando lá chegaram não viram o Sultão entre os restantes animais. O
almocreve atrelou os jumentos e subiram os quatro para o veículo, mas a
princesa mais nova declarou que não abandonava Leiria sem Fátima!
Ramiro olhou-a, irritado.
– Eles matam a Chamoa, depois de a possuírem cem vezes!
De repente, apontou uma flecha a Mem e gritou-lhe:
– Guia a carroça daqui para fora!
As duas mulheres berraram ao mesmo tempo. Chamoa pretendia
fugir, aterrada com a perspetiva de cruéis sarracenos a magoarem-na,
mas não queria que Ramiro molestasse os amigos. E Zaida insistiu que
jamais deixaria Fátima para trás! Então, um enfurecido Ramiro apontou
a flecha a Zaida e ameaçou:
– Avança com a carroça, estúpido almocreve, senão mato-a!
Aflito, mas contrariado, Mem espicaçou finalmente os jumentos.
Pouco depois, saíram do Castelo de Leiria pelo mesmo portão por onde
tinham entrado nessa manhã, enquanto nas suas costas se ouviam já os
gritos aterradores de um feroz combate.

Só tempos mais tarde percebemos as ações de Ramiro. Aquele


embusteiro miserável participara no ataque secreto a Leiria, que planeara
em conjunto com Zhakaria e Raimunda. Por ser cristão, não despertava
suspeitas nos arredores da povoação e fora o primeiro a dirigir-se à
cidade. A sua missão era abrir o portão leste e assim fizera, matando três
sentinelas sem que estas dessem um pio. Porém, ao ver Chamoa e
desconhecendo a presença dela em Leiria, ou sequer o pedido que o
imperador fizera a Raimunda, que esta nunca revelara, Ramiro
transformara-se em instantes. A paixão do passado impusera-se.
Abraçado e beijado por Chamoa, o seu primeiro amor, ele decidira
salvá-la!
Por mais estranha e imprevisível que tenha sido a sua conduta, a
verdade é que foi Ramiro quem salvou a vida de Chamoa. Se ela tem
ficado naquela alcáçova, como propunha o desejoso alcaide, teria
certamente encontrado um destino tão trágico como os outros cristãos
que lá permaneceram.
Leiria, maio de 1137

Abu Zhakaria era um guerreiro exímio, mas esventrar mil pessoas era
uma proeza para além da imaginação bélica do cordovês.
Raimunda, a minha prima, era uma fanática, uma alma danada
consumida pelo rancor, mas o seu alvo era Afonso Henriques. Esfolar
cristãos, retirando-lhes as vísceras e deixando-os a apodrecer ao sol, era
uma vertigem assassina que ultrapassava a sua fantasia vingativa.
Não foi ela...
Quanto a Ismar, certamente que a glória de uma vitória contra os
cristãos lhe era saborosa, mas uma exibição de tamanha malevolência
extravasava os gostos épicos de um fino político.
Foi a minha amada...
A verdadeira promotora daquele vislumbre do Inferno na terra foi
Fátima. Vinte e um anos depois de ter sido presa em Coimbra e oito
anos depois de ter visto a mãe ser degolada à sua frente, a irmã de Zaida
viu naquela noite uma oportunidade para uma agressão histórica. Foi ela
quem convenceu Ismar a patrocinar as atrocidades.
E nós aceitámos...
A população local, onde não se contavam mais de quatrocentas almas,
e a guarnição de Leiria, formada por cerca de seiscentos homens, não
tiveram quaisquer hipóteses de se defender. Uma curta guarda avançada
de mouros escalou as muralhas em segredo e degolou as solitárias
sentinelas. Zhakaria foi dos primeiros a entrarem, pela porta sul,
enquanto Ramiro abria o portão leste, possibilitando que vagas de
soldados invadissem a almedina. Quando a trombeta cristã anunciou o
ataque, a cidade já estava perdida.
Paio Guterres, à frente de trezentos soldados, batalhou com os infiéis,
lutando corpo a corpo nas ruelas, mas depressa mandou recuar para a
alcáçova. Se lá tivesse chegado a tempo, talvez tivesse resistido durante
uns dias, mas a surpresa que Ismar lhe reservou aniquilou as esperanças
do alcaide.
De súbito, pelo portão leste que Ramiro abrira, entraram uma centena
de mastins negros. Os ferozes cães correram pelas ruas e atacaram, de
forma inesperada, os portucalenses. As colossais bestas, atiçadas pelos
gritos dos tratadores, atiraram-se aos soldados, ferrando-os nos braços,
nas pernas, no peito ou nas costas, enfiando os dentes pontiagudos nas
carnes dos pobres coitados, que guinchavam de dor. O sangue espirrava,
músculos e tendões eram rasgados e os homens tombavam, moribundos
ou feridos com gravidade, a brotarem golfadas de sangue, que excitavam
ainda mais os alucinados mastins.
Pobre alcaide...
Paio Guterres ainda tentou uma manobra desesperada, correndo pelas
ruelas da almedina à frente dos poucos homens que lhe restavam, mas
acabou cercado no pátio principal da cidade.
Por momentos, parecia que o combate tinha sido suspenso. Os
cristãos estavam prontos para se render quando surgiu um cavalo negro,
num dos cantos da praça, montado por Fátima. O Sultão, calmo e
poderoso, mirava os inimigos, como se medisse as suas forças. De
súbito, ouviu-se o grito veemente da mais velha das princesas.
– Matem os cristãos!
O próprio Abu Zhakaria, que a julgava amar, espantou-se quando
reparou naqueles olhos, brilhando de raiva mortal.
Quem é ela, afinal?
O berro da princesa excitou os soldados, que em brados chamaram
pelos Fiéis do Profeta. Surgiu então na rua principal de Leiria uma
companhia de cinquenta feddayin, todos vestidos de branco, apenas com
um cinto vermelho à cintura.
Iguais à Morte com Duas Pernas...
Ao vê-los, Zhakaria recordou o feddayin do califa Ali Yusuf que
matara Zulmira. Mas estes eram servos leais de Ismar e, com um uivo de
alegria, em cima do cavalo, Fátima saudou a chegada dos assassins.
– Matem os cristãos! – repetiu.
Ismar acedeu ao impulso bárbaro e deu as suas ordens. Depois da
brutalidade dos cães negros, chegou a vez da ferocidade inimitável dos
feddayins, que levantaram em simultâneo os seus alfanges e caíram
como animais esfomeados sobre os pobres portucalenses, que foram
decepados sem misericórdia, enquanto Fátima, em êxtase, dava voltas à
praça montada no Sultão!
Naquela noite, Zhakaria temeu que a princesa moura se tivesse
transformado numa bruxa sanguinária que se alimentava do sangue dos
inimigos, enquanto a via esfolar cristãos ainda vivos, ou pregá-los em
cruzes, sem piedade.
Ela é a Morte?
No meio da barafunda, Ismar deu ordens para ninguém matar o
primeiro ajudante de Paio Guterres, pois queria uma testemunha viva
daquele horror, para que o inimigo nele acreditasse. O desgraçado viu
tudo, até a morte daquele a quem chamavam Cipião Africano. A Paio
Guterres, rasgaram-lhe a barriga primeiro e, depois, cortaram-lhe a
língua, os dedos e as orelhas. Os feddayin esfolaram-no ainda vivo e
terminaram a impiedosa loucura enfiando-lhe uma lança pelo rabo,
rasgando-o por dentro até ele soltar o seu último suspiro.
De seguida, penduraram o corpo na torre de menagem e lançaram-lhe
fogo, e o cadáver do alcaide ardeu, para gáudio dos muçulmanos,
enquanto a macabra festança prosseguia, com os populares ainda vivos a
serem aniquilados no pátio. Fossem mulheres, velhos ou crianças, todos
foram rasgados ao meio pelos alfanges dos feddayin.
Assim morre Leiria...

Na manhã seguinte, Ismar chamou à sua tenda Abu Zhakaria, Fátima e


Raimunda. Ninguém encontrara Zaida, Mem ou Chamoa, e também
Ramiro estava desaparecido.
– Só sabemos que entrou em Leiria, o portão leste estava aberto –
contou Raimunda – Mas não o voltaram a ver.
Fátima mirou-a. Sempre a odiara e ainda sentia desprezo por ela, mas
tinha de a aceitar, agora eram aliadas.
– Talvez Ramiro vos tenha enganado – comentou.
Irritada com as acusações da outra, a minha prima contrapôs:
– E Zaida? Porque não esperou quieta?
A mais velha das princesas cuspiu para o chão e praguejou:
– Minha irmã lê a Bíblia e fode cristãos, é óbvio que preferiu fugir!
Enfurecida com a cobardia de Zaida, declarou a Ismar que era
imperativo irem atrás dela. Deviam prosseguir para norte, era o
momento de invadirem Coimbra.
Meu amor, sois louca?
Para acalmar a princesa, Ismar mandou servir bolos de laranja e água
fria com limão e anunciou que Temin, irmão de Ali Yusuf, iria
finalmente regressar a Marraquexe, pois o califa não conseguia suster
sozinho uma nova ofensiva dos almoádas!
– Sabeis o que isso significa? – perguntou Ismar.
Era o princípio da maravilhosa revolução andaluza, que todos eles
desejavam. Sem a presença de Temin e dos seus berberes, em poucos
meses as taifas de Badajoz, Córdova, Sevilha, Mértola, Málaga,
Valência e Múrcia iriam depor os governantes nomeados pelo califa e
declarar a sua independência do tiranete de Marraquexe!
– Hoje é o dia em que se recomeça a construir o califado de Córdova!
– exclamou Ismar, entusiasmado. – E vós sois essenciais!
Fátima estranhou, olhando para Raimunda.
– Porque é que esta é essencial? – perguntou.
Ismar olhou para Zhakaria, mas não respondeu de imediato,
anunciando que a revolução da Andaluzia precisava das descendentes do
último califa de Córdova! Só elas poderiam unir os árabes andaluzes e,
para isso, era essencial partirem para Córdova.
– Sem destroçar Coimbra? – indignou-se Fátima.
Inflamada, a princesa defendeu que nunca a cidade cristã tinha estado
tão vulnerável, pois Afonso Henriques continuava no Norte.
Infelizmente para Fátima, esta crença bélica não era partilhada por
Ismar, que anunciou que os seus exércitos iriam retornar a Córdova. Só
Abu Zhakaria e os seus dois mil homens ficariam em Santarém, o que
era curto para lançar um ataque a Coimbra.
– Não parto sem reaver Zaida. Sem as netas do califa Hixam III, a
vossa revolução não vale nada! – declarou Fátima.
Ismar olhou-a com um enigmático sorriso no rosto e disse:
– Sei que amais Abu Zhakaria e com ele desejais casar.
Enquanto Fátima corava, o príncipe de Córdova adiantou:
– Já sobre vossa irmã, ainda há pouco haveis mostrado dúvidas...
Recordou os persistentes rumores de que Zaida propusera a Afonso
Henriques uma paz entre cristãos e mouros, e adiantou:
– Não vou arriscar os meus homens para salvar uma moura que
admite desposar um príncipe cristão...
Dividida entre o desdém que lhe provocava a irmã e a obrigação que
sentia em resgatá-la, Fátima surpreendeu-se quando o seu interlocutor
sugeriu que existiam outros Benu Ummeya.
– De quem falais? Não há mais netos de Hixam III! – exclamou.
Sorrindo, Ismar olhou para Zhakaria e murmurou:
– É o momento de falar...
O cordovês que governava Santarém contou então a história
desconhecida de Sohba, que muitos anos antes tivera uma filha, a quem
chamara Aqsa. Essa rapariga vivera em Córdova, enquanto a sua mãe
viajava pela Andaluzia a aprender truques e bruxedos. Por causa isso,
Sohba não estava por perto quando Aqsa conheceu um homem por quem
se encantou e de quem ficou grávida. E tam-bém não estava presente
quando Aqsa faleceu, ao dar à luz uma menina.
– Sohba quase endoideceu quando soube da morte da filha.
Dilacerada, a velha de negro enveredara definitivamente pela
bruxaria, sem saber que a neta sobrevivera. Ao ouvir isto, Fátima ergueu
o sobrolho, obrigando o cordovês a confirmar:
– A filha de Aqsa está viva!
Abu Zhakaria acrescentou então que o homem que engravidara Aqsa
só regressara a Córdova depois da morte desta. Apesar de desgostoso,
recolhera a recém-nascida filha, levando-a para a cidade onde vivia e
onde a menina cresceu. Infelizmente, o pai da criança era um relevante
cristão portucalense.
– Chamava-se Ermígio Moniz – afirmou Zhakaria.
No momento em que soube que era neta de Sohba, Raimunda
empalideceu, enquanto Fátima a olhava, embasbacada.
– É verdade, Raimunda. Sois filha de Aqsa, neta de Sohba e bisneta
de Hixam III – esclareceu Abu Zhakaria. – Também sois uma Benu
Ummeya!
Durante o embaraçado silêncio que se seguiu, só Ismar parecia
levemente divertido, ao notar a irritação de Fátima. A magricela cristã,
que ela odiava, afinal era sua prima! Fátima e Zaida já não eram as
únicas pretendentes ao trono do califado de Córdova.
Curiosamente, a reação de Raimunda foi extremamente calma.
– De certa forma, já o pressentia – confessou a minha prima.
Sohba passara a tratá-la de forma diferente depois de saber que ela era
filha de Ermígio Moniz, daquela vez que Mem as encontrara em Lisboa.
Nesse dia, a velha de negro abraçara-a, adiantando a misteriosa frase o
destino juntou-nos por alguma razão, cujo significado agora se tornava
óbvio.
– Sendo de sangue real, podemos casar-nos – disse então Ismar.
Raimunda e ele regressariam a Córdova, onde passariam a ser o casal
que reinaria no califado.
– Fátima, a vossa irmã que se converta, que case com Ibn Henrik e
faça muito bom proveito! Não precisamos dela – concluiu Ismar.
Perante esta perentória declaração final, Fátima emudeceu, bem como
Zhakaria.
Meu amor, o califado foge-vos...
No entanto e para surpresa dos presentes, Raimunda declarou que,
embora lisonjeada com a perspetiva de se tornar esposa de Ismar, não
desejava partir já, pois queria apoderar-se da relíquia de Sellium.
– Primeiro, tenho de destruir Afonso Henriques! Só depois disso
poderei casar convosco, em Córdova!

Dias mais tarde, Ismar partiu com as suas tropas, regressando à cidade
que governava para instigar a revolução contra Ali Yusuf. Quanto à
minha prima, dirigiu-se a Santarém com Fátima e Abu Zhakaria. O
conhecimento do segredo sobre a sua descendência real moura, que meu
tio Ermígio Moniz confirmara no pergaminho que deixou a Afonso
Henriques antes de morrer, não era suficiente para extinguir o ódio de
Raimunda. A sua luta ia continuar.
Coimbra, maio de 1137

Com o arco de Ramiro apontado às costas, Mem guiava a carroça


quando reparou numa mancha alaranjada na linha do horizonte.
Estimulou os jumentos a andarem mais depressa e murmurou:
– Leiria está a arder.
Se os mouros viessem a cavalo, chefiados por Raimunda, a primeira a
morrer seria Chamoa. Contudo, atrás deles e ao longo da estrada que os
levava na direção de Coimbra, não surgiu um único mouro. Já o dia
nascia quando chegaram a Soure e, pouco depois, mestre Jean Raymond
apareceu na alcáçova para os receber, espantando-se por ver ali Ramiro.
O mestre dos templários julgava-o um traidor, mas hesitou em condená-
lo e perguntou:
– O que estais aqui a fazer?
Obviamente, Ramiro mentiu-lhe e jurou-lhe que fora preso pelos
mouros, depois de abandonar a Ordem e sair de Soure. Obrigado por
eles a ir a Sellium, aí matara o Velho, esse sim, um traidor. Sohba
também morrera à sua frente, mas nos últimos três anos permanecera
cativo em Santarém, e só conseguira fugir aproveitando o rebuliço
criado pela chegada das tropas de Ismar.
– Leiria foi atacada? – perguntou mestre Jean, atónito.
Ramiro garantiu que os muçulmanos eram mais de dez mil. Leiria
seria certamente arrasada e Ismar logo marcharia para norte, a caminho
de Coimbra, que também estava em perigo grave, se os seus habitantes
não fossem avisados a tempo.
– Tendes de abandonar Soure, ainda esta manhã! Todos, incluindo os
lavradores, as mulheres e as crianças!
Nenhum deles vira o massacre, mas haviam-no pressentido.
– Vimos o céu laranja, Leiria estava a arder – contou Mem.
Preocupado, o mestre da Ordem do Templo de Salomão mandou
então chamar o prior Martinho. Quando este apareceu, a seu lado surgiu
também o Rato, o que deixou Mem pensativo.
Antigo amante, rebuliço constante...
Mem notou que o recém-chegado templário estava emocionado e que
tinha dificuldade em se aproximar de Ramiro, mas este ignorava-o
ostensivamente, declarando que tinha de levar Chamoa para Coimbra,
pois ela corria grave perigo! Mem reparou no olhar enciumado do Rato,
que conhecia perfeitamente o afeto que o bastardo sempre tivera por
Chamoa.
Segundo amor, menor fervor...
Desconfiado, o mestre da Ordem do Templo perguntou então ao
almocreve por que razão ele e Zaida, Chamoa e Fátima tinham ido a
Leiria e quem autorizara a viagem.
– O bispo Bernardo – afirmou Mem.
Mestre Jean olhou para Zaida, a sua mente a fervilhar de hipóteses
suspeitas. Depois, interrogou-se:
– Foram a Leiria e, ao mesmo tempo, como que por milagre, acontece
um ataque de Abu Zhakaria?
Zaida baixou os olhos, envergonhada, o que levou o mestre templário
a insistir nas suas pertinentes questões.
– Já sabiam do ataque antes de partirem para Leiria?
A mais nova das princesas mouras manteve-se calada, mas Ramiro
garantiu que Raimunda viera a Coimbra em segredo e só revelara o
plano a Fátima, que nada contara ao almocreve e à irmã. Já na cidade, o
destino cruzara-o com eles antes de o ataque começar e incentivara os
outros a fugir, preocupado sobretudo com Chamoa. Mem e Zaida ainda
tinham resistido, mas Ramiro apontara-lhes uma flecha, obrigando-os a
abandonarem Leiria na carroça do almocreve.
Mestre Jean estava finalmente convencido e deu ordens para todos
abandonarem Soure. Os primeiros a partir foram os que vinham na
carroça, escoltados por um curto contingente de templários, um dos
quais era o Rato, que não mais deixou de seguir Ramiro, como Mem
reparou.
Rabo conhecido, destino escolhido...
Ao final do dia, chegaram a Coimbra e passaram pelo casão de Mem
para deixar a carroça, seguindo depois para a casa de Zaida, sempre
acompanhados a alguma distância por vários templários e pelo Rato. À
porta da habitação, Ramiro enxotou os antigos colegas, dizendo-lhes que
não precisava deles, mas o Rato permaneceu na rua, vigiando-os, pois
tinha receio de uma fuga.
Já em casa, Zaida e Chamoa enfiaram-se as duas no quarto, enquanto
os homens permaneciam na sala. Mem notou que Ramiro estava muito
tenso, com as veias do pescoço contraídas e o olhar esgazeado.
Muita tensão, produz confusão...
Mem não o queria provocar, por isso manteve-se em silêncio, mas o
outro não aguentou aquela espera e manifestou-se, enervado.
– Chamoa não pode ficar aqui!
Não tinha qualquer dúvida de que Coimbra ir ser vítima de um cerco,
talvez mesmo de um assalto frontal. Era preciso proteger a rapariga,
insistiu Ramiro, o que levou Mem a perguntar-lhe:
– O que pretendeis fazer?
Irritado, o outro respondeu de forma agressiva:
– Não tendes nada com isso! Se não fosse eu, Chamoa a esta hora
estava morta!
O almocreve percebeu que aquela convivência era interesseira e
transitória, Ramiro continuava o mesmo instável ser que conhecera. Não
confiava nele e as suas dúvidas regressaram.
Traidor sem vergonha, alma com peçonha...
Então, Mem decidiu enfrentá-lo e disse:
– Não acredito que Zhakaria vos tenha prendido.
O outro olhou-o, mordendo o lábio, como se tivesse percebido que o
seu tempo estava a acabar, enquanto Mem insistia nas acusações:
– Haveis tentado matar Afonso Henriques!
Ramiro ignorou-o, olhando para a porta do quarto. Desejava que
Chamoa voltasse, não queria saber de Zaida nem do almocreve.
– Foi a galega quem vos mudou as ideias – deduziu Mem.
Defendeu que Ramiro perdera o tino ao saber que Chamoa estava em
Leiria. Desejava-a há tantos anos e vira ali a sua oportunidade. Com a
mesma rapidez com que tempos antes traíra os cristãos, desta vez traíra
os mouros e Raimunda.
– Não sabeis o que dizes! – ripostou-lhe o outro, furioso.
O almocreve tentou encurralá-lo:
– Para quem trabalhais? O que quereis?
Irado, Ramiro levou a mão à cintura, o que provocou em Mem um
sorriso leve, mas condescendente.
– Até usais uma arma muçulmana...
O antigo templário trazia com ele um alfange e não uma espada cristã,
e talvez o tivesse erguido, mas a polémica cessou subitamente quando
alguém bateu à porta. Era o Rato, que entrou. Atrapalhado, o pequeno
homem corou ao ver os outros dois, pois ainda amava Ramiro, mas um
dia também desejara Mem, como este bem sabia.
Rejeitada paixão, eterna perturbação...
O Rato engoliu em seco e fez um esforço para se recompor, contando
que mestre Jean e o prior Martinho tinham acabado de chegar a
Coimbra. Em Soure, os dois haviam ficado para trás, a convencerem a
relutante população a abandonar o castelo, o que acabara por ser mais
fácil do que esperavam, pois a meio do dia aparecera na estrada a única
testemunha viva do horrível genocídio de Leiria, que descreveu de
forma pormenorizada. O terror instalou-se em Soure e em pouco tempo
a cidade e o castelo haviam ficado desertos.
– O bispo Bernardo exige a vossa presença na Sé – anunciou o Rato.
Sem qualquer vontade de cumprir aquela ordem, Ramiro dirigiu-se ao
quarto e abriu a porta. Chamoa e Zaida estavam sentadas na cama, a
conversarem em voz baixa e o antigo templário disse à primeira que
tinham de partir para o Norte, não havia tempo a perder!
Empolgada, Chamoa levantou-se sem hesitar e exclamou:
– Vamos! A última coisa que desejo na vida é que Raimunda deixe os
meus quatro filhos sem mãe!
Zaida sorriu misteriosamente, mas ao ver Chamoa passar, colocando
uma manta aos ombros e seguindo já Ramiro, Mem perguntou aonde ela
ia. A rapariga galega limitou-se a abraçá-lo, despedindo-se dele,
enquanto lhe murmurava ao ouvido:
– A Zaida explica-vos...
Quando ela e Ramiro saíram, deram de caras com o Rato, que estava
na rua e tentou impedir a passagem deles, repetindo que deviam segui-lo
até à Sé.
– Quero lá saber do bispo! Saís da frente ou mato-vos! – gritou
Ramiro.
Com um gesto brusco, desembainhou o alfange e apontou-o à barriga
do Rato, que empalideceu, balbuciando:
– Desejais matar-me, amigo de tantas horas?
Os olhos de Ramiro chisparam de raiva, enquanto Chamoa lhe
implorava que não magoasse o outro. A arma baixou, mas o Rato
percebeu que o seu antigo amante estava de novo dominado por
pensamentos raivosos. Então, recuou e deixou Ramiro e Chamoa
desaparecerem. Depois, afastou-se a caminho da Sé, enquanto Zaida
comentava com o almocreve que Chamoa sabia o que tinha de fazer.
Esperta menina, muito ladina...
Albergaria, junho de 1137

