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II As áreas culturais
Embora se verifique uma íntima convivência entre a aristocracia e os monges, pois a maior parte dos mosteiros
dependia dela, albergava membros das suas famílias e prestava-lhes os serviços intelectuais de que ela necessitava, é
evidente que a cultura própria da nobreza propunha outros valores, para ela mais importantes, e organizava-se em
torno de outros centros de interesse. A sua supremacia social, fortemente baseada no parentesco e nas atividades
militares, dita os principais aspetos das suas preocupações culturais.
De facto, examinando os vestígios da produção cultural nobre, verifica-se que os mais importantes problemas
que aí se tornam presentes dizem respeito à estrutura do parentesco e a tudo o que podia acentuar a solidariedade
entre os parentes. Daí as tradições que tão vivamente cultivam acerca das vinganças familiares, que as linhagens
conservam na sua memória como identificadoras da sua coesão e da sua capacidade agressiva. Ora a coesão e a
agressividade surgem, ao mesmo tempo, como identificadoras da sua superioridade social.
Quando os nobres, abusando da sua força, vexavam os clérigos, roubavam os bens das igrejas e mosteiros ou
exigiam prestações dos camponeses seus dependentes, quando recusavam acatar as suas decisões, por exemplo, em
matéria matrimonial, os bispos e abades não hesitavam em usar o seu poder espiritual para invocarem maldições e
castigos eternos, apelando para o medo coletivo da esterilidade, da doença e da fome. De facto, no imaginário desta
época, a maldição e a sua antítese, a bênção, exercem um papel da maior importância e influenciam realmente a vida
das comunidades.
No Norte cristão existem, no entanto, elementos compensadores da tendência para opor culturalmente as três
ordens entre si e que se acentua no fim do século XI. A importância desses elementos advém-lhes justamente de se
conceberem como restauradores da harmonia social, por meio de uma momentânea ou aparente rutura das
fronteiras hierárquicas, das regras estabelecidas e até por uma certa contestação dos poderes materiais e espirituais.
Quero-me referir aos santuários de romarias e às festas que neles alcançam, de maneira mais clara, a sua função
cultural. Aí, os cultos e práticas populares voltam à superfície. A natureza selvagem que geralmente rodeia os
santuários, situados no cimo dos montes e afastados dos lugares civilizados, perde o seu aspeto de campo de forças
ambíguas, quando não demoníacas, para se tornar a fonte da restauração das energias degradadas pela usura das
incessantes contradições da vida. No momento da romaria, cessa o penoso trabalho de todos os dias, instaura-se o
reino da abundância pela troca e a circulação dos dons, aproximam-se os guerreiros dos camponeses, os clérigos dos
mercadores, os homens das mulheres, os jovens dos velhos, os superiores dos inferiores. Nas festas dos santuários,
transforma-se o penoso trabalho em alegre dança ou em cortejo triunfal, o gemido e o suor de todos os dias em
cânticos festivos. O fascínio provocado por estes encontros e trocas, por esta autêntica fusão de todos os grupos e
categorias, pela momentânea cessação das proibições e interditos, pressente-se, ainda hoje, em muitas cantigas de
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cedreiros: jograis que recitam obras épicas ou narrativas, fazendo-se acompanhar por uma cedra (uma espécie de cítara).
O fenómeno literário que se concordou designar como a «poesia lírica galego-portuguesa» põe um grande
número de problemas que até agora não obtiveram uma resposta satisfatória ou que não obtiveram resposta
nenhuma.
