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1 TEXTOS CRÍTICOS

A CULTURA MEDIEVAL PORTUGUESA (SÉCULOS XI A XIV)


JOSÉ MATTOSO

I Cultura medieval  A impossibilidade da síntese


O que normalmente se diz sobre a cultura medieval só tem pertinência para um grupo minoritário privilegiado,
ou então resulta de uma síntese mais ou menos arbitrária de elementos de vária procedência. Quando se fala de
«espírito medieval» ou de «Cristandade», utilizam-se geralmente elementos, textos e documentos produzidos por
uma pequena minoria, a minoria clerical, cujos representantes mais categorizados viajaram de facto bastante,
sobretudo durante os séculos XIII e XIV, utilizaram a mesma língua em várias nações  o latim  e tomaram como
referência os mesmos textos  a Bíblia, as obras de Santo Agostinho e de São Gregório Magno, depois os
compêndios da escolástica, Aristóteles e as compilações canónicas, além do Decretum de Graciano e do Código de
Justiniano.
Vistas as coisas mais de perto, no entanto, existe uma enorme diferença entre o que se passa na Catalunha e na
Galiza, no Lácio e na Borgonha, no País de Gales e na Normandia, para só citar exemplos de regiões relativamente
próximas umas das outras, e que, por sinal, se chegam a englobar nas mesmas generalizações.

II As áreas culturais
Embora se verifique uma íntima convivência entre a aristocracia e os monges, pois a maior parte dos mosteiros
dependia dela, albergava membros das suas famílias e prestava-lhes os serviços intelectuais de que ela necessitava, é
evidente que a cultura própria da nobreza propunha outros valores, para ela mais importantes, e organizava-se em
torno de outros centros de interesse. A sua supremacia social, fortemente baseada no parentesco e nas atividades
militares, dita os principais aspetos das suas preocupações culturais.
De facto, examinando os vestígios da produção cultural nobre, verifica-se que os mais importantes problemas
que aí se tornam presentes dizem respeito à estrutura do parentesco e a tudo o que podia acentuar a solidariedade
entre os parentes. Daí as tradições que tão vivamente cultivam acerca das vinganças familiares, que as linhagens
conservam na sua memória como identificadoras da sua coesão e da sua capacidade agressiva. Ora a coesão e a
agressividade surgem, ao mesmo tempo, como identificadoras da sua superioridade social.
Quando os nobres, abusando da sua força, vexavam os clérigos, roubavam os bens das igrejas e mosteiros ou
exigiam prestações dos camponeses seus dependentes, quando recusavam acatar as suas decisões, por exemplo, em
matéria matrimonial, os bispos e abades não hesitavam em usar o seu poder espiritual para invocarem maldições e
castigos eternos, apelando para o medo coletivo da esterilidade, da doença e da fome. De facto, no imaginário desta
época, a maldição e a sua antítese, a bênção, exercem um papel da maior importância e influenciam realmente a vida
das comunidades.
No Norte cristão existem, no entanto, elementos compensadores da tendência para opor culturalmente as três
ordens entre si e que se acentua no fim do século XI. A importância desses elementos advém-lhes justamente de se
conceberem como restauradores da harmonia social, por meio de uma momentânea ou aparente rutura das
fronteiras hierárquicas, das regras estabelecidas e até por uma certa contestação dos poderes materiais e espirituais.
Quero-me referir aos santuários de romarias e às festas que neles alcançam, de maneira mais clara, a sua função
cultural. Aí, os cultos e práticas populares voltam à superfície. A natureza selvagem que geralmente rodeia os
santuários, situados no cimo dos montes e afastados dos lugares civilizados, perde o seu aspeto de campo de forças
ambíguas, quando não demoníacas, para se tornar a fonte da restauração das energias degradadas pela usura das
incessantes contradições da vida. No momento da romaria, cessa o penoso trabalho de todos os dias, instaura-se o
reino da abundância pela troca e a circulação dos dons, aproximam-se os guerreiros dos camponeses, os clérigos dos
mercadores, os homens das mulheres, os jovens dos velhos, os superiores dos inferiores. Nas festas dos santuários,
transforma-se o penoso trabalho em alegre dança ou em cortejo triunfal, o gemido e o suor de todos os dias em
cânticos festivos. O fascínio provocado por estes encontros e trocas, por esta autêntica fusão de todos os grupos e
categorias, pela momentânea cessação das proibições e interditos, pressente-se, ainda hoje, em muitas cantigas de

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amigo dos trovadores galego-portugueses, que evocam os cantos da romaria, a dança das raparigas e os momentos
festivos que aí viveram os seus autores.