Ramiro e Chamoa haviam deixado Coimbra ao final da tarde e quando a


noite caiu pararam numa albergaria conhecida, que se dizia ter sido
palco dos amores fervorosos entre Dona Teresa, mãe de Afonso
Henriques, e o seu adorado Fernão Peres de Trava, inimigo máximo do
príncipe e tio de Chamoa.
Local apropriado...
A minha cunhada pediu apenas um quarto e Ramiro deduziu que teria
de dormir na cavalariça, mas foi surpreendido pelo convite da sua
acompanhante de viagem que, promissora e dengosa, o incentivou a
visitá-la depois de tratar dos cavalos.
Já no aposento, Chamoa bebeu vinho. Era o seu antídoto contra a
relutância e quando Ramiro entrou, pálido e nervoso, a rapariga
ofereceu-lhe a bebida com um risinho maroto, mas o antigo templário
alegou que se habituara à abstinência durante os tempos na Ordem do
Templo.
– Sois sempre tão sério, querido Ramiro? – perguntou Chamoa.
Fazer o bastardo falar era essencial para desmontar a trama que se
urdia contra o príncipe de Portugal. Chamoa desejava regressar à corte
de Afonso Henriques pela porta grande, provando que o desprezo com
que este a tratara não diminuíra a lealdade cega que lhe devotava. Para
mais, ela sabia que o tórrido triunvirato vivido com Mem e Zaida
esgotara o seu potencial. Em Leiria, percebera que aqueles dois não lhe
devotavam uma solidariedade infinita. Zaida queria voltar para Córdova
e Chamoa não lho podia levar a mal.
A princesa moura desejava partir sem hostilizar os cristãos e a
descoberta de uma conspiração contra Afonso Henriques seria uma saída
airosa para o seu longo cativeiro. Para que tal fosse possível, a
cumplicidade de Chamoa era essencial, pois só ela tinha a admiração de
Ramiro desde há mais de dez anos.
Já o beijei em Ponte de Lima...
A rapariga observou aquele homem misterioso. Por um lado, tinha
pena dele, tão atarantado na sua presença. Por outro, a obscuridade de
Ramiro fascinava-a. Se ele deixara de gostar de mulheres devido ao
desgosto que Chamoa lhe causara, talvez ela fosse a única que o pudesse
curar. Com a sua cortesia e os seus galanteios, não desejava apenas
extrair-lhe informações preciosas, tinha também um desejo íntimo, um
desafio ao seu orgulho de mulher.
Serei capaz de virar os gostos de um homem?
Por isso, mal ele fechou a porta, Chamoa convidou-o a sentar-se na
beira da cama e confessou:
– Tenho saudades daquele dia em Ponte de Lima, quando nos
conhecemos. Éramos tão jovens...
Ramiro engoliu em seco, embaraçado pelas memórias daquele ardente
beijo, o único que recebera de uma mulher.
– Nunca vos esqueci – murmurou Chamoa.
Justificando-se com o calor, despiu a dalmática, ficando apenas
coberta por uma leve túnica de linho, quase transparente. Agradada,
Chamoa reparou que Ramiro olhava na direção dos seus seios, mas
depois viu-o fechar os olhos, como se impusesse uma regra dura a si
próprio. Rápida a reagir, exclamou:
– Ramiro, sofri muito! Não sabeis o que é estar a ser possuída por um
homem e pensar no filho dele!
Ele reabriu os olhos, espantado, mas a sua voz saiu desiludida.
– Nunca poderia casar-me convosco, sou um bastardo.
Fingindo-se irritada, Chamoa mordeu o lábio e desatou a protestar.
Odiava Dona Teresa e seu tio, Fernão Peres, que a haviam obrigado a
casar com Paio Soares; odiava a mãe, Elvira Peres de Trava; odiava
Afonso Henriques, que a expulsara de Guimarães; odiava Mem
Tougues, que lhe fizera um filho indesejado! O seu inflamado discurso
foi uma narrativa empolgada e não totalmente falsa, mas também uma
brilhante manipulação, cuja mestria convenceu o apaixonado Ramiro.
Cacei-o, os seus olhos já brilham...
Um certo delírio começou a apoderar-se da alma dele, sobretudo
quando a ouviu apoucar o príncipe de Portugal.
– Afonso Henriques é um bruto! – exclamou Chamoa, ofendida. – E
ainda por cima juntou-se à normanda, de quem tem duas filhas! –
embevecida, olhou novamente para Ramiro e murmurou: – Nenhum
homem me tratou tão bem como vós. Nem vosso pai, que Deus o tenha!
Seduzido pelos cantos doces daquela bela deusa, de longos cabelos
loiros e luminosos olhos verdes, Ramiro já a via de uma forma diferente,
não como uma maligna mulher, enganadora e interesseira, mas como
uma pobre vítima de forças superiores. Nunca a haviam deixado
escolher o parceiro, porque, se o tivessem feito, ela teria permanecido
com o seu primeiro amor, Ramiro!
Contudo, se acerca do passado dela já se convencera, sobre o presente
o antigo templário ainda duvidava. Sentindo isso, Chamoa garantiu que
só viera para Coimbra porque sabia que Ramiro deixara a Ordem do
Templo, repudiando os votos de castidade a que se obrigara.
– Vim à vossa procura – murmurou ela, sorrindo.
Ramiro estava siderado, totalmente subjugado por aquela beldade
sardenta com quem ele sempre sonhara.
– Nunca acreditei que vos havíeis juntado aos mouros e à louca da
Raimunda! – jurou ela.
Com um gesto inesperado, Chamoa aproximou a sua cara da dele e
beijou-o no rosto, passando-lhe a mão pelo desgrenhado cabelo,
enquanto lhe sussurrava com ternura:
– Em Leiria, haveis sido o meu salvador.
Mostrando a sua gratidão, abraçou-o, encostando o peito cheio ao
braço dele, para que sentisse o calor do seu corpo.
Espevitai-vos!
Porém, Ramiro mostrou-se ainda mais atrapalhado, corou
intensamente e a voz sumiu-se-lhe, o que levou a rapariga a perguntar-
lhe, em voz baixa:
– Que se passa?
Embaraçado, o antigo templário reconheceu que os anos em Soure o
haviam mudado, já não era o mesmo que ela conhecera em Ponte de
Lima.
– O que vos fizeram? – perguntou Chamoa, penteando-lhe o cabelo
com delicadeza.
Duas lágrimas desceram pelo rosto de Ramiro. Ainda incapaz de
libertar os seus demónios, tapou o rosto com as mãos.
Coitado...
A rapariga esperou que aquela revoada de emoções amainasse e
depois beijou-o outra vez na testa e incentivou-o a falar. Então, Ramiro
alegou que fora violentado pelos companheiros templários, até ao dia em
que se revoltara contra aqueles abusos malignos e se confessara ao bispo
de Coimbra, que o absolvera, mas lhe sugerira que abandonasse uma
Ordem tão impura.
– Por isso parti de Soure e fui preso pelos muçulmanos.
Obviamente, Chamoa sabia que Ramiro estava a mentir-lhe, tal como
ela lhe mentira antes, mas, fingindo-se comovida, puxou-o e apertou os
seus seios contra a cara dele, como se o quisesse confortar. Depois, num
assomo falso mas muito credível de desejo, levantou-lhe o rosto e
beijou-o pela primeira vez na boca.
Ramiro ficou ao mesmo tempo agradado e alarmado, como se não
acreditasse nela totalmente. Então, Chamoa disse:
– Sois homem, haveis sofrido, mas sois homem!
Levantou-se e retirou a túnica de linho que a cobria, ficando nua. De
seguida, pegou-lhe nas mãos, pousando-as nos seus fartos seios,
pedindo-lhe que os afagasse, para ele se entusiasmar, mas Ramiro
permanecia paralisado, as suas mãos não se moviam, os dedos não
tocavam nos mamilos dela.
Que se passa, não gosta de mim?
Perante tanta incapacidade, Chamoa mandou-o deitar-se, retirou-lhe
as roupas e, quando ele já estava também nu, desatou a beijá-lo no corpo
todo, mas nem assim Ramiro endureceu.
Pronto, tem de ser...
Determinada, virou-se de costas para ele, oferecendo as nádegas.
– Desejais-me assim, como se fosse um homem?
Nesse momento, ele entusiasmou-se. Agarrou-a por trás e tentou, mas,
como nem dessa forma se tornou forte, parou desanimado e Chamoa
concluiu que aquilo ia ser bem mais difícil do que esperara.Ainda não
sabendo o que queria saber, sorriu-lhe e disse:
– Não vos preocupais, temos a vida toda.
Nessa noite, nada mais aconteceu, deitaram-se lado a lado e
adormeceram. Na manhã seguinte, partiram e cavalgaram o dia todo,
conversando sobre o que se passava no Condado Portucalense. Quando a
noite chegou novamente, estavam perto de Ponte de Lima, o que levou
Chamoa a exclamar, muito contente:
– Que bonito, foi aqui que nos conhecemos!
Deitaram-se de novo juntos noutra albergaria e ela voltou a tentar
tudo para o espevitar e finalmente conseguiu-o.
Ninguém me resiste...
Extasiado, Ramiro atingiu o auge com um demorado beijo dela e a
partir daí rendeu-se totalmente. Deslumbrado e enamorado, respondeu
às perguntas da esperta Chamoa, que assim ficou a saber quem
dominava a conspiração em Coimbra.
Afonso, já sei tudo!
Nessa segunda noite, Chamoa adormeceu com a sensação do dever
cumprido. Esforçara-se e fora recompensada. Agora, só faltava
deslumbrar Afonso Henriques...

Quando, no dia seguinte, chegaram a Tui, repararam que no horizonte se


viam dois acampamentos, afastados um do outro. A oeste da cidade
estava a comitiva de Afonso Henriques e a leste a de Afonso VII.
O imperador está cá?
O tratado de paz entre os dois primos seria assinado às primeiras
horas da manhã, informou Gomes Nunes, encantado por ver a
filha. No entanto, as notícias não eram animadoras e Afonso Henriques
já conhecia a tragédia de Leiria.
– É mais grave do que isso – anunciou a rapariga –, Ismar vai atacar
Soure e Coimbra! Tem dez mil homens com ele!
Aterrado, Gomes Nunes levou as mãos à cabeça. Iria o príncipe de
Portugal partir para o Sul à pressa, abandonando a Baixa Galiza de novo
nas mãos de Afonso VII? Vendo o pai tão angustiado, Chamoa destinou
a Ramiro um quarto no Castelo de Tui, prometendo que o iria visitar
mais à noite. Contudo, nunca o chegou a fazer e dirigiu-se rapidamente
ao encontro de Afonso Henriques, sem prever que desferia um golpe
doloroso no desgraçado bastardo, nem que a vingança de Ramiro seria
tão violenta.
As mulheres, quando enganam e magoam um homem, raramente
percebem a profundidade dos danos que causam.
Tui, junho de 1137

Na véspera de assinar o tratado de paz com o imperador Afonso VII, eu


e o príncipe de Portugal estávamos sozinhos a conversar na tenda dele.
Já conhecedores da tenebrosa desgraça acontecida em Leiria,
temíamos que Coimbra fosse atacada nas próximas semanas, pois ainda
não sabíamos do regresso de Ismar a Córdova, e queríamos já partir para
o Sul. A nossa esperança de ver reconhecido o reino de Portugal e
entregues ao príncipe os condados da Baixa Galiza, que iam de Toronho
a Astorga, empalidecera bruscamente quando soubemos que Afonso VII
já não estava disposto a ceder às pretensões portucalenses. O imperador
farejara a nossa pressa em partir e adivinhava a disponibilidade óbvia
para mais concessões.
– A vitória em Cerneja não valeu para nada... – queixou-se o
príncipe.
Foi nesse momento que Chamoa entrou na tenda, com um manto
azul-escuro pelos ombros, que logo retirou, revelando uma bela
dalmática azul-clara. Como sempre, a minha cunhada estava lindíssima,
com os longos cabelos loiros bem penteados e um cheiro a alfazema a
emanar do seu corpo escultural.
Olhai, Afonso, sou vossa...
Determinada, Chamoa exclamou:
– Já sei quem é o terceiro homem que em Sellium escondeu a relíquia,
juntamente com o vosso pai e com o meu falecido marido!
Nomeou o visado, o mesmo que em Coimbra conspirava contra nós, o
que levou o príncipe a afirmar:
– João Peculiar devia estar aqui!
Com precisão e serenidade, Chamoa narrou de seguida os
acontecimentos passados em Leiria, onde Ramiro a salvara. Por mais
estranho que nos parecesse, este traíra os mouros, como antes traíra os
cristãos sem qualquer hesitação! Na carroça do almocreve, ela, Zaida,
Mem e o bastardo haviam fugido, mas quando, em Coimbra, o bispo
Bernardo mandara chamar este último, exigindo que se apresentasse na
Sé, Ramiro recusara e fugira da cidade com Chamoa, alegadamente só
para a proteger.
– É uma personagem diabólica – murmurou ela.
Depois desta introdução vulcânica, relembrou que a única
preocupação de Raimunda era matá-la.
– Pobre rapariga... – comentou Afonso Henriques.
Indignada, Chamoa enxofrou-se. Senti em minha cunhada o renascer
de um ciúme enraivecido, mas não era só isso, pois ela revelou-nos uma
novidade inesperada, que justificava a sua feroz antipatia.
– A Raimunda combinou com o imperador e com o meu tio Trava um
ataque a Leiria na mesma data que a batalha de Cerneja!
A surpresa tomou conta de mim e do meu melhor amigo. Havíamos
sido comprimidos por uma tenaz maligna, uma cilada maldita
combinada entre os nossos principais inimigos? Afonso VII aliado aos
infiéis para nos derrotar... O pensamento era quase insuportável, de tão
odioso, murmurou Afonso Henriques, acrescentando:
– Que Raimunda se tenha juntado aos mouros, é compreensível,
sendo ela quem é. Mas meu primo?
Ao ouvi-lo, Chamoa espantou-se com tanta condescendência.
Porque a compreende? Quem é ela?
Então, o príncipe revelou à rapariga galega a complexa história do
nascimento da bastarda de Ermígio Moniz. A minha prima Raimunda
era filha de Aqsa, neta de Sohba e, portanto, também uma Benu
Ummeya, descendente do último califa de Córdova.
– O Ramiro não sabe... – murmurou Chamoa. – E a Zaida também
não!
Intrigado, o príncipe perguntou a Chamoa como conseguira que o
antigo templário revelasse a conspiração de Coimbra e ela justificou-se:
– Ele sempre me estimou!
A dúvida persistia: uma coisa era Ramiro ajudá-la a fugir de Leiria,
outra era revelar-lhe a sinistra trama que se urdia em Coimbra! Tinha de
haver mais alguma poderosa razão, declarou Afonso Henriques!
Estava de volta a velha desconfiança sobre as tolices que Chamoa
praticava com os homens e temi que o enciumado príncipe se zangasse.
Porém e para minha surpresa, desta vez ela não mentiu.
– Tenho os meus dotes secretos, como sabeis.
Com quase vinte e oito anos, viúva e madura, Chamoa assumia
finalmente a verdadeira identidade de mulher livre que pensava pela sua
cabeça e que usava as habilidades femininas e a beleza para atingir os
seus propósitos. E esses, há que reconhecê-lo, eram tremendamente leais
ao príncipe de Portugal. Por linhas volúveis e esguias, Chamoa
mostrava-nos que ultrapassaria qualquer moral ou barreira do espírito,
do corpo ou da alma para demonstrar a sua devoção a Afonso
Henriques.
Sou uma tola, mas faço tudo por vós...
Curiosamente, o meu amigo ficou desarmado perante tanta verdade.
Sempre que a descobrira em falso indignara-se, punindo-a com
expulsões e repúdios. Mas, confrontado com a limpa honestidade dela,
rendeu-se, deslumbrado.
– Aprecio a vossa franqueza, bela Chamoa – declarou.
Reparei que já olhava a minha cunhada de uma forma mais terna e
senti que ela se entusiasmava fortemente.
Meu Deus, ele ama-me?
Contudo, havia uma questão pendente e recordei-a: tínhamos de
prender Ramiro. Então, Afonso Henriques ordenou-me que fosse buscar
o antigo templário, levando comigo alguns homens.

Horas depois, o filho de Chamoa contou-me o que se havia passado. Ele


fora visitar o meio-irmão ao quarto e tinham conversado sobre o pai de
ambos, Paio Soares. De seguida, o orgulhoso Pêro Pais recordara como
tomara Tui, libertando a mãe, o avô e Gonçalo de Sousa; e também
como Chamoa, um ano antes, entregara a cidade a Afonso Henriques,
evitando um combate sangrento. Depois de tanta conversa, a lucidez de
Pêro Pais já não era a mesma e ele descaíra-se.
– Minha mãe faz tudo pelo príncipe, sempre o amou.
Ramiro ficara em estado de alerta, mas disfarçara a agitação,
levantando-se e fingindo procurar algo nas roupas. Sem o rapaz reparar,
colocara-se atrás dele. De repente, com um gesto rápido, Ramiro colara-
lhe o punhal à garganta, rosnando:
– Vossa mãe não está a dormir, pois não?
Pêro Pais ainda esperneara, mas o irmão ameaçara matá-lo e o rapaz
acabara por confessar que Chamoa estava com Afonso Henriques.
A fúria de Ramiro foi imensa quando compreendeu que fora traído.
Chamoa enganara-o, denunciando-o ao príncipe! Como o mais certo era
alguém o vir procurar em breve, obrigou Pêro Pais a levantar-se e saíram
do castelo por uma porta secundária.
Quando nos viu chegar, o antigo templário gritou-me que mataria o
filho de Chamoa se nos aproximássemos. Tentei demovê-lo, avisando-o
de que sucumbiria às nossas mãos se o fizesse, mas ele provocou-me:
– Quereis ficar com a morte de Pêro Pais na vossa consciência?
Sem alternativa, deixei Ramiro partir com o rapaz. Na cavalariça,
roubou um cavalo e depois saiu da cidade e atravessou o Minho numa
barcaça, sempre com Pêro Pais sob a ponta da arma.
Só algum tempo depois, não vendo nem ouvindo ninguém na outra
margem, atravessei também o rio e descobri o filho de Chamoa
desmaiado e com a cabeça a sangrar. Ramiro deixara-o ali, mas, graças a
Deus, fora incapaz de matá-lo, e fugira a cavalo para o Sul. Irritado,
culpei-me por o ter deixado escapar! Agora, era óbvio que o bastardo
iria a Sellium roubar a relíquia.
Tui, junho de 1137

Quase dez anos depois da última vez que haviam conversado, na


Catedral de Santiago de Compostela, os dois primos direitos que
disputavam os territórios da Galiza reencontraram-se.
Dias antes, derrotado em Cerneja pelos nossos exércitos, Afonso VII
dispusera-se a ceder os condados a norte do rio Minho, mas depois de
conhecida a desgraça de Leiria, a opinião do imperador mudara.
Segundo João Peculiar, condições mais severas iriam ser impostas em
troca do futuro reconhecimento de Afonso Henriques como rei.
– Em Compostela, sugeri-vos uma união entre nós – começou por
dizer o imperador. – Agora, que já tendes vinte e oito anos e não
dezoito, estais convencido de que é o melhor para ambos? – Afonso
Henriques manteve-se calado e seu primo comentou: – Sois orgulhoso
como eu...
Então e pela primeira vez, o imperador admitiu que estavam por
reconhecer certos direitos portucalenses, que remontavam a Dona Teresa
e ao conde Henrique, como o príncipe de Portugal não se cansava de
recordar. Com uma voz solene, anunciou:
– Os condados junto ao rio Minho, aceito ceder sob certos termos.
Mas nunca a Galiza toda, é uma fantasia que deveis esquecer!
– Quais são as vossas condições? – perguntou Afonso Henriques.
Em vez de uma resposta direta, Afonso VII decidiu relembrar o dia
em que fora coroado imperador, em Leão.
– O Antipapa Anacleto esteve lá, bem como os reis Garcia de Navarra
e Ramiro de Aragão. Haveis sido o único a faltar à cerimónia...
Para surpresa do seu interlocutor, depois deste leve reparo o
imperador reconheceu que cometera nessa época um erro político grave.
Apoiara Anacleto, mas este perdera progressivamente apoios na
Cristandade e o cisma católico estava prestes a terminar, com a vitória
de Inocêncio II, o Papa legítimo.
– É tempo de emendar a mão – afirmou o imperador.
A melhor forma de se reabilitar aos olhos do sucessor de São Pedro
era colocar como principal objetivo o combate aos infiéis. Para
Inocêncio II e para os seus inúmeros apoiantes, em especial Bernardo de
Claraval, o poderoso e influente abade de Cister, todos os reis católicos
se deviam unir para expulsar em definitivo os mouros da Hispânia. Ora,
assinados os tratados de paz com Garcia de Navarra e Ramiro de
Aragão, só faltava um acordo semelhante no Oeste peninsular, entre ele
e Afonso Henriques.
Dito isto, Afonso VII proclamou:
– Sereis rei, mas primeiro tendes de me reconhecer como imperador!
Silencioso, o príncipe de Portugal moeu o seu azar. Batera Afonso VII
nos campos de Cerneja, devia ser ele quem estabelecia as condições!
Mas o primo armara-lhe uma cilada...
– Como posso confiar em quem se engana no Papa e se aliou aos
mouros para me destroçar?
Sem rodeios, Afonso VII confirmou que soubera do assalto a Leiria
de antemão. Fora Raimunda, a bastarda de Ermígio Moniz, quem se
deslocara a Toledo e o informara de que Ismar iria atacar em maio.
Contudo e levemente indignado, o imperador declarou que marchara
para Cerneja sem certezas! Fora só ao tomar conhecimento da desgraça
de Leiria que compreendera a inutilidade de uma confrontação entre
cristãos, quando os inimigos eram outros!
– Se os sarracenos me tivessem atacado a mim, diria o mesmo! A
destruição de Leiria é a prova final de que a desunião cristã é a razão da
nossa desgraça! Garcia de Navarra e Ramiro de Aragão já o perceberam!
Só vós continuais irredutível! – exclamou o imperador.
Dias antes, talvez isso fosse verdade, mas o massacre de Leiria
deixara marcas profundas no nosso príncipe, que dificilmente seria rei
de Portugal combatendo em duas frentes ao mesmo tempo. Naquele
momento, tinha de ceder ao primo e correr para o Sul.
– Nem devia aqui estar – murmurou Afonso Henriques –, Ismar vai
atacar-me e não posso perder Coimbra.
Intrigado, Afonso VII comentou:
– Os vossos espiões são fracos...
O príncipe portucalense surpreendeu-se pela segunda vez, quando o
imperador o informou de que Ismar se retirara para Córdova. Soure e
Coimbra não iam ser atacadas, pelo menos para já.
– Como o sabeis? – perguntou o meu melhor amigo.
Afonso VII observou o plácido rio Minho, gozando aquele momento
de óbvia superioridade, enquanto o príncipe de Portugal se remetia a
uma ânsia silenciosa, sentindo que não podia competir com quem tinha
tantos e tão atentos vigilantes espalhados pela península.
Empolgado, o imperador voltou a falar:
– Temin, irmão do califa Ali Yusuf, vai regressar a África para
combater os almóadas. É a nossa grande oportunidade! Sem os berberes
almorávidas, os mouros da Andaluzia ficam mais fracos!
Afonso VII estava convencido de que o governador de Córdova, que
reconhecia ser o mais hábil príncipe andaluz, não tinha força suficiente
para se impor aos outros walis da região. Talvez Ismar conseguisse unir
a taifa de Sevilha à de Córdova, mas não conseguiria subjugar Almeria,
Valência, Málaga, Granada, Mértola e Badajoz.
– Os sarracenos odeiam-se uns aos outros e jamais aceitarão substituir
o califa de Marraquexe pelo de Córdova!
Afonso Henriques quedou-se, mais uma vez, pensativo. Ao contrário
do imperador, a princesa Zaida acreditava que a união dos mouros era
possível, tal como a ressurreição do califado de Córdova, desde que as
netas do último califa da Andaluzia liderassem a revolta... Porém, o
príncipe de Portugal concluiu em silêncio que, depois da brutalidade que
vitimara Leiria, a «paz de Zaida» se esfumara e a vontade de vingar
tamanha crueldade tornara-se imperativa.
– Se nos unirmos, aceitais-me como rei de Portugal? – perguntou.
Afonso VII declarou que, se combatessem em conjunto os mouros, o
primo seria rei do Condado Portucalense, desde que o reconhecesse
primeiro como imperador da Hispânia. Além disso, os condados a norte
do rio Minho – Toronho, Celanova, Límia, Zamora e Astorga – ficariam
pertença de Afonso Henriques, desde que também prestassem suprema
vassalagem ao monarca leonês.
– No próximo verão, tereis de atacar os mouros algures a Sul de
Coimbra, enquanto eu ataco Jaen, Oreja e Coria!
No final dessas épicas e simultâneas campanhas, prometeu o
imperador, acordariam então a paz definitiva, com a bênção do Papa
Inocêncio II. O seu entusiasmo era forte, mas contrastava com a fleuma
abatida de Afonso Henriques, desagradado com partes daquela
combinação. O príncipe de Portugal temia defraudar muitos dos seus
aliados. O que diria a Gomes Nunes, a Chamoa, aos nobres de Límia,
Zamora ou Celanova, que tantas esperanças haviam depositado nele? O
que diria a Gonçalo Pais, cujos conselhos nos tinham valido a vitória em
Cerneja?
Consciente da sua posição complicada, avisou o imperador:
– Os galegos dos condados junto ao rio Minho odeiam o Trava e não
aceitarão esperar por um tratado futuro! Vão revoltar-se contra mim.
Com um sorriso malicioso, o imperador perguntou:
– Temeis desiludir a bela Chamoa?
Afonso Henriques sentiu naquela pergunta mais do que mera
curiosidade, o primo parecia mesmo interessado nela.
– Conheci-a em Leão – acrescentou Afonso VII. – Mais bela mulher
não há. Ouvi dizer que chegou de Coimbra...
Escondendo o incómodo, o príncipe de Portugal não o esclareceu,
mas o seu primo era sagaz e não o queria desconfiado, por isso garantiu
que ia perdoar os agravos dos nobres em causa e conter os ímpetos
arrogantes de Fernão Peres de Trava, rematando, a sorrir:
– Descansai a bela Chamoa. Podíamos combinar uma ceia hoje...
Afonso Henriques ignorou a sugestão e suspirou: teria de aceitar as
condições do primo, não tinha força para mais. Contudo, faltava-lhe
saber se Afonso VII ainda ambicionava a relíquia secreta da Terra Santa.
Porém, este olhou-o, desconsolado.
– É indiferente quem a encontra. O Papa Inocêncio II exige-a!
Preocupado, o imperador alertou Afonso Henriques:
– Se a achardes, entregai-a, caso contrário Roma não vos reconhecerá
como rei! Um tesouro que tocou em Cristo pertence ao representante
Dele na terra, não a reis ou imperadores! São essas as ordens de
Inocêncio II e não as posso contrariar.

Nessa noite, não houve qualquer ceia, nem o imperador voltou a ver
Chamoa, pois Afonso Henriques, mal assinou o tratado, desmontou o
acampamento e rumámos para o Sul. Durante o cabisbaixo regresso da
nossa comitiva a Coimbra, mil questões me percorriam o espírito
inquieto. O misterioso terceiro homem, cuja identidade já conhecíamos,
iria finalmente revelar-nos o esconderijo da relíquia? E Ramiro fora ter
com o seu perigoso mentor ou correra a juntar-se a Raimunda e aos
muçulmanos? O antigo templário levava-nos alguns dias de avanço...
Um tesouro que tocou em Cristo, dissera o imperador. Algo que pode
mudar os destinos do mundo, dissera Sohba. Um rei vassalo do
imperador era uma coisa, um rei com uma relíquia dos tempos de Cristo
era outra. Talvez o imperador, e mesmo o Papa, o estivessem a
subestimar... Afonso Henriques já era um gigante e em breve seria rei,
mas com a relíquia da Terra Santa nas suas mãos podia também
transformar-se numa figura mitológica e extraordinária, abençoada por
Deus e bafejada pelo poder dos Seus milagres.
Tínhamos de descobrir o esconderijo da relíquia e voltar a Sellium,
mas, para que isso fosse possível, precisávamos de desmascarar o traidor
de Coimbra, o mesmo homem que fora, vinte e tal anos antes, esconder
o artefacto sagrado com o pai de Afonso Henriques!
Coimbra, junho de 1137

Mal chegámos à cidade coimbrã, Afonso Henriques organizou uma


confrontação direta com aquele que Chamoa revelara ser o mentor da
conspiração contra nós: o bispo Bernardo! Por ordem expressa do
príncipe de Portugal, foram chamadas à Sé algumas testemunhas
relevantes, como Chamoa, Zaida e Mem, e quando entrámos na sua
igreja o bispo desagradou-se com aquela inesperada invasão, mas
Afonso Henriques atirou-lhe uma interrogação contundente, como quem
lança uma pedra com vontade de atingir o alvo.
– Sois vós o misterioso terceiro homem que foi, há vinte e seis anos,
com meu pai e com Paio Soares, esconder em Sellium a relíquia?
O irrequieto religioso indignou-se, dizendo que fora o saudoso pai de
Afonso Henriques quem o convencera a deixar a sua Borgonha natal
para vir para Portugal. Mas, nada sabia dessa suposta viagem!
O príncipe pediu então a Chamoa:
– Contai a esta assembleia o que vos disse Ramiro.
A minha cunhada fez o seu relato: o antigo templário confessara-lhe
ter abandonado a Ordem do Templo de Salomão a mando do bispo
Bernardo, seu mentor, seguindo também instruções deste quando fora a
Sellium procurar a relíquia. Porém, os árabes haviam-no prendido e só
antes do ataque a Leiria conseguira escapar desse jugo.
Para nosso espanto, o bispo desatou a rir, em forte desafio às palavras
de minha cunhada. No entanto, era fácil notar que continuava aflito,
tentando esconder os seus receios com aquelas galhofas falsas, no final
das quais perguntou:
– Quem sois vós para me acusar?
O prelado vomitou várias acusações cortantes contra Chamoa. Era
uma adúltera que chifrara o marido, Paio Soares! Fora expulsa do
Mosteiro de Vairão por ser bêbada! Seduzira Afonso Henriques já
grávida de seu primo Mem Tougues! Traíra a mãe, Elvira Peres de
Trava! Fornicara nas masmorras de Tui, com o amigo do príncipe
Gonçalo de Sousa, ali presente! Por fim, vergonha das vergonhas,
deleitava-se em ser possuída por um reles almocreve moçárabe!
Anotei mentalmente que o bispo Bernardo não mencionara Zaida,
mas constatei que aquela enxurrada produziu um óbvio efeito. A
desastrosa reputação da minha cunhada fragilizava o seu testemunho e
vários dos presentes revelaram-se desagradados. Atingido o primeiro
objetivo, o prelado passou ao segundo, atacando a igualmente frágil
reputação do antigo templário.
– Foi Ramiro quem vos contou tais enormidades? E quem é ele para o
fazer? É um uranista confesso, um desvairado que nos traiu!
Mais murmúrios de confirmação fizeram-no sentir que ia no bom
caminho e por isso o bispo Bernardo voltou a dirigir-se a Chamoa:
– Dizei-me, mulher, como lhe haveis extraído tanta informação?
Dormindo com esse pecador? Fingindo que sois homem?
Aquela era uma terrível e poderosa insinuação. Se Chamoa se
dedicara a intimidades com um invertido, isso fazia dela uma grave
pecadora, uma cúmplice de sodomitas, cujo destino era o Inferno!
A plateia ficou silenciosa, à espera do contraditório. Em sua defesa,
Chamoa Gomes alegou que sempre fora leal ao príncipe de Portugal. Os
seus antigos pecados não eram para ali chamados, já se penitenciara por
eles. Enfrentando o bispo com coragem, declarou:
– Ramiro saiu de Soure por vossa ordem! E foi a Sellium porque lhe
haveis revelado o esconderijo da relíquia. Sois o terceiro homem! E
Zaida sabe-o também!
Ao ouvir aquela referência à princesa moura, o bispo empalideceu e
olhou para a nomeada, tentando perceber se ela validava tal declaração,
mas depressa se recompôs, pois a princesa moura, embora confirmando
que vira Ramiro várias vezes na Sé com Bernardo, alegou nada mais
saber.
– Não tenho por hábito ouvir conversas alheias – afirmou Zaida.
Com as suas tranças longas e negras descendo pelas costas, envolta
num alifafe laranja e numa túnica azul, era um exemplar feminino capaz
de competir com Chamoa, dotado de uma beleza mais extravagante, mas
não menos admirável. Tal como eu, os outros homens presentes
engoliram em seco, travando secretos desejos, enquanto o bispo
Bernardo exclamava, agradado com tanta lealdade:
– Obrigado, princesa Zaida, haja alguém lúcido nesta reunião!
Visivelmente aliviado, acrescentou que sempre estimara a rapariga e,
embora fosse sua a autorização para frequentar a biblioteca da Sé, ela
fizera as suas pesquisas sem ajuda.
– Descobri sozinha onde era Sellium – confirmou Zaida – O bispo
Bernardo sempre me tratou bem. Sei que Ramiro é uma alma torturada,
mas é tudo o que posso dizer.
Desiludida com a amiga, Chamoa indignou-se:
– Zaida, porque me fazeis passar por mentirosa?
A rapariga moura nada lhe respondeu, confundindo a plateia. Faltava
uma prova irrefutável da traição do bispo Bernardo e, por isso, Afonso
Henriques dirigiu-se a João Peculiar e disse:
– Há uns anos, Afonso VII recebeu uma carta onde lhe prometiam a
relíquia sagrada...
O bispo do Porto confirmou, com um aceno de cabeça:
– No Concílio de Burgos, o cardeal Guido de Vico foi perentório: essa
missiva foi escrita por alguém de Coimbra!
O bispo Bernardo encolheu os ombros, como se nada daquilo lhe
dissesse respeito. Irritado com essa atitude desafiadora, Afonso
Henriques endureceu a voz, quando o interrogou novamente:
– Haveis feito tais promessas a Afonso VII?
O prelado coimbrão encolheu os ombros e resmungou:
– A única coisa que ofereci ao imperador foi um cavalo!
A sua declaração provocou alguns risos, pois todos recordavam a
forma humilhante como Afonso VII recusara o animal, ofendido por ele
se chamar Imperador ou Sultão. Irritado com a reação dos presentes, o
bispo Bernardo semicerrou os olhos e apontou o dedo a Afonso
Henriques e a João Peculiar.
– Fui eu quem vos alertou que o Mosteiro de Santa Cruz iria erguer
contra nós a ira de Afonso VII! Não vos recordais?
Depois, invocou as suas origens:
– Sou francês e os franceses sempre estiveram com Inocêncio II!
Nunca fui partidário do Antipapa! Os meus inimigos são os vossos!
A sua raiva encontrou por fim um novo alvo. Olhando, enfurecido,
para o seu homólogo do Porto, acusou-o:
– João Peculiar, vós sois a serpente maligna que corrompe a Igreja
portucalense! Não passais de um eremita duvidoso, um intriguista
ambicioso que tudo fará para chegar a arcebispo de Braga!
O visado pelas calúnias aguentou a dura investida do seu adversário
de sempre com um sorriso. Dotado de um impressionante sangue-frio e
de um não menos notável raciocínio rápido, João Peculiar não perdeu
tempo. Com lentidão programada, retirou do interior do seu manto um
rolo de papel amarelado, que ergueu no ar, como prova.
– Eis a carta que o bispo de Coimbra escreveu ao imperador. Foi-me
enviada por Bernardo de Claraval, nosso fiel amigo!
Abrindo o pergaminho, leu-o em voz alta. Bernardo de Coimbra
prometia a relíquia de Sellium a Afonso VII e o seu apoio ao Antipapa
Anacleto no cisma católico! Furioso com a construção do mosteiro
«apostólico» de Santa Cruz, em Coimbra, o bispo Bernardo aproveitara
o cisma da Igreja de Roma para nos tramar!
Para que não restassem dúvidas sobre o autor da missiva, João
Peculiar exibiu a assinatura, que todos reconheceram. Ora, sendo a carta
verdadeira, o resto deduzia-se. O bispo Bernardo só poderia ter dito o
que dissera ao Antipapa e ao imperador se soubesse onde estava a
relíquia. E sabia-o porque era o terceiro homem que a fora esconder!
Desejoso de nos prejudicar, confessara Ramiro, dominara-o e mandara-o
apoderar-se do tesouro sagrado.
Furibundo, Afonso Henriques ordenou uma imediata punição de tão
grave traição:
– Sereis destituído!
O religioso francês, apesar de siderado, não se deu por vencido.
– Só o arcebispo de Toledo ou o Papa o podem fazer!
Coimbra estava submetida à diocese de Toledo, tal como Braga à de
Compostela. Estas formalidades religiosas enfureciam-nos, mas não
havíamos ainda conseguido que nenhum Papa as corrigisse. Contudo, o
meu melhor amigo ignorou os procedimentos corretos e, como o bispo
Bernardo não revelou o esconderijo da relíquia, os soldados levaram-no
para as masmorras.
O traidor de Coimbra estava desmascarado, mas infelizmente não
conhecíamos as motivações do bispo Bernardo para durante tantos anos
ter mantido aquele segredo, nem ele nos revelara onde procurar a
relíquia do conde Henrique. Foi nesse momento que Zaida nos
surpreendeu, quando pediu ao príncipe, misteriosamente:
– Deixai-me falar com o bispo a sós...
Coimbra, julho de 1137