O primeiro destes problemas e o mais difícil de resolver é, na minha opinião, o das coordenadas cronológicas que
delimitam o fenómeno em questão. Consideremos, por exemplo, o limite inferior, isto é, o momento do declínio, ou,
mais exatamente, da mutação, segundo o qual a poesia galego-portuguesa, de inspiração provençal, se torna uma
poesia diferente, uma poesia cujos temas e formas deslizam para a poesia castelhana do século XV. Este limite, fixámo-
lo em meados do século XIV. Poderíamos fazê-lo coincidir com a morte do conde de Barcelos D. Pedro de Portugal,
filho natural do rei D. Dinis, ou melhor ainda, poderíamos escolher a data do testamento (1350), no qual o conde,
último dos poetas e último dos mecenas da poesia galego-portuguesa, legava a Afonso XI de Castela um Livro das
Cantigas que era, muito provavelmente, o predecessor dos cancioneiros completos, ponto de partida da linhagem
mais rica da tradição manuscrita desta poesia. É, evidentemente, um limite arbitrário; com efeito, o processo de
decadência da lírica galego-portuguesa, esse processo que teria acabado com uma mutação, tinha já começado no
momento da morte do pai de D. Pedro, o rei D. Dinis (1325), cuja corte foi durante muito tempo o centro da atividade
poética peninsular, e ainda se não tinha concluído em meados do século, porque ao longo da segunda metade do
século XIV assistimos a uma espécie de continuação da poesia galego-portuguesa, desta vez na corte de Castela, onde
se reúne um grupo de poetas que, ainda que cultivando as formas antigas, aceitam, todavia, as novas que vêm de
Itália; esses poetas preparam o desabrochar lírico castelhano, que chegará ao seu mais alto ponto de desenvolvimento
com Juan de Mena, Santillana, Jorge Manrique e, sobretudo, Garcilaso. É, pois, muito difícil estabelecer uma linha de
demarcação bastante nítida entre a poesia galego-portuguesa e a poesia seguinte, que se concorda chamar, para
sublinhar as analogias e as diferenças em relação à outra, «galego-castelhana». Para traçar esta linha recorremos
então a um critério exclusivamente externo, material; visto que a lírica galego-castelhana foi recolhida num
cancioneiro particular, o famoso Cancioneiro de Baena, que é completamente diferente dos cancioneiros galego-
portugueses, fez-se a separação na base da tradição manuscrita: o que estava nos cancioneiros galego-portugueses
pertencia à poesia galego-portuguesa, o que se encontrava no Cancioneiro de Baena, à poesia galego-castelhana.
Parece-me evidente que o problema foi resolvido um pouco por alto: deveria ter-se feito antes a distinção numa base
mais estritamente literária, linguística, temática; seria necessário analisar os textos de uma tradição e de outra e
determinar para cada poeta e para cada poesia o grau de deslize para uma nova formulação do discurso poético.
Se o problema do limite cronológico inferior da poesia galego-portuguesa espera ainda uma solução satisfatória,
o outro problema cronológico, o do limite superior, é quase insolúvel.
Este último problema arrasta, com efeito, um outro, o problema que mais intrigou os romanistas: o das próprias
origens da poesia lírica vulgar. Não é, evidentemente, minha intenção examinar aqui esse problema, mas tenho que
referir-me a ele, justamente, porque a questão das origens da lírica galego-portuguesa é indissociável da outra
questão, mais geral, das origens da poesia moderna. Vou explicar-me, tentando ser o mais claro e esquemático
possível.
O património poético galego-português compõe-se de 1679 textos, a maior parte dos quais pertence,
cronologicamente, ao século XIII e à primeira metade do século XIV. Apenas um destes textos pode ser situado no
século XII com algumas garantias de certeza: é a cantiga de escarnho [escárnio], ou melhor, o sirventês político, «Ora
faz ost’o senhor de Navarra», de Johan Soarez de Pavha, membro da aristocracia portuguesa, beneficiário de um
feudo em Aragão, precisamente na fronteira do reino de Navarra. A datação deste texto, como aliás, a datação de
quase todos os textos galego-portugueses, foi muito controversa: as alusões às pilhagens feitas pelo rei de Navarra em
território do rei de Aragão, quando este tinha ido a Provença, foram atribuídas por Carolina Michaëlis a 1216 e por
López Aydillo a 1196. Mas é esta última data que tem mais possibilidades de se referir aos acontecimentos a que faz
alusão o poeta, a que é confirmada pelo maior número de dados históricos; aceitá-la-emos, pois, como a mais
provável. De resto, o problema não reside aí. O que nos interessa de momento é que a quase totalidade dos textos
poéticos galego-portugueses se inscreve em limites cronológicos que podem estar um pouco deslocados, mas que, no
fundo, são bastante precisos: 1196 e 1350. Mas então onde é que está o problema cronológico de que falava há
pouco?
A questão, com efeito, não é tão simples como parece. Sabe-se que a poesia galego-portuguesa se manifesta
principalmente em três géneros; há também géneros menores, isto é, géneros que são muito pouco representados
(como o pranto, a pastorela, a alba, etc.), mas os géneros canónicos, aceites pela poética galego-portuguesa e pelas
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Os três cancioneiros de que se fala são, nomeadamente, os das Bibliotecas da Ajuda, Nacional de Lisboa e da Vaticana.
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Originária do Sul de França, constitui uma poesia lírica de cariz amoroso, escrita em língua vulgar e não em latim.
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G. Tavani, «Il problema della poesia lírica nel Duecento letterario ispanico», in Poesia del Duecento nella Penisola Ibérica. Problemi
della Lírica Galego-portoghese, Roma, 1969, e também «A poesia lírica na literatura hispânica do século XIII».
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Op. cit.
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