III Fisionomia cultural dos grupos sociais


Deixando agora o problema das zonas culturais e da sua influência mútua, passemos a uma série de questões em
torno da fisionomia cultural dos grupos sociais. Já foram parcialmente abordadas na primeira parte, ao referir a
intervenção diferenciada dos principais agentes culturais, sobretudo no Norte. Assistimos, aí, ao distanciamento
progressivo da nobreza senhorial e do clero em relação a um substrato comum, mais fielmente preservado pelas
camadas populares. Com o ativo papel dos nobres na Reconquista e a intensificação da ação pastoral do clero em
contacto com os centros exteriores à Península Ibérica, acentua-se o processo de identificação cultural dos dois
grandes grupos da classe dominante, a nobreza e o clero.
1. A nobreza
Do património cultural da nobreza passa então a fazer parte um culto especial pela épica, que até então não lhe
pertencia exclusivamente. De facto, o seu público principal devia ter sido, até aí, o dos cavaleiros vilãos dos concelhos.
Nas povoações de fronteira, em constante ambiente de guerra, ofensiva e defensiva, e que até economicamente
dependiam das expedições de saque no campo inimigo, as suas atividades militares eram fortemente estimuladas
pelos jograis e cedreiros1 que andavam de terra em terra, e aí contavam as suas histórias e canções de gesta. A tal
ponto que os foros dos concelhos da Meseta castelhana e de Leão têm de tabelar a sua recompensa, para evitar a
generosidade excessiva do auditório.
Mas, a partir da época em que os exércitos régios, por meados do século XII, atraem muitos jovens nobres sem
fortuna, que as estruturas linhagísticas impedem de herdar, os cavaleiros da corte apropriam-se do género. Tornando-
se os profissionais da guerra, sonham com expedições mais ousadas. Entusiasmam-se com as histórias do Cid, de
Rolando, dos Infantes de Lara, do Cerco de Zamora ou de Bernal del Carpio. Pretendem imitar os cruzados que vão à
Terra Santa e que com eles combatem em Lisboa, Silves ou Alcácer. Criam as suas próprias réplicas às canções
castelhanas e às de tema carolíngio, como acontece na Gesta de Afonso Henriques, ou porventura noutras
composições perdidas.
Desde o fim do século XII, com a formação de cortes senhoriais e a maior complexidade da corte régia, a
produção cultural nobre intensifica-se: surge a poesia lírica e a satírica, com as suas cantigas de amor, de amigo e de
escárnio e maldizer, e altera-se a memória linhagística pontuada por narrativas de proezas dos antepassados, como
mostram os livros de linhagens. Assiste-se, então, a uma intensa atividade criativa, constantemente renovada pelos
contactos e a competição com as cortes estrangeiras, que os jovens cavaleiros sem fortuna, sempre à procura de
melhores condições de vida, visitam frequentemente: a castelhana de Fernando III, de Afonso X e de Sancho IV, a de
Aragão e de Barcelona, onde chegam bem vivas as influências provençais, talvez mesmo, para alguns, as próprias
cortes do Sul de França. Com a vinda do conde de Bolonha, que ocupa o trono português desde 1248, surgem,
finalmente, as influências do Norte de França, que trazem consigo os romances de cavalaria e a matéria da Bretanha.
Os novos temas são agora os acontecimentos e as intrigas da corte, o amor cortês, o prestígio social e os sinais
da hierarquia social, como o vestuário e o dinheiro, as «estórias» de fidelidade e de traição. Alguns fiéis vassalos
inspiram-se no código feudal para criarem narrativas exemplares de novos heróis que arriscam a vida não já no campo
de batalha, mas em proezas de fidelidade extrema, como acontece com a gesta de Egas Moniz, criada, muito
provavelmente pelo trovador cortesão João Soares Coelho.
Com o desenvolvimento da literatura vassálica e cortesã, na poesia e na prosa, é possível que a clientela
preferencial da épica e dos romances de cavalaria se encontrasse particularmente nas ordens militares. É pelo menos
o que sugere a muito recente atribuição da tradução do José de Arimateia a um clérigo da Ordem Militar de Sant’Iago,
cujo significado foi posto em relevo por Ivo Castro.
A identificação precisa de vários trovadores permitiu definir melhor o processo de criação cultural, ao verificar
que eles são geralmente bastardos e cavaleiros sem fortuna, ou seja, um grupo de dependentes que a corte sustenta e
aos quais confia o seu entretenimento nas horas de lazer. Entretenimento com muito de gratuito e de evasão lúdica,
mas que nem por isso deixa de ter constantemente presentes a ideologia, a escala de valores e as preocupações
típicas da nobreza.
2. O clero

1
cedreiros: jograis que recitam obras épicas ou narrativas, fazendo-se acompanhar por uma cedra (uma espécie de cítara).

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Passemos agora ao pluriforme mundo clerical. Durante o século XII, os monges beneditinos prolongam o ideal
cluniacense, mas entram em decadência e acabam até por seguir, com pouca criatividade, a produção cultural das
outras ordens religiosas. Os cónegos regrantes formam, pelo contrário, a escola mais ativa e original, com os seus
vários textos de vidas de santos (S. Teotónio, Telo, S. Martinho de Sousa), geralmente com destinatários e intenções
bem marcadas. Também cultivaram com ardor a pregação e forneceram um bom número de bispos às dioceses
portuguesas de fim do século XII e princípios do seguinte.
Os primeiros cistercienses, pelo contrário, limitaram-se a importar livros, embora em apreciável quantidade,
muitos deles, porém, copiados e iluminados aqui sobre modelos franceses, como mostrou recentemente um
aprofundado estudo de Adelaide Miranda sobre as suas iluminuras. Todavia, tardam a adaptar-se à cultura local e a
interessar-se pelo ambiente que as rodeia. Só o farão, creio, já depois de avançado o século XIII, então com obras
originais em latim e com traduções, revelando, nessa altura, a influência da escolástica e do pensamento difundido
pelos Mendicantes. As traduções feitas pelos monges brancos ou colecionadas por eles multiplicaram-se no século XIV,
e revelam, então, uma enorme curiosidade por temas fantásticos e da literatura moral. Este «crescendo» cultural
cisterciense dá-se ao mesmo tempo que os Regrantes vão definhando ou especializando-se em questões de história,
abandonando, aparentemente, o interesse pela pregação.
O meio eclesiástico torna-se, assim, muito pluriforme, dentro da sua comum preocupação pelos temas da moral,
da exegese e da mística. Entre os Regrantes prevalece, como vimos, a preocupação pastoral. Entre os primeiros
cistercienses, a exegese e a música. Mas no clero secular, o grande centro de interesse é o direito canónico, que
sustenta e inspira a estruturação diocesana, a hierarquia das diversas autoridades eclesiásticas, o poder judicial no seu
foro próprio, a administração dos sacramentos e das rendas, dos dízimos e das primícias.
Todavia, os conhecimentos que muitos clérigos adquirem e cultivam neste domínio são postos ao serviço do
poder monárquico que desde o princípio do século XIII não cessa de se fortalecer. Primeiro, sob a inspiração do
chanceler Julião, vigorosamente seguido por Afonso II; depois por um espírito eminentemente pragmático, como D.
Afonso III; finalmente, com um verdadeiro propósito de uniformização, por D. Dinis. Da sua utilização pelas
burocracias estatal e diocesana surge então um verdadeiro grupo de «intelectuais», como lhes chama Jacques Le Goff,
que são os principais agentes da centralização régia e da estruturação das cúrias episcopais. O poder adquirido por
estes especialistas da escrita e do formalismo legal não deixa de influir sobre a própria fisionomia cultural do clero, no
seu conjunto, o qual começa a burocratizar-se, com a consequente perda de sentido pastoral, mas, por outro lado,
com a correspondente melhoria dos conhecimentos escolares e uma progressiva sensibilização ao pensamento
racional.
A cultura clerical completa-se, finalmente, com a intervenção dos Mendicantes, que constituem os grandes
inspiradores da expressão urbana da religiosidade medieval. De facto, vivem nas cidades. Não admira, por isso, que
retomem a tradição pastoral dos Regrantes, embora se preocupem menos do que eles com a orientação dos chefes
políticos e se dirijam, de preferência, sobretudo os Franciscanos, às camadas populares.
Tornam-se, por isso, os grandes especialistas da pregação. Hesita-se em considerar, neste caso, como
representativo da cultura portuguesa, a figura de Santo António de Lisboa, que, embora formado em Portugal, pregou
em Itália e no Sul de França.

