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As relíquias da discórdia

O “roubo santo” das relíquias de Braga, que em 1102


foram levadas para Compostela, alimentou durante
séculos várias teorias sobre as origens da rivalidade
entre Espanha e Portugal

Texto José Miguel Sardo Fotografias Rui Duarte Silva

Qualquer turista ou peregrino que alguma vez tenha


cruzado as portas da Catedral de Santiago de
Compostela já terá certamente ouvido falar do poderoso
bispo galego que, desde a sua eleição, no início do século
XII, conseguiu transformar a outrora pequena povoação
à beira de uma encruzilhada num dos mais importantes
templos da cristandade na Idade Média. D. Diego
Gelmírez, ou Xelmírez, como se diz em galego, é um
personagem incontornável de qualquer guia turístico da
cidade do fim do “caminho” ao ter convertido a suposta
relíquia do apóstolo de Cristo num símbolo de poder e
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de um poder nem sempre apenas divino. Um hábil
estratego que, com arcas de ouro enviadas ao Papa,
alianças pendulares entre poderes rivais e uma moral
subordinada à realpolitik da época, conseguiu sagrar-se
arcebispo metropolitano numa Península Ibérica dividida
entre reis cristãos e califas muçulmanos, na qual
peregrinações, guerras e bodas redefiniam fronteiras e
poderes ao ritmo dos avanços militares.

Entre os turistas estrangeiros que hoje posam para


selfies frente à fachada da Catedral de Santiago ou
imaginam sobre a velha calçada de granito um passado
medieval de cruzadas e guerras de território entre
senhores feudais, bispos e papas; são os visitantes
portugueses os únicos a não poderem ignorar o nome de
Xelmírez como se fosse mais um personagem da
toponímia local, pertencente a uma história longínqua.
Até aos anos 80 do século passado, a Catedral do
Apóstolo era depositária de umas relíquias bem menos
conhecidas que as de São Tiago, mas cujo espetacular
roubo há mais de 900 anos, protagonizado por Gelmírez,
encerra uma parte valiosíssima da história de Braga e da
Galiza e que se cruza com os acontecimentos que,
algumas décadas mais tarde, iriam precipitar a criação
do território português como um reino independente.

“O episódio do ‘roubo santo’ das relíquias só pode ser


entendido num contexto muito específico de guerra de
território entre senhores feudais, entre os quais se
encontrava o próprio clero de Santiago e de Braga, estes
envolvidos numa contenda pela posição de grande
metrópole cristã do noroeste da Península”, avisa logo à
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partida Miguel Vázquez Freire. Sem turistas portugueses
à vista, o escritor galego é neste dia, a título excecional,
também o guia de um roteiro em Compostela sobre o
“roubo santo”, no percurso que une a capela de São
Frutuoso à capela das relíquias dentro da catedral. Um
percurso onde nos vamos cruzar com figuras tão
familiares como o Conde Dom Henrique de Borgonha e
o seu primo Raimundo, as respetivas esposas e meias-
irmãs Dona Teresa e Dona Urraca, assim como pelo
menos dois arcebispos de Braga santificados e o futuro
rei de Portugal D. Afonso Henriques. Um percurso que,
no livro de Vázquez Freire, se inicia ainda no reino da
Galiza e termina precisamente algures no início da
História de Portugal, cuja independência irá oficialmente
suspender a disputa entre Compostela e Braga, sem
verdadeiramente encerrá-la até à década de 1990,
quando o arcebispo de Santiago, Rouco Varela, efetuou
a devolução do último lote de relíquias de São Frutuoso,
Santa Susana, São Silvestre e São Cucufate ao então
arcebispo de Braga, D. Eurico Nogueira.

À frente de uma plateia de cerca de 30 pessoas, o


professor de Filosofia recorda o episódio do chamado
“Pio Latrocínio”, o “roubo santo” das relíquias de Braga
em 1102, não só protagonizado como também batizado
pelo próprio Gelmírez, através do seu cronista pessoal
na mais importante obra narrativa do século XII, a
“História Compostelana”.