Espantado com o pedido da princesa, Afonso Henriques perguntou-lhe o


que ia ela falar com o bispo, mas Zaida ignorou o seu tom irónico e
declarou ser a única pessoa capaz de ressuscitar o antigo califado, ao
contrário de Ismar, que não passava de um tonto, manipulado por
Raimunda e por Fátima, cujos corações estavam cheios de ódio. O
ataque a Leiria fora um grave erro e Zaida previu que Ismar nunca
conseguiria unir a Andaluzia, pois não percebera que o seu mais
perigoso inimigo era o imperador Afonso VII.
– Mas vós também não o haveis compreendido... – murmurou Zaida.
– Afonso VII armou-vos uma cilada em conluio com Ismar!
Aquela recordação moía-nos e, sentindo que tocara num ponto fraco,
Zaida aproximou-se do príncipe e perguntou-lhe:
– Não desejais vencer o imperador e ser um rei independente?
O meu melhor amigo cerrou os dentes. Zaida sabia como falar-lhe à
alma rebelde e indomável. Animada, a princesa questionou-o:
– E se eu vos der a Andaluzia sem guerras?
Mesmo notando que a assembleia não se entusiasmara com tão
grandiosa oferta, Zaida aproximou-se e deu a mão ao príncipe.
– Se o Condado Portucalense se unir à Andaluzia, sereis um rei mais
poderoso do que o imperador de Leão!
Já ligeiramente afetado por ter aquela beldade tão próxima dele,
Afonso Henriques usou um tom ternurento para lhe dizer:
– Bela Zaida, isso é um delírio.
Sem hesitar, a princesa baixou o tom de voz, para só ele a ouvir:
– A minha avó casou com o vosso avô...
O príncipe de Portugal e a princesa de Córdova estavam agora muito
perto um do outro, os narizes de ambos quase se tocavam. Quem por
acaso tivesse entrado na Sé e os visse assim poderia pensar que os dois
se iriam beijar na boca.
Entusiasmada com tanta intimidade, Zaida lançou ao príncipe uma
emocionante pergunta:
– Porque não nos casamos?
Afonso Henriques sorriu-lhe, lisonjeado. Era evidente que o príncipe
tinha um fascínio pela bela moura, mas, recordando uma conversa tida
anos atrás, naquele mesmo local, perguntou-lhe:
– Já não desejais partir para Córdova?
Zaida sorriu-lhe de volta e sussurrou:
– A minha cama no Azzahrat será também a vossa...
Divertido, o meu melhor amigo replicou-lhe:
– A Andaluzia em convulsão não é dote que me seduza...
Vendo que os mimos continuavam, Egas Moniz interveio, declarando
que a união da Andaluzia era uma quimera impossível e recordando-nos
de que Inocêncio II estabelecera a reconquista dos territórios mouros
como a prioridade máxima.
Filha, lutai...
Nesse momento, Zaida virou-se para meu pai:
– Inocêncio II não confia no imperador, que foi o principal instigador
do grave cisma da Igreja de Cristo!
Espantei-me mais uma vez com o talento oratório e o sentido de
oportunidade daquela princesa moura, que parecia uma especialista na
política hispânica. Sem tirar os olhos de meu pai, Zaida declarou:
– Se Afonso Henriques oferecer ao Papa uma Andaluzia cristã,
certamente que Roma o aceitará como rei independente!
Embora aquele fosse um caminho tentador, com o qual Afonso
Henriques multiplicaria os seus territórios e o seu poder, a verdade é que
era também impraticável, pois Zaida não passava de uma mulher
solitária, sem exércitos e sem aliados. Para além disso, como seria
possível aceitar uma paz com os mouros depois do tenebroso e ainda tão
recente massacre de Leiria?
– Bela Zaida, não me posso esquecer dos nossos mortos. Paio
Guterres foi esfolado vivo... – recordou o príncipe.
Aquela memória sinistra fez nascer uma revolta geral na plateia, que
rapidamente recusou as ideias de Zaida. Derrotada, a mais nova das
princesas calou-se, matutando numa forma de recuperar a iniciativa.
Nesse momento, Chamoa deu um passo em frente e perguntou a Afonso
Henriques:
– Porque não a deixais falar com o bispo Bernardo? A sós com Zaida,
talvez ele revele o esconderijo da relíquia...
A minha cunhada sempre desconfiara das intimidades da princesa
moura com o bispo de Coimbra. Se, numa suspeita conversa a dois, a
princesa extraísse ao prelado a localização do tesouro, a reputação dela
podia manchar-se aos olhos de Afonso Henriques.
Filha, cuidado...
Chamoa não brincava, pois conhecia muito bem as dúvidas amorosas
do meu melhor amigo. Em Tui, os dois haviam-se aproximado, mas ela
ainda não o reconquistara e, portanto, Zaida representava um perigo real.
Assim, subiu a parada, apostando que um homem tão ciumento como
Afonso Henriques jamais iria desposar uma mulher que se tivesse
oferecido a um representante de Cristo na Terra!
O príncipe de Portugal hesitou. Talvez não pudesse casar com Zaida,
mas a perspetiva de a saber a sós com o bispo incomodava-o.
– Não acredito que Bernardo se confesse a vós...
A confiança de Zaida espantou-me, quando a ouvi declarar, com um
sorriso estampado na cara:
– Príncipe de Portugal, dar-vos-ei a relíquia e a Andaluzia!

Foi-me atribuída a missão de acompanhar Zaida até à prisão do Castelo


de Coimbra e o almocreve Mem seguiu-nos em silêncio, sempre leal e
dedicado à sua princesa. Contudo, à porta da masmorra, pediu a Zaida,
numa voz sumida e preocupada:
– Não o façais.
Porém, ela limitou-se a dizer:
– O meu futuro e o de Córdova obrigam-me.
O almocreve afastou-se, desiludido, enquanto a princesa entrava na
cela. Nenhum de nós viu o que se passou lá dentro, nem ouvimos
qualquer ruído impróprio, mas, ao sair, Zaida anunciou, orgulhosa:
– A relíquia está debaixo de uma laje, no forno crematório de
Sellium!
Quando reentrámos na Sé, a mais nova das filhas de Zulmira e de
Hixam de Hisn espantou os presentes com a sua afirmação:
– O bispo deseja vir aqui reconhecer as suas culpas!
Afonso Henriques olhou para meu pai, Egas Moniz, que lhe sugeriu
aceitar o regresso do bispo. E o príncipe assim fez, mas só depois de
Zaida lhe revelar o esconderijo da relíquia. Enquanto Peres Cativo,
Gonçalo de Sousa e o almocreve partiam para Sellium à desfilada,
chefiando um primeiro contingente de soldados, fui novamente à
masmorra buscar o bispo Bernardo e trouxe-o de volta à Sé, onde ele
finalmente confessou as suas conspirações.
– Há quatro anos, o Antipapa Anacleto e Afonso VII estavam furiosos
convosco, por causa do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Com receio
deles, prometi-lhes a relíquia!
O arguto bispo defendeu que só tentara proteger o Condado
Portucalense, amansando as raivas do Antipapa e do imperador. Por
isso, se aproveitara das fraquezas de Ramiro, mandando-o ir a Sellium
buscar a relíquia. Contudo, o maldito bastardo traíra-o, aliando-se aos
mouros. Percebendo que nunca iria conseguir o tesouro, o bispo ainda
tentara pacificar o imperador, oferecendo-lhe um belo cavalo, mas
também a sua generosidade fora um fiasco.
– Não tenho jeito para a política – reconheceu.
Desde então, não voltara a conspirar, assistindo quieto à progressiva
derrota de Anacleto, que perdera o cisma da Igreja de Roma para
Inocêncio II, bem como às lutas entre o imperador e Afonso Henriques,
que haviam terminado com o Tratado de Tui.
– Estou profundamente arrependido do que fiz – rematou Bernardo.
O príncipe de Portugal deixou-se ficar algum tempo calado, mas
depois recordou, em voz pausada e calma, que há pelo menos onze anos
que a relíquia sagrada era procurada.
– Primeiro, Gondomar, o mestre dos templários; depois, o Trava e eu
próprio... E vós, sabendo onde ela estava, nunca haveis falado?
Aproximando-se mais do prelado, interrogou-o:
– Quem protegeis com esse vosso silêncio?
O bispo Bernardo colocou um ar solene e disse:
– Prometi a vosso pai que só vos entregaria a relíquia no dia em que
vos coroassem rei de Portugal. Até lá, ela devia permanecer escondida
em Sellium.
Aquelas tremendas palavras ficaram a ecoar nas paredes da Sé até o
meu melhor amigo dar por terminada a desagradável reunião,
declarando que, apesar de contrariado, manteria o bispo Bernardo no
cargo. Agradado, este prometeu-lhe total lealdade para o futuro, mas
Afonso Henriques estava já mais interessado nos truques da princesa
Zaida e, antes de partirmos para Sellium, provocou-a:
– Haveis levantado a túnica para o fazer falar?
A princesa riu-se e respondeu:
– O que fiz fi-lo por vós, príncipe de Portugal.
Fortemente convencida dos seus méritos, acrescentou:
– Agora só falta oferecer-vos a Andaluzia numa bandeja dourada.
Um pouco atrás dela, reparei que Chamoa mordeu o lábio,
preocupada. Se Mem encontrasse a relíquia, Zaida ganharia certamente
um enorme ascendente junto de Afonso Henriques. Mas eu duvidava de
que isso fosse possível, pois Ramiro levava uns dias de vantagem sobre
nós.
Sellium, julho de 1137

Enquanto se dirigia a Sellium, integrado num contingente de trezentos


soldados comandados pelo alferes Peres Cativo e por Gonçalo de Sousa,
Mem chegou à triste conclusão de que perdera o seu lugar no mundo e
mesmo a sua identidade.
Homem sem ofício, vida de suplício...
Sempre fora almocreve, desde o dia em que, mais de duas décadas
antes, vira o seu pai morrer degolado pelo alfange de um sinistro
feddayin. Com apenas doze anos e o coração amargurado, cremara o pai
com a ajuda de Sohba, que lhe sugerira rumar a Coimbra e seguir as
pisadas do seu progenitor. Assim fizera e desde então tinha percorrido o
Condado Portucalense e os territórios muçulmanos que existiam a sul,
comerciando com árabes, cristãos ou moçárabes.
No passado, haviam existido escaramuças e fossados, mas nada
semelhante ao acontecido em Leiria. Aquele gravíssimo banho de
sangue iria transformar irremediavelmente o espaço onde Mem
transacionava, que passaria a ser o palco, já não de uma guerrilha
intermitente, mas de uma guerra santa tremenda e feroz, que aniquilaria
a possibilidade do comércio, sobretudo a alguém como ele, envolvido
até ao pescoço nos conflitos.
Amigos importantes, dilemas cortantes...
Até à data, Mem tentara equilibrar-se naquele vórtice de lutas, mas
depois de Leiria teria de escolher um lado da guerra e o recente
comportamento de Zaida ajudava-o. Mem adorava-a, mas por duas
vezes no mesmo dia ela traíra o enamoramento deles. Embora dissesse
querer partir para Córdova, Zaida propusera a Afonso Henriques um
casamento escandaloso e improvável, para unir o Condado Portucalense
à Andaluzia árabe. E, logo de seguida, trocara mimos à porta fechada
com o bispo Bernardo.
Homem substituído, coração partido...
Na hora da verdade, Mem não passava de um almocreve que a
princesa dispensava sem hesitação, no seu caminho apressado para a
libertação. Se Zaida partisse para Córdova, perdê-la-ia para Ismar ou
para outro príncipe árabe qualquer. Mas, se ela ficasse em Coimbra,
seria Afonso Henriques a dela usufruir.
Nem Chamoa lhe compensaria a perda, pois também ela se
desvinculara. A rapariga galega partira para o Norte atrelada a Ramiro e
regressara de lá atrelada a Afonso Henriques. Naquele rodopio de
vontades femininas, só Mem sairia prejudicado.
Guerra e solidão, apertam o coração...
Mem admirou o porte distinto e seguro do alferes Peres Cativo.
Comparados com o bando de alucinados formado por Fátima, Zhakaria,
Raimunda, Ismar e Ramiro, os portucalenses eram de confiança e Mem
sempre fora muito hábil a usar o arco e as flechas.
Muitos dos cavaleiros-vilões de Coimbra tinham origem humilde,
eram artífices ou lavradores a quem os combates haviam permitido uma
ascensão de estatuto e o benefício de honrarias e riquezas.
Cavaleiro-vilão, trata bem o pilão...
Decidido, Mem colocou o seu cavalo ao lado dos de Peres Cativo e de
Gonçalo de Sousa, perguntando ao primeiro:
– Achais possível um almocreve tornar-se guerreiro?
Peres Cativo olhou-o, intrigado, mas Gonçalo recordou de pronto:
– Sois moçárabe.
Os cavaleiros-vilões eram todos cristãos, mas alguns haviam nascido
algures nos territórios muçulmanos e por uma razão ou por outra tinham
rumado a norte e jurado fé em Cristo. Mem decidiu insistir, invocando
os seus progenitores.
– Minha mãe era cristã e meu pai nunca se interessou pelo Corão.
Peres Cativo sorriu, sabia que ele era bom com as flechas, mas
Gonçalo manteve vivas as dúvidas sobre a sua lealdade.
– Haveis ajudado as princesas a fugir.
Mem olhou para os soldados que os acompanhavam.
– O príncipe enviou-me convosco. Será que não confiais em mim? –
como os outros se mantiveram calados, o almocreve declarou: – Zaida
irá para Córdova um dia, mas não irei com ela.
Zangado, Gonçalo de Sousa cuspiu para o chão.
– Não ficareis com nenhuma delas, almocreve! Tanto Chamoa como
Zaida querem casar-se com o príncipe!
O seu azedume era evidente, mas Peres Cativo riu-se e disse:
– É por isso que gosto da guerra. Distrai-nos das mulheres...
Irritado, Gonçalo de Sousa deu meia-volta ao cavalo e disse que ia até
à retaguarda da coluna beber algum vinho, pois estava com sede. Depois
de ele se afastar, Peres Cativo disse a Mem que poderia integrar os
exércitos portucalenses, desde que se convertesse.
– Mas antes tendes de encontrar a relíquia! – exclamou.
Já de noite, quando se aproximaram da povoação de Tomar, onde
estava a ser construído um pequeno castelo, Mem relembrou ao alferes
que, em Sellium, o esconderijo da relíquia ficava perto do rio Nabão, um
pouco para a direita donde estavam. O local identificado pelo bispo
Bernardo era um forno crematório e só ao sabê-lo Mem compreendera a
expressão que Sohba utilizara antes de morrer: fogo... corpos... queima.
A velha mulher tentara apontar-lhe o paradeiro do tesouro, mas falhara.
Preocupado por não ver no novo Castelo de Tomar qualquer
iluminação, Peres Cativo ordenou-lhe que rumasse às ruínas com quatro
cavaleiros-vilões e vinte peões, enquanto ele e o resto das tropas se
dirigiam ao castelo. Separaram-se e pouco depois o almocreve
desmontou e embrenhou-se em Sellium.
Dias de avanço, ganham no picanço...
Mem acelerou o passo, com receio de que Ramiro tivesse chegado
primeiro. Já entre os escombros daquela antiga civilização, ouviu nas
suas costas os protestos dos que o acompanhavam, que não conheciam
bem o terreno, mas só parou junto ao forno crematório, uma pequena
construção cujo interior iluminou com o archote.
O bispo Bernardo dissera que a relíquia estava debaixo das lajes e
Mem apontou para lá a chama. Depois, entrou no forno de cócoras e
nesse momento foram atacados. Ouviu gritos, virou-se para trás, agitado,
e viu o seu grupo de cavaleiros-vilões e peões a ser totalmente
destroçado por um vasto número de sarracenos.
Mem ainda tentou esconder-se dentro do forno crematório, mas algum
tempo depois estava preso, de pés e mãos atados, encostado a umas
pedras. À sua frente, o novo e pequeno Castelo de Tomar ardia, os
muçulmanos de Zhakaria haviam-lhe lançado fogo e ouviam-se os urros
lancinantes daquela desafortunada guarnição, que Fátima mandara
empalar, em mais uma manifestação desbragada da sua profunda
violência.
Haviam sido vítimas de uma emboscada, mas Mem não sabia se Peres
Cativo e Gonçalo de Sousa estavam vivos quando apareceram à sua
frente Raimunda, Fátima, Abu Zhakaria e, por fim, Ramiro.
Ódio do passado, pescoço despedaçado...
Obviamente, o canalha regressara a Santarém, enganando os
muçulmanos da mesma forma que dias antes ludibriara os cristãos.
Estava ali para se apoderar da relíquia e, como sempre, espumava raiva
contra ele.
– Porque não o degolam? – gritou Ramiro.
Mem reparou no olhar enlouquecido do bastardo de Paio Soares,
semelhante ao dos doidos que muitas vezes vira perdidos, a vaguearem
pelas ruelas das cidades. À sua frente, Fátima revelou uma fina lucidez,
pois perguntou:
– Quereis vê-lo morto, para só vós saberdes onde está a relíquia?
Era evidente que a princesa mais velha desconfiava de Ramiro e Mem
concluiu que não iria ser morto, pelo menos para já.
– A minha irmã estima o almocreve, não lhe quero dar um desgosto –
acrescentou Fátima, com um sorriso cínico.
Como as tropas presentes eram de Abu Zhakaria, Raimunda e Ramiro
tinham também de se submeter à mais velha das princesas mouras.
Mulher de guerreiro, manda primeiro...
Então, Fátima ordenou a Ramiro:
– Ide buscar a coisa antes que vos mate! Lembrai-vos de que já não
preciso de vós, o Mem também sabe onde ela está!
O almocreve viu o bastardo entrar no forno crematório e ouviu
movimentações de lajes. Pouco depois, ele saiu, trazendo nas mãos algo,
embrulhado numa pele de animal.
– Ei-la! – exclamou Ramiro.
Devagar, desenrolou a capa improvisada que durante tantos anos
cobrira aquele artefacto sagrado e mostrou a ponta de uma lança, de
ferro, ainda pontiaguda, mas baça e enferrujada.
– É isso a relíquia? – perguntou Fátima, dececionada.
O antigo templário recordou os Evangelhos bíblicos. Nos textos
sagrados, a descrição da crucificação de Jesus Cristo referia a presença
de um centurião romano, chamado Longinus, que atingira o peito do
filho de Deus com um golpe.
– Esta é a lança que feriu Cristo! – exclamou Ramiro.
Raimunda declarou que a relíquia podia destruir Afonso Henriques,
mas Fátima não lhe deu grande crédito.
– Essa merda só me importa porque com ela posso reaver a Zaida!
Frenética, olhou para Raimunda e ordenou-lhe:
– Ide propor ao aleijadinho a troca que vosso pai queria!
Ramiro e Raimunda entrariam em território cristão sozinhos, indo
apresentar a Afonso Henriques a velha ideia de Ermígio Moniz. De dedo
autoritário no ar, Fátima avisou-os:
– Zaida terá de me ser entregue viva ou eu mesma vos matarei!
Mem ficou intrigado: quereria Fátima salvar a irmã, ou apenas
eliminar Ramiro, em quem não confiava, e Raimunda, agora uma sua
rival na disputa pelo trono de Córdova?
Mulheres ensandecidas, alhadas prometidas...
Soure, agosto de 1137

Depois do azar de Tomar, Peres Cativo e Gonçalo de Sousa retiraram


para norte, seguidos pelos poucos homens que haviam sobrevivido à
cilada de Abu Zhakaria. Ao passarem por Soure, cruzaram-se connosco,
que nos dirigíamos a Sellium.
Mal soube do infortúnio, Afonso Henriques quis ripostar, mas as
nossas tropas estavam esgotadas, depois de meses a combaterem na
Galiza e de uma viagem rápida para o Sul. Assim, o exército
portucalense acampou à volta de Soure, enquanto pensávamos no que
fazer, moendo a raiva de nova derrota.
Na manhã seguinte, dois solitários cavaleiros que carregavam a
bandeira branca da paz pararam na estrada de Santarém e dois
templários de Soure foram ter com eles. O Rato e o Peida Gorda
identificaram sem dificuldades Ramiro e Raimunda, que desejavam
propor um acordo a Afonso Henriques. Enquanto o Peida Gorda foi
informar o príncipe, o Rato permaneceu junto aos dois bastardos e
Raimunda reparou que Ramiro estava incomodado.
A rapariga deduziu que o Rato não iria certamente aguentar-se calado,
por isso não se espantou quando ele comentou:
– Todos vos traem menos eu...
Ramiro mirou o Rato com fúria e ripostou:
– Calai-vos, filho do Demónio!
O Rato magoou-se com aquela dureza e contrapôs:
– Sempre vos quis bem, faria tudo por vós!
O bastardo de Paio Soares levou a mão à espada.
– Se não vos calais, corto-vos a língua, Belzebu miserável!
Raimunda lançou a Ramiro um olhar crítico, como se lhe recordasse a
razão por que ali estavam, ao mesmo tempo que avisava o Rato:
– Se não sois capaz de sossegar, regressai a Soure!
Então, o Rato virou-se de costas, até o Peida Gorda regressar e lhes
dizer que o príncipe aceitava parlamentar. Quando os quatro chegaram
ao portão de Soure, Afonso Henriques estava de pé, tendo a seu lado
Gonçalo de Sousa, Peres Cativo e eu próprio. Lembro-me de ter pensado
como era estranho que uma prima minha e um rapaz que havíamos
conhecido desde miúdos estivessem agora a soldo de Zhakaria e Fátima.
Vi-os a desmontarem, notando que ambos deixaram as suas armas nos
cavalos, mas mesmo assim Peres Cativo revistou-os. De seguida,
Ramiro anunciou:
– Encontrámos a relíquia.
Afonso Henriques decidiu provocá-lo de imediato e perguntou:
– Não a deveis entregar ao bispo Bernardo, o vosso confessor?
O príncipe mostrou ao antigo templário que conhecia bem o seu papel
na conspiração de Coimbra, acrescentando:
– Chamoa contou-nos o que lhe haveis dito, nos momentos que
passaram juntos a caminho de Tui.
O meu melhor amigo torturava Ramiro com aquelas palavras,
mexendo-lhe na ferida aberta pelo engano malicioso de Chamoa.
Pai, ela magoou-me tanto...
O efeito foi arrasador e o bastardo vacilou, empalidecendo.
– Ides desmaiar? – gozou o príncipe.
Vendo que a situação se descontrolava, Raimunda decidiu intervir e
afirmou que estavam ali para propor uma troca, tal como um dia sugerira
o pai dela, Ermígio Moniz. Os muçulmanos entregavam a relíquia da
Terra Santa e recebiam de volta Zaida, a princesa moura que permanecia
cativa em Coimbra.
O príncipe, depois de uns momentos pensativo, perguntou:
– Qual de vós disparou a flecha contra mim em Sellium?
Como nenhum deles se acusou, Afonso Henriques resmungou:
– Podia matar-vos por isso...
Enervada, Raimunda replicou-lhe de pronto:
– Se nos matardes, o Mem morre! Está preso em Santarém.
Afonso Henriques surpreendeu-se com a novidade, mas, à sua
esquerda, Gonçalo de Sousa exclamou, agradado:
– Que morra, não precisamos dele para nada!
Este ressentimento contra Mem não existia no príncipe, que estimava
o almocreve. Sentindo que era necessária uma forma mais hábil de lidar
com Raimunda, o meu melhor amigo aproximou-se dela, tentando que a
sua presença a perturbasse.
– Não tendes saudades minhas? – perguntou, sorrindo-lhe.
Por mais que não o desejasse, a bastarda de meu tio Ermígio ficou
abalada. Afonso Henriques era o seu grande amor do passado, com ele
perdera a virgindade, a ele se entregara totalmente desde cedo, como
Ramiro sabia.
Pai, ela é como eu, ama quem odeia...
Os vestígios da paixão eram ainda evidentes, pois Raimunda corou.
Sentindo a fraqueza dela, o príncipe insistiu:
– Porque não voltais para mim? Sereis minha mulher!
Estou certo de que a minha prima admitiu mentalmente a hipótese
drástica de regressar aos braços do seu antigo amante. A tentação era
forte, a presença do príncipe ali a seu lado, o cheiro dele, a intensidade
das suas palavras, estavam a seduzi-la.
Cuidado, companheira, ele é o Demónio...
Ramiro deu-se conta da perturbação dela e avisou-a:
– Raimunda, ele anda a filhar três mulheres! Filha a Elvira Gualter,
em Guimarães, filha a Chamoa, a Zaida... Quereis ser a quarta?
A recordação das rivais arrancou Raimunda daquele curto torpor
enamorado. De repente, tudo o que a desgostara e destruíra no passado
regressou. A dor cortou-a, a memória do suicídio revoltou-a, o ciúme
angustiou-a.
Isso, companheira, lembrai-vos...
Transtornada, Raimunda gritou:
– Vou matar-vos um dia! E a elas todas!
Afonso Henriques não se atemorizou com esta promessa de violência
e, continuando de olhos postos na minha prima, tentou pela derradeira
vez chamá-la à razão:
– Sois uma cristã! Nada vos liga a Ismar ou a Zhakaria!
Vislumbrando um raio de luz nos olhos dela, o príncipe semicerrou os
seus e, já suspeitando de algo, perguntou:
– Tendes à espera alguém melhor do que eu?
Nesse momento, Raimunda gritou-lhe, com desprezo evidente:
– Ismar quer casar-se comigo! Serei a rainha do califado de Córdova!
Vou converter-me ao Islão para vos guerrear!
Percebi finalmente que aquela já não era a minha prima, a bastarda de
meu tio Ermígio, que crescera connosco e com quem havíamos brincado
em crianças. Conhecedora do seu sangue real muçulmano, Raimunda era
uma Benu Ummeya, uma potencial candidata ao trono de Córdova, a
futura esposa de Ismar.
Numa demonstração evidente de arrogância, o príncipe acrescentou:
– Nunca sereis feliz sem mim! Só eu sei como vos tomar.
Os olhos de Raimunda chisparam de raiva mais uma vez e, cuspindo
para o chão, ela afirmou:
– Fodi mais de mil homens em Lisboa e todos foram melhores que
vós, aleijadinho!
Indiferente aos insultos dela, o príncipe anunciou a sua decisão: não
trocaria Zaida pela relíquia, não negociaria com facínoras que haviam
degolado milhares de portucalenses em Leiria e Tomar. Esta declaração
agitou de imediato os soldados e reparei que alguns pegaram nas armas,
endurecendo as suas expressões, enquanto Ramiro olhava, aflito, para
Raimunda.
Companheira, vamos embora...
Para acalmar os seus homens, Afonso Henriques declarou:
– Ide em paz, mas dizei a Ismar e a Zhakaria que Ibn Henrik, o filho
do conde Henrique, lhes promete luta eterna!
O encontro estava terminado. Calados, Raimunda e Ramiro montaram
os seus cavalos e abandonaram Soure. Ao vê-los desaparecerem no
horizonte tive a estranha e triste sensação de que via a minha prima pela
última vez, mas o meu melhor amigo não pensava o mesmo, pois
prometeu-me:
– Lourenço Viegas, irei atrás deles até Córdova!