IV As grandes épocas culturais


Feitas, assim, as devidas distinções para caracterizar as regiões culturais e identificar culturalmente os diversos
grupos sociais, resta proceder a um último tipo de distinções, proposto pela diversidade diacrónica. Muitos elementos
foram já apontados anteriormente, para poder referir com algum rigor as características regionais e sociais dos
diversos meios considerados.
Enumeremos os seguintes: a influência franca do fim do século XI e o princípio do seguinte e as alterações que
trouxe à cultura aristocrática e clerical; a renovação produzida pelos contactos com árabes e moçárabes, quando a
gente do Norte, desde meados do século XII, deixou o campo para viver nas cidades da Estremadura e do Alentejo; as
modificações suscitadas pelo alargamento da corte régia e pela progressiva complexidade do aparelho político, com o
seu período mais intenso desde meados do século XIII; as diversas fases da guerra com o Islão e as suas repercussões
sobre a épica; o reforço da burocracia diocesana e estatal durante todo o século XIII; a proliferação dos Mendicantes e
a sua ação pastoral nas cidades desde o princípio do mesmo século; os contactos com a escolástica; a evolução de um
centro como o de Alcobaça e de outros mosteiros cistercienses; o atrofiamento da cultura moçárabe depois da
Reconquista; as inovações da poesia lírica e satírica, por influência moçárabe ou provençal; a receção dos romances de
cavalaria vindos do Norte de França em meados do século XII. Tudo isto foram elementos que se foram referindo ao

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longo da exposição anterior e que marcam a inegável evolução de uma cultura em constante mudança. Todos se
podem datar com rigor. Por isso, o que se diz para uma época deixa de ser verdadeiro algumas dezenas de anos mais
tarde.
Não será necessário voltar a referir os mesmos acontecimentos, agora com uma nova arrumação. Convém,
todavia, introduzir, para caracterizar as principais épocas culturais, um elemento novo, mais global, exterior ao tecido
cultural e totalmente independente de ações pontuais e bem datadas. Quero referir-me aos fatores demográficos e à
influência profunda e lenta que exercem sobre a cultura portuguesa dos séculos XI e XIV.
1. A juventude cultural dos séculos XII e XIII
De facto, não é por acaso que à imensa criatividade cultural dos séculos XII e XIII se pode opor um panorama
diferente no século seguinte. Aqueles dois séculos caracterizam-se, em termos demográficos, por uma população em
expansão e, portanto, por uma pirâmide de idades em que abunda a gente jovem. Esta abundância relativa cria um
clima propício à inovação cultural.
Em termos mais precisos ainda, pode verificar-se que a concentração demográfica se encontra sobretudo no
Norte no século XII, mas no seguinte se verifica uma deslocação, provavelmente intensa em termos quantitativos, de
gente que aflui sobretudo ao Centro do País. Altera-se, assim, o panorama populacional da Estremadura e das cidades
em geral. Em termos globais, pode, provavelmente, opor-se o superpovoamento do Norte, no século XV, a um
«envelhecimento» relativo da sua população no século XIII, devido à emigração dos jovens para o Centro e Sul. Esta
explica, portanto, a transferência dos polos vitais para o Centro de Portugal.
Este facto poderá ter uma certa importância para interpretar alguns problemas muito precisos. Levará a
perguntar, por exemplo, em que regiões é que os trovadores e jograis galego-portugueses, que eram na sua maioria
procedentes de famílias do Norte, produziram as suas obras que, como se sabe, se situam sobretudo no século XIII e
princípios do seguinte. Os dados aqui apresentados levariam a pensar como mais lógico que os trovadores do século
XIII fossem sobretudo gente deslocada para o Centro e Sul, ou que aqui esteve durante um período considerável. Iriam
buscar a inspiração ao exílio e aos contactos com os meios diferentes dos seus. Esta hipótese terá, é claro, de ser
verificada por meio de estudos aprofundados sobre a biografia dos diversos autores.
De qualquer maneira, é, de facto, nos centros citadinos do Centro e Sul do País que se encontram, no século XIII,
a maioria dos autores que realizaram obras de importância nos domínios da literatura, do direito e da medicina.
2. As angústias do século XIV
Em contraste com o período de expansão, o século XIV apresenta características de certo atrofiamento da
criatividade literária, sobretudo da poética. O fenómeno do quase desaparecimento da lírica já tinha sido verificado há
muito pelos historiadores da literatura, sem que ninguém o tenha podido explicar cabalmente.
Alguém avançou recentemente a hipótese de o fim da lírica se dever à morte da maioria dos trovadores na Peste
Negra de 1348. Esta teria, por assim dizer, cortado o fio de uma tradição que implicava a aprendizagem de uma
técnica rigorosa. Parece-me uma interpretação demasiado restritiva, por se apresentar, por assim dizer,
excessivamente «colada» aos fatores demográficos. De facto, estes atuam de uma maneira difusa sobre elementos de
todo o género. A sua influência sobre a cultura é provavelmente indireta.
De facto, a perturbação trazida pelas mortandades (não só a de 1348, mas também outras, antes e depois) cria
um clima de agitação social e política. Apresentem-se como as suas manifestações concretas a guerra civil de 1319-
1324 entre D. Dinis e o infante D. Afonso; em Castela, as guerras civis, ainda mais violentas, na mesma época e,
intermitentemente, durante todo o século XIV; estas trouxeram a introdução da dinastia Trastâmara e tiveram as suas
repercussões também entre nós; as lutas de Afonso IV com o infante D. Pedro depois do assassinato de Inês de Castro;
as revoltas contra o rei D. Fernando; e finalmente a revolução de 1383-1385.
Ao mesmo tempo, uma crescente sucessão de maus anos agrícolas a partir de 1320, a grande peste de 1348 e,
depois, novos surtos de epidemias em cadeia até ao fim do século agravam o clima de instabilidade e de angústia
coletiva.
Se acrescentarmos a isto os conflitos doutrinais de que Álvaro Pais, bispo de Silves, dá testemunho, as
dificuldades para conseguir reajustar uma sociedade profundamente abalada pela contração demográfica, a
perturbação verificada também no plano literário encontra o seu ambiente lógico. Neste contexto, a relação entre os
níveis de população e a produção cultural torna-se mais verosímil. Não propriamente por os poetas terem sido
dizimados, mas porque o ambiente se torna verdadeiramente dramático.
De facto, nada, nesta época sombria, suscitava a inspiração lírica. O tipo de criação literária próprio da época é,
por isso mesmo, a escrita moral ou mística. O que era preciso, para os homens se defenderem do que consideravam