O documento histórico destinado a retratar a evolução


da “cidade do Apóstolo” — e pelo caminho louvar o papel
de Gelmírez na elevação da localidade ao estatuto sumo
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de arquidiocese — dedica logo o segundo capítulo a esta
“viagem a Portugal” do ainda bispo galego para
oficialmente visitar as igrejas de Braga de São Frutuoso
e Santa Susana, sob sua responsabilidade. Uma visita
num momento de alta tensão entre as duas cidades
cujas consequências fazem ainda hoje estremecer as
criptas das duas arquidioceses. Um capítulo da História
que Miguel Vázquez Freire, autor de “De Compostela a
Braga e de Braga a Compostela: O Pio Latrocínio e
Outras Velhas Inimizades” — publicado em junho pela
editora galega Edições Positivas —, considera tão
marcante para Santiago e Braga como desconhecido ou
simplesmente esquecido pela maioria dos galegos e
portugueses, pelo menos dentro do seu contexto
passado. Um desconhecimento que o autor considera
uma forma de maldição, não da História, mas das
historiografias nacionais que, com o tempo, tenderam a
caricaturar ou simplesmente a esquecer os conflitos que
antecederam a criação dos Estados dentro das fronteiras
hoje estabelecidas.

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Tesouro Gelmírez foi recebido com todas as honras em
Braga a 19 de janeiro de 1102, antes de se escapar dois
dias depois, com as mais valiosas relíquias da
arquidiocese, entre as quais os restos mortais de São
Frutuoso, o patrono bracarense

Aos pés da Catedral de Santiago, no exterior da capela


das relíquias onde o saque das igrejas bracarenses
repousou como um troféu durante mais de oito séculos,
Miguel Vázquez recorda a forma como Gelmírez foi
recebido com todas as honras em Braga nesse dia 19 de
janeiro de 1102, antes de se escapar dois dias depois,
após despojar a então recém-restabelecida arquidiocese
das suas mais valiosas relíquias, entre as quais os restos
mortais de São Frutuoso, o patrono bracarense. “Com
este roubo, Gelmírez pretendia antes de mais debilitar
uma cidade rival num momento em que as relíquias

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atraíam peregrinos e eram também uma fonte de
riqueza e de poder, deixando assim Braga ainda mais
economicamente debilitada face à ascensão de Santiago
de Compostela no noroeste da Península”, sublinha o
professor galego.

Tratava-se de um “roubo santo” para a causa do bispo


galego, apostado em obter para a sua cidade o estatuto
de “sede metropolitana” do poder eclesiástico que Braga
mantinha apenas no papel, sem um arcebispo residente
durante a ocupação da cidade pelos mouros entre o
século IX e até aos finais do século X e que obrigara
muitos bispos bracarenses a refugiar-se mais a norte, na
cidade de Lugo. “Chamou-lhe roubo santo, pois
argumentava ter agido como um bom cristão para
proteger as relíquias que afirmava estarem ao abandono
nas igrejas de Braga, o que sabemos que não era
verdade, mas justificava o gesto para a moral da época”,
lembra Miguel Vázquez.

O autor cita no seu livro a “História Compostelana”, que


refere tanto como Gelmírez pernoitou no quarto do
então homólogo bracarense, D. Geraldo — que se
mudou a outro aposento para acolher o convidado de
honra —, como os remorsos que alimentaram nessa
noite a insónia do pontífice de Santiago face ao furto
com que esperava definitivamente ultrapassar a cidade
bracarense na corrida à ‘capital’ da cristandade do
noroeste da Europa. A crise provocada por este episódio
quase faria esquecer a forma como o santificado crime
acabou por compensar, tanto para Gelmírez como para
Geraldo e os arcebispos que os sucederam.
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A “realpolitik ao vivo”

Nos inícios do ano 1100, Braga, a antiga capital da


Gallaecia romana e arquidiocese do reino da Galiza,
parecia atravessar uma profunda crise de identidade
depois de ter sido retomada aos mouros. A cidade que
tentava recuperar o seu estatuto de outrora era agora
desafiada tanto por Toledo como igreja primaz hispânica
dentro do reino de Leão, como por Santiago dentro do
território galego — a antiga diocese subordinada que as
relíquias do Apóstolo de Cristo tinham elevado ao nível
de Roma com um estatuto de “isenção” a qualquer outro
poder que não fosse o do Papa.