Só dias depois, quando o Rato regressou a Soure, soubemos o que


aconteceu na estrada, já bastante longe da povoação. Ramiro e
Raimunda caminhavam a passo e o antigo templário ia distraído pelos
seus pensamentos tortuosos.
Pai, odeio Chamoa...
A sua ira tinha como alvo principal a estúpida galega que o
humilhara, dando-se a ele para depois o ludibriar. Era uma víbora, uma
serpente do Demónio, uma deusa da mentira e do engano. Enraivecido,
Ramiro imaginou-se a apunhalá-la no coração, a cortar-lhe as tetas
nojentas com que seduzia os homens. E foi por estar de olhos cerrados,
cheio de rancor a Chamoa, que não viu o vulto que lhe aterrou em cima.
Raimunda, uns dez metros à frente dele, ouviu um baque surdo, um grito
abafado e virou-se para trás. Aterrada, reparou que o Rato esfaqueava o
indefeso e surpreendido Ramiro, enquanto gritava:
– Morre, estupor!
Uma facada mais violenta acertou na garganta de Ramiro e outra
fatiou-lhe o rosto, de cima a baixo.
Pai, vou morrer!
Ao ver, dias antes, o antigo amante partir para o Norte com Chamoa,
o Rato sentira-se possuído por um ciúme duro e dilacerante que só a
morte podia extinguir. Quando o vira reaparecer em Soure, os
pensamentos loucos tinham regressado e afastara-se em direção ao sul,
pela estrada para Santarém, até descobrir um local indicado. Sorrateiro,
escondera o cavalo e esperara o seu momento em cima de uma árvore,
deduzindo corretamente que os dois traidores iriam regressar por ali.
Quando Raimunda chegou perto deles, Ramiro era já um ser
condenado à morte. Ela ainda tentou atingir o Rato, mas este, cumprido
o seu destino vingativo, saltou para o chão num pulo e correu para a
berma da estrada, desaparecendo na floresta.
Pai, dói tanto...
Aflita, Raimunda ignorou-o e viu Ramiro tombado sobre o cavalo,
esguichando sangue das várias feridas. O desgraçado gemia, em risco de
vida. Então, ela puxou as rédeas da montada dele e obrigou-a a seguir a
sua. Queria regressar a Santarém depressa, mas algum tempo depois
deixou de ouvir o antigo templário.
De lágrimas nos olhos, a minha prima verificou que o companheiro já
não passava de um ser disforme e ensanguentado. A custo, retirou-o do
cavalo e pousou-o junto a umas pedras. Ramiro estava morto, o seu
sofrimento terminara. A minha prima decidiu enterrá-lo ali mesmo e
cobriu-o de pedras, num arranjo tumular onde não colocou uma cruz de
Cristo, pois repudiara aquela religião para sempre.
VII
O Milagre
de Ourique
1138 – 1139
Guimarães, outubro de 1138

No Natal do ano anterior, como era costume, Chamoa dirigira-se a Tui,


onde passara a quadra festiva na companhia de seu pai, Gomes Nunes,
mas também de mim e da minha Maria, bem como dos nossos filhos e
dos quatro rapazes de Chamoa, altura em que havíamos comido as
iguarias da ocasião aliviados pelas ausências de Fernão Peres, Bermudo,
Mem Tougues ou mesmo da marafona Elvira.
Embora o meu melhor amigo e Chamoa já estivessem reconciliados
desde o verão, durante as quadras festivas ele aproveitara a ausência da
minha cunhada para voltar a amigar-se com Elvira Gualter, celebrando a
época natalícia em Guimarães com as duas filhas que dela tivera. No
entanto, a normanda sabia perfeitamente que Chamoa e o príncipe se
haviam reaproximado e dissera certo dia:
– Mandai-a vir passar connosco o Dia de Reis!
Aquela sólida mulher permanecia imune ao ciúme e apenas exigia que
o príncipe não se esquecesse das filhas. Em inícios de fevereiro do novo
ano, preparou um quarto em Guimarães para o casal, quando soube que
Chamoa iria chegar.
– Tendes de unir-vos! – declarou ao príncipe.
Afonso Henriques sorriu-lhe, aquela era uma mulher difícil de
compreender. Gostava dela, mas não sentia paixão, como pela outra.
– E vós, ficareis em Guimarães? – perguntou.
– Claro, ela não me apoquenta nada... – respondeu Elvira.
Dias depois, acompanhada pelos seus quatro rapazes, Chamoa
reentrou no Castelo de Guimarães pela terceira vez. Ao vê-la na
alcáçova, dei-me conta de que, aos vinte e oito anos, a minha cunhada
continuava portentosa. Apesar de quatro vezes mãe e de tanta confusão
na vida, não se lhe notavam rugas na cara, nem tristeza no olhar. A sua
natureza sociável reaparecera com pujança e permanecia capaz de fazer
trepidar o coração dos machos com as suas profusas sardas, o seu olhar
de corça, o seu corpo voluptuoso, os seus longos cabelos loiros, o seu ar
de princesa doce e meiga.
E, se de corpo se mantinha sã e viçosa, de cabeça evoluíra. A sua
propensão para a tolice havia sido dominada por uma sabedoria interior
que a tornava mais lúcida a escolher as prioridades. Inteligente, deixara
de beber, o que muito tranquilizava o filho Pêro Pais, e com o tempo
compreendera que o dom natural com que enfeitiçava os homens, se
levado longe de mais, transformava-se numa força destrutiva do amor e
da confiança daquele que tanto desejava, Afonso Henriques. Tinha de se
acalmar, pois a reconquista de um amor antigo exige sempre uma
garantia adicional de fidelidade, até porque o amado não admitia rivais.
Há sempre razões para uma mulher rejeitada por um homem se
oferecer a outro, mas ao fazê-lo Chamoa forçara Afonso Henriques a um
ciclo interminável de constantes repúdios, comandado pelo orgulho
ferido dele. Para extinguir essas labaredas de ciúme, Chamoa obrigou-se
a uma certa anulação da sua vaidade, sempre natural e até saudável
numa mulher. Não tinha de ser uma monja, mas também não podia dar-
se como uma tola, pois a perda da reputação e de uma certa pureza
feminina, que as mulheres devem manter para se valorizarem aos olhos
masculinos, só a afastava do príncipe.
Uma mulher, sobretudo bonita, como Chamoa era, pode ter muitos
homens, pois muitos a procuram, mas é necessário que esses amores se
justifiquem, sem sombra de indignidades ou disparates, não expondo a
todos que nela existe mais ânsia do que juízo. Naqueles meses em que
finalmente foi serena, Chamoa percebeu que só o seu comprometimento
enfeitiçava Afonso Henriques, orgulhoso de ser, por fim, o único
parceiro dela. Completamente enamorados, os dois criaram um mundo
encantado em Guimarães e ninguém os incomodava, nem sequer Elvira
Gualter, que suspendeu os seus encontros furtivos com o príncipe,
deixando aquela paixão florescer em paz, como se o destino de todos
nós dependesse dela.

Só em inícios de outubro daquele ano tivemos de encarar a dura


realidade de que havia um Condado Portucalense para governar. A
morte de Paio Mendes, arcebispo de Braga, obrigou à sua substituição e
o escolhido para o posto mais alto da Igreja portucalense foi João
Peculiar, que abandonou o bispado do Porto e, mal foi investido nas suas
novas funções, relembrou ao príncipe as suas responsabilidades.
– Se quereis ser rei de Portugal, tendes de recuperar a relíquia!
Dias depois, soubemos que Afonso VII já executara o fossado na
Andaluzia que prometera em Tui, atacando Jaen, Andújar e Baeza,
povoações próximas de Córdova e a sul de Toledo. Entusiasmado, o
imperador prometia para o ano seguinte um ataque a Colmenar de Oreja,
praça-forte essencial à proteção da Andaluzia moura, relembrando-nos
que, para enfraquecer Ismar e os outros reis sarracenos, era necessário
que nós os atacássemos também.
Pressionado pelas exigências do imperador, Afonso Henriques
marcou uma grande reunião em finais de outubro e juntaram-se a nós os
senhores de Toronho, Celanova e Límia, mas também os de Baião, os de
Lamego, os de Vila da Feira; a família da Maia, que tinha Gonçalo
Mendes, o Lidador, como líder; os de Sousa, agora já comandados pelo
nosso amigo Gonçalo, a quem falecera o pai; e ainda o Braganção,
cunhado do príncipe, o alferes Peres Cativo e a gesta de cavaleiros-
vilões de Coimbra.
Nunca antes se haviam reunido tantos ricos-homens do Condado
Portucalense, mas a discussão aberta que se seguiu, liderada por meu
pai, Egas Moniz, não gerou um consenso imediato. Alguns queriam
esperar que os castelos do Sul estivessem todos prontos. Outros queriam
atacar já Santarém, a praça moura mais próxima, enquanto um ou dois
mencionavam Lisboa. Houve também quem, conhecendo as fragilidades
de Ismar, que não era ainda o novo senhor da Andaluzia, apostasse em
seguir a sugestão do imperador, sonhando com a expansão para leste.
Só quando a princesa Zaida chegou a Guimarães, vinda de Coimbra à
pressa e sem aviso, é que aquela magna reunião produziu finalmente
uma decisão. Acompanhada de Miguel Salomão, cónego moçárabe da
Sé, a lindíssima princesa moura entrou na sala do castelo envolta num
manto verde, mas notei nos seus olhos grande tristeza.
– Raimunda e Ismar casaram-se em Córdova! Ele já é emir da taifa –
anunciou ela, numa voz melancólica. – E a minha irmã vai casar-se com
Abu Zhakaria, no nosso castelo na serra Morena.
De repente, a voz toldou-se-lhe e engoliu em seco. Comovida,
Chamoa aproximou-se dela e abraçou-a, e Zaida recuperou um pouco a
compostura e a serenidade, tendo depois acrescentado:
– O Mem continua preso, levaram-no para lá.
Por fim, olhou para Afonso Henriques e disse:
– A relíquia também.
Foi esta notícia que decidiu o príncipe. Mais do que atacar Lisboa ou
Santarém, era essencial recuperar a lança sagrada da Terra Santa! Em
março do ano seguinte, atacaríamos Ismar em Badajoz ou Sevilha, ao
mesmo tempo que o imperador o fustigava em Colmenar de Oreja!
A paz de Zaida morreu sem glória naquele dia, ironicamente
destroçada por uma novidade que ela própria nos trouxe. A quimera da
união da Andaluzia ao Condado Portucalense, só possível com um
casamento real entre a princesa moura e Afonso Henriques, evaporava-
se para sempre. Como é natural, a autora da proposta ficou visivelmente
desanimada e senti forte pena dela.
Gostava mesmo daquela linda rapariga, tão amável e inteligente, e
acredito sinceramente que ela desejava a paz entre mouros e cristãos.
Porém, naquele momento, Zaida perdera tudo. Fátima casaria com
Zhakaria, Raimunda era esposa de Ismar e Afonso Henriques estava
com Chamoa. Até o seu grande amigo, o almocreve Mem, ela perdera!
Naquela tarde em Guimarães, Zaida era um exemplo triste de solidão e
de abandono e por isso aproximei-me dela, convidando-a a permanecer
uns tempos em nossa casa.
– Pelo menos não estais sozinha.
Com um suspiro, Zaida aceitou e foi nas semanas seguintes que me
contou muitas das coisas que hoje sei e que tão úteis me foram na
investigação sobre o paradeiro da relíquia. Acredito que ter um
interlocutor atento a aliviou e lhe devolveu uma certa crença em si
própria, pois certo dia exclamou:
– Lourenço Viegas, ficai sabendo que a minha história não acaba
assim, com uma princesa solitária, sem amigos e sem marido!
Com um olhar vivo e inteligente, acrescentou:
– Não me chamo Sohba, nem sou uma bruxa!
Depois, sorrindo-me com um ar doce, perguntou:
– Pois não, Lourenço querido?
Eu já conhecia a «senha» de sua mãe Zulmira, que a princesa também
usara com Mem. Atrapalhado, sorri-lhe de volta e regressei para junto da
minha Maria, pois aquela princesa moura era perigosamente tentadora.
Córdova, outubro de 1138

Para o almocreve Mem, que viera desde Santarém acorrentado nos pés,
o casamento de Ismar e Raimunda não passou de uma exibição
exagerada das ambições do primeiro, que acumulava agora o posto de
governador de Córdova, ainda nomeado pelo califa de Marraquexe, com
um novo título atribuído a si próprio, o de putativo emir da taifa
cordovesa.
Naquele turbulento ano, a Andaluzia dividira-se em pequenos reinos
mouros, tal como acontecera uma centena de anos antes, quando caíra o
velho califado de Córdova. Sem a cola agregadora do poder militar de
Ali Yusuf e do seu irmão Temin, vários territórios optaram pela
independência, agora que os exércitos almorávidas haviam partido para
África. Por mais que Ismar aspirasse a uni-los, havia divergências fortes
e desejos autónomos entre os novos tiranetes que regiam as taifas
andaluzas.
Muitos a mandar, tudo vão estragar...
Encostado num dos cantos de um grande salão do Azzahrat, sempre
com as grilhetas a incomodá-lo, o almocreve Mem deu-se conta de que o
novo mandante de Sevilha odiava o de Mérida, o de Valência
abominava o de Oreja, o de Badajoz não suportava ninguém e o de
Mértola nem sequer aparecera, pois tinha interpretações diferentes do
Islão. Aqueles nobres muçulmanos, que se revoltavam contra os
berberes de Marraquexe, não conseguiam entender-se.
Gente interesseira, não cai à primeira...
Obviamente, os novos emires e walis da Andaluzia foram convidados
para o casamento de Ismar e Raimunda e todos se banquetearam no
Azzahrat, acampando as suas comitivas em redor do palácio, deleitando-
se com o harém e rezando na grande mesquita de Córdova. Porém, as
negociações destinadas a erguer um califado naquela antiga capital
revelavam-se inconsequentes. Embora agradados com as ofertas
generosas de comidas, bebidas, mulheres e até mancebos, os novos
poderosos não reconheceram Ismar como rei supremo da Andaluzia.
Califa sem posto, a ninguém dá desgosto...
Mem não podia negar uma evidência: o príncipe cordovês tudo
tentou. Hábil político e dotado do maior exército andaluz, que só a
riqueza da sua família podia financiar, Ismar persuadiu e negociou com
os outros chefes mouros, mas no final de cada dia esbarrava sempre nas
recusas alheias. Inebriados com o novo poder individual, que exerciam
na taifa respetiva, os outros estavam dispostos a lutar contra os cristãos,
mas não admitiam substituir um califado de berberes por outro de
cordoveses, e não havia poesia moura, por mais bela que fosse, que lhes
alterasse a determinação.
Os novos reizinhos da Andaluzia haviam ascendido a honrarias com
as quais antes só sonhavam e, por isso, nenhum daqueles recém-
chegados, nenhum daqueles emires mesquinhos e de vistas curtas, queria
abrir mão das suas conquistas, e nem o argumento da ressurreição da
família Benu Ummeya ajudou Ismar, ao contrário do que o próprio, e até
Mem, havia pensado.
Os Benu Ummeya tinham reinado no califado de Córdova quase três
séculos, mas a derrocada desse maravilhoso e rico império andaluz fora
uma colossal tragédia cuja culpa repousava nos ombros da famosa
família. Os últimos califas, o pai e os vários tios-avôs de Hixam de Hisn,
haviam sido desastrados governantes, sem capacidade para impedir que
a destruição sangrenta alastrasse na Andaluzia. O regresso ao trono do
califado de duas raparigas, uma filha de Hixam de Hisn, chamada
Fátima, e outra neta de Sohba, chamada Raimunda, ainda por cima
também filha de um cristão, era visto como um retrocesso desagradável,
uma nostalgia fútil de uma época dourada que degenerara num banho de
sangue, facilitando a reconquista dos territórios hispânicos pelos
cristãos.
Família perdida, não é reconhecida...
Submetido a um regime desagradável de cativeiro e sem qualquer
hipótese de fuga, Mem notou igualmente que, frustradas e espantadas
com a rejeição generalizada a que eram votadas, Raimunda e Fátima
depressa perderam a paciência com os walis e emires, que consideravam
desprezíveis e um exemplo perfeito do quão corrompida estava a
Andaluzia sarracena.
Princesa zangada, festa estragada...
Discretamente, depois do casamento, Raimunda fechou-se nos seus
aposentos no Azzahrat, raivosa com os dois mundos em que vivia, o
cristão, que sempre a humilhara, e o mouro, que tão mal a recebia. Já
Fátima, acompanhada pelo fiel Abu Zhakaria, anunciou que tencionava
partir para a serra Morena, depois das festas terminadas, e esconder a
relíquia sagrada dos cristãos no mausoléu do Castelo de Hisn Abi
Cherif, até que um dia lhes fosse útil, uma vez que era claro que nenhum
dos limitados chefes sarracenos compreendia o potencial daquela arma
antiga e misteriosa.
No entanto, Zhakaria e Fátima não chegaram a partir, pois os planos
do imperador Afonso VII, que iria atacar Oreja, bem como o anunciado
fossado de Afonso Henriques no Oeste da Andaluzia, assustaram os
restantes chefes mouros, obrigando-os a chegarem finalmente a um
entendimento com o príncipe de Córdova.
Os exércitos das cidades de Valência, Múrcia, Almeria e Granada
correriam a enfrentar Afonso VII, logo que este atacasse Oreja;
enquanto as tropas das cidades de Santarém, Beja, Badajoz e Sevilha se
preparariam para suster os avanços militares do príncipe de Portugal,
também previstos para a primavera do ano seguinte.
No meio desses dois contingentes, capazes de se dirigirem para um
lado ou para o outro, conforme as necessidades das refregas, ficavam as
forças de Ismar, as mais valiosas e poderosas.
Aí vem a grande guerra, anunciai por toda a terra...
Mais uma vez encostado a um canto do salão, Mem ficou também a
saber que a única lacuna neste embrião de união andaluza era o
posicionamento da taifa de Mértola, cujo território se estendia até Silves.
O governador desse reino chamava-se Ibn Qasi e era um muçulmano
original e independente, um sufi com práticas religiosas diferentes das
dos restantes andaluzes e, ao mesmo tempo, um discreto admirador da
seita dos almóadas, que em África combatia o califa Ali Yusuf.
Apesar de convidado, Ibn Qasi não comparecera ao casamento de
Ismar e Raimunda, nem enviara qualquer emissário à reunião geral e por
isso representava um exemplo nefasto para Ismar, uma prova concreta e
desagradável da sua incapacidade de unir a Andaluzia. Contudo, e
apesar dessa falha, o príncipe de Córdova já decidira a sua estratégia.
Iria defender Oreja contra o ataque de Afonso VII, mas também preparar
uma emboscada a Afonso Henriques.
Almas tortuosas, ciladas impetuosas...
Intrigada, Fátima perguntou ao príncipe de Córdova:
– E como ides enganar Afonso Henriques?
Ismar iria propor entregar a relíquia sagrada em Hisn Abi Cherif,
encurralando de seguida os portucalenses.
– Teremos cinco exércitos à espera dele! – gritou Raimunda.
A lutar contra os portucalenses estariam mais de trinta mil sarracenos,
entre os quais se incluíam os feddayins, os assassinos vestidos de
branco.
– E as Fúrias do Corão? – perguntou Fátima.
Desde que chegara a Córdova, a princesa mais velha ignorara os
haréns e as mesquitas, fascinada com as cavaleiras que Ismar treinava
nos picadeiros do Azzahrat. Eram cerca de duzentas guerreiras,
amazonas bélicas capazes de brandir uma lança ou um alfange e que se
vestiam de negro para contrastar com os áureos feddayins. Montada no
Sultão, Fátima passara dias a admirar aquelas duras combatentes e Ismar
sugerira que ela integrasse o grupo.
Porém, ao lado do recente esposo, Raimunda enervou-se com o
protagonismo daquela prima, que agora era obrigada a estimar. Irritada,
exigiu a Ismar que fosse ela, e não Fátima, a liderar o bando de
valorosas mulheres!
– Claro, minha amada – respondeu-lhe Ismar, sempre a sorrir.
O príncipe cordovês jamais contrariava a mulher, concluiu Mem,
esfregando os tornozelos doridos pelas correntes.
Rei manipulado, sarilho encomendado...
Depois, Ismar sugeriu que Fátima, Abu Zhakaria e Raimunda o
seguissem. Naturalmente, o almocreve foi atrás deles, que, no fim de um
longo corredor, se dirigiram a um claustro, onde no centro Mem viu uma
piscina não de água, mas de mercúrio!
– O espelho do califado! – orgulhou-se Ismar.
Raimunda, Fátima e Zhakaria observaram, fascinados, aquele líquido
prateado e viram nele as suas imagens disformes, brilhando num efeito
bonito e misterioso. Com solenidade, Mem ouviu Ismar declarar que
aquele era o mais importante sinal da ressurreição de Córdova!
Abraçado à esposa, rematou:
– E seremos nós a reinar!
De seguida, olhou para Abu Zhakaria e acrescentou:
– Chegou a hora de desposardes a Fátima, em Hisn Abi Cherif!
Mem sentiu que aquela não era uma sugestão, mas sim uma ordem,
que estranhamente Abu Zhakaria parecia temer. O convívio com aquele
casal permitira ao almocreve perceber que Zhakaria não estava feliz.
Fátima não era a mulher doce e amável que ele imaginara, bem pelo
contrário. Porém, Abu não podia recusar aquele casamento, já não
controlava o seu destino.