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castigos divinos, era cumprirem os seus deveres morais e impor a «justiça», mesmo com a máxima crueldade, como
fizeram os dois reis de nome Pedro, em Castela e em Portugal. Para os homens que viviam nessa época, perante a
confusão das forças em presença e a sua inexorável luta, devia ser grande a tentação de se refugiarem na literatura de
evasão ou num imaginário onírico.
Os que se dedicavam à criação literária entusiasmavam-se, então, com as fantásticas lutas dos heróis contra
inimigos que incarnam o mal ou que buscam um paraíso inacessível; de um paraíso que não se chega a saber se se
situa ainda neste mundo, em regiões misteriosas ou apenas para além da morte, num além não menos povoado de
fantasia do que o exótico Oriente. Assim acontecia com os heróis deste tempo, então criados, ou aos quais se
atribuíram novas e intermináveis aventuras, como Amadis de Gaula, o cavaleiro Túndalo, Barlaão e Josafate, os
protagonistas do Castelo Perigoso ou os que se refugiam no Horto do Esposo.
Outros autores preferem exortar aqueles que tudo suportam com paciência e resignação e encontram ânimo na
meditação da vida terrestre e sobretudo do sofrimento do Salvador, na Vita Christi ou na Imitação de Cristo, nos
cânticos ou louvores espirituais como os de mestre André Dias de Escobar. Alguns, ainda, afligem-se com os males da
Igreja, e tentam lutar denodadamente contra todos os males e corrupções, colecionando heresias e esgrimindo
argumentos contra os fautores de todos os erros, ou ainda tentando convencer os príncipes a serem os guardas
inexoráveis da Fé e da ordem moral, como fez o não menos angustiado Álvaro Pais.
Para tudo isto, a prosa era mais adequada ao relato das aventuras imaginárias e às instruções de cariz
moralizante ou aos devaneios místicos, na sempre renovada tentativa de orientar o homem na sua luta contra os
inúmeros inimigos visíveis e invisíveis que de toda a parte o assaltavam. Seria, por isso, necessário esperar o século XV,
onde os contactos com os horizontes longínquos dos trópicos, da próspera Itália renascentista, da laboriosa Flandres
e, já, um pouco, do Oriente permitiam, pelo menos a alguns, desanuviar a imaginação, para de novo ver ressurgir a
lírica.
JOSÉ MATTOSO, O Essencial sobre a Cultura Medieval Portuguesa (Séculos XI a XIV), Lisboa, IN-CM, 1985 (com supressões).

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PROBLEMAS DA POESIA LÍRICA GALEGO-PORTUGUESA
GIUSEPPE TAVANI

O fenómeno literário que se concordou designar como a «poesia lírica galego-portuguesa» põe um grande
número de problemas que até agora não obtiveram uma resposta satisfatória ou que não obtiveram resposta
nenhuma.
O primeiro destes problemas e o mais difícil de resolver é, na minha opinião, o das coordenadas cronológicas que
delimitam o fenómeno em questão. Consideremos, por exemplo, o limite inferior, isto é, o momento do declínio, ou,
mais exatamente, da mutação, segundo o qual a poesia galego-portuguesa, de inspiração provençal, se torna uma
poesia diferente, uma poesia cujos temas e formas deslizam para a poesia castelhana do século XV. Este limite, fixámo-
lo em meados do século XIV. Poderíamos fazê-lo coincidir com a morte do conde de Barcelos D. Pedro de Portugal,
filho natural do rei D. Dinis, ou melhor ainda, poderíamos escolher a data do testamento (1350), no qual o conde,
último dos poetas e último dos mecenas da poesia galego-portuguesa, legava a Afonso XI de Castela um Livro das
Cantigas que era, muito provavelmente, o predecessor dos cancioneiros completos, ponto de partida da linhagem
mais rica da tradição manuscrita desta poesia. É, evidentemente, um limite arbitrário; com efeito, o processo de
decadência da lírica galego-portuguesa, esse processo que teria acabado com uma mutação, tinha já começado no
momento da morte do pai de D. Pedro, o rei D. Dinis (1325), cuja corte foi durante muito tempo o centro da atividade
poética peninsular, e ainda se não tinha concluído em meados do século, porque ao longo da segunda metade do
século XIV assistimos a uma espécie de continuação da poesia galego-portuguesa, desta vez na corte de Castela, onde
se reúne um grupo de poetas que, ainda que cultivando as formas antigas, aceitam, todavia, as novas que vêm de
Itália; esses poetas preparam o desabrochar lírico castelhano, que chegará ao seu mais alto ponto de desenvolvimento
com Juan de Mena, Santillana, Jorge Manrique e, sobretudo, Garcilaso. É, pois, muito difícil estabelecer uma linha de
demarcação bastante nítida entre a poesia galego-portuguesa e a poesia seguinte, que se concorda chamar, para
sublinhar as analogias e as diferenças em relação à outra, «galego-castelhana». Para traçar esta linha recorremos
então a um critério exclusivamente externo, material; visto que a lírica galego-castelhana foi recolhida num
cancioneiro particular, o famoso Cancioneiro de Baena, que é completamente diferente dos cancioneiros galego-
portugueses, fez-se a separação na base da tradição manuscrita: o que estava nos cancioneiros galego-portugueses
pertencia à poesia galego-portuguesa, o que se encontrava no Cancioneiro de Baena, à poesia galego-castelhana.
Parece-me evidente que o problema foi resolvido um pouco por alto: deveria ter-se feito antes a distinção numa base
mais estritamente literária, linguística, temática; seria necessário analisar os textos de uma tradição e de outra e
determinar para cada poeta e para cada poesia o grau de deslize para uma nova formulação do discurso poético.
Se o problema do limite cronológico inferior da poesia galego-portuguesa espera ainda uma solução satisfatória,
o outro problema cronológico, o do limite superior, é quase insolúvel.
Este último problema arrasta, com efeito, um outro, o problema que mais intrigou os romanistas: o das próprias
origens da poesia lírica vulgar. Não é, evidentemente, minha intenção examinar aqui esse problema, mas tenho que
referir-me a ele, justamente, porque a questão das origens da lírica galego-portuguesa é indissociável da outra
questão, mais geral, das origens da poesia moderna. Vou explicar-me, tentando ser o mais claro e esquemático
possível.
O património poético galego-português compõe-se de 1679 textos, a maior parte dos quais pertence,
cronologicamente, ao século XIII e à primeira metade do século XIV. Apenas um destes textos pode ser situado no
século XII com algumas garantias de certeza: é a cantiga de escarnho [escárnio], ou melhor, o sirventês político, «Ora
faz ost’o senhor de Navarra», de Johan Soarez de Pavha, membro da aristocracia portuguesa, beneficiário de um
feudo em Aragão, precisamente na fronteira do reino de Navarra. A datação deste texto, como aliás, a datação de
quase todos os textos galego-portugueses, foi muito controversa: as alusões às pilhagens feitas pelo rei de Navarra em
território do rei de Aragão, quando este tinha ido a Provença, foram atribuídas por Carolina Michaëlis a 1216 e por
López Aydillo a 1196. Mas é esta última data que tem mais possibilidades de se referir aos acontecimentos a que faz
alusão o poeta, a que é confirmada pelo maior número de dados históricos; aceitá-la-emos, pois, como a mais
provável. De resto, o problema não reside aí. O que nos interessa de momento é que a quase totalidade dos textos
poéticos galego-portugueses se inscreve em limites cronológicos que podem estar um pouco deslocados, mas que, no
fundo, são bastante precisos: 1196 e 1350. Mas então onde é que está o problema cronológico de que falava há
pouco?
A questão, com efeito, não é tão simples como parece. Sabe-se que a poesia galego-portuguesa se manifesta
principalmente em três géneros; há também géneros menores, isto é, géneros que são muito pouco representados
(como o pranto, a pastorela, a alba, etc.), mas os géneros canónicos, aceites pela poética galego-portuguesa e pelas