“Em 1095 dá-se a bula da isenção de Compostela do


poder de Braga, no ano seguinte o Conde D. Henrique
chega ao Condado Portucalense e cria-se o condado, no
final do ano. Geraldo, um franco, já está à frente da Sé
de Braga e a sua primeira iniciativa vai ser a de repor
integralmente a ‘dignidade’ de Braga, pois o bispo
percebe muito rapidamente que Santiago aspira ao
mesmo título e não se contenta em ser uma simples
diocese subordinada. O ‘Pio Latrocínio’ inscreve-se neste
enfrentamento, quando o conflito eclesiástico está ao
rubro. Como isso não chegasse, por essa altura as
questões eclesiásticas vão-se relacionar com as
questões políticas”, lembra do outro lado da fronteira o
historiador Luís Carlos Amaral, um dos grandes
especialistas portugueses do tema e da época do “roubo
santo”.

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Ultrapassada por Santiago na corrida às relíquias e à
rota das peregrinações, Braga vai contar com o apoio do
novo senhor das terras portucalenses, D. Henrique de
Borgonha e mais tarde do filho rebelde, para poder
consolidar a sua influência, mas num novo território que
se começava a demarcar do sul do rio Minho até às
margens do Mondego: o Condado Portucalense. “As
relíquias tinham de facto um valor simbólico, porque ao
roubar estas relíquias, Gelmírez estava a privar Braga
não só do seu patrono como também a reclamar para si
um importante santo galego que fundou vários
mosteiros no território e que se encontrava em Braga
enquanto antigo centro do poder religioso na Galiza”,
lembra o professor da Universidade do Porto.

O historiador português voltou a publicar recentemente


um estudo sobre o “Pio Latrocínio”, que curiosamente
encabeça uma coletânea de textos universitários sobre
as relações entre a Galiza e Portugal, intitulada “Galiza
e(m) Nós”, publicada pela editora Húmus em parceria
com o Centro de Estudos Humanísticos da Universidade
do Minho. “Santiago pôde fazer tudo o que fez porque
tinha recursos, pôde mandar escrever a ‘História
Compostelana’ e trazer reputados monges francos para
escrevê-la ou comprar os favores do Papa porque tinha
recursos, e Braga o que estava a tentar fazer era algo
similar a Santiago e para isso precisava de rendimentos,
e o que Gelmírez estava a tirar a Braga com o roubo das
relíquias era precisamente essa fonte de rendimentos”,
conclui o professor que não hesita em considerar o

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percurso do enigmático bispo de Santiago como um
exemplo de “realpolitik ao vivo”.

As duas cabeças de Santiago

“Conhecem a série ‘A Guerra dos Tronos’?”, pergunta


uma das guias que acompanha o roteiro e a
apresentação do livro de Miguel Vázquez pelas ruas de
Santiago. “Pois é algo muito parecido com a série”,
graceja. A resposta de Braga ao roubo das relíquias não
se fez esperar, com uma viagem a Roma para protestar
junto do Papa Pascoal II, mas sobretudo para garantir
do Sumo Pontífice a confirmação da cidade portucalense
como “sede metropolitana”, ou seja, da subordinação de
Santiago ao arcebispo bracarense. Salomónico, o Papa
vai manter a isenção de Compostela, mas, em
compensação, confirma Braga como arquidiocese,
virando-a para sul com a atribuição de várias dioceses
entre Douro e o Mondego, dentro e mais para lá do
Condado Portucalense, como Coimbra, Viseu e Lamego.
E é precisamente na cidade do Mondego que, cerca de
dois anos depois do sacro furto, se vai organizar a
contraofensiva a Compostela.

Dom Maurício Burdino, futuro “antipapa”, então bispo de


Coimbra, decide organizar uma visita à terra santa para
trazer para Braga uma relíquia que pudesse rivalizar
com a de Santiago, nem mais nem menos do que a
“autêntica” cabeça do apóstolo, supostamente ausente
aquando da descoberta dos restos mortais de São Tiago,
mais tarde transferidos para Compostela. Mas, durante
o regresso ao Condado Portucalense, a relíquia acaba

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por terminar nas mãos de Gelmírez, que, por sua vez, a
vai usar também para abrir as portas de Santiago, de
onde o prodigioso bispo tinha sido expulso por uma
revolta burguesa. “A descrição na ‘História
Compostelana’ é fabulosa, porque Gelmírez entra na
cidade em cima de um burro com a cabeça do santo,
puxado por um frade e diz-se que a cidade
imediatamente se rendeu a seus pés”, recorda o
historiador portuense.