No final desse mês, Abu Zhakaria casou em Hisn Abi Cherif com a sua
antes adorada Fátima, cuja difícil existência a transformara num
incontrolável monstro. Presentes e a assistirem ao enlace oficiado no
pátio por um imã de Córdova, além de Ismar e de Raimunda, só estavam
o almocreve e a velha criada do Castelo de Hisn.
A idosa mulher, que o almocreve conhecera anos antes, por esses dias
pouco mais fazia do que esperar a morte e manteve-se sempre sentada
num banco, pois já lhe faltavam as forças. Mem ficou o tempo todo ao
lado dela, preso pelas correntes nos pés, como se fosse um ladrão
perigoso que os outros exibiam.
No final da cerimónia, o almocreve ouviu a velha criada murmurar
uma lengalenga quase incompreensível. Sorriu levemente, a mulher
parecia delirar com febre, mas reconheceu alguns nomes.
– Os pulsos de Aqsa.
– O pescoço de Hixam.
– A cabeça de Zulmira.
– A garganta de Taxfin.
– O peito de Sohba.
– Benu Ummeya, só morte e tragédia!
Intrigado, à terceira vez que ouviu a repetição das frases, Mem
comentou em voz baixa que não sabia que Aqsa se matara. Então, a
idosa quase cega ficou hirta e murmurou:
– Fátima e Raimunda vão acabar mal.
Preocupado, Mem perguntou-lhe se Zaida poderia escapar ao macabro
destino da família, ao que a centenária mulher respondeu:
– Zaida de Sevilha casou-se com o avô de Afonso Henriques. – e,
com o sorriso confiante de quem tudo sabe, acrescentou: – A Zaida sai à
avó.
Coimbra, março de 1139

Antes de nos lançarmos no fossado, era necessário nomear um novo


alferes das tropas, pois Peres Cativo fora infantilmente emboscado em
Tomar e pedira a sua substituição. Afonso Henriques sondou-me, mas
eu relembrei-lhe que meu pai, Egas Moniz, já era mordomo do
Condado, não sendo avisado atribuir os dois principais lugares à mesma
família. Sugeri então três nomes: o Braganção, cunhado do príncipe;
Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador; ou Gonçalo de Sousa, nosso
comum amigo de longa data.
– O Braganção é demasiado bruto e impetuoso! E o Lidador é
demasiado velho, já fez quarenta anos! – ripostou Afonso Henriques.
Era tradição nomear jovens para alferes, mas à nossa volta não via
ninguém na casa dos vinte anos com qualidades à altura daquele
importante cargo, o que deixava um único candidato, Gonçalo de Sousa,
que faria trinta anos no inverno seguinte. Mas o príncipe temia que as
vitórias bélicas o cobrissem de glória, tornando-o um homem mais
desejado, fosse por Chamoa, fosse por Zaida.
– Ele já as esqueceu há muito – defendi.
Desde a morte de seu pai, Soeiro de Sousa, que Gonçalo se dedicava
às propriedades da família e dizia-se que estava enamorado de uma
rapariga, filha dos senhores de Baião, com quem desejava casar.
– Mandai-o chamar! – ordenou então o príncipe, mais tranquilo.
Nas semanas seguintes, compareceram em Coimbra não só o novo
alferes, mas também os mais importantes nobres portucalenses, a quem
foram pedidas tropas. Os contingentes do Sul, pertencentes ao príncipe e
perfazendo um total de cinco mil homens, avançariam para o fossado da
Andaluzia, e uma segunda vaga, com outros tantos soldados, ficaria em
Coimbra, para nos defender durante o regresso.
Gonçalo de Sousa comandaria esta força, auxiliado por Peres Cativo e
por o Lidador. No fossado, acompanhando o príncipe, iria apenas eu e
um importante número de cavaleiros-vilões de Coimbra.
– Vamos fustigar Ismar até Sevilha! – anunciou Afonso Henriques.
A passagem perto de Beja e de Badajoz não seria fácil, mas nós já
sabíamos que o imperador estava prestes a atacar Colmenar de Oreja e
contávamos que muitas das forças mouras confluíssem para a defesa
dessa cidade, enfraquecendo as outras.
– Vingaremos a destruição de Leiria!– exclamei, deveras animado.
No final da reunião, depois de todos saírem, perguntei ao príncipe
porque decidira que Gonçalo ficasse em Coimbra, se temia que ele se
aproximasse de novo de Chamoa ou de Zaida.
– Não o poderá fazer – afirmou um confiante Afonso Henriques. –
Vamos levá-las connosco no fossado!
Não era um hábito cristão as mulheres viajarem com os exércitos. Só
os mouros o faziam, os haréns seguiam os emires ou os califas para todo
o lado. Aleguei que a presença de duas mulheres tão belas podia
perturbar os cavaleiros, que também se sentiriam discriminados pelo
príncipe, pois as suas esposas ou amigas não os acompanhavam.
Sorridente, Afonso Henriques perguntou-me:
– Lourenço Viegas, se não sou capaz de passar duas noites seguidas
sem filhar Chamoa, como conseguiria estar vários meses sem ela?
Fiquei sem saber o que dizer, enquanto o meu melhor amigo mandava
chamar as duas. Pouco depois, Zaida entrou na sala do castelo, os seus
olhos negros a brilharem de curiosidade.
– Que me quereis? – perguntou, insinuante.
A habilidosa rapariga sorria-nos, como se a pergunta não se dirigisse
apenas a Afonso Henriques, mas também a mim.
Filha, mas algum vos quer?
Zaida continuava a sentir-se tão sozinha que se daria ao primeiro que
a aceitasse. Contudo, e temendo as ciumeiras do meu amigo, recuei e
estabeleci de forma clara que não era comigo que ela falava.
– Vamos partir para a Andaluzia – informou o príncipe.
Zaida desejou-nos sorte, mas logo se espantou quando Afonso
Henriques lhe disse que também viria connosco.
Filha, que boa notícia!
O príncipe acrescentou que esperava que ela não informasse Fátima
dos nossos planos, o que a levou a esclarecer-nos:
– A minha irmã e Abu casaram no outono, em Hisn, e ainda estão por
lá. Diz-se que ele anda contrariado, ela é difícil de amar.
A princesa bateu as pestanas, sedutora. Depois, como Afonso
Henriques nada comentou, perguntou-lhe:
– Ides casar com Chamoa?
Era um rumor que corria e o príncipe de Portugal confirmou-o.
Filha, luta por ele!
Claramente desagradada, Zaida questionou-o:
– É a esposa indicada para vós?
Enervado, o meu melhor amigo censurou-a:
– Bem mais grave é dar-se a um bispo!
Zaida ignorou a acusação e defendeu que Afonso Henriques não devia
casar com uma nobre de uma família menor da Baixa Galiza, mas sim
com uma princesa de uma casa real! Curioso, o príncipe interrogou-a:
– Já não sois amiga de Chamoa?
Antes que a princesa moura pudesse responder, a minha cunhada
entrou na sala e ficou ligeiramente incomodada por ver Zaida.
Avançando na direção do príncipe, Chamoa comentou:
– Ouvi falarem no meu nome...
Sem a esclarecer, Zaida anunciou, orgulhosa e com um certo gozo:
– O príncipe vai levar-me no fossado. Vamos para Córdova!
O rosto de Chamoa empalideceu, mas Afonso Henriques, para a
acalmar, esclareceu-a prontamente:
– Vós vindes também, minha amada!
A novidade alterou Chamoa de forma surpreendente. De repente, a
excitação entusiasmou-a e abriu um largo sorriso.
– Quando partimos?
Sorri no meu canto, a minha cunhada era uma criatura engraçada.
Para ela, não era relevante que se tratasse de um fossado militar, cheio
de escaramuças e saques. O que a fascinava era a ideia de conhecer
terras novas, ver cidades que nunca vira. Até o sobressalto que sofrera
um pouco antes, ao saber que Zaida iria, se desvaneceu, sendo
substituído por uma inesperada cumplicidade feminina.
De um momento para o outro, Chamoa desatou a colocar inúmeras
perguntas a Zaida sobre que vestidos devia levar, ou se Córdova e
Sevilha eram tão bonitas como diziam os trovadores.
Filha, é tão tola...
Afonso Henriques e eu apreciámos, calados, aquele tagarelar
brincalhão e inofensivo, um frenesim emocionado e carregado de
expectativas com que as duas mulheres nos brindaram, como se antes
não tivessem sofrido ambas de uma angustiada preocupação de
rivalidade. Num passe digno de uma magia inexplicável, aquelas
concorrentes nos afetos do príncipe tinham-se transformado já em
melhores amigas, com uma clara afinidade de propósitos.
No entanto, a pergunta seguinte de Chamoa atrapalhou o príncipe:
– Podemos ter uma tenda só para nós, ou ficamos as duas convosco?
Discretamente, baixei os olhos, fingindo que nem sequer tinha
escutado uma questão tão insinuante. Qualquer que fosse a solução
escolhida, seria certamente alvo de contestação. Se o príncipe dormisse
só com Chamoa, Zaida ficaria à mercê de um qualquer cavaleiro-vilão
mais afoito ou bem bebido. Juntar as duas na tenda dele parecia-me uma
ousadia pecaminosa! Por fim, colocar as duas na mesma tenda,
atendendo ao historial que tinham, era indefensável!
De repente, senti um grande alívio por não ser príncipe de Portugal,
felizmente não tinha de tomar decisões daquelas e limitei-me a apreciar
a habilidade do meu melhor amigo, que decidiu prolongar o mistério do
alojamento durante a viagem, dizendo apenas:
– Vamos vendo...
Chamoa olhou-o, um pouco desagradada não com a indefinição da
resposta, mas já com outra questão que se levantara no seu espírito.
– Irão algumas criadas connosco?
Antes que Afonso Henriques tivesse tempo para negar tal capricho,
Zaida informou-o de que os califas e os emires mouros levavam sempre
as suas mulheres e que estas eram acompanhadas pelas criadas, pois
assim não tinham de se banhar nuas à frente das tropas, as servas
podiam trazer-lhes bacias com água às tendas.
Aquela descrição provocou um estranho e inesperado agrado em
Chamoa, que murmurou:
– Os homens iam adorar ver-me...
Imaginar a sua amada em tais exercícios públicos foi determinante
para o príncipe, que logo ali decidiu levar quatro raparigas com Chamoa
e Zaida. Já com seis mulheres na comitiva, Afonso Henriques sentiu-se
na obrigação de me perguntar se minha esposa também queria vir, o que
levou Chamoa a comentar, revirando os olhos:
– A minha irmã Maria odeia andar a cavalo!
Foi evidente para mim que Chamoa não queria a mana por perto,
como também não desejava a companhia do seu filho, Pêro Pais, a quem
Afonso Henriques ordenou que ficasse em Coimbra no grupo liderado
por Gonçalo, que estaria confrontado com menos perigo.
– Há perigo, mas minha mãe vai? – perguntou o rapaz, muito sério.
Ninguém lhe respondeu.
Colmenar de Oreja, maio de 1139

No início daquele mês de maio, o almocreve Mem deu-se conta de que


os gloriosos planos militares do príncipe Ismar haviam falhado com
estrondo. O ataque do imperador Afonso VII a Oreja fora muito mais
poderoso do que os muçulmanos tinham previsto e vinte e cinco mil
leoneses, galegos e castelhanos haviam marchado contra aquele castelo
estratégico, situado na margem sul e sarracena do Tejo, que servia de
porta de entrada para a Andaluzia.
Cristãos a crescer, mouros a morrer...
O otimismo que meses antes se apossara do príncipe de Córdova
transformou-se numa aguda preocupação e ele foi obrigado a optar. Ou
enfraquecia Oreja, na prática entregando-a a Afonso VII sem luta, para
que pudesse suster Afonso Henriques; ou deixava este saquear os
arrabaldes de Sevilha e Córdova, defendendo Oreja.
Perante este dilema desagradável, Ismar compreendeu a razão pela
qual o hajibe Al Mansor, mais de cento e quarenta anos antes, pedira
ajuda aos guerreiros de África. Sem os berberes, os árabes andaluzes não
conseguiam vencer os cristãos. Consciente, por fim, da sua fragilidade,
seguiu como sempre a opinião da esposa Raimunda, que, no salão do
Azzahrat, exclamou com fervor:
– É Afonso Henriques quem temos de matar!
Para ela, os portucalenses eram mais fáceis de vencer do que as tropas
de Afonso VII, pois não mais de cinco mil soldados seguiam na direção
de Sevilha, comandados pelo príncipe de Portugal. Porém, Ismar ainda
hesitava, consciente de que, se as suas tropas abandonassem Oreja, a
cidade seria tomada pelo imperador.
Então, a diabólica Raimunda sugeriu que fizessem a Afonso VII uma
proposta de suspensão dos combates em Oreja. Os exércitos de Ismar
deixariam a cidade durante dois meses, para combater os portucalenses,
regressando depois à luta.
– O imperador é fino como um alho – explicou Raimunda. – Agrada-
lhe que combatamos Afonso Henriques, não o quer forte de mais!
Fernão Peres de Trava encontrava-se entre as tropas imperiais e
Raimunda estava crente de que os apoiaria. Sem alternativas para
contrapor, Ismar aprovou a iniciativa e o espantado Mem ouviu a esposa
do príncipe ordenar-lhe que a acompanhasse. Na sala, ninguém percebeu
as razões de Raimunda, e Ismar chegou mesmo a temer comportamentos
impróprios na mulher.
– Para que desejais o almocreve? – perguntou.
No harém do príncipe de Córdova, várias escravas haviam
experimentado Mem, mesmo estando ele de pés acorrentados. Os seus
lendários dotes físicos faziam as delícias das núbias e das eslavas, que
em segredo o iam visitar ao quartinho onde dormia. E o almocreve não
se esquecia de que, quando o conhecera em Lisboa, Raimunda o
desejara fortemente, temendo que ela o obrigasse agora a concretizar as
suas antigas vontades.
Doida sozinha, quer-se fora da caminha...
Ismar suspeitou de que a esposa não retirasse prazer das suas carícias
e quisesse experimentar outro homem, mas ela esclareceu-o de que os
seus interesses não eram desse tipo.
– Quero uma testemunha – anunciou Raimunda – para que minha
prima Fátima não me acuse de traições.
Mem sentiu que a competição entre as duas estava no auge e Fátima
aproveitava qualquer situação para tentar sabotar a influência de
Raimunda.
Prima muito magra, ninguém a agarra...
Só que Ismar quis jogar pelo seguro e por isso ordenou:
– Nesse caso, Abu Zhakaria irá também convosco.
Duas semanas depois de saírem de Córdova, Raimunda, Abu Zhakaria
e Mem, a quem a rapariga retirou as correntes durante a viagem,
chegaram discretamente aos arredores de Colmenar de Oreja, aonde se
encontrava o acampamento do imperador, e pediram a Fernão Peres de
Trava que os recebesse.
Como a minha prima previra, o poderoso galego entusiasmou-se com
a ideia e, mal a noite caiu, levou-os à presença de Afonso VII.
Naturalmente, o inteligente e sagaz imperador também se agradou com
aquela proposta de armistício provisório. Se os combates fossem
suspensos em Oreja, as tropas imperiais poderiam descansar enquanto as
de Ismar se desgastariam, correndo a derrotar Afonso Henriques.
Vencesse quem vencesse nesse distante confronto, os exércitos de Ismar
estariam mais frágeis quando regressassem e Oreja seria mais facilmente
conquistada.
Sem perceber que o imperador estava já convencido, Raimunda ainda
acrescentou outro poderoso argumento:
– Afonso Henriques tem a princesa Zaida com ele e correm rumores
de que se vão casar, como fez vosso avô com a avó dela.
Afonso VII franziu a testa. Se o primo desposasse uma princesa de
Córdova convertida ao cristianismo, ao Condado Portucalense seriam
somadas as taifas de Badajoz, Mértola, Sevilha e Córdova, e o príncipe
de Portugal reinaria numa área quase tão vasta quanto a sua. Empenhado
em evitar tal possibilidade, o imperador perguntou:
– Vosso marido aspira a ser califa em Córdova?
Raimunda negou tal desejo, alegando, com falsa humildade, que o seu
esposo apenas desejava reinar na taifa dessa cidade, embora fosse
obrigado, devido às alianças existentes, a defender Oreja.
Então, o afiado imperador lançou uma contraproposta:
– Aceito uma pausa nos combates em Oreja, mas só se desta vez me
trouxerem mesmo a relíquia da Terra Santa!
Raimunda hesitou, sabendo que teriam de a dar primeiro a Afonso
Henriques em troca de Zaida. Já tinha falhado uma vez, mas não era
tempo de dúvidas e a esposa de Ismar garantiu novamente a entrega do
artefacto.
– Se o fizerem, o cerco a Oreja será levantado – prometeu Afonso
VII.
Sabedor dos desejos dele, o Trava anunciou uma novidade:
– Chamoa viaja com Afonso Henriques.
Embora Raimunda tenha cerrado os dentes, cheia de raiva, Mem
espantou-se com o sorriso do imperador.
À bela mulher, qualquer rei a quer...
Entusiasmado, Afonso VII perguntou:
– Podeis raptá-la?
Apesar de contrariada, Raimunda aceitou a nova condição que lhe era
imposta e mais uma vez prometeu a Afonso VII trazer-lhe Chamoa. A
sua crença de que os muçulmanos iriam vencer facilmente os cinco mil
portucalenses era imensa, pois os exércitos de Ismar contavam com
vinte e tal mil homens, amazonas, cães ferozes e centenas de feddayins.
– A não ser que haja um milagre... – murmurou o imperador.
Na tenda imperial, Raimunda ficou silenciosa, como se um profundo
receio espiritual a tivesse contaminado.

Mal deixaram o acampamento, um preocupado Abu Zhakaria avisou a


esposa de Ismar:
– O imperador sai sempre a ganhar.
Acontecesse o que acontecesse, explicou o wali de Santarém, tanto
Ismar como Afonso Henriques iriam sofrer fortes perdas e ficariam
enfraquecidos e à mercê do monarca leonês.
Fora de si, uma furibunda Raimunda gritou-lhe:
– Calai-vos, ave agoirenta!
Abu Zhakaria ainda tentou contestá-la, mas ela ameaçou-o:
– Da próxima vez, corto-vos a goela!
O almocreve não duvidou daquela diabólica mulher, mas isso não
diminuía a razão de Abu Zhakaria: o pacto com o imperador traria mais
benefícios a este do que aos muçulmanos. No dia em que um
enfraquecido Ismar regressasse a Oreja, mesmo trazendo a relíquia e
Chamoa, o imperador não lhe ia entregar a cidade, mas sim vencê-lo. O
plano de Raimunda era um desastre anunciado e só então Mem se deu
conta de que o destino de Córdova e de Ismar não contavam para a
rapariga. Ela só queria matar Afonso Henriques, o resto era secundário.
Mulher imprudente, leva tudo à frente...
Andaluzia, junho de 1139

O exército portucalense avançava sob o pesado calor da Andaluzia e


para trás tinham já ficado os ataques aos arrabaldes de Beja, de Badajoz
e de Sevilha. Na retaguarda de um longo cordão de cavaleiros e peões
viam-se dezenas de carroças, carregadas com os inúmeros e variados
despojos dos fáceis saques, pois em nenhuma dessas localidades
houvera verdadeiros combates.
Como os curtos contingentes muçulmanos se tinham fechado nos
respetivos castelos, evitando a confrontação e possibilitando-nos um
avanço quase sem perdas, nós havíamos concluído erradamente que as
forças muçulmanas da Andaluzia, entaladas entre dois exércitos cristãos,
tinham preferido defender-se em Oreja.
Durante mais de um mês sem grande perigo, Chamoa e Zaida
conviveram juntas na mesma tenda, e a primeira andava fascinada com o
que a segunda lhe contava.
– Se entrarmos no Azzahrat, ficareis deslumbrada!
As descrições pormenorizadas da princesa moura empolgavam
Chamoa, encantada com a possibilidade de conhecer os claustros
variados, os azulejos sofisticados, as pinturas murais, os salões
multicoloridos e, sobretudo, a espantosa piscina de mercúrio.
Infelizmente para ela, nunca chegámos a Córdova. A um dia de
caminho da cidade, surgiu na estrada uma pequena comitiva
muçulmana. Aproximei-me com Afonso Henriques e alguns soldados e
reconheci facilmente o chefe daquele grupo.
Abu Zhakaria estava mais velho. Apenas o vira uma vez, quando ele
atacara Coimbra para salvar as princesas mouras. Uma década tinha
passado e notei rugas na sua cara e alguns cabelos brancos, deduzindo
que o casamento com Fátima não trouxera felicidade àquele governador
de Santarém, cuja vida fora totalmente dedicada ao resgate da sua
amada, presa em Coimbra.
Cumprimentámo-nos e Zhakaria explicou que estava ali em nome de
Ismar, governador cordovês e chefe dos exércitos andaluzes.
– O que deseja o novo califa de Córdova? – ironizou Afonso
Henriques.
Sem o rebater, Abu Zhakaria anunciou:
– A princesa Zaida em troca da relíquia.
Curioso, o príncipe de Portugal perguntou-lhe se era verdade que
casara com Fátima e se Raimunda desposara Ismar.
– Sim – respondeu Zhakaria.
Colocando um ar intrigado, Afonso Henriques questionou-o:
– Nesse caso, quem vai casar com Zaida?
Abu Zhakaria encolheu os ombros, mas eu constatei com indignação:
– Raimunda é uma usurpadora!
Zaida ficaria sem um marido poderoso, enquanto a minha reles prima,
que tinha sangue cristão e era apenas bisneta do califa Hixam III, por ser
esposa de Ismar se sentava no trono de Córdova!
– Vossa esposa não se revolta contra tal infâmia? – perguntei.
Abu Zhakaria pousou os seus olhos nos do príncipe e percebi que a
despromoção de Fátima o incomodava. Contudo, apenas declarou:
– O futuro das três princesas de Córdova não é da vossa conta.
Enervado com o seu desprezo, contei-lhe o que se passara em
Coimbra. Zaida propusera casamento ao príncipe de Portugal e admitira
converter-se ao cristianismo, tal como fizera a sua avó, Zaida de Sevilha,
quando se casara com Afonso VI.
Com um sorriso tranquilo, Zhakaria declarou que tal fantasia jamais
aconteceria.
– Ibn Henrik, nunca sereis o nosso rei!
Apesar disso, o wali de Santarém reconheceu que era difícil os
muçulmanos susterem dois ataques cristãos ao mesmo tempo. Assim,
desejavam devolver-nos a relíquia, para que nos fôssemos embora.
– Estais muito longe de casa...
O aviso do cordovês era verdadeiro e sensato. Também eu
considerava que estávamos a ir longe de mais no fossado, tornando o
nosso regresso muito perigoso.
– E onde se dará a troca? – perguntou Afonso Henriques.
O esposo de Fátima propôs um encontro em Hisn Abi Cherif, o
castelo da família Benu Ummeya, na serra Morena, que ficava a um dia
de caminho dali. O príncipe de Portugal aceitou e perguntou por Mem,
garantindo o cordovês que ele seria libertado logo que Zaida estivesse
em Hisn.
Nessa noite, acampámos próximo do destino combinado e, quando nos
juntámos para a ceia, Chamoa mostrou-se desolada, pois não ia conhecer
Córdova, a sua célebre mesquita e o seu famoso palácio.
Já não me vou ver ao espelho no mercúrio?
A seu lado, Zaida permaneceu silenciosa e, enquanto comíamos, uma
suave tristeza abateu-se sobre a princesa. Por um lado, ia regressar à sua
terra, mas, por outro, ia partir como alguém que não alcançara os seus
propósitos, pois, no fundo do seu coração, ela desejava casar-se com o
príncipe de Portugal. Em Córdova, Zaida sabia que só iria encontrar
solidão e despeito, fosse de Raimunda fosse da sua irmã Fátima, pois
nenhuma a admirava ou estimava.
Chamoa, triste com a tristeza de Zaida, relembrou-lhe:
– Amiga, ides ver o vosso Mem querido!
Mas a princesa moura limitou-se a mostrar o seu desalento:
– É o que me resta, um almocreve...
A minha cunhada considerou aquele comentário injusto e relembrou
que Mem sempre fora um grande amigo dela, bem como de Zulmira.
Apesar dos seus poucos recursos, tentara salvá-la do cativeiro e devolvê-
la aos muçulmanos. Leal e sereno, Mem nunca mostrara ser mesquinho
ou desejar honrarias em troca da sua amizade.
Porém, quando falou, Zaida olhou para Afonso Henriques.
– O meu desejo era outro.
Chamoa sorriu-lhe, segura já de que aquele desfecho não ia acontecer,
só que a princesa moura não era de desistir facilmente e declarou, com
um sorriso leve:
– A minha mãe, Zulmira, dizia sempre que a vantagem dos homens
muçulmanos era poderem casar com várias mulheres!
Chamoa deu uma gargalhada forçada e perguntou à amiga:
– Quereis partilhar um marido comigo?
Em vez de lhe responder, Zaida interrogou o príncipe:
– Ides mesmo casar-vos com Chamoa?
Afonso Henriques suspirou, levantando as sobrancelhas, como quem
diz que aquele era um destino inevitável, embora ainda longínquo.
– Primeiro tenho de ser rei.
A conclusão das suas palavras era óbvia: Zaida teria de partir, pois só
a relíquia sagrada permitiria que o Papa reconhecesse o rei de Portugal.
No entanto e sem esmorecer, a princesa moura insistiu:
– Um rei pode ter duas mulheres. Chamoa e eu somos amigas,
podíamos ser vossas esposas. Dormiríamos os três juntos!
Já sob os efeitos do vinho, Chamoa agitou-se no almofadão. Esperta,
Zaida aproximou-se dela e abraçou-a com doçura, declarando-lhe a sua
amizade. Encantada, Chamoa riu-se novamente e a princesa moura
começou a enrolar-lhe uma trança, elogiando os seus admiráveis cabelos
loiros.
Ela adora-me...
As duas mulheres estavam agora encostadas uma à outra e era
evidente que se sentiam confortáveis com aquela proximidade. E
naturalmente, ao vê-las assim, o meu melhor amigo sentiu-se tentado a
algo mais do que apenas uma conversa.
– Podemos sempre ver se nos damos bem...
Zaida e Chamoa riram-se e esta última bateu as pestanas.
Uma despedida inesquecível?
Para mim, era evidente que o quente momento só estava a nascer
porque a minha cunhada sabia que aquela era a última noite que Zaida
passava entre os cristãos. Por isso, autorizou uma festa, desde que nela
também participasse. De súbito, levantou-se e, dando a mão a Zaida,
puxou por ela, obrigando-a a segui-la. As duas aproximaram-se do
príncipe de Portugal e Chamoa indicou à amiga o lado esquerdo dele,
enquanto se sentava do seu lado direito.
Sou a mais importante!
Já animado, o meu melhor amigo quis beijar as suas supostas noivas e
virou-se para Zaida. No entanto, Chamoa impediu-o, dizendo:
– Lamento, mas sou a primeira!
Sem pressas, Zaida encolheu os ombros, murmurando:
– Até a brincar ela se leva a sério.
Satisfeita com a primazia, Chamoa deu finalmente autorização para
que o noivo se dedicasse à segunda noiva. Então, Afonso Henriques
voltou-se para Zaida e beijou-a também na boca. Reparei que a princesa
fechava os olhos e parecia mesmo agradada, tal como o príncipe, que se
demorou mais naquele beijo do que no anterior.
Dei-me conta de que estava a assistir a um momento histórico: pela
primeira vez em tantos anos, Zaida e Afonso Henriques haviam-se
beijado, descobrindo finalmente que o desejavam fazer há muito!
Ei, não exagerem!
Sempre ciumenta e desejosa de protagonismo, Chamoa puxou o
príncipe para si, mas Zaida não deixou e abraçou-os aos dois. Chegara o
momento de me afastar e caminhei na direção da saída da tenda,
enquanto ouvia nas minhas costas a voz quente e amorosa da bela
princesa moura, num doce sussurrar:
– Podia ser assim a vida toda...

No dia seguinte, quando nos pusemos a caminho de Hisn, ao ver-me


Afonso Henriques abriu um enorme sorriso.
– Lourenço Viegas, já posso morrer feliz!
Com os olhos a brilharem de vivacidade masculina, acrescentou:
– Duas mulheres tão belas na minha cama.
Dei por mim a pensar que longe iam os tempos em que ele se
lamuriava por não ser bem-sucedido com as mulheres. Agora, todas o
desejavam. Há homens que têm muita sorte na vida. Outros, como eu,
não são tão corajosos e preferem o conforto manso da fidelidade.
Serra Morena, próximo de Córdova, junho de 1139

Nessa tarde, chegamos à propriedade da família Benu Ummeya, nos


contrafortes da serra Morena. Os olhos molhados de Zaida, à medida
que nos aproximávamos do pequeno castelo de arenito vermelho, eram
um claro indicador da agitação que varria o seu coração. O regresso ao
berço da infância, mais de vinte anos depois de lá ter saído, enchia-a de
uma nostalgia comovente.
Filha, haveis voltado!
Ao passarmos perto de um pequeno mausoléu, numa elevação à beira
da estrada, ela quis visitar o túmulo dos familiares. O príncipe
desmontou do cavalo, tal como eu e Chamoa, e seguimos Zaida, que
primeiro colheu umas flores que por ali existiam em grande número,
colorindo os campos à nossa volta.
Filha, as minhas margaridas...
Deixámos a princesa moura sozinha e em silêncio durante algum
tempo, a rezar na companhia dos seus. Depois, ela convidou-nos a entrar
e vimos os caixões dos dois lados, em prateleiras.
– Aqui está minha mãe, Zulmira – informou Zaida. – Por baixo dela,
o seu segundo marido, Taxfin, e deste lado o meu pai, Hixam de Hisn,
que morreu por ter caído do cavalo.
A voz da princesa embargou-se um pouco, aquelas eram tristes
recordações, e Chamoa deu-lhe o braço, amparando-a. Por fim,
apontando para o mais antigo dos caixões, Zaida disse:
– Ali jaz o último califa de Córdova, Hixam III, o meu avô.
O derradeiro monarca da família não passava agora de um cadáver
antigo e sem pompa, semelhante ao califado onde um dia reinara. Como
eram imprevisíveis as vontades dos povos e frágeis os arranjos que os
governavam...
Filha, dá-me um beijo...
Com um suspiro, Zaida colocou as flores em cima do caixão da sua
progenitora. Depois, com lágrimas nos olhos, a princesa levou os dedos
da mão direita à boca, beijou-os e soprou à mãe um beijo.
– Que Alá vos faça companhia para sempre.
Afonso Henriques permanecera silencioso, mas quando Zaida se
preparava para sair do mausoléu, aproximou-se do túmulo de Zulmira,
mulher que sempre respeitara. Imitando o gesto de Zaida, enviou um
beijo soprado na direção do caixão e disse:
– Que Deus fique sempre convosco.
Zaida sorriu e saímos do edifício tumular, dirigindo-nos aos cavalos.
Era tempo de irmos ao encontro de Fátima e de Abu Zhakaria e
aproximámo-nos lentamente do pequeno castelo, passando pelo portão
sem receio. No pátio, vimos duas pessoas a cavalo e atrás outras duas,
sentadas num banco.
Fátima estava montada no belíssimo animal negro que roubara em
Coimbra, o Sultão, enquanto em cima da sua sela Abu Zhakaria
segurava um longo embrulho. Ao fundo, estava Mem, ainda algemado
nos pés, ao lado de uma velha que parecia cega.
– Mem! – gritou Zaida, emocionada.
O almocreve levantou-se, mas Fátima dirigiu-lhe um olhar gelado e
ele voltou a sentar-se, enquanto ela rosnava:
– Só será libertado depois de esta gente se ir embora.
De seguida, olhando para Chamoa, que estava entre mim e Afonso
Henriques, provocou-a:
– Pena a Raimunda não ter vindo, matava-vos num instante.
Chamoa afligiu-se, mas tranquilizei-a com o meu olhar. Não havia
razões para alarme, tudo estava a correr conforme combinado, o que se
confirmou com o tom conciliador de Abu Zhakaria.
– Eis a vossa relíquia.
Com um gesto rápido, desembrulhou o artefacto e exibiu-o. O meu
coração falhou uma batida. A lança que ferira Cristo há mais de mil anos
estava ali, à minha frente! Mentalmente, rezei uma oração, enquanto o
príncipe avançou, para recolher a relíquia sagrada.
– Zaida... – relembrou Abu Zhakaria.
Então, esta olhou para Afonso Henriques e incentivou-o:
– Dizei uma palavra e serei vossa esposa.
Notei que o nosso príncipe hesitava. À sua frente estava a relíquia que
seu pai escondera e lhe era destinada e, à sua direita, Zaida, aquela
mulher linda, inteligente e maravilhosa, que para casar com ele estava
disposta a converter-se ao cristianismo. Com ela, o meu melhor amigo
poderia tornar-se o Rei das Duas Religiões, dominando o Condado
Portucalense e a Andaluzia árabe!
Mas a escolha de Afonso Henriques há muito que estava feita.
Aproximando-se de Abu Zhakaria, o príncipe de Portugal estendeu o
braço, para recolher a relíquia, enquanto a orgulhosa Zaida desmontava
do seu cavalo e não mais olhava para nós, dirigindo-se a Mem.
Abraçaram-se e os dois começaram a falar em voz baixa, como se já
nada tivessem a ver com o que acontecia no pátio.
Com a lança da Terra Santa nas mãos, o príncipe mirou o Sultão:
– Esse cavalo foi roubado em Coimbra. Devolvei-mo.
Nem eu esperava aquela exigência. Era óbvio que Afonso Henriques
cobiçava aquele fabuloso animal, pois o seu cavalo asturiano, que ainda
montava, continuava a desapontá-lo. Mas Fátima cerrou os dentes e
exclamou com desprezo:
– O Sultão é meu!
Sem confrontos, não havia forma de ela o ceder e por isso demos
meia-volta. Reparei que, quando a minha cunhada se voltou para trás,
dizendo adeus a Zaida e a Mem, ao lado destes a velha criada cega
estava a chorar, mas eu nunca soube porquê.