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razos [rubricas explicativas] de cancioneiros1, são os da cantiga d’amor, da cantiga d’amigo e da cantiga d’escarnho e
maldizer. Ora, o primeiro destes géneros é, evidentemente, de inspiração provençal: é, mais precisamente, uma das
manifestações periféricas da canso occitânica2, da qual a cantiga d’amor reproduz bastante fielmente a ideologia, a
casuística, inclusivamente o formulário, ainda que o substrato social seja completamente diferente. De qualquer
modo, a cantiga d’amor representa a realização hispânica de um tipo de poesia europeia saído da poesia provençal.
As cantigas d’escarnho e maldizer formam, por outro lado, um género bem pouco homogéneo, na composição
do qual entram sirventeses políticos, sátiras literárias e morais, mofas pessoais, tenções, etc., que, no entanto, se
vinculam também aos géneros provençais correspondentes.
O terceiro género é o da cantiga d’amigo, que caracteriza pela sua presença a poesia galego-portuguesa: é uma
canção de mulher, mas completamente diferente das outras canções de mulher da poesia medieval em língua vulgar,
das chansons de toile francesas, das canções de mal maridada, das lamentações femininas sobre a partida do cruzado,
de que encontramos exemplares quase em toda a Europa ocidental durante a Idade Média. A cantiga d’amigo possui
todos os elementos desses textos, mas modifica-lhes a combinação e a dosagem e acrescenta elementos próprios,
que lhe conferem um aspeto de originalidade entre as outras canções de mulher. Em primeiro lugar, a protagonista da
cantiga d’amigo é sempre uma donzela, que lamenta a ausência do seu amigo que partiu ao serviço do rei, que espera
o seu regresso, que espera encontrá-lo na fonte ou no santuário, na romaria, que o censura pelo seu pouco
entusiasmo amoroso, que fala com as amigas ou com a mãe, de quem recebe conselhos ou críticas a propósito da sua
conduta para com o amigo. O seu ambiente é sempre marítimo ou campestre, com um cenário esquemático ou
nitidamente caracterizado pela presença do mar, do ribeiro, da fonte, das aves, das árvores e das flores. A cantiga
d’amigo é um eterno diálogo da donzela com tudo o que a rodeia, um diálogo em que ouvimos apenas, por vezes,
uma voz, a da protagonista, mas que permanece, contudo, um diálogo (ou um fragmento de diálogo), porque a voz do
interlocutor, se não aparece fisicamente, reflete-se aí, todavia, indiretamente. O interlocutor pode ser o amigo, como
foi dito, ou um elemento da Natureza que o simboliza, mas a maior parte das vezes trata-se de uma interlocutora: a
mãe, as amigas, um ou vários elementos femininos da Natureza (a água da fonte ou do ribeiro, as aves, as flores, as
ondas do mar).
A cantiga d’amigo, devido a uma tal polarização e esquematização das relações humanas, à elementaridade do
desenho, à ingenuidade aparente de certos recursos expressivos, à fixidez do seu formulário, quase sempre fundado
no paralelismo formal e conceptual, dá a impressão de um ambiente e de um aspeto popular, não no sentido de que
os textos que nós possuímos sejam populares  muito pelo contrário, a análise pontual mostra que, na realidade, o
elementarismo, a fluidez, constituem a fachada por detrás da qual se escondem textos literários muito requintados,
cheios dos mais subtis artifícios da retórica mais conseguida -, mas antes no sentido de que esses textos literários
parecem estar na continuidade de uma tradição popular precedente.
O problema é esse: a tese da origem popular da cantiga d’amigo, formulada pelos românticos, aceite com
algumas reservas pelos positivistas e depois retomada com o maior vigor pelos neorromânticos (Menéndez Pidal à
frente), foi, por outro lado, duramente combatida pelos defensores da origem exclusivamente literária da poesia de
arte, que teria sido criada e elaborada nos meios cultos, nas cortes, nas escolas episcopais e conventuais. Uns
acreditam que a poesia encontrou a sua fonte de inspiração no povo, outros negam ao povo qualquer capacidade
criadora e reivindicam o exclusivo desta última para a gente das letras; uns sustentam que a poesia segue uma linha
socialmente ascendente, dos meios populares para os meios cultos, os outros julgam que ela desce antes dos meios
cultos para os meios populares. Para os primeiros a cantiga d’amigo revela, pelo seu carácter popular, a sua origem no
povo; para os outros o carácter literário dos textos invalidaria aquela tese; essa poesia seria antes o resultado de
experiências de laboratório feitas por uma cultura sofisticada, «folclorizante», «alexandrina».
A controvérsia parece concluir-se pela vitória da tese que defende a origem popular da poesia a partir da
descoberta das kharagat românicas. Pelo termo kharga os teóricos árabes distinguiam os versos finais das
muwassahat; enquanto todas as estrofes da muwassaha eram compostas em árabe literário ou então em hebraico,
estes versos finais eram em língua vulgar. E a procura de preciosidades levava muitas vezes os poetas da Espanha
muçulmana a utilizarem para estes versos finais o romance hispânico, a língua das populações cristãs submetidas, em
vez do árabe vulgar.
A descoberta provocou agitação no seio dos romanistas; estavam aí, provavelmente, os mais antigos
monumentos literários românicos. Mas visto que as kharagat eram também pequenas cantigas d’amigo, tinha-se
encontrado ao mesmo tempo a confirmação inesperada das teorias da origem popular deste género literário. Se os

1
Os três cancioneiros de que se fala são, nomeadamente, os das Bibliotecas da Ajuda, Nacional de Lisboa e da Vaticana.
2
Originária do Sul de França, constitui uma poesia lírica de cariz amoroso, escrita em língua vulgar e não em latim.