Os restos mortais de São Frutuoso e restantes santos só


seriam devolvidos a Portugal em duas fases, no século
XX

Na posse desta cabeça de São Tiago, Gelmírez, somava


uma nova vitória na batalha das relíquias, ao completar
o ‘puzzle’ do apostólico cadáver decapitado, despojando
a cidade rival de um trunfo que lhe pudesse fazer
concorrência. “As primeiras referências aos restos de
São Tiago falam de um corpo sem cabeça, mas no século
XII e graças a Gelmírez, este corpo passaria a ter
cabeça, precisamente aquela que tinha subtraído ao
bispo de Coimbra na sua passagem por terras leonesas
no regresso ao território portucalense”, lembra Luís
Carlos Amaral. Mas Miguel Vázquez Freire refere que,
pelo menos a nível oficial, se evitou evocar a
possibilidade de existirem duas cabeças para um mesmo
corpo. Uma problemática que teria sido resolvida mais
tarde com a atribuição da segunda cabeça a outro São
Tiago, Alfeu, dito Menor, cujo busto-relicário pode ainda
hoje ser visto na capela das relíquias da catedral
compostelana.
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Um estudo realizado nos anos 80 e publicado só em
2021 na revista norte-americana “Forensic
Anthropology” revelava que esta cabeça apresentava
sinais de decapitação, mais coerentes com as causas da
morte do São Tiago que se encontra na cripta da catedral
do que com o trágico final do seu homónimo Menor, que
teria morrido depois de ter sido lançado de uma torre.
“Faltaria poder analisar os restos de São Tiago para
poder saber se a única cabeça que se aproxima mais
daquela do apóstolo é afinal aquela que foi subtraída ao
bispo de Coimbra e mais tarde identificada como de São
Tiago Alfeu”, sorri Miguel Vázquez, que, no livro, se
adentra com prudência nas versões alternativas da
identidade do cadáver que jaz na cripta da catedral
compostelana.

Independentemente da autenticidade deste crânio, em


apenas dois anos Gelmírez desferia assim mais um
golpe, este talvez de misericórdia, na vontade da cidade
rival de recuperar o seu estatuto de cabeça da igreja
galega e hispânica. O que é certo é que o esquecimento
destes episódios terá servido, tanto em Braga como em
Santiago, para evitar novas confrontações incómodas
com a ciência.

Dois jovens reis e os galegos “varridos” da história

Se, durante séculos, o episódio do “Pio Latrocínio” que


confrontou Braga a Compostela foi visto por alguns
historiadores como um prenúncio da inimizade entre
Portugal e Espanha, tanto Miguel Vázquez como Luís

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Amaral afastam de imediato as teorias, que consideram,
no mínimo, anacrónicas.

“Uma das coisas que faz com que Gelmírez não seja mais
reconhecido é porque se trata de uma figura incómoda,
tanto para a historiografia oficial portuguesa como
espanhola, é uma figura de fronteira com alianças muito
confusas. Num momento é aliado da grande figura da
nobreza galega da época, o Conde de Trava, com quem
partilha o projeto de um grande reino de Galiza e
Portugal, para confrontar o rei leonês que casou com a
rainha galega Urraca. Seria também este o projeto de
Gelmírez? Não está nada claro, uma vez que também se
aliou com Urraca e mesmo, ao início, com Braga na sua
confrontação com a igreja de Toledo, mas a
historiografia portuguesa trata Gelmírez como um aliado
do projeto do Conde de Trava, mesmo que este bispo
tenha feito tantas alianças distintas que é difícil dizer que
os dois homens partilhavam os mesmos objetivos
territoriais. Há também quem veja Gelmírez como um
aliado de D. Teresa, a mãe de D. Afonso Henriques, mas
as alianças nesta época eram bastante flutuantes”,
recorda o autor galego.