Duas noites depois, na estrada que rumava a Sevilha, ouvimos um


cavalo chegar e Mem foi trazido à tenda do príncipe.
– Zaida enviou-me – disse o almocreve.
Logo após a nossa partida, fora finalmente libertado das algemas que
lhe haviam agrilhoado os pés durante quase dois anos. Contou-nos que
primeiro estivera preso em Santarém, passando depois a acompanhar
Abu e Fátima nas suas deslocações.
– Vindes connosco para Portugal? – perguntei.
Mem negou, queria ficar com Zaida, temia pela vida dela.
– A Raimunda e a Fátima odeiam-se, mas ambas têm maridos para as
defenderem. Zaida não tem ninguém.
Afonso Henriques franziu a testa, preocupado:
– Temeis que a matem?
O príncipe já estava arrependido por ter deixado Zaida em perigo.
Tinha-lhe grande afeto e nunca afastara totalmente a hipótese de um dia
reconsiderar as propostas de paz da princesa moura.
– A velha criada diz que Raimunda e Fátima são serpentes, só têm
veneno a correr-lhes nas veias – relatou Mem.
Ao ouvi-lo, Chamoa afligiu-se:
– Devíamos voltar lá, ir buscar a Zaida!
O almocreve abanou a cabeça e explicou-nos o que se preparava:
– Estão a armar-vos uma cilada! Ismar uniu os exércitos mouros de
Badajoz, Beja, Santarém, Córdova e Sevilha, e vai atacar-vos... Tendes
de fugir por um caminho diferente!
O único governador mouro que não alinhara com Ismar era o de
Mértola, um sufi chamado Ibn Qasi. Seria por lá que teríamos de ir, o
que nos obrigava a um desvio considerável. Em vez de subirmos de
Sevilha para Badajoz e daí até ao rio Tejo, teríamos de rumar de Sevilha
para Mértola, subindo depois pelo interior do além-Tejo.
– Ibn Qasi não vos vai atacar! – garantiu Mem.
Por fim, o almocreve acrescentou que a investida de Ismar só fora
possível devido a um novo pacto com o imperador. Os combates em
Oreja estavam suspensos, enquanto Ismar perseguia Afonso Henriques,
devendo este estregar-lhe a relíquia sagrada para que a cidade de
Colmenar de Oreja fosse salva!
Após um curto silêncio, o príncipe de Portugal comentou:
– Meu primo é um safado... Não vai ser fácil chegarmos a Portugal.
A ausência de lutas nos arredores de Beja, Badajoz e Sevilha fora um
óbvio engodo. Os muçulmanos tinham poupado as tropas para nos
obrigarem a entrar cada vez mais na Andaluzia. Com a comitiva cheia
de carroças carregadas de despojos, éramos agora um exército lento e
vulnerável. Mesmo fugindo por Mértola, podíamos ser emboscados
algures no além-Tejo.
– Vamos ter de combater longe do Condado... – murmurei.
Preocupado, Mem olhou para Chamoa e disse:
– E há mais... O imperador deu ordens a Raimunda para vos raptar.
Ficámos boquiabertos, enquanto Chamoa batia muito as pestanas, por
um lado, preocupada, por outro, lisonjeada com aquele desejo de Afonso
VII. Contudo, vendo a perplexidade na cara de Afonso Henriques, a
minha cunhada afirmou:
– A Raimunda nunca fará tal coisa, vai matar-me antes!
Sabíamos que essa era uma possibilidade, mas se até ali Chamoa fora
uma presença divertida, perante o perigo iminente de uma tentativa de
rapto ou mesmo da sua eliminação, a preocupação com ela seria agora
uma fonte de aflição para Afonso Henriques, que teria não só de
comandar o exército, mas também de proteger a sua amada. Porém, ele
não parecia atemorizado e, mal o almocreve Mem se foi embora,
ordenou-me:
– Lourenço Viegas, tendes de partir de imediato!
O príncipe de Portugal propôs-me um plano arrojado. Enquanto ele
descia com o exército para Mértola, eu rumaria em grande cavalgada,
contornando Badajoz pelo norte e atravessando o Tejo mais acima,
seguindo depois para Coimbra. Aí, juntar-me-ia com o nosso segundo
exército, comandado por Gonçalo de Sousa, e desceria para o Sul, indo
reencontrar-me com Afonso Henriques no além-Tejo.
– Tendes quatro semanas! – exclamou Afonso Henriques.
Uma única preocupação me assaltava: deixar o meu melhor amigo
sem qualquer conselheiro para o auxiliar. Sem temor, ele pegou na lança
de Cristo e exclamou:
– Com a relíquia, serei imbatível!
A seu lado, uma estranhamente empolgada Chamoa declarou:
– E eu lutarei ao vosso lado!
Encantado e orgulhoso, o príncipe de Portugal admirou aquela
coragem inesperada dela, bem como a sua extrema lealdade. Sorrindo-
lhe, declarou:
– Amada Chamoa, prometo que me casarei convosco em Coimbra!
O príncipe de Portugal pressentia o perigo do desejo do imperador e
finalmente decidiu-se a propor casamento à minha cunhada, não fosse
ela sentir-se tentada a um disparate. Perante tal demonstração, os belos
olhos verdes de Chamoa encheram-se de lágrimas. Tantos anos depois, o
seu sonho de menina ia concretizar-se e ela seria princesa, quem sabe
rainha de Portugal!
Mas, para tal acontecer, tínhamos de vencer a mais dura batalha das
nossas vidas.
Badajoz, julho de 1139

Em redor do Castelo de Badajoz, as planícies estavam pejadas de


soldados, cavalos e tendas. Os cinco exércitos mouros que Ismar reunira
preparavam-se para uma investida nos campos de além-Tejo, contra o
exército portucalense de Afonso Henriques.
Na maior das tendas, o príncipe de Córdova rodeava-se dos seus
aliados, os emires de Badajoz e Sevilha e os governadores de Beja e
Santarém, tendo este último a seu lado a esposa, a princesa Fátima.
Junto a Ismar, encontrava-se também sentada Raimunda, a
comandante das amazonas, totalmente vestida de negro, enquanto Mem
e Zaida haviam sido encostados a um dos cantos da tenda, num sinal
evidente de que a mais nova das princesas era claramente menosprezada
naquela reunião.
Todos esperavam o famoso Ibn Qasi e, quando ele entrou, Mem viu
um homem alto e distinto, que usava um cabelo longo apanhado num
rabo-de-cavalo, bem como uma barba bem aparada, a que um fino
bigode dava um requinte de malícia divertido. Ibn Qasi, o sufi, vestia
uma túnica castanha, cor que se dizia ser a preferida da seita dos
almóadas, e calçava umas sandálias, que deixavam ver os pés e as unhas.
Sorridente, de olhar vivo e atento, movimentava-se com segurança e
cumprimentou um a um os presentes, a todos dedicando uma palavra
simpática ou cordial, como Mem reparou.
Homem atento, a muitos dá alento...
Quando chegou junto de Fátima, beijou a mão da princesa,
lamentando a sua prisão durante tantos anos. Depois, abraçou Zhakaria,
gabando as suas qualidades guerreiras e a persistência do seu amor pela
esposa, dizendo que mesmo em Silves se cantavam baladas sobre o
célebre casal. De seguida, aproximou-se de Raimunda e, numa voz
solene mas baixa, saudou a bisneta do califa Hixam III. Por fim,
cumprimentou Ismar, elogiando a proeza deste em unir os muçulmanos
andaluzes depois da partida dos almorávidas, mas logo notando que ali
não se viam religiosos, o que era de estranhar, pois o Islão sempre fora
comandado pelas palavras inspiradoras do profeta Maomé.
Homem religioso, sempre judicioso!
Ismar acusou o toque e justificou-se: tinham pressa de atacar Afonso
Henriques, os religiosos haviam ficado a rezar por eles na mesquita, em
Córdova. Com um sorriso forçado, Ibn Qasi murmurou:
– Um sufi reza sempre, leva o Corão para toda a parte.
Aquele primeiro sinal de tensão foi um anúncio do que se seguiu. Por
mais que o tentassem seduzir com belas palavras, Ibn Qasi não mostrou
qualquer entusiasmo por aqueles desejos bélicos contra os portucalenses
e parecia mesmo distraído. Por várias vezes, Mem deu com ele a olhar
na direção de Zaida com enorme curiosidade.
Homem a galar, decerto quer mamar...
Ismar bem tentou chamar à razão Ibn Qasi e chegou mesmo a propor-
lhe um elevado pagamento, em ouro e pedras preciosas, para o senhor de
Mértola se juntar à expedição, mas este recusou sempre.
– Atacar Ibn Henrik é um erro – defendeu Ibn Qasi. – O nosso maior
inimigo, agora que partiram os almorávidas, é Afonso VII!
Aquela declaração era uma crítica frontal à estratégia de Ismar de
deixar cair Oreja em troco da perseguição a Afonso Henriques, coisa
que Ibn Qasi não deixou de relembrar, alegando que a prioridade dos
muçulmanos da Andaluzia devia ser resistir ao imperador até que, em
África, as coisas mudassem.
– Os almoádas vão vencer Ali Yusuf! – exclamou, entusiasmado.
Mem constatou que aquele sufi era extremamente convincente.
Quem assim fala, muitos embala...
Dotado para a retórica, Ibn Qasi apresentava argumentos relevantes.
– Ali Yusuf é um corrupto, um degradado! Já não cumpre os preceitos
islâmicos, os almóadas têm razão! O seu califado é um desastre!
De repente, virando-se para Abu Zhakaria, perguntou:
– Haveis estado em Marraquexe?
O marido de Fátima confirmou que visitara a cidade real uns anos
antes, adiantando que a capital do império almorávida estava
confundida, pois o califa louco matava quem queria a seu belo prazer.
– Ali Yusuf é um monstro – rematou Zhakaria.
Empolgado com aquele testemunho, Ibn Qasi revelou a sua forte
crença na queda do sinistro berbere, relembrando que este não passava
de um divisionista aterrorizado.
– Não foi ele quem mandou matar vossa mãe, Zulmira, e vosso
padrasto, Taxfin? – perguntou, olhando para a Fátima.
A princesa mais velha acenou com a cabeça e Ibn Qasi concluiu que a
melhor coisa que podia acontecer à Andaluzia era a queda de Ali Yusuf,
seguida pela ascensão de um novo califa almoáda.
– Se conheceis a história da Andaluzia, sabeis certamente que ela só
permaneceu muçulmana porque chamámos os africanos para nos ajudar!
Foi isso que fez Al-Mansor, há cento e cinquenta anos! E é isso que
deveríamos fazer, logo que os almoádas reinem em Marraquexe!
Entretanto, enquanto o califa Ali Yusuf continuasse a resistir, os
andaluzes não deviam desgastar-se em guerras menores. Guerrear
Afonso Henriques era um erro, defendeu Ibn Qasi, bem mais importante
era Oreja, cuja perda era um perigo para a Andaluzia.
Sentado no seu almofadão, Ismar sentiu que o sufi representava uma
alternativa à sua chefia. O príncipe de Córdova não perdeu tempo e
perguntou:
– Dizei-me, honrado Ibn Qasi, conheceis bem a história da
Andaluzia?
Acusou o senhor de Mértola de ter esquecido um importante detalhe.
Uma coisa era o califado de Córdova ter pedido a ajuda dos berberes,
como fizera Al-Mansor; outra, bem diferente, era os berberes destruírem
o califado de Córdova, erguendo outro em Marraquexe!
– Não podemos admitir isso outra vez! – exclamou Ismar – Córdova
sempre foi, e sempre será, a mais importante cidade muçulmana da
região! A capital do califado deve ser lá, não em Marraquexe! O que vós
defendeis é que, mais uma vez, os usurpadores africanos venham
mandar no que é nosso!
Apontando o seu longo dedo a Ibn Qasi, o príncipe Ismar acusou:
– Quereis substituir os almorávidas pelos almóadas e nós
continuaremos a ser humilhados, como somos há quase cem anos!
Mem sentiu que este inteligente e poderoso argumento uniu os
presentes como nenhum outro.
Gente de fora, manda-se embora...
– Na Andaluzia, devem mandar os andaluzes, não os estrangeiros! –
gritou Ismar, levando a que toda a tenda o aplaudisse.
Calmo, Ibn Qasi deduziu que não valia a pena perder mais tempo com
aqueles homens. Antes de abandonar o local, apenas disse:
– Estou certo de que um dia me dareis razão.
Mem notou que, enquanto se afastava, o sufi olhava fixamente para
Zaida, recebendo em troca um sorriso.
Mulher a sorrir, perninhas a abrir...
Não foi por isso uma surpresa quando a rapariga, levantando-se, pediu
ao almocreve que a acompanhasse. Os dois deixaram a tenda de Ismar e
foram seguindo à distância Ibn Qasi, até que este os esperou, fazendo
uma pequena vénia quando Zaida chegou perto dele.
A princesa sorriu ao governador de Mértola e disse:
– Gostei de vos ouvir falar. Estou de acordo convosco, o imperador é
agora o nosso mais duro inimigo.
Ibn Qasi cofiou o seu fino bigode, perguntando, com um ar matreiro:
– Amais Afonso Henriques? Segundo se diz, estais disposta a
desposá-lo, convertendo-vos a Cristo.
Zaida afirmou que o príncipe de Portugal não se mostrara interessado
na sua proposta de paz, regressando a casa.
– Quem o terá avisado para fugir por Mértola? – questionou-se Ibn
Qasi, mantendo a mesma matreira expressão.
Perante o silêncio da princesa, colocou um ar sério e afirmou:
– Este bando de loucos vai perder-nos. Raimunda odeia Afonso
Henriques e Ismar faz o que ela quer. Pensa com a piça, o palerma!
Zaida riu-se, mas Ibn Qasi manteve o tom de voz preocupado:
– Perder Oreja é uma loucura! Julgará Ismar que, mesmo recebendo
Chamoa e a tal relíquia, o imperador levantará o cerco à cidade? Claro
que não, vai enganá-los e tomar Oreja! Afonso VII em poucos verões
estará em Córdova... Estes ódios mesquinhos a Afonso Henriques terão
um preço altíssimo para os muçulmanos andaluzes!
Depois de uma curta pausa, olhou fixamente Zaida e afirmou:
– Sois tão princesa como Fátima e muito mais princesa do que
Raimunda, essa velhaca usurpadora!
Endireitando-se, orgulhoso, o sufi acrescentou:
– Mereceis melhor esposo do que o tolo que Ismar vos destinou!
O sufi conhecia a decisão de Ismar de obrigar Zaida a casar com o
primo dele, o governador de Granada, chamado Homar Atagor, bem
como a relutância da princesa, que naturalmente ficou agradada com
estes explícitos elogios e, habilidosa, se questionou em voz alta:
– Haverá alguém melhor que me deseje?
Ibn Qasi, já seduzido pelos belos olhos negros daquela princesa,
disse-lhe que gostaria muito de recebê-la em Mértola, numa visita que
teria de incluir uma ida à linda cidade de Silves.
– Vinde ter comigo, quando esta loucura acabar – sugeriu o sufi,
dando um beijo amável de despedida no rosto da princesa.
Mem sentiu o seu coração apertar-se. Mesmo não ouvindo Zaida
prometer nada ao charmoso sufi, a aproximação entre os dois era
evidente. Ficou a ver Ibn Qasi partir, enquanto à sua volta se ouviam já
os gritos dos feddayins e das amazonas e o ladrar dos furiosos mastins.
As tropas de Ismar estavam prontas, a grande batalha do além-Tejo
aproximava-se.
Ourique, julho de 1139

Seguindo as indicações de Mem, Afonso Henriques avançara lentamente


de Sevilha para Mértola. Depois, em vez de subir para Beja, os
portucalenses dirigiram-se para oeste, passando perto de uma pequena
povoação chamada Ourique, onde existia um antigo castelo mouro, só aí
começando a subir para o norte pelas vastas campinas do além-Tejo.
Sob um tórrido sol, os cinco mil homens que haviam participado no
bem-sucedido fossado estavam agora cansados e temerosos, pois já
sabiam o que os aguardava. Os rumores anunciavam movimentações de
grandes exércitos mouros e Afonso Henriques esperava a sua aparição.
Certo dia, próximo do final do mês de julho, a vanguarda dos exércitos
portucalenses, chegando ao topo de uma pequena elevação, examinou o
horizonte e estacou.
Um dos cavaleiros-vilões correu a chamar o príncipe e este
aproximou-se a cavalo. No local onde se encontrava, podia apreciar uma
vastíssima planície e ao fundo, perto da linha do horizonte, eram
perfeitamente visíveis os imensos exércitos muçulmanos, que impediam
a passagem dos portucalenses em direção ao norte.
Para oeste, do lado esquerdo, exibia-se um primeiro exército, talvez
com três mil homens, que os estandartes mostravam ser o de Abu
Zhakaria. Depois, à direita deste, via-se um segundo contingente, de
dimensão semelhante, o exército do governador de Beja. E em linha reta
com o local onde o príncipe estava, encontrava-se um terceiro exército,
talvez com cinco mil homens, onde esvoaçavam as bandeiras
alaranjadas de Badajoz.
Era, no entanto, no leste que estacionavam os dois maiores exércitos,
o de Sevilha, comandado pelo emir local, com nove mil homens, e o de
Córdova, liderado pelo príncipe Ismar, que chegava aos dez mil.
Com a sua habitual dificuldade em fazer contas, Afonso Henriques
pediu a Chamoa que contabilizasse o total das tropas e a minha cunhada
somou trinta mil muçulmanos.
– Tendes a certeza? – duvidou o príncipe.
Chamoa fez-lhe uma careta ofendida, sempre fora boa em números!
Então, o meu melhor amigo deu ordens para construir um fortim, um
largo quadrado de estacas pontiagudas, no centro do qual se instalariam
as nossas forças. Arqueiros e besteiros seriam colocados junto às
estacas, para susterem com as suas flechas os ataques sarracenos e, pelo
menos em dois lados do quadrado, teriam de existir portões, para
permitir aos cavaleiros entrarem e saírem.
A fortificação não podia ser demasiado grande, para não ser
impossível de defender com apenas cinco mil homens e a ordem geral
era de resistência, mas, com a sua habitual argúcia militar, o príncipe de
Portugal quis também preparar uma surpresa. Da sua avaliação visual,
concluíra que tanto o exército de Santarém como o de Beja eram os mais
vulneráveis, por serem pequenos. Uma carga de cavaleiros com as
famosas lanças compridas poderia causar muitas baixas, possibilitando
igualmente que o segundo exército portucalense, quando chegasse de
Coimbra, por ali atravessasse as linhas do inimigo até entrar no fortim.
Construir a rústica fortificação demorou dois dias inteiros e, quando
mais tarde revisitámos aqueles célebres acontecimentos, concluímos que
terá sido nesse momento que Ismar cometeu um erro estratégico. Se
tivesse atacado em força logo no primeiro dia, ou mesmo no segundo,
enquanto as estacas ainda não estavam todas colocadas, talvez o príncipe
de Portugal já não estivesse vivo, tal era a diferença de número dos
beligerantes.
Os sarracenos de Santarém e de Beja foram assim surpreendidos
quando, na manhã do terceiro dia, enquanto muitos portucalenses
continuavam a enterrar estacas, viram aparecer uma primeira vaga de
cavaleiros-vilões comandada pelo próprio Afonso Henriques, que,
brandindo a sua enorme espada, a Tormenta, liderava a cavalaria
portucalense no fustigo dos mouros. Atordoados com a investida
inesperada, os muçulmanos resistiram mal àquele primeiro choque e
centenas de cavaleiros árabes, cujas lanças eram curtas, foram mortos ou
feridos gravemente, enfraquecendo os dois exércitos.
Só ao final dessa tarde Ismar compreendeu o propósito da sortida
inicial, quando surgiu, na retaguarda dos exércitos de Beja e de
Santarém, o segundo exército portucalense, onde eu vinha. Aqueles
haviam sido dias terríveis para mim. Deixara Afonso Henriques quatro
semanas antes e cavalgara como um louco, para chegar a Coimbra o
mais depressa possível. Apesar de bem-sucedida, a viagem deixara-me
exausto e só a sensação de tremendo receio que me consumia a alma me
deu forças para, logo no dia seguinte, voltar a partir para o Sul,
juntamente com Gonçalo, Peres Cativo e o Lidador.
Havia em nós uma vontade indomável de não deixarmos o nosso
príncipe à mercê de Ismar, mas temíamos não chegar a tempo. A corrida
para o Sul foi desbragada, cinco mil homens em passo acelerado e
centenas de cavalos a galope. Só rezávamos, a Deus e a Santiago, para
que não nos falhassem naquela hora tão difícil.
Gonçalo de Sousa, o novo alferes portucalense, parecia ressuscitado.
Longe iam os tempos em que Zaida e Chamoa quase haviam arruinado a
antiga e forte amizade que ele tinha com o príncipe. Agora, regressara o
bem-disposto Gonçalo, o espírito forte que o Trava tentara domar sem
sucesso, em Celmes. Agora, ele era um homem concentrado num único
propósito: salvar Afonso Henriques de uma morte inevitável. E nem por
um momento Gonçalo duvidou de que o iria conseguir.
Sempre sorridente e bem-humorado, dava ordens à direita e à
esquerda, animava os homens e os animais, gritando-lhes os sempre
típicos palavrões do Minho, ou o seu habitual tudo espeta? Quando
atravessámos o Tejo, em Almourol, foi o primeiro a ajudar os outros a
entrarem nas jangadas ou a retirá-los das águas, se por acaso se
atabalhoavam com receios. Até Peres Cativo, grande cavaleiro e muito
experiente, estava surpreendido com a energia do novo alferes, tendo
declarado:
– Saiu melhor que a encomenda, o Sousão!
Sim, agora ele era o Sousão, o nome por que fora conhecido seu pai,
Soeiro de Sousa, que no dia da batalha de São Mamede convencera um
desanimado Afonso Henriques a voltar à luta contra o Trava,
lembrando-lhe que era mais honroso morrer a lutar do que recuar!
Certamente aquele pai se orgulharia com a transformação de Gonçalo,
antes um estroinas, um beberrão amigo das soldadeiras, um disparatado
gabarolas, mas agora um tremendo chefe militar, de uma intensidade
contagiante!
Na manhã do terceiro dia, à mesma hora em que, próximo de Ourique,
Afonso Henriques lançou o seu ataque de cavalaria contra os exércitos
de Beja e de Santarém, nós estávamos já perto, talvez a meio dia de
marcha. Foi nesse momento que nos cruzámos com um grupo de pobres
eremitas, quatro homens vestidos de branco, magros e desanimados,
sendo que um estava muito doente e tinha o rosto envolvido em panos,
para defender as feridas do sol abrasador.
O eremitério daqueles desvalidos fora destruído pelos sarracenos e
Gonçalo sugeriu que nos acompanhassem na retaguarda das tropas, onde
podíamos garantir-lhes alguma proteção. Seguimos em frente e, ao final
do dia, demos com as últimas linhas dos exércitos sarracenos de Beja e
de Santarém. O lúcido mas impetuoso Gonçalo mandou-nos avançar,
atravessando as tropas inimigas, ao encontro do príncipe de Portugal e
lembro-me de que o Lidador exclamou:
– Este é dos meus! Toca a andar, vamos foder os cabrões!
O que se seguiu foi uma balbúrdia épica e inesquecível. Cinco mil
homens aos gritos por Santiago e por Portugal, com as suas lanças
apontadas, as espadas nas mãos, os escudos a protegerem-nos, a
correrem que nem uns desalmados, atirando-se contra os atarantados
inimigos, que estavam ainda a recompor-se do ataque matinal de Afonso
Henriques.
Foi a nossa sorte e trucidámos novamente os dois pequenos exércitos,
atravessando no meio deles e indo aparecer, quase sem termos sofrido
baixas mortais, em frente ao fortim dos nossos companheiros! Durante
aquele avanço glorioso, recordo-me apenas de ter olhado para a direita,
na direção do longínquo mar, e de ter visto o pôr do Sol mais belo da
minha vida. Um astro laranja flamejante mergulhava lentamente nas
campinas do além-Tejo, enquanto nós espadeirávamos à direita e à
esquerda.
Passada a confusão, desaguámos, exaustos, aos pés de um gigante.
Afonso Henriques, com a Tormenta bem ao alto, indicava-nos as portas
abertas do seu fortim, enquanto atrás dele cinco mil homens eufóricos
saudavam a nossa chegada! Emocionado, saltei do cavalo e corri na
direção do príncipe, vendo-o orgulhoso mas incapaz de falar. Trocámos
um forte abraço e logo surgiram a nosso lado o Lidador, Peres Cativo e,
por fim, Gonçalo de Sousa. Afonso Henriques abraçou-os também,
enquanto centenas de peões, arqueiros, escudeiros e cavaleiros-vilões
entravam no fortim.
No meio da barafunda, dois rapazes acercaram-se de nós. Eram Pêro
Pais, o filho mais velho de Chamoa, e Gualdim Pais, seu grande amigo e
com os mesmos doze anos do que ele. Ao vê-los, Afonso Henriques
franziu a testa, aquela seria uma batalha perigosa, não fora boa ideia
trazê-los! Mas logo Pêro Pais exclamou:
– Príncipe, estamos convosco até à morte!
Convencido com tanta devoção, Afonso Henriques avisou-o de que
sua mãe o esperava, devia ir beijá-la, mas antes afagou-lhe a cabeça com
ternura, tendo prometido a Gualdim Pais que, na manhã seguinte, o
armaria a ele cavaleiro, como fizera a Pêro Pais, em Cerneja.
Essa noite foi de muito trabalho, pois não era fácil enfiar dez mil
homens num recinto que estava pensado para metade desse número.
Uma nova linha de estacas teve de ser construída, à frente da primeira,
nos lados leste e norte do quadrado, onde prevíamos que iriam dar-se os
ataques mais intensos.
Enquanto se cavavam mais fossos, reunimo-nos na tenda principal,
onde Afonso Henriques decidiu que Gonçalo defenderia o lado leste do
fortim; Peres Cativo e o Lidador ficariam na zona norte; e eu e alguns
cavaleiros-vilões teríamos como missão vigiar os lados oeste e sul, que
prevíamos menos perigosos, bem como a guarda das tendas. Além disso,
tinha de cuidar de Chamoa e da relíquia, juntamente com Pêro Pais e
Gualdim, bem como dos quatro monges que tínhamos ajudado e do
pároco Miguel Salomão, que connosco viera desde Coimbra.
Depois de um curto repouso, mal o céu começou a clarear juntámo-
nos no centro do fortim. Estranhamente, pois haviam estado uns dias de
forte sol, naquela manhã pesadas nuvens apareceram, enquanto o padre
Miguel Salomão pedia o auxílio da Providência. Ditas as orações,
Afonso Henriques chamou alguns rapazes e armou-os cavaleiros, em
nome do apóstolo Santiago, tocando-lhes com a pesada Tormenta nos
ombros e na testa. Um dos que ganharam essa honra foi Gualdim Pais, e
Pêro Pais abraçou-o, orgulhoso. Reparei que minha cunhada Chamoa se
mostrou embevecida com o filho, mas parecia sobretudo deslumbrada
com o seu amado príncipe e mais fascinada ficou quando Afonso
Henriques abriu um embrulho e, com voz solene, declarou:
– Eis a relíquia sagrada da Terra Santa!
O príncipe ergueu com as duas mãos a ancestral lança, com que o
centurião romano Longinus um dia ferira Jesus Cristo na cruz, no monte
das Oliveiras. Levantando-a bem alto, proclamou que seríamos
invencíveis com a ajuda do filho de Deus! À nossa volta, ouviram-se
gritos, muitos soldados ajoelharam e começaram a rezar, enquanto
outros berravam que Jesus estaria sempre connosco!
De súbito, vimos um raio cruzar os céus e descer em direção à terra, a
leste de nós. Ouviu-se um tremendo trovão. Intrigados, notámos que o
raio caíra bem no meio dos exércitos de Ismar e pouco depois um rolo
de fumo negro levantou-se no ar, um incêndio começara. Logo de
seguida, um segundo raio rasgou o céu, um pouco mais para a direita do
primeiro, seguido de um terceiro. Durante algum tempo, uma trovoada
seca massacrou os nossos inimigos, o que levou uma voz audaz, nas
nossas hostes, a gritar:
– Milagre, milagre! Deus castiga-os com o fogo dos céus!
Entusiasmado, Afonso Henriques brandiu novamente a lança de
Cristo. Os gritos milagreiros multiplicaram-se e, inesperadamente, um
raio de sol rasgou as nuvens e fez brilhar a relíquia nas mãos do príncipe
de Portugal. Ao verem aquele ofuscante momento, centenas de homens
ajoelharam, maravilhados, enquanto o próprio Miguel Salomão se
benzia, convencido de que estávamos perante uma clara manifestação de
vontades divinas.
No final desse emocionante, mas breve, evento, Afonso Henriques
beijou a relíquia e entregou-ma, encarregando-me de a guardar com a
própria vida. Recolhi a lança e embrulhei-a, ladeado por Pêro Pais e
Gualdim Pais, que comigo cumpririam esse emérito propósito. Juntámo-
nos aos monges brancos, a Chamoa e a Miguel Salomão, mas não
cheguei a afastar-me, pois Gonçalo de Sousa pegou no enorme escudo
de Afonso Henriques e chamou-me para junto de si, bem como a Peres
Cativo e a o Lidador. O novo alferes portucalense pediu que nos
ajoelhassemos e os quatro assim fizemos, colocando o escudo aos
nossos ombros. Depois, o príncipe de Portugal subiu para o seu escudo e
levantámo-lo, enquanto Gonçalo de Sousa gritava:
– Aclamai Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal!
Em coro, cavaleiros-vilões da gesta de Coimbra, ricos-homens e
escudeiros, nobres de Entre Douro e Minho e da Baixa Galiza, mas
também arqueiros e besteiros, peões e lanceiros, gente do povo do
Condado Portucalense, aclamaram o seu novo rei, que todos
admirávamos e por quem iríamos dar a vida em breve. E ele, naquele
momento um gigante ainda maior, brandiu a sua monumental espada, a
Tormenta, e iniciou o seu mais famoso discurso.
– Em nome de Deus e do apóstolo Santiago, lutaremos contra os
inimigos da nossa fé e do Condado Portucalense! Hoje, seremos
invencíveis e indomáveis, mas também cuidadosos, pois esta será a luta
mais dura da nossa vida. Os inimigos são muitos e teremos de nos ajudar
uns aos outros. Se um cair, o outro levantá-lo-á. Se alguém estiver em
perigo, os outros irão salvá-lo! Mostraremos aos inimigos de que é feita
a nossa fibra! Cada um de vós, ó portucalenses, será o mais forte
soldado, o mais nobre cavaleiro, e lutará até à última gota de sangue! E
um dia, daqui a muitos anos, direis aos vossos filhos e netos que haveis
estado em Ourique e que foi assim que nasceu Portugal!
Uma tremenda comoção apoderou-se de mim e engoli em seco,
cerrando os dentes. A meu lado, reparei que também Chamoa tinha os
olhos molhados de lágrimas e, surpreendido, vi-a imitar Zaida junto ao
túmulo da mãe. A minha cunhada beijou os seus próprios dedos e soprou
ao seu amado um beijo, enquanto uma pontada de angústia me atingia o
coração, pois temia que aquele gesto prenunciasse a morte e não a vida.
Ourique, 25 de julho de 1139