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poetas árabes ou hebreus de Espanha (e somente estes) tinham composto textos análogos dois séculos antes das
cantigas d’amigo galego-portuguesas, estava fora de questão que eles tinham encontrado o modelo numa tradição
popular hispano-românica, matriz quer de uma como da outra manifestação literária, uma tradição oral, sem dúvida
nenhuma, uma vez que nesse tempo o desabrochar de uma literatura românica escrita era impedido pelo uso do
latim, que excluía qualquer língua vulgar do domínio da escrita, nas regiões de língua românica, até mesmo na
Espanha muçulmana, entre os «hispani» que ficaram cristãos, os moçárabes.
A reação da tese oposta não se fez esperar. As kharagat eram, de facto, canções de mulher, mas a sua analogia
com as cantigas d’amigo ficava por aí; a paisagem era diferente: nestas, campestre, naquelas, urbana; os sentimentos
também: nestas, pudicamente reservados, naquelas, revelando uma sensualidade impudente, e o mesmo se passava
com os tipos humanos: nas cantigas d’amigo, donzelas preocupadas com uma relação pré-nupcial, nas kharagat,
amantes preocupadas com posições amorosas complexas. E a diferença consistia sobretudo na forma da palavra-
chave  amigo , que nas kharagat é sempre representada pela palavra árabe habib, mesmo, sublinhe-se, nas
composições dos poetas hebreus. Como é que se pode reconhecer a origem popular de um género cuja palavra
caracterizadora é árabe? Pode admitir-se a presença nas kharagat de outros arabismos, mas é bastante estranho que
a palavra designando aí o amigo seja árabe. É verdade que as protagonistas das kharagat são mulheres hispano-
romanas; é também verdade que elas dialogam com amigos, que são árabes, de tal modo que se poderia ver no uso
de habib, em vez de amigo, um reflexo da realidade bilingue da Espanha muçulmana, mas é esta, justamente, a razão
pela qual se é levado a crer que a cantiga d’amigo constitui uma criação dos poetas árabes de Espanha e que daí esse
novo género poético chegou aos poetas galego-portugueses, talvez através de um período de aclimatação românica
ao nível popular, durante o qual se teria eventualmente processado a «tradução», ou seja, a adaptação ao novo meio,
latino e cristão.
Esta longa digressão era necessária para definir com clareza os dados do problema. Trata-se de um problema que
está bem longe de ter encontrado solução e que, de resto, nos interessa, não em termos de saber se foi árabe ou
popular a origem longínqua da cantiga d’amigo, mas apenas porque, uma vez admitida a hipótese de que o género
não pertence à esfera de invenção dos nossos poetas galego-portugueses, já não podemos deixar de admitir que um
certo número de cantigas d’amigo, anónimas ou atribuídas a personagens desconhecidas, portanto cronologicamente
instáveis, pertençam a um período anterior àquele de que fixámos os limites entre 1196 e 1350. Quer dizer que, ao
aceitar uma origem exterior à escola e, naturalmente, anterior a ela, é forçoso reconhecer que os autores e textos
desprovidos de localização cronológica possam pertencer a uma qualquer época, precedendo o desenvolvimento da
escola, por exemplo, no início ou no meio do século XII. Ficamos então com o problema de saber se é possível
determinar as linhas de evolução do género, ou seja, de saber se há nas cantigas d’amigo a passagem de uma forma
mais elementar, menos elaborada, para uma forma mais complexa, e, nesse caso, se é possível tentar a reconstituição
dessas linhas evolutivas e colocar na cadeia os textos cronologicamente instáveis para verificar se alguns se situam
num nível cronologicamente anterior aos mais antigos dos textos datáveis. Só após se ter efetuado esta operação se
poderá dizer se o terminus a quo da poesia lírica galego-portuguesa é ou não anterior a 1196. Trata-se de uma
pesquisa difícil. Mas para a efetivar pode utilizar-se um critério classificatório bastante seguro, que é o da presença ou
ausência de influências provençais nos textos das cantigas d’amigo. Estas influências, que, embora existam nas
cantigas d’amigo, são muito fracas e de difícil caracterização, não podem de modo nenhum ser anteriores ao fim do
século XII, como procurei mostrar num dos meus trabalhos 1. Isto porque foi com a presença maciça dos trovadores e
jograis occitânicos nas cortes hispânicas e italianas, inglesas e alemãs, sobretudo após a sua dispersão causada pela
cruzada contra os albigenses, que se tornou possível a difusão as novas maneiras de fazer poesia e o desabrochar das
escolas nacionais dos troveiros dos Minnesänger, dos galego-portugueses, dos sicilianos. É, pois, evidente que todos
os textos que apresentam a marca provençal, por fraca e ténue que seja, não podem deixar de pertencer ao século XIII
ou aos últimos anos do século XII.
Mesmo assim creio que uma tal tarefa é muito difícil e que é impossível conseguir uma solução verdadeiramente
satisfatória. Com efeito, se o uso de elementos de proveniência provençal por parte de um autor de cantigas d’amigo,
pode servir para o situar após o termo do século XII, a ausência desses mesmos elementos é insuficiente para
demonstrar o contrário. Isso porque um autor de cantigas d’amigo, embora vivendo em plena área de influência
provençal, podia decidir não recorrer nem às fórmulas temáticas nem aos recursos técnicos que lhe eram oferecidos
pelos trovadores. Temos a prova de que isso era realmente possível porque entre os textos datáveis do século XIII
alguns há que ignoram totalmente qualquer sugestão provençalizante.

1
G. Tavani, «Il problema della poesia lírica nel Duecento letterario ispanico», in Poesia del Duecento nella Penisola Ibérica. Problemi
della Lírica Galego-portoghese, Roma, 1969, e também «A poesia lírica na literatura hispânica do século XIII».