Já o historiador português sublinha: “Temos que saber


que não há Portugal antes de Portugal, nem portugueses
antes dos portugueses e por isso é importante analisar
este episódio fora de um contexto de formação de
Estados, uma vez que nesta altura esse tema não está
sequer em cima da mesa.” E se, em alguns livros de
História, o conflito entre bispos galegos se transformou
numa primeira guerra entre portugueses e espanhóis foi,
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segundo Luís Amaral, porque, “a tendência portuguesa
que alimentámos muito, sobretudo a partir do século
XVII e depois de 1640, é que do outro lado não há
galegos nem castelhanos, há espanhóis e esses galegos
já são espanhóis na nossa forma de ver e de muita
historiografia para quem o que se passou entre Braga e
Compostela era já um prenúncio de que as coisas iam
correr mal”.

Mais do que um catalisador, o “roubo santo” representou


o culminar de uma tensão entre bispos de um mesmo
território em plena mutação, um reino dividido entre
dois condados onde a luta de Braga pelo poder de
outrora coincidia com a vontade da pequena nobreza a
sul do Minho de se emancipar dos grandes senhores
feudais que reclamavam o mesmo passado, mas de uma
cidade mais a norte. “Um jogo de tronos”, também
episcopais, em que, a certa altura, tanto Braga como
Compostela recorreram às mesmas armas, das ossadas
de santos ao apoio a jovens reis rebeldes para tentarem
consolidar o seu poder.

Se no Condado Portucalense, o filho do Conde D.


Henrique, Afonso Henriques, vai acabar por obter o
apoio dos arcebispos na sua revolta contra a mãe D.
Teresa e a favor da independência do condado, já do
lado de Santiago, Gelmírez vai acolher e educar o jovem
Afonso VII, primo de Afonso Henriques, apoiado pela
nobreza galega como o delfim de um reino da Galiza que
aspira recuperar a sua independência e o seu território
integral. Uma das inúmeras manobras com que os dois

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campos eclesiásticos rivais vão poder, ao final,
reclamar-se vencedores.

Santiago de Compostela, para onde foram levadas as


relíquias José Miguel Sardo

Do lado de Compostela, Gelmírez vai finalmente obter o


título de “sede metropolitana” para a sua cidade em
1120, uma vez mais com uma nova astúcia diplomática,
ao reclamar e finalmente obter do Papa a transferência
para Santiago da arquidiocese de Mérida, ainda ocupada
pelas forças muçulmanas. Para a história fica o papel do
então bispo do Porto, Hugo, uma das testemunhas
oculares do “Pio Latrocínio”, numa diplomacia marcada
por várias “doações” de Gelmírez ao Papa e a outros
responsáveis eclesiásticos.

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Do lado de cá do rio Minho, nas décadas que se seguem,
Braga vai gradualmente trocar o protagonismo
peninsular pelo de capital religiosa de um reino
nascente, sem nunca deixar de lembrar que teria sido
fundada por São Pedro de Rates, amigo do apóstolo São
Tiago, embora sem poder desafiar a relíquia de
Compostela. “A grande opção de Braga vai-se dar com
o arcebispo bracarense Paio Mendes, o homem de D.
Afonso Henriques, quando Braga vai aceitar transformar
o seu estatuto de potência eclesiástica regional em
cabeça de um novo Estado nascente. Vai lentamente
abdicar de um papel fora do domínio portucalense, para
assumir, em contrapartida, o de ser cabeça de um novo
Estado que estava a nascer. Uma transformação que vai
ser decisiva para a criação de Portugal. Mas até esse
momento, a tensão com Santiago vai ser sempre ‘taco a
taco’”, remata Luís Amaral.

As cinzas convertidas em ossadas

Ao final do percurso em Compostela e do livro que


publicou, Miguel Vázquez admite que, apesar das
divisões que suscitou, a rivalidade entre Braga e
Compostela faz hoje parte de uma história comum que
ainda é difícil contar. “Recentemente consultei uma
página internet de turismo de Braga que afirmava que
este conflito estava marcado nas respetivas fachadas
das catedrais de Santiago e Braga, com a escultura de
um monge trocista que apontaria na direção da cidade
rival, mas a verdade é que procurei e perguntei por todo
o lado e ninguém me confirmou esta informação, pelo
menos na Catedral de Santiago”, graceja Miguel.
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“Braga nunca esqueceu o episódio do ‘Pio Latrocínio’”,
assegura, por seu lado Luís Amaral. Na Sé da cidade,
hoje em Portugal, uma guia assegura que uma das
esculturas nas traseiras da Sé mostra ainda um
personagem que exibiria o traseiro em direção a
Compostela. Depois da morte de Gelmírez em 1140, foi
preciso esperar três arcebispos de Compostela para que
o arcebispo de Braga João Peculiar, conselheiro de
Afonso Henriques, acabasse por de certa forma selar o
conflito entre ex-conterrâneos, com o reconhecimento
do novo reino de Portugal em 1143 com a assinatura do
Tratado de Zamora e o reconhecimento do Papa da
isenção de vassalagem de Braga a Toledo na década
seguinte.