A trovoada que caíra sobre os exércitos de Badajoz, Sevilha e Córdova


criara alguns focos de incêndio, que confundiram os sarracenos,
sobretudo o exército de Ismar. O vento norte empurrou o fogo para sul e
os soldados cordoveses tiveram de recuar um pouco, enquanto as
labaredas passavam, o que os impediu de reagir de pronto ao nosso
avanço.
Pelos portões do fortim saíram dois contingentes de cavalaria, o
primeiro comandado por Peres Cativo e pelo Lidador, que atacou os
exércitos de Badajoz, o segundo liderado por Afonso Henriques e
Gonçalo de Sousa, que saiu pelo sul e contornou a fortificação para
leste, indo pelejar com as primeiras linhas do exército de Sevilha.
Mil cavaleiros compunham cada um dos grupos, os quais, armados
com as célebres lanças compridas, chocaram com os respetivos inimigos
num embate que nos foi favorável. As lanças curtas dos mouros de
pouco serviam contra as nossas e eles sofreram uma devastação
considerável. Tal como na véspera as tropas de Santarém e de Beja
haviam perdido os seus mais valiosos cavaleiros, agora também as de
Badajoz e de Sevilha moíam danos profundos.
Terminada a primeira parte da batalha, os cavaleiros portucalenses
regressaram ao fortim e o ânimo geral era de grande regozijo. Porém,
enfurecido com aquela perda inicial, Ismar surpreendeu-nos. Em frente
aos lados norte e leste, nas centenas de metros que separavam as estacas
das linhas avançadas dos mouros, o chão estava já repleto de cadáveres
de homens e animais. Se os sarracenos se lançassem a cavalo contra nós,
o seu avanço seria complicado. Contudo, quem tem cães ferozes pode
alterar uma batalha a seu favor.
O príncipe sarraceno atiçou ao nosso canto sudeste a sua vasta matilha
de ferozes cães e, de repente, saltitando entre os cadáveres, surgiram
quinhentos mastins raivosos, conduzidos e incentivados pelos gritos e
assobios estridentes dos tratadores. A sua corrida era tão rápida que os
nossos besteiros e arqueiros não os conseguiam atingir e em pouco
tempo os violentos carnívoros, mantidos à fome durante dias,
atravessaram o fosso, evitando as estacas pontiagudas, coisa bem mais
fácil para cães do que para cavaleiros.
O ataque bárbaro da horda canina provocou o pânico generalizado
nessa zona do fortim, onde se ouviram lancinantes urros de dor e se
viam já dezenas de soldados a serem ferrados por mandíbulas colossais.
Mas uma boa capacidade de previsão é essencial numa batalha e
Gonçalo de Sousa surpreendera-nos na noite de véspera ao ordenar que
se juntassem bocados de carne de vaca, ovelha e burro. Essas provisões,
que haviam sido colocadas em duas carroças, no centro do fortim,
tinham-nos incomodado com o seu cheiro nauseabundo, mas agora
percebíamos a sua utilidade.
Juntamente com alguns dos meus homens, começámos a lançar
aqueles nacos na direção dos malditos mastins e o festim de carne crua
distraiu-os. Em corrida, eles eram quase inatingíveis, mas ao verem
aqueles pedaços suculentos, paravam e abocanhavam-nos. Esse
momento em que se imobilizavam era o ideal para serem abatidos pelos
arqueiros e besteiros e, um a um, mais de quatrocentos cães tombaram
mortos ou gravemente feridos pelas nossas flechas.
Uma das mais sinistras armas de Ismar estava anulada, mas
provocara-nos sérios prejuízos. Havia três centenas de portucalenses
diminuídos pelos terríveis mastins e o pavor que eles tinham causado
alarmou muitos combatentes, forçando-os a fugirem do canto sudeste,
onde os cães os podiam magoar, para o nordeste, onde estavam a salvo
das sinistras mandíbulas. Afonso Henriques e Gonçalo bem tentaram
reequilibrar as nossas defesas, contrariando o movimento instintivo dos
temerosos soldados, mas o habilidoso Ismar, prevendo que tal estava a
acontecer, pressionou com ferocidade esse nosso frágil ponto.
Quinhentos sanguinários feddayins, vestidos de branco e apenas com
um cordão vermelho à cintura, lançaram-se ao ataque. Encobertos pelas
linhas dos combatentes que pelejavam junto aos fossos e às estacas,
correram a alta velocidade para o canto nordeste e rapidamente entraram
no fortim. De súbito, estávamos todos em risco. Ainda confundidos
pelos sangrentos cães, o grosso da nossa gente demorou até perceber o
que se passava e muitos viram surgir os feddayins não na sua frente, mas
já nas suas costas.
Exímios com os alfanges, rápidos nos movimentos, a guarda avançada
de Ismar, a quem os sarracenos chamavam Fiéis do Profeta, lançava os
seus urros aterradores, matando os nossos com perícia. Senti que tinha
de me dirigir para lá, pois se os assassins nos fustigassem em demasia,
rapidamente as forças de Sevilha e de Córdova iriam entrar atrás deles
no fortim.
Também Gonçalo de Sousa e Afonso Henriques notaram o perigo, tal
como Peres Cativo e o Lidador, e duas decisões simultâneas foram
tomadas. De norte, veio este último, liderando duas centenas de
soldados; de leste, veio o próprio Afonso Henriques, com a Tormenta na
mão, para demonstrar aos seus homens que não tinha medo daqueles
pavorosos torcionários. Juntámo-nos os três perto do canto nordeste e foi
certamente a união dos nossos esforços que devolveu a crença aos
portucalenses, que viram os seus chefes golpear à direita e à esquerda
sem receio ou pausas. Se os feddayins eram os piores dos nossos
inimigos, nós éramos os melhores que os portucalenses tinham para
dar!
O embate foi violento, pois tratava-se de homens treinados para matar
e sem receio de morrer, o que os tornava de uma arrogância guerreira
desumana e muito difíceis de quebrar. Mas até os monstros se dobram
perante os gigantes. Enquanto eu e o Lidador demorávamos algum
tempo para anular um feddayin, assisti a algo memorável. O príncipe de
Portugal, com a sua gigantesca espada, matava homens três vezes mais
depressa do que nós! Afonso Henriques volteava a Tormenta no ar,
fazendo-a cair com tal violência sobre os inimigos, que, por mais
rápidos que eles fossem, não conseguiam evitar ser atingidos pela longa
e dura espada do conde Henrique. Mal escorregavam, tropeçavam,
hesitavam ou recuavam, logo a Tormenta se erguia no ar outra vez,
veloz e mortal, caindo sobre eles com enorme brutalidade.
Contudo, os feddayins eram gente hábil e muito experiente e depressa
perceberam que lutavam contra um adversário incomum. Assim,
afastaram-se uns metros da Tormenta, para que ela não os pudesse
atingir, desatando a atirar os seus punhais pelo ar, para que se cravassem
no peito ou nas pernas do nosso príncipe. O que lhe valeu foi o seu
enorme escudo, largo e sólido, que o defendeu dessas armas. Enérgico,
Afonso Henriques carregava a correr na direção de cada lançador de
punhais, obrigando-o a recuar. Só à sua conta, o príncipe deve ter morto
mais de vinte assassins, espantando e desmoralizando os respetivos
companheiros, que pouco a pouco perceberam que iriam ser dizimados
se permanecessem mais tempo dentro do fortim.
Alguns, talvez uma centena, ainda conseguiram escapar, mas a
maioria foi morta. A segunda arma mortífera de Ismar, os célebres Fiéis
do Profeta, estava estraçalhada, a batalha virara finalmente a nosso
favor! Ou, pelo menos, assim o julgávamos... Entretidos naquela brutal
contenda, não reparámos numa nova vaga de assalto, surgindo donde
menos a esperávamos. Quinhentas amazonas, vestidas de negro e
montadas nos seus pequenos cavalos, haviam-se afastado das lutas e,
encobertas pelos fumos dos incêndios, contornaram o nosso
acampamento. Ao mesmo tempo que fugiam os derradeiros feddayins,
as ferozes amazonas forçaram a entrada pelos dois portões.
De súbito, dei conta de grande agitação nessas zonas e comecei a ver
cavalos montados por figuras negras a investirem contra as mal
defendidas entradas, que na altura estavam quase abandonadas. Desatei
a berrar pelos meus homens, tentando reuni-los e lancei-me a correr,
acampamento fora, para ir guerrear as perigosas mulheres.
As minhas principais preocupações eram Chamoa e a relíquia. A
tenda onde estavam, juntamente com os monges e os jovens Pêro Pais e
Gualdim Pais, ficava junto ao canto sudoeste e era para lá que
convergiam as primeiras cavaleiras invasoras do fortim.
Com o coração aos pulos, reconheci duas das mais arrojadas. A
primeira estava montada num estrondoso cavalo negro, o Sultão, que ela
nos roubara em Coimbra. De alfange na mão, Fátima distribuía golpes à
direita e à esquerda e rumava com convicção em direção à tenda. E,
vinte metros afastada dela, outra mulher volteava uma lança e urrava
ordens. Era a minha prima Raimunda, que, embora estivesse de cara
tapada, era claramente a líder do bando.
Estando mais perto de Fátima, avancei contra ela. Uma lança raspou-
me no braço e senti uma dor aguda, mas não parei de espadeirar, pois a
princesa moura já entrava a cavalo na tenda. Escutei gritos e uma
aterrorizada Chamoa saiu pelas traseiras da grande tenda, levando pela
mão um dos pobres monges de branco, que logo caiu uns metros à
frente, trespassado pela lança de Fátima.
Ao mesmo tempo, Pêro Pais e Gualdim Pais saíram da tenda pela
porta da frente, seguidos por mais dois monges brancos, totalmente
aterrorizados, infelizes desgraçados que não tiveram qualquer hipótese,
pois as amazonas degolaram-nos, com golpes certeiros dos seus
alfanges. Só uma delas foi confrontada pelos dois rapazes portucalenses
que, um de cada lado do cavalo da muçulmana, ergueram as suas
espadas em simultâneo, atingindo-a na barriga.
Senti orgulho neles, mas foi um breve instante de alegria, pois logo
reparei que Chamoa, desesperada, tentava esconder-se, enquanto Fátima,
montada no Sultão, se dirigia rapidamente na direção dela. Iria
certamente agarrá-la se eu não chegasse a tempo e, com um pulo, subi a
um barril e consegui atirar-me para cima do Sultão no preciso momento
em que Fátima erguia o alfange para golpear a minha cunhada, ajoelhada
no chão junto às rodas de uma carroça.
Choquei com a princesa moura com violência e ambos caímos do
cavalo. Atordoado, tentei levantar-me, mas escutei um ruído de cascos
próximo e virei-me nessa direção. Raimunda apontava-me a sua lança,
puxando já o braço atrás. Fechei os olhos, pensei nos meus dois filhos e
na minha Maria Gomes e preparei-me para morrer. O momento pareceu
durar uma eternidade, mas ouvi entretanto um berro, seguido de um
baque surdo, e abri os olhos.
A minha prima fora trespassada pela Tormenta e jazia morta no chão.
Ainda atarantado, levantei-me e tentei proteger Chamoa, que continuava
agachada no mesmo local, enquanto Fátima se afastava, arrastando uma
perna. Certamente a princesa moura procurava o Sultão, mas este
afastara-se para o centro do acampamento e quem lhe surgiu à frente foi
Afonso Henriques.
Ficaram os dois a olhar um para o outro, ambos desarmados,
estudando as suas possibilidades, mas de repente quatro outras
amazonas carregaram sobre o príncipe de Portugal e ele, que já só tinha
consigo o escudo, deu meia-volta e desatou a correr aos ziguezagues,
entre os barris e as carroças, tentando atrair as amazonas para onde havia
mais soldados.
O subterfúgio deu resultado, pois Gonçalo de Sousa e o Lidador
aproximavam-se e, mal o príncipe passou por eles, cada um enfrentou
uma cavaleira inimiga, fazendo-o com tal habilidade que ambas caíram
estrondosamente mortas. Agradado, respirei fundo, o príncipe estava
salvo, mas logo dirigi a atenção para as inimigas que me rodeavam, bem
como a Chamoa, ainda debaixo da carroça.
Vi que Fátima fazia sinais a outras duas amazonas e a primeira destas
esporeou o cavalo, dando a mão à princesa mais velha e puxando-a para
cima da sua montada, afastando-se depois velozmente, na direção do
portão e deixando uma única amazona por perto.
Comecei a rezar em silêncio, pois, ferido e dorido, não iria aguentar
novo combate, mas Gualdim Pais e Pêro Pais atacaram a derradeira
cavaleira pelas costas, sem ela o esperar, espetando-lhe cada um a sua
espada. Com um uivo lancinante de dor, a mulher tombou do cavalo e
faleceu.
Estávamos finalmente salvos e Chamoa, de lágrimas nos olhos,
abraçou o filho, enquanto eu observava o acampamento, dando-me conta
de uma nova e muito inesperada luta. No centro do fortim, Afonso
Henriques tentava domar o Sultão, mas o belo cavalo negro não deixava
o príncipe aproximar-se. Habituado a Fátima, estava a estranhar aquele
gigante que lhe ordenava calma. Resfolegando, raspou os cascos no
chão, baixando a cabeça, mas o meu melhor amigo não se intimidou.
Aos poucos, pé ante pé, avançou até perto do Sultão, falando-lhe em voz
serena, enquanto o cavalo continuava a recuar até que parou.
Nesse momento, Afonso Henriques agarrou-o finalmente pelas
rédeas, falando-lhe sempre num tom pausado, para não o assustar.
Depois, sem receio, saltou para a sela. O Sultão empinou-se, deu coices
e revoltou-se, mas o príncipe sabia o que estava a fazer e foi soltando e
puxando as rédeas até que ele se deixasse montar, enquanto, a meu lado,
uma embevecida Chamoa exclamava:
– A profecia da normanda! O rei e o cavalo negro, o raio que toca na
lança, os cães do mal tombados à sua frente!
A batalha de Ourique fora tal e qual a profecia de Elvira Gualter, a
mãe das primeiras filhas do príncipe. Os seus deuses vikings sabiam
muito e estremeci, impressionado e também agradado, mas quando olhei
para um dos corpos que estavam perto de nós, uma forte tristeza
invadiu-me. Debaixo daquele véu escuro encontrava-se a minha prima
Raimunda, com a Tormenta espetada no peito. Aproximei-me, enquanto
chegavam também Gonçalo e o Lidador, bem como o nosso novo rei.
Parei junto ao cadáver da minha prima, mas o meu melhor amigo
ordenou-me que esperasse e foi ele mesmo quem retirou a Tormenta do
peito da amazona, a sua antiga e primeira amante. Emocionado, limpou
a espada, benzeu-se e disse:
– Raimunda, que Deus me perdoe por vos ter morto.
Ajoelhei junto à minha pobre prima. Lentamente, retirei o véu que lhe
tapava a cara, mas logo dei um pulo para trás, assustado. Não era
Raimunda! Aquela mulher não era a minha prima! Ela enganara-nos,
obrigara esta desgraçada a dar as ordens, para pensarmos que era ela!
Espantado, olhei em volta, mas já não vi amazonas no fortim. De
repente, senti um profundo terror. Era óbvio, Raimunda tinha-nos
roubado a relíquia! Corri para a tenda, mas algo não batia certo... Só
Fátima entrara ali e saíra de mãos a abanar!
Contudo, a minha suspeita estava certa. Consternado, verifiquei que a
relíquia nos fora roubada. As peles lá estavam, dentro de um baú, mas
não a lança de Cristo. Furibundo, Afonso Henriques ordenou-me que
investigasse o sucedido e senti a sua desilusão. Confiara em mim e eu
havia falhado. No entanto, não tinham sido as amazonas a roubarem-nos
a relíquia, mas alguém bem mais improvável. Ao final da tarde, Pêro
Pais veio mostrar-me umas vestes sujas de sangue.
– Desapareceu o monge corcunda a quem nunca vimos a cara! Os
soldados encontraram esta roupa fora do fortim, no lado oeste...
Havíamos sido ludibriados por um inesperado impostor, que
provavelmente também enganara os seus colegas, tempos antes,
fazendo-se passar por um monge ferido. Mas quem seria aquele
misterioso eremita? E porque nos roubara a relíquia?
Beja, agosto de 1139

Como é costume, depois de uma grande derrota os vencidos acusam-se


mutuamente, em recriminações dolorosas que só agravam a humilhação
da desfeita. Assim foi também com os sarracenos, como soubemos mais
tarde pelas descrições que Mem nos fez, narrando a batalha de Ourique
do seu ponto de vista privilegiado.
Batalha perdida, culpa distribuída...
Mesmo depois do fiasco triplo dos cães, dos feddayins e das
amazonas, as forças muçulmanas ainda eram vastas. É certo que as
tropas de Beja e de Santarém tinham sido dizimadas e os contingentes
de Badajoz e de Córdova haviam sofrido pesadas baixas, mas Ismar
ainda possuía mais de cinco mil homens capazes e os exércitos do emir
de Sevilha pouco haviam combatido. Porém, quando se começa a
amargar perdas, é difícil fazer acreditar os aliados na nossa boa estrela.
Ismar quisera permanecer em Ourique e preparar as tropas para novas
investidas nos dias seguintes, mas o emir de Sevilha, um rato cobardolas
e miserável, tinha a alma cheia de temores e estava convencido de que
os portucalenses eram imbatíveis e claramente beneficiados pelos
caprichos dos deuses militares.
Os cães chacinados, os feddayins ultrajados e as ferozes amazonas
dizimadas eram sinais mais do que evidentes do destino malogrado
daquela batalha e da sorte extraordinária de Ibn Henrik, a quem os
mouros chamavam o maldito, pois havia invocado o fogo dos céus, que
caíra sobre os sarracenos e incendiara as campinas! Mesmo empolgado,
Ismar não conseguiu convencer os outros reis mouros de que não era
uma força sobrenatural que comandava as chamas e os raios. Com os
acampamentos a serem ainda beijados, aqui e ali, pelas labaredas e os
fumos a intoxicarem muitos, o príncipe de Córdova foi obrigado a
reconhecer que era impossível permanecer naquela inglória planície.
Ainda propôs recuar e voltar no dia seguinte, mas isso era inaceitável
para os outros, sobretudo para Abu Zhakaria, cujas forças eram cada vez
mais curtas.
– Só me restam trezentos homens – exclamou Abu. – Tenho de
regressar a Santarém, senão ainda perco a cidade!
A seu lado, Fátima mostrou-se raivosa por ter ficado sem o cavalo.
– O canalha roubou-me o Sultão!
Perante tanta resistência e desgostoso por seu primo Homar Atagor ter
sido preso pelos cristãos, Ismar tomou a decisão de retirar para Beja e
foi já aí, dias depois, que tentou uma última argumentação: queria agora
que os exércitos muçulmanos se dirigissem para norte, a fim de nos
impedirem de atravessar o Tejo, mas as objeções ergueram-se em seu
redor. Um dos que queriam partir de imediato era Zhakaria, que
desejava passar o rio antes dos cristãos.
– Sois um fraco! – acusou-o Raimunda. – E vós também!
Apontava para Fátima, que considerava responsável pelo falhanço na
operação de assalto às tendas, impedindo as amazonas de matarem
Chamoa e de se apoderarem de novo da relíquia.
– E vós, ó trapaceira? – gritou-lhe Fátima. – Não vos atormenta a
culpa de saber que uma das amazonas morreu em vez de vós?
Os vários reis mouros sempre haviam tido dúvidas sobre Raimunda,
por ser metade cristã. Agora, ela revelava-se uma fraude injusta, capaz
de sacrificar mouras para salvar a pele.
– É verdade o que diz Fátima? – perguntou Zaida.
A princesa mais nova, sempre acompanhada por Mem, permanecera
na retaguarda das tropas de Ismar, tratando dos feridos e dos
moribundos, mas agora, que tomara conhecimento da manigância de
Raimunda, sentiu uma oportunidade soberana para a desqualificar.
Como o silêncio da outra era revelador, Zaida acrescentou:
– Quantos mais mortos serão necessários até terminar esta loucura?
Virando-se para Ismar, afirmou:
– Príncipe, todos estávamos convencidos da vossa invencibilidade.
Cães ferozes, assassins terríveis, amazonas negras! Os Fiéis do Profeta,
as Fúrias do Corão... Que belos nomes, tão pomposos quanto inúteis!
Olhando o emir de Sevilha e os outros chefes andaluzes, Zaida
relembrou o que se passara semanas antes em Badajoz.
– Ibn Qasi bem vos avisou: o inimigo principal não é Afonso
Henriques, mas sim o imperador! Mas vós não o haveis ouvido!
Sorrindo com um certo desprezo para Ismar, continuou:
– E agora até vosso primo, Homar Atagor, com que me quereis casar,
haveis perdido!
A bela Zaida recordou que propusera a paz entre mouros e
portucalenses, mas havia sido insultada e apontada a dedo como
traidora. Agora era a vez de ela perguntar: o que eram eles, um bando de
tolos? Trinta mil muçulmanos humilhados por dez mil portucalenses era
algo nunca visto!
– E pior do que isso é que, como previu Ibn Qasi, ides perder Oreja!
Ouviu-se um protesto geral, acusações de que Zaida estava a mentir,
pois existia um acordo com o imperador que pouparia essa cidade.
Contudo, os dois casais formados por Raimunda e Ismar, Fátima e Abu
Zhakaria olharam, envergonhados, para o chão.
– Porque estais tão calados? – perguntou-lhes Zaida.
Serena e firme, a princesa explicou aos presentes que Ismar não lhes
contara a verdade. O acordo com o imperador incluía apenas uma
suspensão dos combates até final de agosto, o levantamento do cerco a
Oreja só seria respeitado se os mouros entregassem a relíquia sagrada e
Chamoa. Como era evidente, nada disso seria possível e agora que as
tropas muçulmanas estavam longe e destroçadas pela derrota de
Ourique, no final de agosto a cidade de Oreja cairia nas mãos do
imperador.
– Ismar e Raimunda enganaram-vos! – concluiu Zaida.
Furioso, Ismar ainda tentou justificar-se, dizendo que em tempos de
guerra era necessário fazer acordos pontuais com os inimigos, para obter
vantagens noutras frentes, mas logo Zaida o questionou:
– Que vantagens haveis obtido? Em que frentes?
Ouviu-se então um irado murmúrio:
– Esta porca dorme com cristãos!
Raimunda levantara-se, contraída pelo ódio, mas quando a minha
prima avançou, Mem colocou-se à frente dela e rosnou entredentes:
– Só por cima do meu cadáver.
O almocreve tinha um punhal na mão esquerda e um alfange na
direita e Raimunda parou, mas o dano estava provocado. Era óbvio para
todos os presentes que aquela odiosa mulher mataria qualquer
muçulmana, mesmo Zaida, só para preservar a sua posição.
Traição exibida, confiança perdida...
Até Abu Zhakaria, sempre fiel a Ismar, se levantou e exclamou:
– Raimunda não pode ameaçar Zaida de morte! É metade cristã e
apenas bisneta do último califa, enquanto Fátima e Zaida são netas!
O emir de Sevilha e os walis de Badajoz e de Beja secundaram aquele
lembrete e Ismar sentiu que perdera o jogo. Ordenou a Raimunda que se
retirasse, o que esta fez, mordendo os lábios, enquanto o marido tentava
recuperar a iniciativa, com uma exclamação intensa:
– Irei a Oreja defendê-la do imperador! E quem deseja a Andaluzia
unida, que venha comigo!
Alguns apoiaram-no, mas outros decidiram não o fazer. Ismar perdera
a sua aura com a derrota de Ourique e os primeiros a abandonarem Beja
foram Abu Zhakaria e as duas princesas, juntamente com Mem. Na
manhã seguinte, também os exércitos de Sevilha partiram e não foi na
direção de Oreja, e a meio do dia debandaram as tropas de Badajoz. Por
fim, ao final da tarde, um solitário Ismar rumou, derrotado, para a sua
cidade de Córdova, levando na bagagem a enfurecida Raimunda.

Mesmo entre as duas irmãs, as recriminações não se suspenderam.