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Por isso mesmo, quis, de início, precisar que o problema relativo ao estabelecimento do limite cronológico
superior da poesia galego-portuguesa é, na minha opinião, um problema praticamente insolúvel.
O que ficou dito não me parece, contudo, ser inútil. Verificámos, por exemplo, que não se pode resolver de
modo claro e definitivo o problema dos limites extremos do movimento poético através da fixação de datas precisas,
mas, quando muito, delimitando amplos períodos de formação e de primeira elaboração a montante da progressiva
transformação ou de lenta modificação a jusante. É essa constatação que, podendo parecer banal, não o é de facto;
pelo contrário, ela assinala um progresso nítido sobre a atitude estritamente demarcatória que mencionámos.
Pode ainda avançar-se mais: existem, como vimos, analogias notáveis, embora associadas a diferenças
igualmente relevantes, entre as kharagat em hispânico vulgar e as cantigas d’amigo. Conhecem-se, contudo, outras
canções de mulher: aludimos já às chansons de toile, às canções de malmaridada, às lamentações pela partida do
cruzado. Há muitas outras na poesia alemã da Idade Média, na poesia siciliana, na poesia bizantina. Encontra-se então
aí um outro problema, que não diz respeito apenas à poesia galego-portuguesa, mas a toda a poesia medieval, e que é
o da monogénese ou da poligénese dessa poesia «feminina». Para o resolver, julgo que seria necessário recensear de
modo completo as canções de mulher nas diferentes tradições poéticas europeias e mediterrânicas, analisar
cuidadosamente cada um dos textos para detetar pontualmente as suas características e esboçar uma tipologia no
interior de cada domínio. O estudo comparado das tipologias assim determinadas poderá, então, salientar, melhor do
que qualquer outro método, as diferenças e analogias manifestadas pelo género na literatura medieval. Os dados que
se poderão obter por esta via terão, com efeito, o privilégio de serem seguros e completos, e julgo que permitirão
uma tentativa de solucionar o problema da génese da canção de mulher, cujo fundamento será bem mais científico do
que soluções formuladas até hoje e que se baseiam em hipóteses e materiais parciais. Além disso, este estudo
tipológico comparativo dar-nos-ia igualmente a possibilidade de tentar fornecer uma explicação das diferenças que
dizem respeito às diversidades sociais e culturais, numa palavra, ao contexto histórico.
Um outro problema, que não está relacionado apenas com a poesia galego-portuguesa, mas com toda a poesia
europeia da Idade Média, é o das relações com a poesia dos trovadores. Ao falar da delimitação cronológica da nossa
poesia já aludi a ele. Até agora estudou-se a influência provençal na poesia dos Minnesänger, na poesia siciliana.
Elaboraram-se listas mais ou menos completas das correspondências formais e temáticas, constatou-se que a
intensidade e a distribuição dessa influência variavam de um lugar para outro, chegaram-se mesmo a reconstruir os
percursos históricos da penetração, mas ficou-se sempre por aspetos parciais do problema, sem nunca se tentar dar-
lhe solução global e comparativa.
Eu próprio tive ocasião de abordar a questão 1, tentando refutar as teses daqueles que pretendem situar no início
do século XII a origem da poesia galego-portuguesa (refiro-me, neste caso, à poesia estritamente cortês, fora das
cantigas d’amigo); tentei igualmente demonstrar a inconsistência da tese segundo a qual os inícios da poesia galego-
portuguesa teriam sido precedidos ou acompanhados por uma poesia cortês em castelhano, cujo desenvolvimento
natural teria sido entravado e posteriormente interrompido pelo desabrochar cortês da poesia galego-portuguesa.
Avancei então a hipótese de que a questão podia ser estudada aplicando à análise das manifestações poéticas de
origem provençal, os métodos da geografia linguística.
Dada uma área central criadora e propagadora de uma nova conceção de poesia, ou seja de novas estruturas
formais e temáticas, essas estruturas propagar-se-ão horizontalmente, seguindo o desenho das ondas sonoras. Ter-se-
á então um movimento centrífugo, caracterizado por dois aspetos principais: propaga-se em todas as direções com a
mesma intensidade inicial, mas poder ser detido por obstáculos de qualquer natureza e atenua a sua intensidade à
medida que se afasta da fonte. Um terceiro elemento que entra em linha de conta e que desta vez não pertence ao
movimento centrífugo é dado pela natureza dos meios físicos atravessados, isto é, pela sua permeabilidade, pela sua
capacidade recetora.
Vejamos agora qual poderia ser a aplicação deste esquema teórico à realidade histórica que nos interessa. Há
apenas uma difusão muito restrita da poesia dos trovadores para o exterior das fronteiras da cultura occitânica antes
do fim do século XII. Como se disse, o período de grande difusão da poesia provençal coincide com a diáspora
resultante da cruzada contra os albigenses. Nesse tempo, as condições da vida cortês na Occitânia tornam-se cada vez
mais críticas: entre o fim do século XII e os primeiros anos do século XIII quase todos os grandes protagonistas da
poesia provençal emigram em busca de menos precárias condições de vida. Dedicam-se a fazer reviver noutros locais
os cenáculos literários, os centros de cultura poética que tinham sido destruídos ou dispersados pela guerra,
sobretudo depois da batalha de Muret (1213). As cortes que os acolhem são, em primeiro lugar, as do Norte de Itália,
da Alemanha, do reino catalano-aragonês, de Inglaterra e de Castela.