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Igreja de São Francisco de Real, em Braga, onde se
encontram os restos mortais de São Frutuoso

Nos anos e séculos que se seguiram, nem o tema do “Pio


Latrocínio” nem a questão da devolução das relíquias
voltou a ser abordada de forma oficial pelos dois países.
Os restos mortais de São Frutuoso e restantes santos só
seriam devolvidos, em duas fases, no século XX, em
meados dos anos 60 e quase 30 anos depois, entre o
final da década de 80 e o início dos anos 90, na nova era
de coabitação dos dois países na Comunidade Europeia.
Hoje, no interior da Sé de Braga, uma responsável da
catedral garante que as relíquias não regressaram à
capela de São Frutuoso, em Real, nos arredores da
cidade, de onde tinham sido roubadas por Gelmírez,
encontrando-se atualmente guardadas, longe dos
olhares, na sacristia do templo, vedada a visitantes.

A relíquia com uma história tão rica quanto por vezes


incómoda, não faria atualmente parte de nenhuma das
visitas organizadas na Sé, nem da coleção da exposição
permanente do “tesouro da catedral”, ao contrário de
outros restos mortais que fazem parte do percurso,
como os de D. Teresa, ao lado do Conde D. Henrique, na
chamada capela real. A mãe do primeiro rei de Portugal,
aliada de Gelmírez e suposta amante do Conde de Trava,
mesmo no pico da tensão entre os rivais e antes de ter
de enfrentar o filho na Batalha de São Mamede, teria
pedido ao bispo galego para ser enterrada na Catedral
de Santiago, onde hoje repousa a sua meia-irmã,
Urraca. Sem que nunca se tenha apurado o local onde
Teresa foi sepultada, os seus supostos restos mortais
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surgiam nesta capela de Braga no século XVI, talvez
como uma desforra de uma história passada ou mais
certamente como uma nova “relíquia”, desta vez para
afiançar o papel dos bispos da cidade na construção de
Portugal.

Um fervor nacionalista que certamente, como quase


todos os elementos desta longa história, suporta a
aparente contradição do bispo de Braga manter até hoje
o título de “Primaz da Espanha” — outro conflito
irresolúvel de vários séculos, desta vez com a diocese de
Toledo, que obrigou mesmo o Vaticano a tomar a
decisão insólita de promulgar uma bula a decretar o
“silêncio perpétuo” sobre o tema. Depois do roteiro
organizado em Santiago em torno do “Pio Latrocínio”, a
editora galega Edições Positivas vai organizar um roteiro
em Braga, a 16 de setembro, com uma conferência com
Miguel Vázquez Freire e vários especialistas do tema
marcada para a livraria Centésima Página da cidade.
Uma forma, agora, de enterrar velhas rivalidades em
torno de uma história comum depois das duas cidades
terem recentemente assinado um acordo de geminação
que poderia sem dúvida ser considerado histórico.

Mais de oito séculos depois de terem sido roubadas como


um troféu de guerra numa batalha pelo poder
eclesiástico, as relíquias de São Frutuoso repousam hoje
em Braga, longe da vista e numa paz imperturbada,
mesmo por aqueles que ressaltam uma enésima
contradição que poderia deixar a história ainda em
aberto. Investigadores que não quiseram ser citados
sublinham que as relíquias que, aquando do furto, eram
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descritas como cinzas, terão sido devolvidas por
Compostela numa forma totalmente diferente, com a
entrega de vários ossários aos arcebispos de Braga.
Símbolo de riqueza, de poder e de um certo
ressentimento a nível local, as relíquias de São Frutuoso,
mesmo depois de terem selado um dos conflitos mais
longos da Península Ibérica, parecem continuar a querer
demonstrar pela sua ausência que, em determinados
momentos históricos, a fé pode efetivamente conduzir,
senão à verdade absoluta, pelo menos à mais
conveniente.

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