Enquanto viajavam na direção de Santarém, as provocações de Fátima
foram permanentes.
– Aposto que ides fugir de Santarém e que ireis a correr cair nos
braços do aleijadinho e da galega loura! Só pensais nisso, sois uma
vadia! – rugia a desmiolada, para grande embaraço do seu marido Abu,
que tentava sem sucesso acalmá-la.
Os insultos eram tais que Zaida, na noite seguinte, perguntou a Mem:
– Podeis roubar dois cavalos?
O almocreve ficou entre o surpreendido e o agradado. Também ele
estava farto de conviver com Fátima e temia que, chegados a Santarém,
esta o quisesse acorrentar de novo.
– O que desejais fazer?
– Fugir – respondeu Zaida.
– Quereis partir esta noite?
A princesa mais nova acenou com a cabeça e, mais tarde, enquanto
roubava os cavalos, Mem matutou sobre o destino que ela escolheria
para a fuga deles. Em Córdova, mesmo que fossem para Hisn Abi
Cherif, estariam sempre à mercê da odiosa Raimunda. Quereria Zaida ir
para Coimbra? Afonso Henriques não se podia casar com ela e não fazia
sentido regressar à cidade onde vivera prisioneira dos cristãos durante
mais de vinte anos. Restava Mértola... Ibn Qasi convidara-a para uma
visita, cortejara-a, e Mem teve a certeza de que Zaida iria cair nos braços
daquele sedutor sufi.
A meio da noite, acordou-a e saíram os dois, silenciosos, da tenda.
Rumaram pela planície sem falar, até chegarem a uma árvore onde
estavam presos dois cavalos, que montaram. O almocreve orientou-se
pelas estrelas e Zaida seguiu-o, mas só algum tempo depois percebeu
que iam para sul.
– Como sabeis que quero ir para Mértola? – perguntou.
Mem encolheu os ombros e disse que, sendo eles amigos há tanto
tempo, ela já devia saber que ele conhecia bem a sua maneira de pensar.
Zaida sorriu-lhe no escuro, mas umas dezenas de metros à frente duas
lágrimas correram-lhe pela cara, pois comoveu-se ao perceber o quanto
gostava daquele bonito almocreve, sempre tão leal. Tinha pena de que
ele não fosse um príncipe, para um dia se poderem casar.
Lágrimas a cair, coração a partir...
Mem nunca lhe perguntou porque chorava e limitou-se a guiá-la
naquela noite escura e sem estrelas, atravessando as planícies do além-
Tejo. Quando Zaida teve sede ele deu-lhe de beber, pois trouxera um
cantil, e de manhã deu-lhe pão, pois sabia sempre como tomar conta
dela.
No dia seguinte, Mem viu ao longe um vulto, caminhando a pé. O
desconhecido parecia ir para Alcácer ou para Lisboa, mas o almocreve
decidiu afastar-se dele, pois sabia que, após uma confrontação, os
homens duros e maus não se devem cruzar com mulheres.
Depois das batalhas, ardem como acendalhas...
Nunca passou pela cabeça de Mem que aquele era o monge corcunda
que nos roubara a relíquia do fortim, em Ourique, e que a lança que viu
ao longe, às costas daquele estranho ser, era a mesma que, mais de mil
anos antes, ferira Jesus Cristo na cruz, a lança de Sellium.
Coimbra, agosto de 1139

O regresso dos nossos exércitos a Coimbra foi esplendoroso. Depois de


atravessarmos o rio Tejo, em Almourol, carregados de despojos e de
prisioneiros, em cada povoação por onde passávamos a população
cercava-nos, em euforia, dando vivas a Afonso Henriques e ao apóstolo
Santiago. Tomar, Penela, Pombal e Leiria saudaram-nos com alegria e, a
partir de Soure, os monges guerreiros da Ordem do Templo de Salomão,
liderados pelo mestre Jean Raymond, formaram alas na vanguarda da
comitiva, acompanhando-a estrada fora.
Afonso Henriques era finalmente um cavaleiro satisfeito, pois
encontrara no Sultão o animal perfeito para o carregar. Sólido e firme, o
antigo cavalo de Fátima recebera o seu novo dono com uma intimidade
invulgar, como se o esperasse há muito tempo.
O nosso príncipe transportava também o seu já famoso escudo, em
cima do qual fora aclamado pelos portucalenses antes da batalha de
Ourique. Sempre que aparecia gente à beira da estrada, erguia-o no ar,
tal como à famosa Tormenta, que brilhava ao sol de agosto, para espanto
dos lavradores e inspiração dos trovadores.
Mas, se a viagem já fora memorável, a festa que nos aguardava em
Coimbra foi incomparável. Mal chegámos à margem sul do Mondego,
dezenas de barcaças vieram receber-nos. Os barqueiros cantavam,
contentes, enquanto nos transportavam e, ao desembarcarmos, fomos
envolvidos pelo rufar dos tambores e pela sonoridade das trombetas,
enquanto centenas de crianças e mulheres nos atiravam arroz, como num
matrimónio religioso.
Havia um nítido simbolismo naquela cena, era como se o jovem
príncipe, acabado de fazer trinta anos, estivesse a casar com o seu
orgulhoso povo. Montado no Sultão, o meu melhor amigo acenava a
todos e erguia à vez ora o escudo, ora a espada, provocando clamores na
multidão. Logo atrás dele, viajavam Gonçalo de Sousa, por todos nós
gabado pela sua perícia como alferes, Peres Cativo, Gonçalo Mendes da
Maia, o Lidador, e ainda eu, Pêro Pais, Gualdim Pais e Chamoa, sendo
que esta tentava ser discreta, com receio de ser mal recebida pelas
gentes.
Era escusado tanto embaraço, pois não havia qualquer acinte nas
pessoas e muitas crianças gritavam também o nome dela, chamando-lhe
rainha de Portugal, o que a levou a chorar várias vezes durante a marcha
triunfal. Sorri-lhe, sentindo que naquele momento se corrigia um erro
histórico, cometido por Dona Teresa e Fernão Peres de Trava há mais de
treze anos, quando haviam proibido Chamoa de casar com o príncipe,
obrigando-a a desposar Paio Soares.
Antes de entrar na cidade, cujas portas já víamos abertas, passámos
em frente do belo Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde uma
confraria de monges «apostólicos» nos aguardava de braços abertos em
cruz, cantando orações de júbilo pela vitória dos cristãos. Afonso
Henriques mandou a comitiva parar e desceu do Sultão, benzendo-se,
mas de repente pasmou-se.
O prior Teotónio, que vivia sempre em clausura e já não saía à rua,
surgiu à porta do mosteiro, apoiado numa bengala. O velho e santo
prelado não quisera perder a oportunidade de saudar aquele príncipe que
tanto amava e que sempre defendera, mesmo nos momentos mais
difíceis. Com as mãos a tremerem, benzeu-nos a todos, enquanto Afonso
Henriques se ajoelhava à sua frente, emocionado.
– Que bom ver-vos, príncipe... Temi pela vossa vida, mas Deus
guiou-vos e fez de vós um grande guerreiro, que será recordado durante
séculos no reino de Portugal!
A voz faltou ao meu melhor amigo e ele limitou-se a levantar-se e
abraçar fortemente o estimado conselheiro, a quem tanto devia.
De seguida, entrámos em Coimbra e, se as surpresas já nos haviam
espantado fora da cidade, mais o fizeram lá dentro. Nas janelas viam-se
lençóis de flores coloridas, o chão das ruas estava atapetado de pétalas
brancas e em cada esquina esvoaçava um estandarte de uma cidade do
Condado, em sinal de lealdade ao seu príncipe amado.
Nos pátios da almedina, as gentes dançavam, ouviam-se cantares e
músicas de alaúdes, bem como trovadores a declamarem, competindo
pelos versos mais bonitos e inesquecíveis, enquanto as crianças corriam,
junto aos nossos cavalos, anunciando com alegria que estava ali o novo
rei de Portugal, que chegara, vitorioso, do Sul!
Assim fomos subindo pelas ruas, enquanto milhares de peões,
besteiros, arqueiros e escudeiros se iam juntando aos festejos, comendo,
bebendo e dançando, agarrando aqui e ali uma mulher disponível para
uma dança ou para os deleitar com carícias.
Quando entrámos no pátio da Sé, vimos nos degraus reunido o cabido
completo de Coimbra. Lá estavam Miguel Salomão, Martinho de Soure
e também o bispo Bernardo, a quem Afonso Henriques perdoara as
antigas traições. Por fim, no centro deles, encontrava-se também alguém
cuja presença não havíamos previsto, o nosso mais importante religioso,
João Peculiar, arcebispo de Braga, que chegara dias antes de nova ida a
Roma.
Mal o viu, Afonso Henriques esporeou o Sultão, que avançou num
trote rápido até parar junto dos religiosos. Com um brilho no olhar, o
príncipe de Portugal apontou para as dezenas de carroças carregadas
com os despojos de um fossado que nos levara até aos arredores de
Sevilha e de Córdova.
– Eis as minhas ofertas ao cabido da Sé de Coimbra e à população da
cidade! – anunciou o meu melhor amigo.
Enquanto os cavaleiros-vilões da gesta coimbrã se colocavam à direita
do príncipe, as carroças passaram à frente da Sé, seguindo depois para
uma rua lateral, no meio do aplauso do povo, espantado com tanta
riqueza. Havia ouro, pedras preciosas, armas, moedas, tapeçarias,
vestidos, e todos iriam beneficiar de dádivas generosas.
De seguida, apareceu um grupo de prisioneiros muçulmanos que se
arrastavam a custo, liderados por Homar Atagor, o mais célebre dos
cativos e primo de Ismar. Com o seu habitual olhar sério, João Peculiar
perguntou ao príncipe de Portugal o que tencionava fazer com tantos
inimigos de Cristo e um silêncio geral caiu sobre a praça. Iria Afonso
Henriques condená-los à morte, vingando-se das matanças de Leiria e
Tomar; ou seria capaz de clemência?
O príncipe afagou o Sultão, que resfolegou, agradado.
– Pela minha parte, já tenho o que quero, um cavalo extraordinário.
João Peculiar observou Homar Atagor, que baixou os olhos para o
chão, convencido do seu destino atroz.
– De que vale matar mais gente? – perguntou-lhe Afonso Henriques.
– Acaso Deus se vai alegrar connosco? Não creio.
Decidido, o príncipe declarou ao arcebispo:
– Se os nossos inimigos vão ser recordados pela ferocidade e pela
morte, nós seremos lembrados pelo perdão e pela vida!
Dirigindo-se a Homar Atagor, o meu melhor amigo informou-o de
que seria libertado, bem como os restantes muçulmanos, mas notei que
um desapontado silêncio se abateu sobre a praça da Sé. Acredito que
muitos esperavam e até desejavam uma matança sangrenta e vingativa,
como paga das crueldades sarracenas anteriores, mas a decisão de
Afonso Henriques, mesmo impopular, revelou a grandeza do seu
coração e a inteligência do seu comando.

Os dias seguintes foram de festa e diversão. Contudo, existiam sombras


a vaguearem num céu que nunca me parecera tão límpido. Na primeira
reunião de conselheiros depois das festividades, João Peculiar
relembrou, desapontado, que sem a lança de Cristo, o Papa jamais
reconheceria o reino de Portugal.
– O imperador venceu! – exclamou.
As notícias que chegavam de Colmenar de Oreja eram avassaladoras.
Afonso VII conquistara a cidade e, pela primeira vez em muitos séculos,
a Andaluzia muçulmana estava à mercê dos cristãos, sendo que o grande
triunfador daqueles jogos de guerra era claramente o imperador. A nossa
vitória em Ourique, por mais gloriosa que fosse, não nos fizera avançar
na reconquista, apenas nos trouxera um motivo de honra e união.
– Meu primo tentou tramar-nos mais uma vez! – acusou o príncipe.
O armistício imperial com Ismar, que permitira a este último
abandonar Oreja para combater os portucalenses, revelava igualmente
que o imperador não tinha como prioridade facilitar a vida ao príncipe
de Portugal, mas essa invocação de pouco nos valia.
– Temos de conquistar cidades, só assim o imperador vos reconhecerá
como rei! – avisou o arguto arcebispo.
Se Afonso VII iria atacar Córdova e Sevilha em breve, nós teríamos
de conquistar Santarém e Lisboa, as duas praças mais fortes que ficavam
nos limites do Condado Portucalense, proclamou Peculiar.
– É o que desejo. Primeiro Santarém, depois Lisboa! – concordou
Afonso Henriques – Porém, precisamos de tempo.
Após um verão em fossados e batalhas, seria difícil convencermos os
nobres de Entre Douro e Minho a cederem-nos tropas no próximo verão,
talvez só fosse possível dali a dois anos. Além disso, meu pai, Egas
Moniz, acrescentou que, não dispondo nós da relíquia para impressionar
o Papa, necessitávamos de outro tipo de iniciativa.
– De que falais? – perguntou o príncipe, intrigado.
Meu pai olhou para João Peculiar, era evidente que ambos já haviam
conversado e foi o arcebispo quem sugeriu o casamento religioso de
Afonso Henriques com uma princesa, talvez da Saboia, para satisfazer o
Papa, sempre tão exigente nestas matérias.
Mal ouviu a proposta, o príncipe enxofrou-se! Há anos que desejava
Chamoa, não queria outra esposa! Por mais que lhe dissessem que ela já
tinha filhos de dois homens e fama de demasiada folga, o meu melhor
amigo deixou a Sé enervado, anunciando que partiria em breve para
Guimarães, onde iria desposar Chamoa!
Minha esposa Maria, quando nessa noite me deitei junto a ela, apenas
murmurou, antes de se despir e ficar nua para mim:
– Deus do céu, Lourenço Viegas, a história deles não terá fim?
Suspirei, mas logo me esqueci de Chamoa e do príncipe, pois minha
mulher andava tão atrevida naqueles dias que nada mais me
entusiasmava.
Guimarães, dezembro de 1139

A minha cunhada era suficientemente esperta para perceber que forças


poderosas lutavam contra ela. Longe iam os tempos em que o casamento
de Chamoa e Afonso Henriques poderia unir a Galiza, no presente os
principais notáveis do Condado Portucalense já não estavam
interessados nisso, era bem mais importante conseguirem que o seu
amado fosse reconhecido como rei. Mas sem a relíquia sagrada e sem
cidades conquistadas, para cumprirem o prometido a Afonso VII, em
Tui, e para mostrarem ao Papa o seu empenho cristão, os conselheiros
do príncipe falavam já no casamento deste com uma princesa da Saboia.
Embora por gentileza as pessoas não discutissem o assunto na
presença dela, a rapariga, cuja aventureira vida afiara a astúcia e a
manha, não se iludia e comentava sempre com a minha Maria que a
corte portucalense a queria afastar novamente do seu amado, como antes
haviam feito Dona Teresa e Fernão Peres de Trava. A minha cunhada
via assim esfumarem-se os seus desejos de casar-se novamente à porta
de uma igreja, mas desta vez com um príncipe!
– O meu sonho era casar-me em Compostela, na catedral, junto do
túmulo do apóstolo Santiago! Mas, por estes dias, até Braga me servia...
– resmungava Chamoa.
Ela convencera-se já de que uma má notícia lhe ia ser comunicada em
breve e certo dia perguntou-me:
– Lourenço Viegas, meu honrado cunhado, qual de vós terá coragem
para me dizer que nunca serei rainha?
A pergunta não podia ficar sem resposta e disse-lhe que ela e Afonso
Henriques podiam continuar a amar-se sem casarem. Sempre fora assim
com reis e príncipes, o casamento real era uma manobra política, um
arranjo interesseiro para que os reis pudessem ser mais fortes. O amor
era outra coisa, podia viver-se sem laços matrimoniais, muitos o faziam,
até os religiosos, como ela bem sabia.
Pensais que sou tola?
Chamoa olhou-me com um ar triste e perguntou:
– Lourenço Viegas, sabeis o que é um sonho de criança?
Senti pena dela. Aquela mulher tão bela parecia ter como único
propósito de vida concretizar a fantasia infantil que um dia lhe nascera
no coração, nos prados em redor do Castelo de Tui. Mais nada lhe
importava, tal era a intensidade com que a sua alma havia sustentado a
quimera amorosa. Era como se nada entretanto se tivesse passado e ela
ainda fosse uma menina inocente e pura. Não era, e Chamoa sabia-o,
mas todos os seus erros, todas as suas tolices, todos os seus homens,
haviam sido sepultados dentro do seu coração, como se ela tivesse
ressuscitado num paraíso terrestre, onde Deus já a perdoara e lhe
concedera uma segunda oportunidade.
Tenho esse direito...
No entanto e após umas semanas de amargura, Chamoa rendeu-se às
evidências e escolheu uma inteligente prudência, pois podia ter
manipulado o príncipe contra os seus conselheiros e nunca o fez. Com
uma contenção inesperada numa filha de Elvira Peres de Trava, a
tortuosa matrona galega que sempre tentara torcer o mundo a seu favor,
Chamoa revelou as capacidades de sobrevivência e bom senso que
caracterizavam o seu pai, Gomes Nunes, e manteve-se calada até ao dia
em que, finalmente, o príncipe conversou com ela.
– Porque deseja o imperador raptar-vos? – perguntou Afonso
Henriques, com o coração moído pela dúvida.
A minha cunhada mostrou-se ignorante de tais desejos, mas o príncipe
insistiu.
– Que se passou em Leão, na coroação de meu primo?
Alguém lhe havia contado que o imperador se multiplicara em elogios
a Chamoa e que ela se mostrara agradada. Era sabido que Berengária de
Barcelona, a esposa de Afonso VII, não era nada bonita e o rei leonês
mantinha algumas amantes espalhadas pelos seus vastos territórios.
Quereria ele juntar Chamoa à lista?
– Afonso, por favor – indignou-se ela.
Ligeiramente incomodada, a minha cunhada descreveu o que se
passara na Catedral de Leão, apenas uns piropos inofensivos,
acrescentando ser natural que o imperador olhasse para ela, pois era a
mais bonita em todo o seu império.
Todos o sabem...
Fosse como fosse, para Chamoa os galanteios de Afonso VII não
tinham significado especial e não conseguia perceber como poderia ele
ter pedido a Raimunda que a raptasse.
– Só pode ter sido ideia de meu tio Fernão – acrescentou a rapariga.
Dito isto, olhou Afonso Henriques nos olhos e perguntou-lhe se era
verdade que para ser rei de Portugal ele teria de se casar com uma
princesa da Saboia, ao que o príncipe respondeu:
– É o que desejam Egas Moniz e João Peculiar.
Chamoa, aflita, interrogou-o:
– E vós, já não quereis casar comigo?
O príncipe de Portugal suspirou e depois explicou-lhe que não podia
querer ser rei e ao mesmo tempo casar-se pela Igreja com ela, pois
prejudicaria todo o Condado Portucalense, se o fizesse.
– Primeiro Lisboa, depois Chamoa... – acrescentou.
A única forma de conseguir o que desejava era conquistar a cidade de
Lisboa, além de tentar encontrar a relíquia sagrada. Só assim seria
reconhecido rei pelo imperador e pelo Papa, e só depois disso poderia
casar com ela, como era seu desejo.
– O que vos posso prometer é que não casarei com nenhuma princesa
da Saboia! – exclamou Afonso Henriques.
Anos de convívio com sua mãe, Elvira Peres de Trava, e com seu pai,
Gomes Nunes, haviam dado a Chamoa um misto de manha e prudência,
e ela aceitou, calada, aquela promessa, não se mostrando especialmente
desiludida. Mas, no seu íntimo, já germinava uma ideia subversiva, um
truque hábil.
Mais vale isso que nada...
Certa noite, a minha cunhada escolheu a cama como palco
preferencial para a sua atuação e anunciou ao príncipe a vontade de
casar-se com ele em segredo.
– Odeio casamentos à porta da igreja, com o povo a berrar no pátio!
Morreria de vergonha e de calor – justificou-se Chamoa.
Não desejava tal solenidade, pois a única vez que se casara acabara
viúva e não queria repetir a dose. Afonso Henriques, que mesmo tendo
acabado de o fazer só pensava em possuí-la outra vez, disse-lhe que se
ela preferia casar em segredo, sem festa e sem igreja, assim seria!
Bastava-lhes uma capelinha discreta, num local ermo do Condado e não
se falava mais nisso!
– Desde que exista uma cama por perto, chega-me – murmurou
Afonso Henriques, beijando o peito voluptuoso e sardento de Chamoa e
agarrando com as suas grandes mãos a peideira fofa dela.
É doido por mim...
A minha cunhada deu-se outra vez e continuou a dar-se todos os dias
e todas as noites até que, duas semanas depois, os dois estouvados
casaram secretamente, apenas na presença do cónego Miguel Salomão,
que veio à pressa e em surdina de Coimbra, e de Pêro Pais, filho de
Chamoa, bem como do único casal que os aceitaria em qualquer
condição: a minha Maria, irmã dela, e eu.
– Bico calado – murmurou Afonso Henriques, piscando o olho na
minha direção e na de Pêro Pais.
Ambos sorrimos, contentes por fazermos parte do minúsculo círculo
íntimo do nosso rei, os únicos suficientemente leais e tolos para alinhar
naquele desvio às regras políticas e religiosas do novo reino de Portugal.
Porém, a ideia de que só nós sabíamos revelou-se falsa mal voltámos a
Guimarães, pois a normanda Elvira Gualter, mãe das duas primeiras
filhas de Afonso Henriques, passou por mim certo dia, numa ruela perto
do castelo, e riu-se, perguntando-me:
– Ó padrinho Lourenço, como estão os nubentes?
Corei, aflito. Como podia ela saber? Teria Afonso Henriques confiado
nela? Qual não foi o meu espanto quando Elvira me disse que fora a
própria Chamoa a vir dar-lhe as novidades.
– Está tão feliz que não conseguiu aguentar-se! É mulher!
Como sempre, a normanda não revelava qualquer ponta de ciúme e
acreditei que Afonso Henriques já não a tomava, por estar tão
enamorado de Chamoa, mas a frase que Elvira proferiu logo a seguir,
tão assombrosa quanto perturbadora, deixou-me com dúvidas.
– Já disse ao príncipe que não se esquecesse de me visitar...
Atrapalhado, corei outra vez e Elvira desatou a rir, exclamando:
– Lourenço Viegas, sois tão puro de coração que até dá gosto!
Embaraçado e com uma ponta de inveja, concluí que naqueles dias
quase todas as mulheres ficavam num estado de deslumbramento na
presença do meu melhor amigo. A sua aura real, a fama guerreira, o
espírito colérico e rude, a dureza dos sentimentos, o desprezo com que
por vezes as tratava, mas também a energia extraordinária que
transpirava, alvoroçavam os corações femininos.
Depois da batalha de Ourique, onde fora aclamado rei, mesmo
verdadeiramente enamorado de Chamoa o meu melhor amigo Afonso
Henriques despertava paixões em todas as esquinas. As esposas dos
ricos-homens enviavam-lhe beijos descarados, as filhas dos cavaleiros-
vilões deitavam-lhe olhinhos de corças deslumbradas, as bastardas
espiavam a sua passagem, para se roçarem nas suas vestes, as criaditas
iam à noite ao seu quarto, levar baldes de água quente com os seios
quase à mostra, as padeiras bonitinhas ofereciam-lhe muito mais do que
broas e pão e até as esposas dos agricultores e dos caçadores, quando ele
cavalgava pelas estradas, aproximavam-se oferecidas e sorridentes, e
bastaria um gesto para se porem de quatro à sua frente, prestáveis e
dedicadas.
Contudo, as histórias picantes que corriam o Condado eram mais um
produto da imaginação delirante das súbditas embevecidas do que das
suas ações. Se ele prevaricasse em demasia, certamente teria enchido o
reino de bastardos gigantes, mas a verdade é que a única mulher que
ficou grávida nesses meses foi Chamoa.
Quando aquele célebre ano terminou, a minha cunhada anunciou que
esperava um rebento e, pela sua cara rejuvenescida, todos acreditámos
que seria um rapaz. Ela era dada a parir meninos, já tivera quatro, e
ainda por cima rezava sempre à Virgem para não lhe dar meninas, pois
não só podiam ser mais bonitas do que ela, ofensa inaceitável para o seu
orgulho, como iriam sofrer com as malandrices dos machos.
– Os homens são do piorio! – protestava ela.
Como se Chamoa não gostasse dessas tórridas brincadeiras, pensava
eu, sem nunca o proferir, pois era imperativo reconhecer que a minha
cunhada se transformara numa mulher diferente, extremamente dedicada
aos filhos e sobretudo ao seu príncipe, e não há nada de incorreto que se
lhe possa apontar naquela época.
Desta vez mudei mesmo...
Até foi Chamoa quem acalmou o meu melhor amigo, evitando que ele
voltasse a andar às turras com o seu primo imperador. Numa missiva,
este acusara Afonso Henriques de não ter cumprido cabalmente os
acordos de Tui e ordenava-lhe que comparecesse em Toledo no verão
seguinte, com as suas tropas, para, debaixo do comando imperial,
participar nos fossados que iriam atacar as cidades de Sevilha e
Córdova. Furioso, o príncipe de Portugal decidiu que não só jamais se
juntaria a Afonso VII, como iria de novo atacar a Galiza, só para o
imperador perceber que nunca mandaria nele.
– Não façais tal coisa! Ides deitar tudo a perder! – pediu Chamoa.
Irritado, o príncipe resmungou:
– Está bom de ver que a gravidez assusta as mulheres!
Porém, minha cunhada logo lhe replicou:
– Primeiro Lisboa, depois Chamoa!
Sorrindo, o príncipe agarrou na sua amada princesa e prometeu-lhe
que assim seria. Para que pudesse casar-se com ela pela Igreja e ser
finalmente rei de Portugal, iria conquistar Lisboa! Embora não lhe
tivesse conseguido roubar Chamoa, para já o imperador vencera, mas a
luta não ia parar. Para chegar ao céu, Afonso Henriques iria abrir de
novo para nós as Portas do Inferno, e a cidade que a normanda Elvira, a
vidente, via lá ao fundo, no meio dos gritos, do sol e do sangue, era
Lisboa!

CONTINUA EM:
OS CONQUISTADORES DE LISBOA
Table of Contents
Ficha Técnica
I A Profecia da Normanda 1130 – 1131
Guimarães, novembro de 1130
Guimarães, dezembro de 1130
Lanhoso, dezembro de 1130
Coimbra, Páscoa de 1131
Coimbra, Páscoa de 1131
Tui, dezembro de 1131
II Às Portas do Inferno 1132
Soure, julho de 1132
Coimbra, julho de 1132
Coimbra, julho de 1132
Coimbra, julho de 1132
Coimbra, julho de 1132
Coimbra, agosto de 1132
Compostela, dezembro de 1132
Tui, dezembro de 1132
Tui, dezembro de 1132
Guimarães, dezembro de 1132
III Mentiras de Guerra 1133 – 1134
Serra Morena, perto de Córdova, fevereiro de 1133
Marraquexe, março de 1133
Celmes, abril de 1133
Tui, setembro de 1133
Lisboa, setembro de 1133
Lisboa, setembro de 1133
Soure, outubro de 1133
Coimbra, outubro de 1133
Coimbra, outubro de 1133
Tui, março de 1134
Tui, março de 1134
Tui, março de 1134
IV O Despertar dos Traidores 1134
Rio Lis, junho de 1134
Coimbra, junho de 1134
Coimbra, junho de 1134
Coimbra, junho de 1134
Coimbra, junho de 1134
Santarém, junho de 1134
Sellium, junho de 1134
Sellium, junho de 1134
Santarém, agosto de 1134
Guimarães, outubro de 1134
V Os Desejos do Imperador 1135 – 1137
Leão, maio de 1135
Guimarães, setembro de 1135
Tui, março de 1136
Coimbra, setembro de 1136
Coimbra, novembro de 1136
Toledo, dezembro de 1136
Cerneja, maio de 1137
VI A Relíquia Sagrada 1137
Leiria, maio de 1137
Leiria, maio de 1137
Coimbra, maio de 1137
Albergaria, junho de 1137
Tui, junho de 1137
Tui, junho de 1137
Coimbra, junho de 1137
Coimbra, julho de 1137
Sellium, julho de 1137
Soure, agosto de 1137
VII O Milagre de Ourique 1138 – 1139
Guimarães, outubro de 1138
Córdova, outubro de 1138
Coimbra, março de 1139
Colmenar de Oreja, maio de 1139
Andaluzia, junho de 1139
Serra Morena, próximo de Córdova, junho de 1139
Badajoz, julho de 1139
Ourique, julho de 1139
Ourique, 25 de julho de 1139
Beja, agosto de 1139
Coimbra, agosto de 1139
Guimarães, dezembro de 1139

Você também pode gostar