1
Op. cit.

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Esses poetas itinerantes encontram em todos os sítios um ambiente favorável à atividade poética direta e
pessoal. Há, contudo, diferenças entre os diversos meios frequentados pelos trovadores no que respeita à
permeabilidade de influência provençal. É evidente que onde a língua dos trovadores não representa, pelas suas
analogias com a língua do país, obstáculo a uma difusão quase capilar da sua poesia, o ensino dos poetas occitânicos
encontra terreno muito mais fértil e pode precocemente suscitar vocações entre os indígenas, que comporão os seus
textos na própria língua dos trovadores. É o caso do Norte de Itália e da Catalunha, onde a poesia dos trovadores
ganha imediatamente raízes ao produzir poetas italianos e catalães em provençal.
Pelo contrário, onde a língua de região é demasiado diferente e representa, portanto, um obstáculo, a
penetração das estruturas poéticas novas e a respetiva assimilação são mais laboriosas: exigem previamente a sua
«tradução» para a língua da região. Isso só pode acontecer após um estádio de reelaboração da matéria no curso da
qual uma parte do ensino dos trovadores necessariamente se perde e pode eventualmente ser substituído ou
completado por elementos de tradição indígena. É desta vez o caso da Alemanha e de Inglaterra.
Por último, há as áreas periféricas muito afastadas da fonte do movimento, que, em função desse mesmo
afastamento, recebem a nova poesia, não de modo direto, mas através de uma área intermédia. São as áreas onde os
trovadores, devido a dificuldades de ordem social, mas também e sobretudo linguísticas, não puderam encontrar o
mesmo acolhimento nem exercer a sua influência pessoal sobre um público imediatamente acessível ao seu ensino,
áreas em que os trovadores permaneceram por períodos muito breves ou onde nem sequer chegaram, áreas,
portanto, em que a ideologia trovadoresca e o seu formulário poético penetraram através de zonas intermédias, nas
quais os trovadores tinham diretamente semeado o exemplo da nova poesia. Nessa extrema periferia, cuja
permeabilidade à cultura provençal era mais fraca, quer pela sua distância em relação à área occitânica, quer pela
diversidade das línguas realiza-se um grau ulterior da adaptação dessa cultura, ulterior não apenas em relação ao
Norte de Itália e à Catalunha, onde os motivos diferenciadores eram mínimos, mas ainda em relação a essas outras
zonas limítrofes à área occitânica ou a elas ligadas por canais diretos, mas profundamente aloglotas, como eram a
Alemanha e Inglaterra. De um lado, a diferença de costumes, de mentalidade, de estruturas sociais, políticas e
económicas, do outro, a diversidade linguística, impõem, com efeito, às áreas de extrema periferia uma «dupla», uma
adaptação ainda mais profunda do que noutros locais ao formulário e à ideologia dos trovadores. Quer dizer que aqui
a nova conceção da poesia sofre a ação transformadora e simultânea de duas forças: ela deve não só subordinar-se às
estruturas de uma outra língua, mas igualmente é forçada a adaptar-se a uma diferente conformação social e a um
substrato cultural diferente.
Estas áreas extremas são a periferia siciliana, onde a influência dos trovadores chega do Norte de Itália, já
parcialmente modificada e cujo centro catalisador é a corte palermitana de Frederico II, e, na outra extremidade, a
periferia galego-portuguesa, que é a que mais diretamente nos interessa.
A área galego-portuguesa recebe a nova conceção da poesia através da Catalunha e sobretudo através de
Toledo. Com efeito, é lá que encontramos, sobretudo durante todo o século XIII (e até à morte de Afonso X, em 1284),
o principal centro de recolha, adaptação e distribuição no ocidente peninsular dos elementos ideológicos e formais da
poesia provençal. É também lá que encontramos, em plena área linguística castelhana, o primeiro centro de poesia
galego-portuguesa, de que a corte dos reis de Leão e Castela, sobretudo de Afonso «el Sabio», constitui o suporte
económico e o ambiente adaptador e condicionante. Esta coexistência pode explicar ao mesmo tempo a presença na
poesia galego-portuguesa da influência da poesia dos trovadores e a forma atenuada e contaminada que ela tem aí
em relação à poesia provençal, quer dos occitânios, quer dos catalães, e também as analogias, sem dúvida
surpreendentes, destas atenuações e modificações em relação às atenuações e modificações que o ensino dos
trovadores sofre junto dos poetas sicilianos.
Tudo isso não passa de uma hipótese, evidentemente, e uma hipótese fundamentada num certo número de
dados suscetíveis de serem coordenados num contexto logicamente possível e historicamente verosímil. Uma
hipótese de trabalho, claro. Agora o que é preciso é verificar esta hipótese: dever-se-ia estudar cuidadosamente todos
os dados literários, linguísticos, históricos, sociológicos; dever-se-ia submeter a uma análise minuciosa tudo o que,
aparentemente, constitua prova positiva ou negativa; dever-se-ia examinar as possíveis interferências de outros
elementos e avaliar a importância que eles têm. Vou explicar melhor este último ponto.
A nossa hipótese supõe que as mutações sofridas pela poesia dos trovadores na área galego-portuguesa tenham
sido provocadas principalmente por três elementos: o afastamento desta poesia do lugar de nascença, a mediação de
uma área intermédia, a tradução-adaptação para uma língua e um meio cultural diferentes.
Mas o aspeto particular que a influência provençal toma na área galego-portuguesa poderia ser a consequência,
mais do que todas estas passagens, da ação direta de alguns trovadores da decadência presentes na corte de Toledo e

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portadores de uma conceção da poesia já deformada, deslizando para manifestações menos respeitosas dos modelos
dos trovadores da idade do ouro. Ou então a influência destes trovadores deveria ter-se combinado com os outros
motivos de mutação para acentuar este processo.
Os primeiros nomes que se poderiam citar são, por exemplo, os de Bonifácio Calvo e de Guiraut Riquier. Todavia,
penso que esta hipótese, ainda que possível, não é provável. Com efeito, no caso de Bonifácio Calvo, trata-se de um
trovador italiano do qual eu diria que foi maior a influência que ele sofreu da poesia galego-portuguesa do que aquela
que exerceu sobre o meio toledano; no outro caso, sabemos que Guiraut Riquier viveu durante muito tempo na corte
de Afonso X e que era muito considerado e protegido pelo rei, mas não há nenhum testemunho direto, e indiretos
muito poucos, atestando que ele tenha sido considerado e aceite no animado grupo dos poetas galego-portugueses
da corte de Toledo; eu diria mesmo que ele nunca conseguiu integrar-se nesse grupo, logo, não deveria ter exercido
uma grande influência – quando muito, a influência foi mínima  sobre o processo de mutação e de aclimatação das
formas trovadorescas da poesia. É também uma hipótese, e uma hipótese a verificar, evidentemente. De qualquer
modo, não se deve esquecer que a atividade de Bonifácio Calvo e de Guiraut Riquier na corte de Toledo é posterior
aos inícios da poesia cortês galego-portuguesa, o que limita a possibilidade da sua influência nas mutações seguintes e
não a admite para as primeiras adaptações.
Então vejamos o problema: por que vias a poesia dos trovadores chegou à área galego-portuguesa e através de
que passagens; de que maneira exerceu ela a sua influência e em que medida ela foi assimilada pelos poetas galego-
portugueses; por que razão as duas áreas extremas da România provençalizante apresentam analogias tão acentuadas
e em que relação se encontram com a fonte da nova ideologia cortês e com as áreas intermédias catalã e lombarda, e,
enfim, quais são as analogias, e se as há, entre estas áreas extremas e as áreas aloglotas limítrofes à área occitânica ou
ligadas a ela por canais diretos (Alemanha e Inglaterra).
Ao chegar ao fim desta exposição, estamos muito longe de ter esgotado a lista dos problemas da poesia lírica
galego-portuguesa. Poderia tratar ainda de problemas de crítica textual, inumeráveis e, por vezes, difíceis de resolver;
poderia abordar as questões de métrica, essas também numerosas e apaixonantes; poderia, enfim, discutir as
questões de ordem literária, porque é preciso não esquecer que se trata de uma poesia que muitas vezes nos oferece
espécimes muito sugestivos, textos de um grande valor absoluto. Por exemplo, as cantigas d’amigo de Martin Codax
de que podemos apreciar também o som, isto é, a melodia que nos foi conservada pelo famoso pergaminho de Vindel,
ou ainda as cantigas d’amor de Johan Garcia de Guilhade, esse inventor estranho e fantasioso, cujas criações poéticas
são sempre encantadoras, ou, enfim, a cantiga d’amigo do tipo de «romaria» Sedia-m’eu na ermida de San Simhon,
que é atribuída a um poeta, Mendinho, completamente desconhecido e autor deste único texto, que, todavia, é uma
verdadeira obra de arte, um texto que se poderia analisar para descobrir nele todas as implicações poéticas, utilizando
para isso os instrumentos mais sofisticados da crítica literária de hoje. E são numerosos os textos que mereceriam a
atenção dos analistas da literatura, além da dos filólogos.
GIUSEPPE TAVANI , Ensaios Portugueses: Filologia e Linguística, cap. I, Lisboa, IN-CM, 1988 (com adaptações).

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BIBLIOGRAFIA

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